O Fausto de Goethe – George Santayana

“O Fausto de Goethe” é ensaio extraído de Three Philosophical Poets (Lucretius, Dante, and Goethe).

Quando nos aproximamos do terceiro de nossos poetas filosóficos, há um escrúpulo que pode passar pela mente. Lucrécio foi sem dúvida um poeta filosófico; todo o seu poema é dedicado a expor e defender um sistema de filosofia. Em Dante, o caso é quase tão simples. A Divina Comédia é uma fábula moral e pessoal; no entanto, não somente muitas passagens são explicitamente filosóficas, mas o todo é inspirado e controlado pelos mais definidos sistemas religiosos e códigos morais. Dante também é, sem dúvida, um poeta filosófico. Mas Goethe era um filósofo? E Fausto é um poema filosófico?

Se o dizemos, deve ser dando uma certa margem de manobra aos nossos termos. Goethe era o mais sábio da humanidade; talvez sábio demais para ter sido um filósofo no sentido técnico, ou para tentar capturar este mundo selvagem através de uma terminologia de inspiração cerebral. É verdade que ele foi durante toda sua vida um seguidor de Espinosa, e que pode ser chamado, sem hesitação, de um naturalista em filosofia e de um panteísta. Sua adesão à atitude geral de Espinosa, entretanto, não excluiu uma grande plasticidade e liberdade em seus próprios pontos de vista, mesmo nos pontos mais fundamentais. Assim, Goethe não admitiu a interpretação mecânica da natureza defendida por Espinosa. Ele também atribuiu, pelo menos às almas privilegiadas — como a sua —, um tipo de imortalidade mais pessoal do que a permitida por Espinosa. Ademais, nutriu uma generosa simpatia com as dramáticas explicações da natureza e da história atual na Alemanha de sua época. Todavia, tal idealismo transcendental, fazendo do mundo a expressão de um esforço espiritual, foi uma inversão total dessa convicção —  tão profunda em Espinosa — de modo que todas as energias morais têm residência em criaturas particulares, elas próprias faíscas em um mundo absolutamente infinito e sem propósito. Em uma palavra, Goethe não era um filósofo sistemático. Seu sentimento pela marcha das coisas e pelo significado de grandes personagens e grandes idéias era de fato filosófico, embora mais romântico do que científico. Seus pensamentos sobre a vida eram atuais e variados. Eles davam voz à genialidade e ao aprendizado de sua época. Eles não expressavam uma atitude pessoal rígida, radical e unificada, transmissível a outros tempos e pessoas. Com efeito, os filósofos têm essa vantagem sobre os homens de letras, uma vez que suas mentes, sendo mais orgânicas, podem propagar-se mais facilmente. Eles espalham menos influência, mas mais sementes.

Se de Goethe nos voltarmos para Fausto — e é apenas como autor de Fausto que iremos considerá-lo — a situação não é menos ambígua. Na peça, tal como o jovem Goethe a escreveu pela primeira vez, a filosofia apareceu na primeira linha — Hab nun ach die Philosophey; mas ela apareceu ali, e em toda a peça, meramente como uma experiência humana, uma paixão ou uma ilusão, um fundo de imagens ou uma arte ambiciosa. Mais tarde, é verdade, sob o feitiço da moda e de Schiller, Goethe cercou suas cenas originais com outras, como o prólogo no céu ou a apoteose de Fausto, nas quais uma filosofia de vida foi indicada; isto é, a de que aquele que se esforça se perde  —  mas nessa perdição encontra sua salvação. Essa idéia manteve intacta toda aquela sabedoria satírica e mefistofélica com a qual todo o poema abunda, as partes posteriores não menos do que as anteriores. Francamente, ela foi a moral que enfeitou o conto, sem ter sido a semente dele, e sem sequer expressar justamente o espírito que ele respira. Fausto permaneceu um poema essencialmente romântico, escrito para dar vazão a um gênio prenhe e vívido, para tocar o coração, para desorientar a mente com um carnaval de imagens, para divertir, para emocionar, para humanizar; se for preciso falar de filosofia, havia muitas máximas expressas no poema, e muitos insights, meio traídos, que ultrapassavam em valor filosófico a moral tardia e oficial que o autor afixou, e que ele mesmo nos advertiu para não levarmos muito a sério.1

Fausto não é, portanto, um poema filosófico, seguindo uma linha de pensamento explícita ou deliberada; e ainda oferece uma solução para o problema moral da existência, tão verdadeira quanto os poemas de Lucrécio e Dante. Ouvi dizer que as filosofias são doces, mas aquelas inauditas podem ser mais doces. Elas podem ser mais puras e mais profundas por serem adotadas inconscientemente, por serem vividas em vez de ensinadas. E não se trata apenas de dizer o que poderia ser dito de cada obra de arte e de cada objeto natural, que poderia ser feito o ponto de partida para uma cadeia de inferências que deveria revelar todo o universo, tal como uma flor numa parede rachada. É para dizer, ao contrário, que uma tensão vital em direção a um ideal — definido porém latente, quando domina uma vida inteira — pode expressar aquele ideal mais plenamente do que as palavras mais bem escolhidas.

Ora, Fausto é a espuma no topo de duas grandes ondas da aspiração humana, que se fundem e se amontoam juntas, — a onda do romantismo que se eleva das profundezas das tradições e do gênio nórdico, e a onda de um novo paganismo vindo da Grécia através da Itália. Elas não são filosofias a serem lidas em Fausto pelo crítico; são paixões que se infiltram no drama. Trata-se do drama de uma aventura filosófica; uma rebelião contra a convenção; uma fuga para a natureza, para a ternura, para a beleza; e depois um retorno à convenção novamente, sentindo que a natureza, a ternura e a beleza, salvo se forem encontradas lá, não serão encontradas de forma alguma. Goethe nunca retrata, como faz Dante, o objeto que seu herói está perseguindo; ele se contenta em retratar a perseguição. Como Lessing, em seu famoso pedido de desculpas, ele prefere a busca do ideal ao próprio ideal; talvez, como no caso de Lessing, porque a esperança de realizar o ideal, e o interesse em realizá-lo, estavam começando a abandoná-lo.

O caso é um pouco como o de Dante teria sido se, em vez de reconhecer e amar Beatriz à primeira vista e elevar-se para uma visão do mundo eterno — pronta e perfeitamente ordenada — Dante tivesse passado de amor em amor, de donna gentile para donna gentile, sempre ansiando pelos olhos de Beatriz, sem nunca encontrá-los. A Divina Comédia teria então sido apenas comédia humana, embora pudesse sugerir e exigir a consumação mesma que a própria Divina Comédia retrata; e, sem expressar essa consumação, nossa comédia humana poderia ter fornecido o material e o momentum necessários para tal, de tal modo que, se alguma vez essa consumação viesse a ser expressa, ela seria mais profundamente sentida e compreendida de maneira mais adequada. Dante nos dá um objetivo filosófico, e temos que recordar e refazer a jornada; Goethe nos dá uma jornada filosófica, e temos que adivinhar o objetivo.

Goethe é um poeta romântico; um romancista em verso. É um filósofo da experiência no que diz respeito ao indivíduo; o filósofo da vida, uma vez que a ação, a memória ou o solilóquio podem colocar a vida diante de cada um de nós, à sua vez. Ora, o aspecto mais apaixonante do romantismo consiste em entender aquilo que você sabe que é um mundo independente e antigo como sendo a matéria para as suas próprias emoções. O selvagem — ou o animal —, o qual não pode ter consciência alguma da natureza ou da história, não poderia ser romântico em relação a elas, e nem em relação a si mesmo. Ele seria brandamente idiota, e a tudo aceitaria sem suspeitas sobre o que há no seu íntimo. O romancista, portanto, deve ser um homem civilizado para que sua primitividade e egoísmo possam ter algo de paradoxal e consciente acerca delas; e para que sua vida possa conter uma rica experiência, e sua reflexão possa brincar com todas as variedades de sentimentos e pensamentos. Ao mesmo tempo, em seu gênio íntimo, ele deve ser um bárbaro, uma criança, um transcendentalista, para que sua vida lhe pareça absolutamente atual, autodeterminada, imprevista e imprevisível. É parte de sua inspiração acreditar que ele cria um novo céu e uma nova terra a cada revolução em seu estado de espírito ou em seus propósitos. Ele ignora, ou procura ignorar, todas as condições da vida, até que, talvez, vivendo ele as descubra pessoalmente.2 Como Fausto, ele desrespeita a ciência, e está disposto a provar da magia, a qual torna a vontade de um do homem a mestra do universo em que ele aparenta viver. Ele renega toda autoridade, exceto aquela exercida misteriosamente sobre ele por sua profunda fé em si mesmo. Ele é sempre honesto e corajoso; mas é sempre diferente, e absolve-se de seu passado tão logo tenha crescido ou esquecido. Ele é inclinado a ser voluntarioso e temerário, justificando-se com base no fato de que toda experiência é interessante, que as fontes dela são inesgotáveis e sempre puras, e que o futuro de sua alma é infinito. No herói romântico, o homem civilizado e o bárbaro devem ser combinados; ele deve ser o herdeiro de toda civilização e, no entanto, deve levar a vida com arrogância e egoísmo, como se fosse uma experiência pessoal absoluta.

Essa combinação singular foi muito bem exemplificada no Doutor Johannes Faustus, uma figura meio histórica, meio lendária, familiar a Goethe em sua infância de fantoches e chapbooks.3 Um aventureiro, tanto no sentido romântico quanto no vulgar da palavra — um pouco como Paracelso ou Giordano Bruno —, o Doutor Faustus sentiu o mistério da natureza, desprezou a autoridade, creditou a magia, viveu por impostura e fugiu da polícia. Sua blasfêmia e sua conduta maliciosa, juntamente com suas artes mágicas, fizeram dele, mesmo em sua vida, um personagem escandaloso e interessante. Mal havia morrido quando as lendas sobre seu nome se reuniram. Foi publicado no exterior que ele havia vendido sua alma ao diabo, em troca de vinte e quatro anos de prazeres selvagens sobre a terra.

Tal lenda supunha oferecer um exemplo terrível e edificante, um aviso a todos os cristãos para evitar as armadilhas da ciência, do prazer e da ambição. Essas coisas haviam lançado o Doutor Faustus no fogo do inferno; seu cadáver, encontrado de face para baixo, não podia ser virado de costas. No entanto, podemos suspeitar que, mesmo no início, as pessoas reconheciam no Doutor Faustus um irmão mais corajoso, um recriminado, de certo modo invejável, que se atreveu a saborear as coisas boas desta vida acima das tristezas vagamente prometidas para a outra. Tudo o que o Renascimento valorizava estava aqui representado tal como o presente do diabo; e o homem comum poderia muito bem duvidar se era a religião ou a vida mundana que assim se tornava menos amável. Sem dúvida, os autores luteranos do primeiro chapbook sentiram — e sentiram com razão — que aquelas belas coisas que tentaram Faustus eram pouco evangélicas, pagãs e populosas; no entanto, não podiam deixar de admirá-las e até mesmo de cobiçá-las, especialmente quando os primeiros ardores do reavivamento do Velho Cristianismo tinham tido tempo de esfriar.

