Como se Deve Ler um Livro? – Virgínia Woolf

como se deve ler um livro

Neste artigo, a escritora inglesa nos fala sobre a leitura de livros.


Em primeiro lugar, quero enfatizar o ponto de interrogação no final do título. Mesmo se pudesse responder a essa pergunta para mim mesma, a resposta aplicaria-se somente a mim e não a você. O único conselho, de fato, que uma pessoa pode dar a outra sobre a leitura é que não aceite qualquer conselho, que siga seus próprios instintos, que use sua própria razão e que chegue às suas próprias conclusões. Se concordarmos nisto, me sentirei à vontade para apresentar algumas idéias e sugestões, pois você não permitirá que elas alcancem aquela independência que é a qualidade mais importante que um leitor pode possuir. Afinal de contas, que leis podem ser estabelecidas acerca dos livros? A batalha de Waterloo certamente foi travada em um determinado dia; mas Hamlet é uma peça melhor do que Lear? Ninguém poderá dizê-lo. Cada um deve decidir essa questão por si próprio. Admitir que autoridades, por mais fortemente enraizadas e fortalecidas que estejam, entrem em nossas bibliotecas e nos digam como ler, o que ler e que valor colocar sobre o que lemos é destruir o espírito de liberdade que constitui o fôlego de tais santuários. Em todos os outros lugares podemos estar obrigados por leis e convenções — aqui, não temos nenhuma.

Porém, para desfrutar da liberdade, se a platitude é perdoável, é claro que temos que nos controlar. Não devemos esbanjar nossas forças, desamparados e ignorantes, esguichando metade da casa a fim de regar um único roseiral; devemos exercitá-las, exata e poderosamente, precisamente aqui, no local que é próprio. Essa talvez seja uma das primeiras dificuldades que se nos apresenta em uma biblioteca. O que é o “local próprio”? Pode bem parecer que não há nada além de um conglomerado e de um amontoado confuso. Poemas e romances, histórias e memórias, dicionários e blue-books; livros escritos em todas as línguas por homens e mulheres de todos os temperamentos, raças e idades acotovelam-se uns aos outros na prateleira. E lá fora o burrinho zurra, as mulheres fofocam junto à bomba d’água e os potros galopam pelos campos. Por onde devemos começar? Como vamos trazer ordem a esse caos multitudinário e assim obter o maior e mais profundo prazer daquilo que lemos?

É bastante simples dizer, uma vez que os livros têm classes — ficção, biografia, poesia —, que devemos separá-los e tirar de cada um aquilo que é certo que cada uma nos deve dar. No entanto, poucas pessoas perguntam aos livros o que eles podem nos dar. O mais comum é chegarmos aos livros com a mente borrada e dividida, pedindo à ficção que seja verdade, à poesia que seja falsa, à biografia que seja lisonjeira, à história que faça valer nossos próprios preconceitos. Se pudéssemos banir todas essas idéias preconcebidas quando lemos, isso seria um começo admirável. Não dite ao seu autor; tente tornar-se ele. Seja seu colega de trabalho e seu cúmplice. Se você se retrair, reservar-se e criticar logo no início, estará se impedindo de obter o maior valor possível daquilo que lê. Mas se você abrir sua mente o mais amplamente possível, então sinais e indícios de uma delicadeza quase imperceptível, a partir da reviravolta das primeiras frases, o levarão à presença de um ser humano diferente de qualquer outro. Mergulhe nisso, familiarize-se com isso, e logo descobrirá que seu autor está lhe dando, ou tentando lhe dar, algo muito mais definitivo. Os trinta e dois capítulos de um romance — se primeiro considerarmos como ler um romance — são uma tentativa de construir algo formidável e coordenado como um edifício: todavia as palavras são mais impalpáveis do que os tijolos; ler é um processo mais longo e mais complicado do que ver. Talvez a maneira mais rápida de entender os elementos daquilo que um romancista se esforça para executar não é ler, mas escrever; tentar fazer sua própria experiência com os perigos e dificuldades das palavras. Lembre-se, então, de algum evento que deixou uma impressão distinta em você — talvez, quando você passou por duas pessoas conversando na esquina da rua. Uma árvore tremeu; uma luz elétrica tremulou; o tom da conversa foi cômico, mas também trágico; toda uma visão, toda uma concepção, parecia contida naquele momento.

