Entendendo a Linguagem da Política – Eric Voegelin

“Entendendo a Linguagem da Política”, texto de Eric Voegelin, foi publicado originalmente aqui.


A ciência política está sofrendo de uma dificuldade que se origina em sua própria natureza enquanto ciência do homem em sua existência histórica. Com efeito, o homem não espera que a ciência explique sua vida a ele, e quando o teórico aborda a realidade social, este descobre que o campo havia sido invadido por algo que pode ser chamado de auto-interpretação da sociedade. A sociedade humana não é meramente um fato ou um evento no mundo externo a ser estudado por um observador, à semelhança de um fenômeno natural. Embora tenha a externalidade presente como um de seus componentes importantes, ela é, como um todo, um pequeno mundo, um cosmion, iluminado com significado a partir de seu interior pelos seres humanos que continuamente a criam e a sustentam como o modo e a condição de sua auto-realização.

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Ela é iluminada por meio de um elaborado simbolismo, em vários graus de compactação e diferenciação — do rito, passando pelo mito, até a teoria — e esse simbolismo a ilumina com significado na medida em que os símbolos tornam a estrutura interna de tal cosmion, as relações entre seus membros e grupos de membros, bem como sua existência como um todo, transparentes para o mistério da existência humana. A auto-iluminação da sociedade por meio de símbolos é parte integrante da realidade social, e pode-se até dizer que é sua parte essencial, pois por meio dessa simbolização os membros de uma sociedade a vivenciam como mais do que um acidente ou uma conveniência; eles a vivenciam como parte de sua essência humana. E, inversamente, os símbolos expressam a experiência de que o homem é plenamente homem em virtude de sua participação em um todo que transcende sua existência particular, em virtude de sua participação no xynon1, o comum, conforme Heráclito o chamou, o primeiro pensador ocidental que diferenciou esse conceito.

Como consequência, toda sociedade humana tem uma compreensão de si mesma por meio de uma variedade de símbolos, às vezes símbolos linguísticos altamente diferenciados, independentes da ciência política; e essa auto-compreensão precede historicamente em milênios o surgimento da ciência política, da episteme politike no sentido aristotélico. Portanto, quando a ciência política começa, ela não começa com uma tabula rasa na qual possa inscrever seus conceitos; ela inevitavelmente começa com o rico conjunto de auto-interpretações de uma sociedade e prossegue com o esclarecimento crítico de símbolos que já existiam socialmente.

Quando Aristóteles escreveu suas obras Ética e Política, quando construiu seus conceitos de polis, de constituição, de cidadão, das várias formas de governo, de justiça, de felicidade, etc., ele não inventou esses termos e lhes conferiu significados arbitrários; ao contrário, ele pegou os símbolos que encontrou em seu ambiente social, examinou com cuidado a variedade de significados que eles tinham na linguagem comum e ordenou e esclareceu esses significados de acordo com os critérios de sua teoria. Quando um teórico reflete sobre sua própria situação teórica, ele se depara com dois conjuntos de símbolos: os símbolos linguísticos que são produzidos como parte integrante da cosmovisão social no processo de sua auto-iluminação e os símbolos linguísticos da ciência política. Ambos estão relacionados um com o outro na medida em que o segundo conjunto é desenvolvido a partir do primeiro por meio do processo que provisoriamente foi chamado de esclarecimento crítico.

No decorrer desse processo, alguns dos símbolos que ocorrem na realidade serão descartados porque não podem ser usados na economia da ciência, enquanto novos símbolos serão desenvolvidos na teoria para a descrição criticamente adequada dos símbolos que fazem parte da realidade. Se o teórico, por exemplo, descreve a concepção marxiana do reino da liberdade, a ser estabelecido por uma revolução comunista, como uma hipóstase imanentista de um símbolo escatológico cristão, o símbolo “reino da liberdade” faz parte da realidade; ele integra um movimento secular do qual o movimento marxista é uma sub-divisão, enquanto termos como “imanentista”, “hipóstase” e “escatologia” são conceitos da ciência política. Os termos usados na descrição não ocorrem na realidade do movimento marxista, enquanto o símbolo “reino da liberdade” é inútil no âmbito da ciência crítica. Portanto, não existem dois conjuntos de termos com significados diferentes nem um conjunto de termos com dois conjuntos distintos de significados; existem, sim, dois conjuntos de símbolos com uma grande área de fonemas sobrepostos.