Marlowe, que escreveu apenas alguns anos depois, iniciou a reabilitação do herói. Seu Faustus ainda está condenado, mas ele se transforma no tipo de personagem que Aristóteles aprova para um herói da tragédia, essencialmente humano e nobre, mas desviado por algum vício ou erro desculpável. O público de Marlowe veria no Doutor Faustus um homem e um cristão como eles, carregado um pouco longe demais pela ambição e pelo amor ao prazer. Ele não é nenhum descrente radical, nem um natural companheiro para o diabo, sem consciência e pagão, como o vilão típico da Renascença. Pelo contrário, ele se tornou um bom protestante, e se apega mansamente a todas as partes do credo que expressam seus afetos espontâneos. Um bom anjo é frequentemente ouvido sussurrando ao seu ouvido; e se o anjo mau finalmente prevalece, é apesar do remorso e hesitação contínuos da parte do Doutor. Este excelente Faustus é condenado por acidente ou por predestinação; ele é espancado pelo diabo e proibido de se arrepender após ter realmente se arrependido. O terror da conclusão é assim intensificado; vemos um homem essencialmente bom, pois em um momento de paixão ele havia renunciado a sua alma, impelido contra sua vontade ao desespero e à condenação. A alternativa de uma solução feliz está quase à mão; e é apenas um gosto persistente para o esquisito e o horrível, enraizado nesse tipo de melodrama, que o manda para o inferno gritando.

O que torna a conclusão de Marlowe mais violenta e mais anti-filosófica é o fato de que, para qualquer um não dominado pela convenção, o bom anjo, no diálogo, parece apresentar o pior dos argumentos. Tudo o que ele tem a oferecer é uma admoestação amarga e advertências alheias:

Ó Faustus, ponha esse maldito livro de lado,
E não olhes para ele, para que não tente a tua alma,
E amontoe a ira pesada de Deus sobre a tua cabeça.
Leia, leia as Escrituras; isso é blasfêmia….
Doce Faustus, pense no céu e nas coisas celestiais.

Ao qual o anjo mau responde:

Não, Faustus, pense na honra e na riqueza.

E em outro lugar:

Vá em frente, Faustus, nessa famosa arte,
Onde todo o tesouro da natureza está contido.
Sê tu na terra como Jove no céu, 
Senhor e comandante destes elementos.

Não há dúvida de que o diabo aqui representa o ideal natural de Faustus, ou de qualquer criança da Renascença; ele apela às ambições vagas, mas saudáveis, de uma alma jovem, que julgaria o mundo. Em outras palavras, esse diabo representa o verdadeiro bem, e não é de se admirar que o honesto Faustus não possa resistir a suas sugestões. Nós gostamos dele por seu amor à vida, por sua confiança na natureza, por seu entusiasmo pela beleza. Ele fala por todos nós quando chora:

Foi este o rosto que lançou mil navios
E incendiou as torres sem-topo de Ilium?

Mesmo suas brincadeiras irreverentes, sendo dirigidas contra o papa, o tornam ainda mais cativante para um público anticlerical; e ele apela para cortesãos e cavalheiros por seu elevado desprezo poético pelas profissões tão cobiçadas, como o direito, a medicina ou a teologia. Em uma palavra, o Faustus de Marlowe é um mártir de tudo o que o Renascimento prezava — poder, conhecimento aguçado, empreendimento, riqueza e beleza.

O quanto Marlowe e Goethe estão em vias de reverter a filosofia cristã de vida pode ser visto se compararmos Fausto por um momento (como, em outros aspectos, tem sido feito com freqüência) com O Mágico Maravilhoso de Calderon.4 Esse herói anterior, São Cipriano de Antioquia, é como Fausto em ser um erudito, assinando sua alma ao diabo, praticando magia, abraçando o fantasma da beleza, e sendo finalmente salvo. Aqui termina a analogia. Cipriano, longe de estar enojado com toda teoria, e particularmente com a teologia, é um filósofo pagão ansioso por Deus, e trabalhando seu caminho, com plena fé em seu método, em direção à ortodoxia cristã. Ele amontoa o diabo em argumentos escolásticos sobre a unidade de Deus, seu poder, sabedoria e bondade. Ele se apaixona, e vende sua alma apenas na esperança de satisfazer sua paixão. Ele estuda magia principalmente pela mesma razão; mas a magia não pode dominar o livre arbítrio da senhora cristã que ele ama (uma moderna e muito espanhola, embora seja suposto que adornada à antiga Antioquia). O diabo pode fornecer apenas um falso fantasma de sua pessoa, e quando Cipriano se aproxima dela e levanta seu véu, ele encontra uma horrível cabeça de morto por baixo; porque Deus pode fazer milagres para limitar os de qualquer mágico, e pode vencer o diabo em seu próprio jogo. Estonteado com isso, Cipriano torna-se um cristão. Meio nu, extasiado, tomado por um louco, ele testemunha em voz alta e persistente o poder, a sabedoria e a bondade do único Deus verdadeiro; e, como a perseguição de Decius continua, ele é precipitado para o martírio. Sua dama, condenada também pela mesma causa, o encoraja por sua atitude heróica e por suas palavras. Sua paixão terrena está morta; mas suas almas estão unidas na morte e na imortalidade.

Nesse drama, vemos o xeque-mate mágico dos milagres, a dúvida cedendo à fé, a pureza resistindo à tentação, a paixão transformada em zelo, e todas as glórias do mundo desmoronando diante da desilusão e do ascetismo. Essas glórias não são nada, nos diz o poeta, mas pó, cinzas, fumaça e ar.

O contraste com o Fausto de Goethe não poderia ser mais completo. Ambos os poetas tomam as maiores liberdades com sua cronologia, mas o espírito de seus dramas é notavelmente verdadeiro para as respectivas épocas em que eles supostamente devem ocorrer. Calderon glorifica o movimento que vai do paganismo ao cristianismo. A filosofia na qual esse movimento culminou — a ortodoxia católica — ainda domina a mente do poeta, não de uma forma superficial, mas de modo a acender sua imaginação, e tornar seus personagens sublimes e seus versos extasiantes. O Fausto de Goethe, pelo contrário, glorifica o retorno do cristianismo ao paganismo. Mostra o espírito da Renascença libertando a alma, e rompendo os laços da fé tradicional e da moral tradicional. Esse espírito, depois de se manifestar brilhantemente na época do Fausto histórico, parecia estar sufocado no grande mundo durante o século XVII. Os personagens e as leis dos homens haviam reafirmado sua antiga lealdade ao cristianismo, e o Renascimento sobreviveu apenas abstratamente, em erudição ou nas belas artes, às quais continuou a emprestar uma certa elegância clássica ou pseudo clássica. Na época de Goethe, porém, uma segunda Renascença estava ocorrendo na alma dos homens. O amor à vida, primordial e aventureiro, estava ganhando força em muitos indivíduos. No movimento romântico e na Revolução Francesa, esse amor pela vida se libertava dos compromissos e convenções políticas que o sufocavam há duzentos anos. O herói de Goethe encarna essa segunda, a emancipação romântica da mente, que durante muito tempo foi uma aluna pouco disposta à tradição cristã. Ele chora pelo ar, pela natureza, por toda a experiência. Cipriano, por outro lado, um aluno pouco disposto ao paganismo, havia ansiado pela verdade, pela solidão e pelo céu.

Tal era a lenda que, para grande sorte da humanidade, fascinou o jovem Goethe, e criou raízes em sua fantasia. Em torno dele se reuniram as experiências e insights de sessenta anos bem preenchidos: Fausto tornou-se a autobiografia poética e o testamento filosófico de Goethe. Ele o encheu de todo entusiasmo que diversificou sua própria vida, desde a grande alternativa da arte romântica ou clássica, até a controvérsia entre o neptunismo e o vulcanismo na geologia, e até sua admiração paternal por Lord Byron. No entanto, apesar das liberdades que ele adotou com a lenda, e do giro pessoal que lhe deu, nada em suas associações históricas lhe escapou. Sua vida em Frankfurt e em Estrasburgo tornou a cena medieval familiar à sua fantasia; Herder lhe comunicou um culto imaginativo em relação a tudo o que era nacional e característico na arte e nos costumes; o feitiço da arquitetura gótica havia caído sobre ele; e tinha aprendido a sentir em Shakespeare a infinita força da sugestão nos detalhes, nos vislumbres multitudinários, na mistura realista da tristeza e da alegria, num humilde realismo exterior, em meio a lírica e a metafísica difusão das paixões. O sentido da beleza clássica que havia inspirado Marlowe com linhas imortais — e que mais tarde iria inspirar sua própria Helena — ainda estava adormecido; mas, ao invés disso, ele havia capturado a loucura humanitária, então prevalecente, por defender e idealizar as vítimas da lei e da sociedade e, entre outras, a pobre garota que, para escapar da desgraça, matou seu filho recém-nascido. Tal vítima de um sedutor egoísta e de um público farisaico foi acrescentar um toque desejável de feminilidade e pathos à história de Fausto: Gretchen deveria ocupar o lugar, pelo menos por hora, da cobiçada Helena.

Essa Gretchen não seria uma criatura comum, mas uma dotada de toda a inocência, doçura, inteligência, fogo e fortaleza que Goethe encontrava, ou pensava encontrar, em suas próprias Gretchens, Kätchens e Frederickes. Porque o jovem Goethe, embora muito instruído, não era um mero estudante de livros; com sua competência humana e capacidade de sucesso, ele se uniu às rajadas de sentimento, aos arrebates irresponsáveis, às tristezas repentinas de um verdadeiro poeta. Ele era um autêntico amante, e um desobediente. Ele podia mergulhar na magia com admiração, em um espírito de aventura semelhante ao de Fausto; podia queimar oferendas em seu sótão até chegar o sol nascente; podia mergulhar no misticismo cristão; e podia, ocasionalmente, brotar do fundo de sua mente inconsciente enchentes de palavras, de imagens e de lágrimas. Ele era um gênio, se é que já existiu algum; e esse gênio, em todo o seu vigor, foi derramado na composição de Fausto, o mais genial dos temas, o mais pitoresco e mágico dos romances.

Na primeira versão do poema de Goethe, antes da história de Gretchen, encontramos o estudioso Fausto, como em Marlowe, soliloquiando sobre a vaidade das ciências. Elas não captam nada da verdade genuína; são verborreias verbais. Elas nem mesmo trouxeram a fama ou a riqueza a Fausto. Talvez a magia possa fazer melhor. O ar estava cheio de espíritos; se eles pudessem ser chamados em nosso auxílio, possivelmente os segredos da natureza poderiam ser desvendados. Poderíamos alcançar a verdadeira ciência, e através dela o poder inimaginável sobre o mundo material. Pois a natureza, segundo Goethe, realmente tem segredos. Ela não está toda aberta a uma eventual inspeção; ela não é um mero mecanismo de partes minúsculas e leis estatutárias. Nossa visão última sobre ela, como nosso primeiro vislumbre, deve ser interpretada; da soma de suas manifestações devemos divisar sua alma. Portanto, somente as artes poéticas e retóricas, como a magia, têm alguma chance de revelá-la e de nos colocar frente a frente com a verdade.

Nessa invocação de espíritos, como faz o Fausto de Goethe, não se trata de vender, ou mesmo de arriscar, a alma. Tal Fausto, ao contrário do de Marlowe, não tem fé e não tem medo. Do ponto de vista da igreja, ele já está condenado como descrente; mas, como descrente, ele está buscando a salvação em outro lugar. Como os espíritos mais corajosos do Renascimento, ele espera encontrar na natureza universal, infinita, plácida, não a censura, mas a fuga da prisão da doutrina e da lei cristãs. Suas artes mágicas são o sacramento que o iniciará em sua nova religião, a religião da natureza. Ele se volta para a natureza também em outro sentido, mais característico da época de Goethe do que da de Fausto. Ele anseia por grandiosas solidões. Ele sente que a luz da lua, as cavernas, as montanhas e as nuvens que o conduzem seriam seu melhor remédio e seus melhores conselheiros. As almas de Rousseau, Byron e Shelley são pré-encarnadas nesse Fausto, o epítome de todas as rebeliões românticas. Eles coexistem ali com as almas de Paracelso e Giordano Bruno. Os aspectos selvagens da natureza, ele pensa, vão derreter e renovar seu coração, enquanto a magia revela os mistérios da lei cósmica e o ajuda a explorá-los.

Cheio dessas esperanças, Fausto abre seu livro de magia ao sinal do Macrocosmo: ele lhe mostra o mecanismo do mundo, todas as forças e eventos jogando-se uns dentro dos outros e formando uma cadeia infinita. O espetáculo o penetra; ele parece ter atingido uma de suas mais queridas ambições. Porém, aqui ele vem de repente ao encontro da outra metade, ou, como Hegel o chamaria, do outro momento da vida romântica. Todo ideal romântico, uma vez realizado, desencanta. Não importa o que alcancemos, nossa insatisfação deve ser perpétua. Assim, a visão do universo, que Fausto agora tem diante de si, é, ele mesmo lembra, apenas uma visão; é uma teoria ou uma concepção.5 Não é uma representação da vida interior do mundo tal qual Shakespeare, por exemplo, a sente e produz. A experiência, tal como ocorre com aquele que vive e trabalha, não é proporcionada por essa visão teórica; na ciência, a experiência se transforma em muitos eventos revisados, a passagem de muita substância por muitas formas. No entanto, Fausto não quer uma imagem ou descrição da realidade; ele anseia por decretar e por se tornar a própria realidade.

Nessa nova busca, ele fixa seu olhar no sinal do Espírito da Terra, o que parece mais propício ao seu desejo atual. Tal sinal é a chave para toda experiência. Toda experiência tenta Fausto; ele não hesita diante de algo que qualquer mortal possa ter suportado; ele está pronto para empreender tudo o que qualquer mortal possa ter feito. Em todos os homens ele viveria; e com o último homem ele se contentará em morrer.6 Tão poderoso é seu desejo de experiência que o Espírito-Terra é suavizado e aparece a seu bel-prazer. Em uma chama vermelha, ele vê seu olhar monstruoso, e seu entusiasmo se transforma em horror. Diante dele se espalha a catarata furiosa e indiscriminada da vida, o fluxo impiedoso, a variedade infinita, a inconstância absoluta dela. Essa vida geral não é para nenhum indivíduo ensaiar; ela explode todos os limites da personalidade. Cada homem pode assimilar apenas aquela parte que se enquadra em seu entendimento, apenas aquele aspecto que as coisas vestem de seu ângulo particular, e a seus interesses particulares. Du gleichst – o Espírito-Terra exclama para ele,-, ,du gleichst dem Geist den du begreifst, nicht mir (“Você é como o espírito que você compreende, não como eu.”).

Essa afirmação – de que a vida possível e boa para o homem é a vida da razão, não a vida da natureza – é difícil para o Fausto romântico, não-intelectual e insaciável. Ele pensa, como muitos outros filósofos do sentimento, que, uma vez que a sua é uma parte da soma das experiências, toda a experiência deve ser parecida com a sua. No entanto, de fato, o oposto está muito mais próximo da verdade. O homem é constituído por suas limitações, por sua posição em contraste com todas as outras posições, e seus propósitos escolhidos entre todos os outros propósitos. Qualquer grande escopo que ele possa alcançar deve ser devido ao seu poder de representação. Sua compreensão pode torná-lo universal; sua vida nunca pode. Fausto, ao ouvir essa frase do Espírito-Terra em partida, sucumbe sob ela. Ele se sente impotente para contradizer o que o tumulto do mundo está trovejando contra ele, mas não aceitará a autoridade inoportuna e castigante de tal verdade. Toda a sua longa experiência que virá dificilmente será suficiente para convencê-lo disso.

Essas são as principais idéias filosóficas que aparecem nas duas versões anteriores ao Fausto de Goethe, o Urfaust e o Fragmento. O que Mefistófeles diz ao jovem estudante é apenas uma expansão inteligente do que Fausto havia dito em seu primeiro monólogo sobre a vaidade da ciência e das profissões aprendidas. Mefistófeles, por sua vez, também encontra cinzas teóricas, e a árvore da vida — verde e cheia de frutos dourados; ele apenas, por possuir mais experiência que o Fausto do segundo momento de desencanto da dialética romântica, prevê que esses frutos dourados também se transformarão em pó na boca, tal como aconteceu no jardim do Éden. A ciência é loucura, mas a vida não é melhor; porque: afinal de contas, a ciência não faz parte da vida?

Quando nos voltamos para a primeira parte de sua forma final, ou para todo o drama, encontramos muitas mudanças e acréscimos que parecem transformar o quadro romântico da cena de abertura, e nos oferecer uma filosofia completa. As mudanças, entretanto, estão mais na expressão do que na substância final, e as adições são principalmente novas ilustrações do tema antigo. As críticas que estudam a Entstehungsgeschichte (“História da origem”) das obras de arte nos ajudam a analisá-las com mais inteligência e a reproduzir com mais precisão o que, em vários momentos, pode ter sido a intenção de seus autores.  No entanto, esses pedaços de informação seriam caros se fôssemos desviados por eles daquilo que dá valor poético e caráter individual ao resultado – sua total idiossincrasia, seu lugar no mundo moral. O lugar no mundo moral do Fausto de Goethe como um todo é apenas o lugar que a cena de abertura lhe deu no início. Preenche mais espaço, toca mais assuntos históricos e poéticos; mas seu centro é o centro antigo, e seu resultado é o resultado antigo. Ele permanece romântico em seus quadros e em sua filosofia.

A primeira adição que promete lançar uma nova luz sobre a idéia do drama é o Prólogo no Céu. Na imitação d’O Livro de Jó, encontramos as estrelas da manhã – os três arcanjos cantando juntos; e depois segue-se uma conversa muito agradável e bem humorada entre o Senhor e Mefistófeles. A cena está no estilo das peças religiosas medievais, e essa circunstância pode nos levar a supor que o ponto em questão era a salvação da alma de Fausto. Mas isso, no sentido literal, está longe de ser o caso. Como em, a questão é quais sentimentos o mortal tentado manterá durante essa vida, e não que destino irá mais tarde tomar seu espírito desencarnado. Os homens mortos, observa Mefistófeles, não lhe interessam. Ele não é um demônio de um inferno subterrâneo, preocupado, por curiosidade ou ambição, em aumentar a população de sombras torturadas naquela fabulosa região. Ele habita na atmosfera da Terra; ele nada sabe dos sóis ou dos mundos, a vida do homem é seu elemento.7 Ele permanece — o que era nas primeiras versões da peça — uma parte do Espírito-Terra, uma de suas encarnações. Seu ofício particular, como veremos aqui, é precipitar aquela destruição contínua que está envolvida na renovação contínua da vida. Ele acha que é muito tolo da parte de Fausto exigir tudo e ficar satisfeito com nada; e sua aposta é a de que Fausto possa ser levado a não exigir nada e ficar satisfeito com o que o acaso lança em seu caminho, que ele lamba o pó, e que o lamba com prazer8, que ele renuncie à dignidade de querer o que não é e não pode ser, e rasteje, como a serpente, gozando do conforto do momento.

Contra isso, o Senhor declara que Fausto é seu servo — o servo, isto é, de um ideal — e declara que quem se esforça por um ideal deve se desviar; contudo, diante de seus erros necessários, o bom homem nunca perde o caminho certo9. Em outras palavras, ter um ideal pelo qual lutar e, como Fausto, nunca se satisfazer, é, em si mesmo, a salvação do homem. Fausto ainda não sabe disso. Ele meio que acredita que há algum bem concreto e último além, e assim é amargo e violento em sua insatisfação; mas na devida época ele virá a ter clareza sobre esse assunto, e compreenderá que só merecem a liberdade e a vida aqueles que todos os dias as conquistam novamente.10 O próprio Mefistófeles, com suas zombarias e seduções, ajuda a manter o mundo em movimento e os homens bem despertos.11 A imperfeição é tudo o que é possível no mundo da ação; mas os anjos podem se reunir e fixar em pensamento as formas perfeitas aproximadas ou sugeridas pela existência.12

Nas duas versões anteriores de Fausto, Mefistófeles aparece sem introdução; nós o encontramos divertindo-se dando conselhos ambíguos a um estudioso inocente, e acompanhando Fausto em suas andanças. Seu tom zombeteiro e seus poderes miraculosos o marcam imediatamente como o diabo da lenda; mas várias passagens provam que ele é um representante do Espírito-Terra evocado por Fausto no início.13 Os demônios da religião medieval popular não foram recortados de um tecido inteiriço: eles eram simplesmente os demônios neoplatônicos do ar, juntamente com os deuses do Olimpo e as deidades quotônicas mais antigas, enegrecidos pelo zelo sectário e degradados por uma imaginação grosseira e tímida. Muitos desses espíritos pagãos, de fato, eram originalmente impetuosos e maliciosos, já que nem todos os aspectos da natureza são adoráveis ou propícios, nem tampouco o são todos os sonhos dos homens. Porém, no seu conjunto, eles eram sem malícia em sua vida irresponsável e elementar — poderes alados que se movimentam pelo espaço entre a Terra e a Lua. Eles não eram habitantes de um inferno subterrâneo; não eram atormentadores nem torturadores. Frequentemente, eles se aglomeravam e cantavam alegremente, como fazem em Fausto e até mesmo no Mágico Maravilhoso; e se em outros momentos eles coaxavam ou piavam, era como sapos e corujas, criaturas menos adoráveis que beija-flores, mas não menos naturais.

Um desses espíritos menos amáveis presentes na atmosfera, sobretudo em seu fogo ambiente, é o Mefistófeles de Goethe. Ele próprio explica de forma profunda e engenhosa por que ele deliciou-se no mal e não no bem. A escuridão ou o nada, diz ele, existia sozinha antes do nascimento da luz. Nada ou escuridão ainda permanece como fundamental e, em sua mente, como a melhor parte dessa mistura de ser e privação que chamamos de existência. Nada do que existe pode ser preservado, nem merece ser; portanto, teria sido melhor se nada tivesse existido.14 Negar o valor do que quer que seja, e desejar destruí-lo, segundo ele, é a única ambição racional; ele é o espírito que nega continuamente, ele é o eterno Não. Esse espírito — que poderíamos comparar com o Marte de Lucrécio — tem grande poder no mundo; cada mudança, em um de seus aspectos, expressa-o, uma vez que, em um de seus aspectos, cada mudança é a destruição de algo. Tal espírito está sempre disposto ao mal, pois deseja a morte, com toda a loucura, o crime e o desespero que ministra até à morte. Porém, desejando o mal, ele está sempre realizando o bem; porque esses males produzem o nada, e o nada é o verdadeiro bem. O famoso coro —

Ein Teil von jener Kraft (Uma parte desse poder)
Die stets das Böse will, und stets das Gute schafft (Que sempre quer o mal, e sempre cria o bem)

está longe de expressar o lugar-comum hegeliano com o qual é normalmente identificado. Isso não significa que a destruição serve a um bom propósito, afinal, porque abre o caminho para “algo superior”. Mefistófeles não é um daqueles filósofos que pensam que a mudança e a evolução são um bem em si mesmas. Ele não admite que sua atividade, embora visando o mal, contribui involuntariamente para o bem. Ele contribui para o bem intencionalmente, porque o mal que faz é, em sua opinião, menor do que o mal que ele cura. Ele é o cirurgião cruel para a doença da vida.