Além disso, na realidade, os símbolos são, em grande parte, o resultado de processos de esclarecimento, de modo que os dois conjuntos também se aproximam com frequência em relação a seus significados e, às vezes, até alcançam a identidade. Essa situação complicada é inevitavelmente uma fonte de confusão; em particular, é a fonte da ilusão de que os símbolos usados na realidade política são conceitos teóricos. Essa ilusão confusa [de que há um conjunto de símbolos linguísticos quando, na verdade, há dois] infelizmente corroeu profundamente a ciência política contemporânea.

Não se hesita, por exemplo, em falar de uma “teoria contratual do governo”, ou de uma “teoria da soberania”, ou de uma “teoria marxista da história”, quando, na verdade, é bastante duvidoso que qualquer uma dessas supostas teorias possa ser qualificada como teoria, na acepção crítica; e as volumosas histórias da “teoria política” trazem uma exposição de símbolos que, em sua maior parte, têm muito pouco de teórico. Essa confusão destrói até mesmo alguns dos ganhos que já foram obtidos na ciência política na antiguidade. Veja, por exemplo, a chamada teoria do contrato. Nesse caso, ignora-se o fato de que Platão fez uma análise muito completa do símbolo do contrato. Ele não apenas estabeleceu seu caráter não-teorético, mas também explorou o tipo de experiência que está em sua raiz.

Ademais, ele introduziu o termo técnico doxa para a classe de símbolos da qual a “teoria do contrato” é um exemplo, a fim de distingui-los dos símbolos da teoria. Atualmente, os teóricos não usam o termo doxa para esse fim, nem desenvolveram um equivalente — a distinção se perdeu. Em vez disso, o termo “ideologia” entrou em voga e, em alguns aspectos, ele está relacionado à doxa platônica. Contudo, tal termo tornou-se uma fonte adicional de confusão porque, sob a pressão daquilo que Mannheim chamou de allgemeine Ideologieverdacht, a suspeita geral de ideologia, seu significado foi estendido a ponto de abranger todos os tipos de símbolos usados em proposições sobre política, incluindo os símbolos da própria teoria; atualmente, há muitos cientistas políticos que chamariam até mesmo a episteme platônico-aristotélica de ideologia.

Um outro sintoma dessa confusão são certos hábitos de discussão. Mais de uma vez, em uma discussão sobre um tópico político, aconteceu de um aluno — e nem sempre um aluno — me perguntar como eu definia o fascismo, o socialismo ou algum outro ismo dessa ordem. E, mais de uma vez, tive de surpreender o questionador — que aparentemente, como parte de uma educação universitária, havia adquirido a idéia de que a ciência era um depósito de definições de dicionário — com minha garantia de que não me sentia obrigado a entrar em tais definições, porque os movimentos do tipo sugerido, juntamente com seus simbolismos, faziam parte da realidade, que apenas os conceitos podiam ser definidos, mas não a realidade, e que era altamente duvidoso que os símbolos linguísticos em questão pudessem ser esclarecidos criticamente a ponto de servirem para qualquer uso cognitivo na ciência.

[As] reflexões anteriores devem ter deixado claro que a tarefa não será muito simples se a investigação for conduzida de acordo com os padrões críticos de uma busca pela verdade. Os conceitos teoréticos e os símbolos que fazem parte da realidade devem ser cuidadosamente distinguidos; na transição da realidade para a teoria, os critérios empregados no processo de esclarecimento devem ser bem definidos; e o valor cognitivo dos conceitos resultantes deve ser testado colocando-os em contextos teoréticos mais amplos. O método assim delineado é, substancialmente, o proceder aristotélico.

Notas:

  1. O termo “xynon” (ξυνόν) em Heráclito representa a idéia de um princípio comum ou universal que une todas as coisas, sublinhando a interconexão de tudo no cosmos e a necessidade de os seres humanos viverem em sintonia com essa ordem. (nota do tradutor). ↩︎

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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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