Se ele admitisse a outra interpretação, seria ipso facto convertido ao ponto de vista do Senhor, presente no Prólogo. Sua malandragem se tornaria, aos seus próprios olhos, um serviço necessário na causa da vida, — uma condição de vida que é realmente vital e que vale a pena viver. Ele poderia então continuar suas operações maliciosas e espirituosas, sem uma gota a mais de bondade, e ainda ser sancionado em tudo pelo Absoluto, adotando o sorriso e a auréola do otimista. Teria percebido que tal se tratava do tempero da vida, do fermento e da pimenta vermelha do mundo, necessários para o perfeito sabor da mistura providencial. Como está, Mefistófeles é muito mais modesto. Ele diz que quer o mal, porque o que ele quer é contrário ao que suas vítimas querem; ele é o grande contraditor, o detonador das jovens esperanças. No entanto, faz o bem, porque tais jovens esperanças, se deixadas por si, levariam à miséria e ao absurdo. Sua contradição provoca a insensatez de viver à flor da pele. Com certeza, como ele continua a reconhecer, o poder destrutivo nunca conquista uma vitória decisiva. Enquanto tudo cai sucessivamente sob sua foice, as sementes da vida estão sendo espalhadas perpetuamente pelas suas costas. A Vênus Lucreciana tem sua vez no trabalho, assim como o Marte Lucreciano. A gangorra eterna, o antigo fluxo, continua sem fim e sem atenuação.

Assim, Mefistófeles tem uma filosofia, e ela é justificável e consistente a seus próprios olhos; no entanto, no decorrer do drama, ele usa várias máscaras e tem vários humores. Como Goethe finalmente o concebeu, tudo o que ele diz e faz não pode ser tornado totalmente compatível com a essência de sua mente. A figura dramática de Mefistófeles já havia sido fixada muito antes em suas características gráficas. Mefistófeles, por exemplo, é extremamente antigo; ele se sente mais velho do que o universo. Não há nada de novo para ele; ele não tem ilusões. Seu sentimento por qualquer pessoa que ele vê é sufocado — como acontece com pessoas idosas — por seus sentimentos pelo número infinito de pessoas de que ele se lembra. Ele é insensível, porque é impessoal e universal. Ele é totalmente desumano; não tem a vergonha nem os gostos do homem. Com frequência assume a forma de um cão — é sua máscara favorita neste carnaval terrestre. Ele não é avesso à culinária das bruxas, com seu burburinho insensato e sua obscenidade. Coloca-se de bom humor com a etiqueta grotesca do mundo espiritual, observa todas as regras sobre assinar contratos em sangue, bater três vezes e respeitar pentagramas. Por que ele não deveria? Cães e demônios do ar são formas do Espírito-Terra tanto quanto o homem; o homem não tem nenhuma dignidade especial que Mefistófeles deva respeitar. A moralidade do homem é uma das moralidades, suas convenções não são menos absurdas do que as convenções dos demais macacos. Mefistófeles não tem preconceitos contra a cobra; ele entende e também despreza sua prima, a serpente. Ele compreende e despreza a si mesmo; teve tempo para conhecer-se profundamente.

Sua compreensão, entretanto, não é imparcial, porque ele é o defensor da morte; não pode simpatizar com a outra metade do Espírito-Terra, a que ele não representa, — o lado criativo, propulsivo, enamorado, o lado que adora o ideal, o amor que faz o mundo girar. O que encanta uma alma ingênua só pode divertir Mefistófeles; o que a atormenta lhe dá uma satisfação sardônica. Assim, ele chega a ser de fato um diabo azedo e zombador. Em outros momentos, quando se opõe à tolice e ao romantismo de Fausto, ele parece ser o porta-voz de toda experiência e razão; como quando adverte Fausto de que para ser completo, é preciso ser algo em particular. No entanto, mesmo assim, ele o diz a fim de verificar e negar a paixão de Fausto pelo infinito. A verdade mais sóbria, quando indesejada, pode parecer ao homem sentimental tão diabólica quanto a mentira mais cínica; de modo que, apesar da justiça muito desigual de seus vários sentimentos, Mefistófeles mantém sua unidade dramática. Reconhecemos seu tom e, sob qualquer máscara, achamo-lo um vilão e o achamos encantador.

Tal é o espírito e tais são as condições em que Fausto empreende suas aventuras. Ele tem sede de toda experiência, inclusive de toda experiência do mal; ele não teme o inferno; e não espera por nenhuma felicidade. Ele confia na magia; isto é, ele acredita, ou está disposto a acreditar, que, além de quaisquer condições estabelecidas pela natureza ou por Deus, a vontade pessoal pode suscitar a experiência que ambiciona através de sua pura força e confiança. Sua ligação com Mefistófeles é uma expressão dessa fé romântica. Não é uma pechincha comprar prazeres na terra à custa dos tormentos do futuro, pois nem Goethe, nem Fausto, nem Mefistófeles acreditam que tais prazeres valham a pena, ou que tais tormentos sejam possíveis.

O primeiro gosto que Fausto tem do mundo está na adega de Auerbach, e ele o acha imediatamente intragável. Sua mente madura e desdenhosa não pode se divertir com a alegria que lá encontra. Ele não tem aquela simplicidade e sinceridade que poderia achar até mesmo a alegria dos bêbados atraente; para suportar tais loucuras, é preciso saber nada, como Brander, ou tudo, como Mefistófeles. Fausto ainda sente o “pathos da distância”; ele está agudamente consciente de algo incomparavelmente nobre e fora de alcance. Na cozinha das bruxas, que ele visita em seguida, o prazer é ainda mais feio e superficial; aqui o barulho é ainda mais absurdo, e a fantasia mais obscena. No entanto, Fausto aparece com dois aspectos conquistados em sua reabilitação romântica; tomou o elixir da juventude e viu a imagem de Helena em um espelho. Ele está doravante apaixonado pela beleza ideal, e, sendo jovem novamente, é capaz de encontrar a beleza ideal na primeira mulher que vê.

Segue-se o grande episódio de Gretchen; e quando ele a deixa (depois do duelo com seu irmão) para ver as folias selvagens da Walpurgisnacht, sua juventude por um momento capta o contágio daquela orgia. Seu amor pela beleza ideal, que permanece insatisfeito, salva-o, no entanto, de qualquer ilusão duradoura. Ele vê um pequeno rato vermelho saindo da boca da ninfa que ele persegue, e sua inclinação momentânea transforma-se em aversão. Quando ele retorna a Gretchen em sua prisão, é tarde demais para que faça mais do que reconhecer a ruína que causou, — Gretchen desonrada, sua mãe envenenada, seu irmão morto, seu filho afogado por ela em um lago, e ela mesma prestes a ser executada. Gretchen, que é a única verdadeira cristã neste poema, recusa-se a ser resgatada, porque ela deseja oferecer sua morte voluntária em propiciação por suas ofensas graves, ainda que quase involuntárias.

É o fim da trajetória de Fausto através do mundo dos interesses privados — o pequeno mundo — e podemos perguntar qual foi o fruto de suas experiências até agora. Que força ou experiência ele acumulou para suas futuras aventuras? A resposta pode ser encontrada na primeira cena da segunda parte, onde Goethe atinge sua maior potência como poeta e como filósofo. Somos transportados para um país remoto, magnífico e virgem. É noite, e Fausto está deitado, cansado, mas inquieto, em uma colina florida. Espíritos bondosos da natureza estão pairando acima de sua cabeça. Ariel, o líder deles, oferece consolo para o herói perturbado. Já é suficiente que ele tenha sido infeliz — eles não questionam se ele era um santo ou um pecador.15 Os espíritos em coro cantam então quatro lindas estrofes, uma para cada vigília da noite. A primeira invoca a paz, o esquecimento, a rendição à influência curativa do sono. Compadecimento e remorso — eles parecem dizer — nas palavras de Espinosa, são maus e vãos; o fracasso é incidental; o erro é inocente. A natureza não tem memória; perdoe-se a si mesmo, e você está perdoado. A canção do segundo turno funde novamente a alma infeliz na infinita substância incorruptível da natureza. As estrelas, grandes ou pequenas, cintilantes ou puras, enchem o céu com sua paz ordenada, e o mar com seu reflexo trêmulo. Nessa circulação universal não há vontade privada, não há divisão permanente. Na vigília seguinte encontramos o estresse plástico da natureza começando a se reafirmar; as sementes incham, a seiva monta os galhos descongelados, os botões crescem plenamente; tudo recupera uma individualidade renovada e uma vontade terna e não experimentada. Finalmente, a canção do quarto turno dá às flores a oportunidade de abrir suas pétalas e a Fausto seus olhos. Forças renovadas durante o repouso deverão experimentar uma nova trajetória. A natureza está aberta aos corajosos, aos inteligentes; todos podem ser nobres, os que ousam ser assim.16

Acalmado por tais ministrações, Fausto desperta cheio de novas forças e ambições. Ele observa com arrebatamento a luz do sol tocar as montanhas e descer gradualmente para os vales. Quando chega até ele, ele vira-se para olhar diretamente para o sol; mas fica deslumbrado. Parece lembrar-se do Espirito-Terra que uma vez o havia seduzido e depois rejeitado. Queremos, diz ele, acender nossa tocha da vida, e produzimos uma conflagração, um monstruoso medley de alegria e tristeza, amor e ódio. Viremos as costas ao sol, à força infinita e à existência infinita. Amenizemos aos nossos olhos a queda d’água contra eles, a torrente de assuntos humanos, quebrada em uma miríade de regatos. Sobre as brumas que se levantam dela, a luz do sol pinta um arco-íris, sempre evanescendo, mas sempre restaurado. Essa é a verdadeira imagem da realização humana racional. Temos nossa vida na iridescência do mundo17 ou, como disse Shelley para nós, –

A vida, como uma cúpula de vidro multicolorido,
Mancha o brilho branco da eternidade,
Até que a morte a esmaga em fragmentos.

Essa morte, no entanto, é em si mesma instável. A Vênus Lucreciana, ao remodelar nossos sentidos e instintos, constrói mais uma vez aquela cúpula colorida. O arco-íris se renova, à medida que a névoa se levanta novamente ou o vento morre, e a criação é gloriosa tal como no primeiro dia.

Essa é a teoria de Goethe sobre o rejuvenescimento e a imortalidade. Ela é completamente naturalista. Há uma vida após a morte, mas somente para as almas que têm espaço suficiente para identificar-se com aquelas formas que a natureza, em suas oscilações incertas, tende sempre a reproduzir. Uma mente profunda tem raízes profundas na natureza, ela florescerá muitas vezes. Contudo, o que uma mente profunda traz em sua próxima encarnação — talvez em alguma esfera remota — não é seus méritos e deméritos convencionais, sua carga de remorso, ou suas sórdidas lembranças. Elas são lavadas em seu novo batismo. O que resta é apenas o que estava no fundo dessa mente profunda, tão profunda que novas situações podem novamente implicá-lo e admiti-lo.

Quando, após a cena com o Espírito-Terra, Fausto pensou em suicídio, ele o considerou como um meio de escapar de condições opressivas e começar uma vida nova em condições totalmente diferentes e desconhecidas. Era como se um homem na meia-idade, enojado com sua profissão, devesse abandoná-la para assumir outra. Tal resolução é séria. Ela expressa uma grande insatisfação com as coisas como elas são, mas também expressa uma grande esperança. A morte, para Fausto, é uma aventura como qualquer outra; e se, ao contrário de sua presunção, tal aventura prova ser a última, isso também é um risco que ele está disposto a correr. Assim, ao elevar o veneno aos seus lábios, ele brindou ao amanhecer, a uma nova primavera de existência. Não foi de forma alguma o momento mais triste nem o mais fraco de sua vida.18

Embora o som de um hino da Páscoa o tenha controlado, trazendo memórias sentimentais de uma religião na qual ele não acreditava mais, a cena de transformação que ele buscava só foi adiada. Não há muita diferença entre morrer como ele havia pensado em morrer e viver como ele estava prestes a viver. As essências venenosas, fabricadas artificialmente, não eram necessárias para levá-lo a uma nova vida; as aventuras em que estava entrando eram suicidas o suficiente, uma vez que ele deveria esforçar-se sem esperança de realização, e proceder por vontade apaixonada ou magia, sem aceitar a disciplina da arte ou da razão. Ora, no final da primeira parte, ele drenou esta vida envenenada até as borras, e a febre em que recai o carrega de si mesmo para uma nova existência. Ele não se tornou melhor ou mais razoável; está simplesmente começando de novo, como um novo dia ou uma nova pessoa. Ele mantém, porém, a parte fundamental de seu caráter; sua vontade permanece errática, porém indomável, e suas conquistas permanecem sem frutos. Doravante, ele será um romântico num palco mais amplo, o da história e da civilização; e sua magia o convocará a ilusões um pouco mais intelectuais, falsificações da beleza e do poder. Seus velhos amores se desvaneceram, como as tempestades de um ano perdido; assim, com apenas uma lembrança onírica de seus erros passados, ele sai ao encontro de um novo dia.


Entre as atrações que, na antiga lenda, levaram Fausto a vender sua alma ao diabo, uma era a beleza da mulher. O pobre recluso, que ficou grisalho entre seus pergaminhos, nunca havia notado mulheres reais, ou não as havia achado belas. Criança pedante que ele foi, quando pensava na beleza da mulher, pensava apenas em Helena de Tróia. E Helena, para o Fausto da lenda, era simplesmente o que Vênus poderia ser para Tannhäuser, — uma mulher mais arrebatadora do que outras mulheres arrebatadoras. Ela era o exemplo supremo de uma coisa vulgar. O jovem Goethe, no entanto, que era um poeta e um verdadeiro alemão, que amava com a alma, não se sentia atraído por tal ideal. Ele deu a seu Fausto um amor mais terno, — um amor tanto do coração quanto dos sentidos. Mais tarde, inclusive, quando Goethe retomou à velha lenda num espírito mais antiquário, e devolveu Helena ao seu lugar nela, ele a transformou, de um símbolo apenas da beleza feminina, em um símbolo de toda beleza, e especialmente da mais alta beleza, a de Hellas. O segundo amor de Fausto é a paixão pelo classicismo.

Essa paixão em uma era romântica não é tão paradoxal quanto pode parecer. Winckelmann e os filólogos estavam restaurando algo antigo. Era a paixão romântica por toda experiência — também pela experiência desbotada dos antigos — que produzia, para eles, a poesia e o encanto da antiguidade. Como tudo era digno naqueles dias heróicos! Como era nobre, sereno e abstrato! Como eram puros os olhos cegos das estátuas, como eram castas as dobras brancas do mármore esculpido! A Grécia era uma visão remota e fascinante, a coisa mais romântica da história da humanidade. A emoção triste e deliciosa que se sentia diante de um templo em ruínas era tão sentimental quanto qualquer coisa que se podia sentir diante de um castelo em ruínas, mas mais elegante e mais escolhida. Era o sentimentalismo no mármore. Os heróis da Ilíada foram idealizados da mesma maneira que os selvagens de Rousseau foram idealizados, ou como os ladrões de Schiller.

O classicismo romântico da era napoleônica situa-se entre o classicismo polido do século XVII francês e o classicismo arqueológico de nossos atuais gregos. O classicismo francês fora bastante indiferente aos aspectos pitorescos da vida antiga; ele podia tolerar no palco um Aquiles de peruca e rendas. O que os trágicos franceses haviam adotado dos antigos era algo interior, um padrão de caráter e motivo, ou um critério de gosto. Eles estudaram a harmonia e a contenção, não porque fossem qualidades gregas, mas porque eram qualidades essencialmente razoáveis e belas, naturalmente pertencentes, mesmo nos tempos modernos, à uma sociedade cultivada e a um poeta culto. A admiração pela Grécia que é comum em nosso tempo entre as pessoas de opinião difere da de Goethe e sua época; pois se admiramos a expressão artística da vida antiga na poesia ou na escultura, sabemos que essas manifestações se tornaram possíveis por uma longa disciplina política e moral, e que, apesar dessa disciplina, a arte antiga permaneceu muito misturada, e muitas vezes grotesca e impura.

Para Goethe, porém, assim como para Byron, a Grécia foi menos uma civilização do passado, a ser estudada cientificamente, do que uma idéia viva, uma convocação a novas formas de arte e de sentimento. Goethe nunca foi tão romântico quanto na época em que ele era clássico. Seus traços são como gestos teatrais; ele sente o varrer de sua toga enquanto os completa. Sua Ifigênia é um sonho sentimental — verflucht humano, como ele mesmo veio a perceber; e sua Helena é uma evocação de magia, mágica não apenas por acidente e na história, mas essencialmente assim, em sua semiconsciência fantasmagórica e beleza vítrea. As aparentes incongruências das cenas em que ela aparece, rodeada por cavaleiros alemães na corte de um castelo feudal, não são incongruências reais. Porque essa Helena não é coisa do passado; ela é o sonho presente e a afetação das coisas clássicas de uma época romântica. Fausto e seus vassalos oferecem a Helena a mais cavalheiresca e exagerada homenagem; eles a introduzem, como uma rainha das peças de teatro, em sua sociedade. Fausto se retira com ela para Arcádia — a terra da ociosidade intencional e de meados do verão. Aqui nasce para eles um filho, Euphorion, um jovem gênio, de aspecto clássico, mas de temperamento marcadamente romântico e ingovernável. Ele escalona os picos mais altos, persegue de preferência as ninfas que fogem dele, adora a violência e o despropósito, e finalmente, pensando em voar, cai de cabeça, como Ícaro, e perece. Suas últimas palavras chamam sua mãe após ele, e ela o segue, deixando seu véu e manto para trás, tal como Euphorion havia deixado sua lira. No manto de Helena, que se eleva em uma nuvem, Fausto é levado de volta para sua Alemanha natal; sua virtude, conforme ele aprende, é eleva-lo acima de todas as coisas comuns.

Essa longa alegoria é suficientemente encantadora, como uma série de imagens e melodias, que deixa o leitor satisfeito em não interpretá-la; no entanto, a intenção do poeta é clara, se nos preocuparmos em desembaraçá-la. Ao descer às entranhas da natureza, onde habitam as deusas da terra, que são as primeiras mães de toda a vida e de todas as civilizações, podemos reunir inteligência para compreender até mesmo a existência mais exótica. A Grécia, após tal reversão para o elemental, nos aparecerá em sua simplicidade e beleza inigualáveis. A visão nos será concedida, embora o objeto que vemos pertença a um passado distante; e se nosso entusiasmo, como o de Fausto, for apaixonado e indomável, poderemos realmente persuadir a Rainha dos Mortos a ceder Helena para que possamos nos casar com ela. Nossa erudição e filosofia, nossa fiel imitação da arte e literatura gregas, podem na verdade nos familiarizar com a cena grega. Contudo, o ambiente desse gênio recuperado ainda será moderno; e ele mesmo se tornará meio moderno; teremos que ensinar Helena a rimar. O produto dessa inspiração híbrida será uma alma romântica com o traje do classicismo, uma coisa encantadora e selvagem, fadada a morrer jovem. Quando esse entusiasmo se desvanecer contra as duras condições da vida, a beleza da Grécia, que foi sua mãe, também ficará pálida diante de nossos olhos. Estaremos forçosamente satisfeitos em deixá-la voltar ao reino das coisas irrevogáveis do passado. Somente sua vestimenta, os monumentos de sua arte e de seu pensamento, permanecerão para nos elevar, se os amamos, acima de toda vulgaridade de gosto e de lealdade moral.

É uma evidência da grande sabedoria de Goethe o fato de sentir que o classicismo romântico deve ser subordinado ou abandonado; que Helena deve evaporar, ao passo que Fausto deve voltar à Alemanha e ao sentimento de que, afinal de contas, Gretchen foi seu verdadeiro amor. 19 No início, a visão de Helena em um espelho havia inspirado Fausto a um renovado entusiasmo. A visão dela novamente, na peça mágica, o havia encantado e dominado completamente; e essa inspiração havia chegado justamente quando, após a morte de Gretchen, ele havia resolvido perseguir não toda a experiência, como no início, mas a melhor experiência20 — uma pista de que, de alguma forma, se esperava que as transformações da vontade de Fausto constituíssem um progresso real. Havia, de fato, entre os mortais uma necessidade tão infinita dessa incomparável e simbólica Helena, que ela poderia fazer com que os próprios guardiães dos mortos fossem levados à piedade e às lágrimas. Quando nos lembramos de tudo isso, temos alguma razão para esperar que uma grande e permanente melhoria na vida e no coração de nosso herói aconteça após a obtenção de uma tão rara vantagem. No entanto, para viver dentro de Arcadia, Helena não era necessária; qualquer Phyllis teria servido.

Helena, com certeza, deixa algumas relíquias para trás, pelas quais podemos entender que a influência da história, da literatura e da escultura gregas ainda pode servir para cultivar a mente e dar-lhe uma atmosfera de distinção. Pode ser que, na comunidade que ele está prestes a fundar, Fausto deseje estabelecer não apenas diques e liberdade, mas também cátedras de museus gregos e arqueológicos. E a lira de Euphorion, também deixada para nós, pode significar que poemas como As Ilhas Gregas de Byron, A Urna Grega de Keats, Die Götter Griechenlands de Schiller, e as próprias peças clássicas de Goethe continuarão a enriquecer a literatura européia. Trata-se de algo, mas não é suficiente para elevar o imenso entusiasmo de Fausto por Helena acima de uma ilusão grosseira. Esse sonho de uma beleza perfeita a ser alcançada, de uma vida perfeita a ser vivida de acordo com a natureza e a razão, teria terminado em uma pequena bolsa de estudos e um pouco de pedantismo. Fausto teria conquistado Helena para entregá-la a Wagner.

Helena foi rainha de Esparta; e embora, é claro, a Esparta dórica de Lycurgus tenha sido algo muito posterior, e não tenha nada a ver com a Esparta de Homero, ainda que simbolicamente considerada, é o mais feliz acidente o fato de Helena, que é uma espécie de perfeição grega em beleza, ter sido rainha de Esparta, uma espécie de perfeição grega em disciplina. Um Fausto que tivesse realmente merecido e compreendido Helena teria construído uma cidade helênica; ele mesmo teria se tornado um ἄναξ ἀνδρῶν, um mestre dos homens, um daqueles poetas das coisas, daqueles formadores de gerações bem criadas e de leis sábias, dos quais Platão fala, contrastando-as com Homero e outros poetas apenas das palavras. Pois a beleza da mente e do corpo que fascina o classicista romântico, e que inspirou os próprios poetas antigos, não era um produto da ociosidade e do sentimentalismo, nem da atividade material e forçada; era um produto da guerra ordenada, da religião, da ginástica e do autogoverno deliberado.

A próxima volta na fortuna de Fausto o encontra de fato como comerciante, um estadista e construtor de impérios; e se tal pedra rolante pudesse reunir qualquer musgo, deveríamos esperar ver aqui, se é que há em algum lugar, os frutos daquela “educação estética da humanidade” que Helena representou. Devemos esperar que Fausto, aquele que se deitou no colo da beleza absoluta, compreenda sua natureza. Devemos esperar que ele, na ávida busca da perfeição, estabeleça seu estado sobre a distinção entre o melhor e o pior, — uma distinção que nunca deve ser abolida ou obscurecida para aquele que amou a beleza. Em outras palavras, ele poderia ter estabelecido uma sociedade moral fundando-a sobre grandes renúncias e sobre heroísmos iluminados, para que a mais alta beleza pudesse realmente descer e morar dentro daquela cidade. Mas não encontramos nada do gênero. Fausto funda seu reino porque ele deve fazer algo; e seu único ideal em relação ao que ele espera assegurar para seus súditos é que eles tenham sempre algo a fazer. Assim, a vontade de viver, em Fausto, não está minimamente educada por sua experiência. Ela altera seus objetos porque deve; as paixões da juventude cedem às da idade; e entre todas as ilusões de sua vida a mais fátua é a ilusão de progresso.

É característico do espírito absolutamente romântico o fato de que, quando finaliza com algo, deve inventar um novo interesse. Ele bate no arbusto em busca de caça fresca; está sempre à beira de ficar totalmente entediado. Assim, agora que Helena se foi, Mefistófeles precisa vir em socorro, tal como uma enfermeira amável, e propor todos os tipos de passatempos. Frankfurt, Leipzig, Paris e Versalhes são descritas, com os divertimentos que a vida lá poderia proporcionar; mas Fausto, que sempre foi difficile, tornou-se mais difícil por suas recentes e esplêndidas aventuras. No entanto, um novo impulso surge de repente em seu peito. Do alto da montanha para onde o manto de Helena o trouxe, ele pode ver o oceano alemão, com suas marés cobrindo diariamente grandes trechos da costa plana, e tornando-as salobras e inabitáveis. Seria bom recuperar esses resíduos, semear ali uma população próspera. Depois da Grécia, Fausto tem uma visão da Holanda.

Essa última ambição de Fausto é tão romântica quanto as outras. Ele sente o impulso para a arte política, como ele sentira o impulso para o amor ou para a beleza.21 A noção de transformar as coisas por sua vontade, de deixar por muito tempo sua marca na natureza e na sociedade humana, o fascina22; mas essa paixão pela atividade e pelo poder, que alguns comentaristas de mente simples dignificam com o nome de altruísmo e de viver para os outros, não tem nenhum propósito ou padrão firme.23 Goethe é especialmente pródigo em detalhes para provar tal ponto. A magia, o exercício de uma vontade impossível de ser professada, ainda é o instrumento de Fausto. Mefistófeles, por várias artes da ilusão, assegura o triunfo do imperador em uma guerra desesperada que ele está levando adiante contra uma insurreição justificável. Como recompensa pela ajuda prestada, Fausto recebe as marchas da costa como feudo. Os diques e canais necessários são construídos por meio da magia; os espíritos que Mefistófeles comanda cavam e os constroem com estranhos feitiços. O comércio que surge também é ilegítimo: a pirataria está envolvida nele.

Tampouco isso é tudo. Em algumas dunas que diversificaram a praia original, um homem velho e sua esposa, Philemon e Baucis, viveram antes do advento de Fausto e de suas melhorias. Na colina, além de seu chalé, havia uma pequena capela, com um sino que perturbava Fausto em seu palácio recém construído, em parte por seu som importuno, em parte por suas sugestões cristãs, e em parte por lembrá-lo de que ele não era dono do país por completo, e que algo existia nele que não era o produto de sua mágica vontade. Os velhos não se venderiam; e num ataque de impaciência Fausto ordena que sejam despejados à força, e transferidos para uma moradia melhor em outro lugar. Mefistófeles e seus servos executam essas ordens de forma um tanto grosseira: a cabana e a capela são incendiadas, e Philemon e Baucis são consumidos nas chamas, ou enterrados nas ruínas.

Fausto lamenta esse acidente; mas é um desses inevitáveis desenvolvimentos da ação que um homem corajoso deve enfrentar, e esquecer o mais rápido possível. Ele lamentou da mesma forma a infelicidade de Gretchen e, presumivelmente, a morte de Euphorion; mas tal é a vida romântica. Sua vontade, embora abalada, não se extingue com tais desventuras. Ele continuaria, se a vida pudesse durar, fazendo coisas que, em algum aspecto, ele seria obrigado a lamentar: no entanto, ele baniria facilmente esse arrependimento, na busca de algum novo interesse, e, em geral, ele não se arrependeria de ter sido obrigado a lamentar. Caso contrário, não teria compartilhado toda a experiência da humanidade, mas teria perdido a importante experiência de auto-acusação e de auto-recuperação.

É impossível supor que os cidadãos que ele está instituindo por trás de diques que vazam — para que possam ter sempre algo para mantê-los ocupados — lhe dariam satisfação plena se ele pudesse ter realmente previsto sua trajetória em seus detalhes concretos. A Holanda é um país interessante, mas não é um espetáculo que por muito tempo daria espaço a um idealista como Fausto, de tal forma exigente que achou as artes e ciências totalmente vãs, a domesticidade impossível, e as cozinhas e as fábricas de cerveja abaixo de qualquer consideração. A carreira do próprio Fausto fora muito mais livre e ativa do que os seus burgueses industriais jamais poderiam imaginar. Seu interesse em estabelecê-los é um interesse magistral e irresponsável. É mais uma paixão arbitrária, mais uma ilusão egoísta. Assim como não tinha consciência em seu amor, e como não buscava e assegurava a felicidade de ninguém, também não tem consciência em sua ambição e em sua arquitetura política; todavia, se sua vontade é simplesmente feita, ele não pergunta se, a julgar por seus frutos, valerá a pena fazê-la. Assim como seu imenso desânimo no início — quando era doutor em seu laboratório — não se baseava em nenhuma desgraça real, mas em uma inquietação e uma vaga ambição infinita, assim sua satisfação última em seu trabalho não se baseia em nenhum bem feito, mas em uma vontade apaixonada. Ele chama de bem aquilo que quer para os outros, porque agora quer dar-lhes o bem, não porque eles naturalmente o querem para si mesmos. Incapaz de simpatia, ele tem um prazer momentâneo na política; e na última e “mais elevada” expressão de sua vontade, em sua condição de estadista e suposto espírito público, ele permanece romântico e, se necessário, agressivo e criminoso.

Enquanto isso, seu fim está se aproximando. A fumaça daquela pobre conflagração transforma-se em sombras de carência, culpa, cuidado e morte, que pairam sobre ele. Os desejos são afastados por sua riqueza, e a culpa é transcendida por sua coragem romântica. No entanto, o descuido escorre pelo buraco da fechadura, sopra sobre ele e o cega; enquanto a morte — embora ele não a veja — segue de perto seus calcanhares. Todavia, o velho — o Fausto está em seu centésimo ano — é destemido, e todos os seus pensamentos estão voltados para o futuro, para o trabalho ao qual ele dedicou sua atenção. Ele ordena que a escavação prossiga nos canais que está construindo; mas os espíritos que parecem obedecê-lo estão ficando fora de controle e, em seu lugar, cavam sua sepultura.

Quando sente a morte sobre ele, Fausto tem um de seus momentos mais esplêndidos de auto-afirmação. Ele atravessou o mundo, diz, tomando com igual gratidão os buffets e recompensas da sorte;24 e a última palavra de sabedoria que ele aprendeu é que nenhum homem merece a vida ou a liberdade se não os conquista de novo diariamente. Ele deixará os diques que ergueu contra o mar para proteger a nação que estabeleceu; um símbolo de que sua saúde e liberdade devem consistir na luta perpétua contra um inimigo indomável. A idéia de que muitas gerações viverão nessa saudável ameaça e labuta o enche de satisfação; ele poderia praticamente dizer a esse momento, em que essa perspectiva se abre diante dos olhos de sua mente: “Fique, você é tão bom”.25 E com essas palavras — um último desafio e uma rendição zombeteira a Mefistófeles — ele se afunda na cova aberta a seus pés.

Quem ganhou a aposta? Fausto praticamente pronunciou, embora não exatamente, as palavras que dariam a vitória a Mefistófeles; mas o sentido delas é novo, e Mefistófeles não conseguiu fazer Fausto render a própria vontade à sua vontade, seu idealismo indefinido. Uma vez que o que satisfaz Fausto é apenas a consciência de que essa vontade de querer deve ser preservada, e que nem ele nem os colonos que ele trouxe à existência jamais poderão ser derrotados e confortar-se, sem mais aspirações, nos prazeres do acaso do momento. Fausto manteve seu entusiasmo por uma vida tempestuosa, difícil e interminável. Ele foi fiel a sua filosofia romântica.

Ele é, portanto, salvo, no sentido em que a salvação é definida no Prólogo no Céu, e agora novamente no canto dos anjos que recebem sua alma quando eles dizem: “Quem quer que seja incansável em sua luta perpétua, nós podemos redimi-lo”.26 Essa salvação não depende de qualquer melhoria no caráter de Fausto, — ele foi pecador até o fim, e fora o servo involuntário de Deus desde o início, — nem reside em qualquer revolução em sua fortuna, como se ele estivesse sendo empregado de maneira diferente no céu do que na terra. Ele vai ensinar a vida às almas dos jovens meninos, que morreram cedo demais para terem em suas próprias pessoas qualquer experiência de Rathskellers, Gretchens, Helenas e Walpurgisnachts27. O ensino (embora não exatamente sobre esses assuntos) tinha sido a profissão original do Doutor Faustus; e o cansaço disso foi o que o levou à magia e quase ao suicídio, até que ele escapou para o grande mundo da aventura lá fora. Certamente, com seus novos alunos ele não ficará mais satisfeito; sua inquietação romântica não o abandonará no céu. Um belo dia, ele jogará seus livros escolares celestiais pela janela e, com seus alunos após dele, sairá para provar a vida em alguma região mais ventosa das nuvens.

Não, Fausto não é salvo no sentido de ser santificado ou levado a um estado final e eterno de bem-aventurança. A única melhoria em sua natureza foi que ele passou, no início da segunda parte, de atividades privadas para atividades públicas. Se, no final dessa parte, ele expressa um desejo de abandonar a magia e viver como um homem entre os homens, no seio da natureza real, esse desejo permanece meramente platônico.28 É um pensamento que visitou Goethe com frequência durante sua longa carreira, de que é parte da sabedoria aceitar a vida em condições naturais ao invés de fingir que se evoca as condições da vida por meio da vontade de viver. Esse pensamento, se fosse mantido com firmeza, constituiria um avanço do transcendentalismo para o naturalismo. Mas o próprio espírito da natureza é romântico. Ele vive espontaneamente, corajosamente, sem premeditação, e por uma questão de viver em vez de desfrutar ou alcançar algo acabado. E, sob condições naturais, as vicissitudes de uma vida sem fim seriam muitas; e não poderia haver a questão de um objetivo final, nem mesmo de um progresso sem fim em qualquer direção em particular. O desvio da vida é parte de sua vitalidade — é essencial para a ironia romântica e para a coragem romântica.

O segredo do que é sério na moral de Fausto deve ser procurado em Espinosa — a fonte do que é sério na filosofia de Goethe. Espinosa tem uma doutrina admirável, ou melhor, uma introspecção, que ele chama de ver as coisas sob a forma da eternidade. Essa faculdade é fundamental na mente humana; a percepção e a memória comuns são casos dela. Portanto, quando a utilizamos para lidar com questões últimas, não estamos alienados da experiência, mas, pelo contrário, estamos dotados de experiência e de seus frutos. Uma coisa é vista sob a forma da eternidade quando todas as suas partes ou etapas são concebidas em suas verdadeiras relações, e assim concebidas em conjunto. A biografia completa de César é César visto sob a forma de eternidade. Ora, a biografia completa de Fausto — ou seja, Fausto visto sob a forma eterna — mostra a sua salvação. Deus e o próprio Fausto, em seu último momento de discernimento, vêem que levar tal vida, com tal espírito, foi para ser salvo; foi para ser o tipo de homem que um homem deveria ser. As paixões daquela vida foram úteis e necessárias; as paixões dela foram necessárias e criativas. Ter sentido tal insatisfação perpétua é verdadeiramente satisfatório; tal desejo de experiência universal é a experiência certa. Você é salvo no sentido de ter vivido bem; salvo não depois de ter parado de viver bem, mas durante todo o processo. Seu destino tem sido ser o servo de Deus. Que Deus e sua própria consciência devem pronunciar essa sentença é sua verdadeira salvação. Seu valor é assim estabelecido sob a forma da eternidade.

A peça, em seu desenvolvimento filosófico, termina aqui; entretanto, Goethe acrescentou vários outros detalhes e cenas — com aquela abundância, aquele amor — de quadros simbólicos e epigramas poéticos que caracterizam toda a segunda parte. Enquanto Fausto expira, ou melhor, antes de fazê-lo, Mefistófeles coloca um de seus pequenos demônios em cada abertura do corpo do herói, para que a alma não escorregue para fora sem ser pega. Ao mesmo tempo, um grupo de anjos desce, espalhando as rosas vermelhas do amor e cantando seus louvores. Essas rosas, se tocarem Mefistófeles e seus demônios, se transformam em bolas de fogo; e embora o fogo seja seu elemento familiar, eles se queimam e se assustam. Os anjos são assim capazes de capturar a alma de Fausto a seu bel-prazer, e levá-la triunfantemente.

Escusado será dizer que essa luta de meninos por uma borboleta agitada não pode ser o que realmente determina a questão da aposta e a salvação de Fausto; mas Goethe, em suas conversas com Eckermann, justifica tal intervenção de uma espécie de acidente mecânico pela analogia da doutrina cristã. A graça é necessária, além da virtude; e a intercessão de Gretchen e da Virgem Maria, assim como a da Virgem Maria, Lúcia e Beatrice, no caso de Dante, e o estratagema das bolas de fogo, todos representam essa condição externa de salvação.

Essa intervenção da graça é, no fundo, apenas um novo símbolo para a justificação essencial — sob a forma da eternidade — do que é imperfeito e insuficiente no tempo. A vida tristonha e voluntariosa do Fausto não é justa em nenhuma de suas partes; no entanto, a retidão é-lhe imputada como um todo; o amor divino a aceita como suficiente;  A razão especulativa afirma que é a melhor vida possível, o que, para uma compreensão tediosa, parece uma série de falhas e de fracassos. Se a antevisão de sua nova Holanda preenche, à distância, o moribundo Fausto com satisfação, quanto mais a maravilhosa carreira do próprio Fausto deve merecer ser aceita, invejada e proclamada como sendo sua própria desculpa de ser! As faltas de Fausto no tempo não são contadas contra ele na eternidade. Seus crimes e loucuras foram bênçãos disfarçadas. Será que eles não tornaram sua vida interessante e apta a produzir um poema a respeito? Não foi precipitando-se neles, e erguendo-se deles, que Fausto foi Fausto de todo? Tal percepção é a razão superior, o amor divino, que se sobrepõe para salvá-lo. O que deveria ser imperfeito no tempo é, por causa de sua própria imperfeição ali, perfeito quando visto sob a forma da eternidade. Viver, viver tal como nós vivemos, isso – se só pudéssemos realizá-lo — é o propósito e a coroa do viver. Devemos buscar melhorias; devemos estar insatisfeitos conosco mesmos; essa é a atitude indicada, a pose histriônica, ou seja, o manter a bola rolando. Porém, enquanto sentimos essa insatisfação, somos perfeitamente satisfatórios, e enquanto jogamos nosso jogo e o perdemos constantemente, estamos ganhando o jogo para Deus.

Mesmo essa cena, porém, não satisfez a prolífica fantasia do poeta, e ele acrescentou uma última, — a apoteose ou Himmelfahrt de Fausto. No Campo Santo de Pisa Goethe havia visto um afresco representando vários anacoretas morando nos flancos de alguma montanha sagrada — Sinai, Carmelo ou Athos —, cada um em sua pequena caverna ou eremitério; e acima deles, no grande espaço do céu, foram vistos anjos voando em direção à Madona. Através de tal paisagem o poeta agora nos mostra a alma de Fausto levada lentamente para cima.

Essa cena tem sido considerada como inspirada por idéias católicas, enquanto o Prólogo no Céu seria bíblico e protestante; e o próprio Goethe diz que sua “intenção poética” poderia ser melhor representada por imagens emprestadas da tradição da igreja medieval. Todavia, na verdade, não há nada de católico na cena, exceto os nomes ou títulos dos personagens. Aquilo que eles dizem é tudo uma pintura de paisagem sentimental ou de um vago misticismo, tal como de uma piedade um tanto nebulosa; e muito é na verdade emprestado da Swedenborg. O que é Swedenborgiano, no entanto — como a noção de instrução celestial, a passagem de esfera a esfera, e o olhar através dos olhos de outras pessoas —, é por sua vez uma mera forma de expressão. A “intenção poética” do autor é, como já vimos, totalmente Espinosista. Sem dúvida, ele concebe que a alma de Fausto deve passar, em outro mundo, por uma série de novas experiências. Porém, esse destino não é sua salvação; é a continuação de sua provação. O famoso refrão no final repete, com uma variação interessante, o mesmo contraste que vimos antes entre o ponto de vista do tempo e o da eternidade. Tudo é transitório, diz o refrão místico29, é apenas uma imagem; aqui (ou seja, sob a forma de eternidade) o insuficiente se transforma em algo real e completo; e o que parecia na experiência uma busca sem fim se torna para a especulação uma realização perfeita. O ideal de algo infinitamente atrativo e essencialmente inesgotável — o eterno feminino, como Goethe o chama — conduz a vida de palco em palco.

Gretchen e Helena haviam sido símbolos deste ideal; a velhice de Goethe havia sentido, até o fim, o encanto da mulher, a doçura e a tristeza de amar o que ele não podia esperar possuir, e o que, em sua perfeição ideal, necessariamente escapa à posse.  Ele havia se reconciliado, não sem lágrimas, com esse desejo sem esperança e, como Piccarda no Paraíso, havia abençoado a mão que deu a paixão e negado a felicidade.30 Assim, ao sonhar com uma satisfação e renunciar a ela, ele havia encontrado uma satisfação de outro tipo. O Fausto termina no mesmo nível filosófico em que começou — o nível do romantismo. O valor da vida está na busca, não na realização; portanto, vale a pena perseguir a tudo, e nada traz satisfação — salvaguardar esse destino sem fim em si mesmo.

Essa é a moral oficial de Fausto, e o que podemos chamar de sua filosofia geral. Entretanto, como vimos há pouco, essa moral é apenas um pensamento posterior, e está longe de esgotar as idéias filosóficas que o poema contém. Aqui está um esquema para a experiência; mas a experiência, no seu preenchimento, abre muitas perspectivas; e algumas delas revelam coisas mais profundas e elevadas do que a própria experiência. O caminho do peregrino e as pousadas em que ele pára não são toda a paisagem que ele vê enquanto viaja, nem o verdadeiro santuário que ele constrói. E a filosofia ou filosofias incidentais do Fausto de Goethe são, a meu ver, muitas vezes melhores do que sua filosofia última. A primeira cena da segunda parte, por exemplo, é melhor, poética e filosoficamente, do que a última. Ela mostra um sentido mais profundo para as realidades da natureza e da alma, e é mais sincera. Nela, Goethe está interpretando a natureza a partir de Espinosa; ele não está sonhando com Swedenborg, nem conversando paradoxos equívocos com Hegel.

Na verdade, o grande mérito da atitude romântica na poesia, e do método transcendental na filosofia, é que eles nos colocam de volta no início de nossa experiência. Eles desintegram a convenção, que muitas vezes é com frequência cumulativa e confusa, e nos devolvem a nós mesmos, à percepção imediata e à vontade primordial. Esse, como parece, é o verdadeiro e inevitável ponto de partida. Se não tivéssemos nascido, se não tivéssemos espreitado este mundo, cada um a partir de sua casca de ovo pessoal, este mundo poderia realmente ter existido sem nós, do mesmo modo que milhares de mundos desconhecidos poderiam existir agora; mas, para nós, tal não existiria. Essa verdade óbvia não precisaria ser enfatizada, mas por duas razões: uma, que o conhecimento convencional, como nossas noções de ciência e moralidade, é muitas vezes muito exigente; afirma e nos impõe muito mais do que nossa experiência justifica, — nossa experiência, que é nossa única abordagem da realidade. A outra razão é o contrário ou a contraparte disso; pois o conhecimento convencional muitas vezes ignora e parece suprimir partes da experiência não menos reais e importantes para nós como aquelas partes sobre as quais o próprio conhecimento convencional é criado. O mundo público é muito estreito para a alma, bem como muito mítico e fabuloso. Daí o duplo trabalho crítico e o despertar para o qual a reflexão romântica é boa, — cortar os galhos mortos e alimentar os rebentos famintos. Essa filosofia, como disse Kant, é catártica: é purgativa e libertadora; pretende fazer-nos começar de novo e começar bem.

Segue-se que quem não tem simpatia por tal filosofia é uma pessoa comparativamente convencional. Ele tem uma mente de segunda mão. Fausto tem uma mente de primeira mão, uma alma verdadeiramente livre, sincera e corajosa. Segue-se também que aquele que não tem filosofia, este não tem sabedoria; não pode dizer nada que valha a pena levar adiante; tudo nele é atitude e nada é realização. Fausto, e especialmente Mefistófeles, têm outras filosofias em cima de seu transcendentalismo; porque isso é apenas um método, a ser usado para se chegar à conclusões que devem ser criticamente salvaguardadas e fundamentadas empiricamente. Tais pontos de vista, tais perspectivas sobre a natureza, estão dispersas liberalmente através das páginas de Fausto. Palavras de sabedoria diversificam essa trajetória de loucura, pois cenas requintadas preenchem esse drama tortuoso e sobrecarregado. A mente tornou-se livre e sincera, mas permaneceu desnorteada.

Os méritos literários do Fausto de Goethe correspondem exatamente a suas excelências filosóficas. No prólogo do teatro, o próprio Goethe os descreveu; muita paisagem, muita sabedoria, alguma loucura, grande riqueza de incidentes e caracterização; e, por detrás, a alma de um poeta cantando com toda sinceridade e fervor as visões de sua vida. Aqui está a profundidade, a interioridade, a honestidade e a perspicácia; aqui estão representados os aspectos mais comoventes da natureza, e a mais variada gama de curiosas lendas e fantasias grotescas. Essa obra, diz Goethe (em um quadra pensada como um epílogo, mas que não foi inserida na peça), é como a vida humana: tem um começo e um fim; mas não tem uma totalidade, não é um todo.31 Como, de fato, podemos extrair a soma de uma experiência infinita, sem as condições para determiná-la, e sem os fins em que ela termina? Evidentemente, tudo que um poeta da pura experiência pode fazer é representar alguns fragmentos dela, mais ou menos prolongados; e quanto mais prolongada for a experiência representada, tanto mais será uma coleção de fragmentos, e menos a última parte dela terá a ver com o início. Qualquer caráter que possamos atribuir ao todo daquilo que examinamos não o dominaria, se esse todo fosse maior, e se tivéssemos tido a memória ou a previsão suficiente para incluir outras partes da experiência que diferem completamente em espécie dos episódios que por acaso vivemos. Ser diverso, ser indefinido, ser inacabado, é essencial para a vida romântica. Não podemos dizer que isso é essencial para toda a vida, em seu imediatismo, e que somente em referência ao que não é vida — objetos, ideais e unanimidade que não podem ser experimentados, mas que só podem ser concebidos — a vida pode tornar-se racional e verdadeiramente progressiva? Nisso podemos ver a excelência radical e inalienável do romantismo; sua sinceridade, liberdade, riqueza e infinidade. Aqui também podemos ver suas limitações, na medida em que não pode fixar ou confiar em nenhum de seus ideais, e que acredita cegamente que o universo é tão traiçoeiro quanto si próprio, de modo que a natureza e a arte estão sempre escorregando por entre seus dedos. É obstinadamente empírico, e nunca aprenderá nada com a experiência.

Notas:

[1] Eckermann, Conversação de 6 de maio de 1827: “Este é realmente um pensamento eficaz e bom que explica muitas coisas, mas não é uma idéia que está subjacente ao todo…”.

[2] Faust, Part it-i. Act v. 375-82:
Ich bin nur durch die Welt gerannt;
Ein jed’ Gelüst ergriff ich bei den Haaren,
Was nicht genügte, liess ich fahren,
Was mir entwischte, liess ich ziehn.
Ich habe nur begehrt und nur vollbracht
Und abermals gewünscht und so mit Macht
Mein Leben durchgestürmt; erst gross und mächtig,
Nun aber geht es weise, geht bedächtig.

[3] O chapbook é um tipo de literatura popular impressa no início da Europa moderna, de que é exemplo em Portugal ou no Brasil a literatura de cordel.

[4] The Wonder-Working Magician, Pedro Calderon de la Barca.

[5] Faust, Part i., Studierzimmer, i.:
Welch Schauspiel! aber, ach! ein Schauspiel nur!
Wo fass’ ich dich, unendliche Natur?
Euch, Brüste, wo?

[6] Faust, Part i., Studierzimmer:
Du, Geist der Erde, bist mir näher;
Schon fühl’ ich meine Kräfte höher,
Schon glüh’ ich wie von neuem Wein;
Ich fühle Mut, mich in die Welt zu wagen,
Der Erde Weh, der Erde Glück zu tragen,…
Mit Stürmen mich herumzuschlagen
Und in des Schiffbruchs Knirschen nicht zu zagen.

[7] Faust, Prolog im Himmel:
Mit den Toten
Hab’ ich mich niemals gern befangen.
Am meisten lieb’ ich mir die vollen, frischen Wangen.
Für einen Leichnam bin ich nicht zu Haus; 
Mir geht es, wie der Katze mit der Maus….
Von Sonn’ und Welten weiss ich nichts zu sagen,
Ich sehe nur, wie sich die Menschen plagen.

[8] Faust, Prolog im Himmel:
Staub soll er fressen, und mit Lust.

[9] Ibid.:
Es irrt der Mensch, so lang’ er strebt.
Ein guter Mensch in seinem dunkeln Drange
Ist sich des rechten Weges wohl bewusst.

[10] Faust, Part ii. Act v.:
Ja! diesem Sinne bin ich ganz ergeben.
Das ist der Weisheit letzter Schluss:
Nur der verdient sich Freiheit wie das Leben,
Der täglich sie erobern muss.

[11] Ibid., Part i., Prolog im Himmel:
Des Menschen Thätigkeit kann allzu leicht erschlaffen,
Er liebt sich bald die unbedingte Ruh;
Drum geb’ ich gem ihm den Gesellen zu,
Der reizt und wirkt und muss als Teufel schaffen.

[12] Ibid.:
Das Werdende, das ewig wirkt und lebt,
Umfass’ euch mit der Liebe holden Schranken,
Und was in schwankender Erscheinung schwebt,
Befestiget mit dauernden Gedanken!

[13] Faust, Part i., Wald und Höhle:
Erhabner Geist, du gabst mir, gabst mir alles,
Warum ich bat. Du hast mir nicht umsonst
Dein Angesicht im Feuer zugewendet….
O, dass dem Menschen nichts Vollkommnes wird,
Empfind’ ich nun. Du gabst zu dieser Wonne
Die mich den Göttern nah und näher bringt,
Mir den Gefährten, &c.

Também, ibid., Trüber Tag: Grosser herrlicher Geist, der du mir zu erscheinen würdigtest, der du mein Herz kennest und meine Seele, warum an den Schandgesellen mich Schmieden, der sich am Schaden weidet und am Verderben sich letzt?

[14] Faust, Part i., Studierzimmer, ii.:
Ich bin der Geist, der stets verneint!
Und das mit Recht; denn alles, was entsteht,
Ist wert, dass es zu Grunde geht;,
Drum besser wär’s, dass nichts entstünde….
Ich bin ein Teil des Teils, der anfangs alles war,
Ein Teil der Finsternis, die sich das Licht gebar….
Was sich dem Nichts entgegenstellt,
Das Etwas, diese plumpe Welt,
So viel als ich schon unternommen,
Ich wusste nicht ihr beizukommen….
Wie viele hab’ ich schon begraben!
Und immer cirkuliert ein neues, frisches Blut.
So geht es fort, man möchte rasend werden!

[15] Faust, Part ii. Act i., Anmutige Gegend:
Kleiner Elfen Geistergrösse
Eilet, we sie helfen kann;
Ob er heilig, ob er böse,
Jammert sie der Unglücksmann.

[16] Faust, Part ii. Act i., Anmutige Gegend:
Alles kann der Edle leisten,
Der versteht und rasch ergreift.
The whole scene will repay study.

[17] Faust, Part ii. Act i., Anmutige Gegend:
Des Lebens Fackel wollten wir entzünden,
Ein Feuermeer umschlingt uns, welch ein Feuer!…
So bleibe denn die Sonne mir im Rücken!
Der Wassersturz, das Felsenriff durchbrausend,
Ihn schau’ ich an mit wachsendem Entzücken….
Allein wie herrlich, diesem Sturm erspriessend,
Wolbt sich des bunten Bogens Wechseldauer,…
Der spiegelt ab das menschliche Bestreben….
Am farbigen Abglanz haben wir das Leben.

[18] Faust, Part i., Studierzimmer:
Ins hohe Meer werd’ ich hinausgewiesen,…
Zu neuen Sphären reiner Thätigkeit….
Hier ist es Zeit, durch Thaten zu beweisen,
Dass Manneswürde nicht der Götterhöhe weicht,…
Zu diesem Schritt sich heiter zu entschliessen
Und war’ es mit Gefahr, ins Nichts dahin zu fliessen.

[19] Faust, Part ii. Act iv., Hochgebirg: The first monologue.

[20] Faust, Part i, Act ii., Anmutige Gegend:
Du, Erde,… regst und rührst ein kraftiges Beschliessen
Zum höchsten Dasein immerfort zu streben.

[21] Faust, Part ii. Act iv., Hochgebirg:
Erstaunenswürdiges soll geraten,
Ich fühle Kraft zu kühnem Fleiss.
Herrschaft gewinn’ ich, Eigentum!
Die That ist alles, nichts der Ruhm.
Da wagt mein Geist, sich selbst zu überfliegen;
Hier möcht’ ich kämpfen, dies möcht’ ich besiegen.

[22] Ibid., Act v., Grosser Vorhof des Palasts:
Es kann die Spur von meinen Erdetagen
Nicht in Aeonen untergehn.

[23] Faust, Part ii. Act iv., Hochgebirg:
Wer befehlen soll
Muss im Befehlen Seligkeit empfinden.
Ihm ist die Brust von hohem Willen voll,
Doch was er will, es darf’s kein Mensch ergründen.

[24] Faust, Part ii. Act v., Mitternacht:
Ich bin nur durch die Welt gerannt:
Ein jed’ Gelüst ergriff ich bei den Haaren,
Was nicht genügte, liess ich fahren,
Was mich entwischte, liess ich ziehn.

[25] Faust, Part ii. Act v., Grosser Vorhof des Palasts:
Solch ein Gewimmel möcht ich sehn,
Auf freiem Grund mit freiem Volke stehn.
Zum Augenblicke dürft’ ich sagen:
Verweile doch, du bist so schön!

[26] Faust, Part ii. Act v., Himmel:
Wer immer strebend sich bemüht,
Den konnen wir erlösen.

[27] Ibid.:
Wir wurden früh entfernt
Von Lebechören;
Doch dieser hat gelernt,
Er wird uns lehren.

[28] Faust, Part ii. Act v., Mitternacht:
Noch hab’ ich mich ins Freie nicht gekämpft.
Könnt ich Magie von meinem Pfad entfernen,
Die Zaubersprüche ganz und gar verlernen,
Stünd’ ich, Natur, vor dir ein Mann allein.
Da wär’s der Mühe wert, ein Mensch zu sein.

[29] Faust, Part ii, Act v., Himmel:
Alles Vergängliche
Ist nur ein Gleichnis;
Das Unzulängliche,
Hier wird’s Ereignis;
Das Unbeschreibliche,
Hier ist es gethan;
Das Ewig-Weibliche
Zieht uns hinan.

[30] Cf. Trilogie der Leidenschaft, 1823:
Mich treibt umher ein unbezwinglich Sehnen;
Da bleibt kein Rat als grenzenlose Thränen….
Und so das Herz erleichtert merkt behende
Dass es noch lebt und schlägt und möchte schlagen,…
Da fühlte sich—o, dass es ewig bliebe!—
Das Doppelglück der Töne wie der Liebe.

[31] Aus dem Nachlass, Abkündigung:
Menschen Leben ist ein ähnliches Gedicht;
Es hat wohl einen Anfang, hat ein Ende,
Allein ein Ganzes ist es nicht.


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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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