Contudo, quando tentar reconstruí-lo em palavras, você verá que ele se rompe em mil impressões conflitantes. Algumas devem ser subjugadas; outras enfatizadas; no processo, provavelmente, você perderá toda a compreensão da emoção em si. A seguir, passe de suas páginas confusas e nebulosas para as páginas iniciais de algum grande romancista — Defoe, Jane Austen, Hardy. Agora você poderá apreciar melhor a maestria deles. Não se trata apenas de estarmos na presença de uma pessoa diferente — Defoe, Jane Austen ou Thomas Hardy — mas de estarmos vivendo em um mundo diferente. Aqui, em Robinson Crusoe, caminhamos por um caminho nitidamente alto; uma coisa acontece depois da outra; o fato e a ordem do fato é suficiente. Todavia, se o ar livre e a aventura significam tudo para Defoe, eles não significam nada para Jane Austen. Nela, é a sala de visitas e as pessoas falando, bem como os muitos reflexos de suas conversas, que revelam suas personagens. E se, quando nos acostumamos com a sala de visitas e seus reflexos, nos voltamos para Hardy, somos novamente volvidos. Os pântanos estão à nossa volta e as estrelas estão acima de nossas cabeças. É o outro lado da mente que está agora exposto — o lado escuro que se ergue mais alto na solidão, não o lado claro que se mostra quando estamos em companhia. Nossas relações não são com as pessoas, mas com a natureza e o destino.  No entanto, como esses mundos são diferentes, cada um é consistente consigo próprio. O criador de cada um tem o cuidado de observar as leis de sua própria perspectiva, e por maior que seja a tensão que elas possam nos impor, nunca nos confundirão, como fazem os escritores menores tão frequentemente, introduzindo dois tipos diferentes de realidade no mesmo livro. Assim, passar de um grande romancista a outro — de Jane Austen a Hardy, de Peacock a Trollope, de Scott a Meredith — é ser arrancado e desenraizado; ser arremessado desta maneira e depois daquela. Ler um romance é uma arte difícil e complexa. Você deve ser capaz não apenas de grande refinamento perceptivo, mas de grande ousadia de Imaginação se quiser fazer uso de tudo o que o romancista — esse grande artista — lhe dá.

Entretanto, uma olhada de relance para a companhia heterogênea que está na prateleira lhe mostrará que os escritores raramente são ‘grandes artistas’; com muito mais frequência, um livro não faz nenhuma reivindicação de ser uma obra de arte. As biografias e as autobiografias, por exemplo — vidas de grandes homens, de homens há muito mortos e esquecidos —, que ficam lado a lado com os romances e poemas, será que devemos nos recusar a lê-las porque elas não são “arte”? Ou as devemos ler, mas de uma maneira diferente, com um objetivo diferente? Será que devemos lê-las inicialmente para satisfazer essa curiosidade que às vezes nos possui quando, à noite, ficamos em frente a uma casa em que as luzes estão acesas e as persianas ainda não estão abertas, e cada andar da casa nos mostra uma seção diferente da vida humana enquanto existência? Somos então consumidos pela curiosidade sobre a vida dessas pessoas — os criados fofocando, os senhores jantando, a garota se vestindo para uma festa, a velha mulher à janela com seu tricô. Quem são eles, como são, quais são seus nomes, suas ocupações, seus pensamentos e suas aventuras?

Biografias e memórias respondem a tais perguntas, elas iluminam inúmeras casas como essa; elas nos mostram pessoas que se ocupam de seus afazeres diários, trabalhando, fracassando, sucedendo, comendo, odiando, amando, até a sua morte. E às vezes, enquanto observamos, a casa se desvanece, as grades de ferro desaparecem e nós estamos no mar; estamos caçando, navegando, lutando; estamos entre selvagens e soldados; estamos participando de grandes batalhas. Ou, até mesmo quando gostamos de ficar aqui na Inglaterra, em Londres, a cena ainda muda; a rua se estreita; a casa se torna pequena, apertada, com vidros em forma de diamante, e mal-odorosa. Vemos um poeta, Donne, sendo expulso de tal casa porque as paredes eram tão estreitas que, quando as crianças choravam, suas vozes as atravessavam. Podemos segui-lo, pelos caminhos que se encontram nas páginas dos livros, até Twickenham; até o Lady Bedford’s Park, um famoso ponto de encontro de nobres e poetas; e depois dirigimos nossos passos para Wilton, a grande casa na baixa, e ouvimos Sidney ler Arcádia para sua irmã; divagamos entre os pântanos e vemos as garças que figuram naquele famoso romance; e depois viajamos novamente para o norte na companhia daquela outra Lady Pembroke, Anne Clifford, para seus pântanos selvagens, ou mergulhamos na cidade e controlamos nossa alegria ao ver Gabriel Harvey em seu terno de veludo preto discutindo sobre poesia com Spenser. Nada é mais fascinante do que tatear e tropeçar na obscuridade e no esplendor alternados da Londres Elizabetana. Mas não há como ficar por lá. Os Temples e os Swifts, os Harleys e os St. Johns nos acenam; podemos passar hora após hora desenredando suas brigas e decifrando suas personagens; e quando nos cansamos deles podemos passear, passando por uma senhora de preto que usa diamantes, chegando até Samuel Johnson, Goldsmith e Garrick; ou cruzar o canal, se quisermos, e conhecer Voltaire, Diderot e Madame du Deffand; e assim voltar à Inglaterra e Twickenham — como certos lugares e certos nomes se repetem! — onde Lady Bedford teve seu parque e Pope viveu posteriormente, para a casa de Walpole em Strawberry Hill. Porém, Walpole nos apresenta a um enxame de novos conhecimentos, há tantas casas para visitar e sinos para tocar que podemos hesitar por um momento, na porta da senhorita  Berrys, por exemplo, quando eis que surge Thackeray; ele é um amigo da mulher que Walpole amava; de modo que simplesmente caminhando de amigo para amigo, de jardim para jardim, de casa para casa, passamos de uma ponta da literatura inglesa para outra e despertamos para nos reencontrarmos aqui, no presente, se é que podemos assim diferenciar este momento de tudo o que já passou antes. Essa, então, é uma das maneiras pelas quais podemos ler essas vidas e cartas; podemos fazê-los iluminar as muitas janelas do passado; podemos observar os famosos mortos em seus hábitos familiares e imaginar que às vezes estamos muito próximos e que podemos descobrir seus segredos, e às vezes podemos puxar uma peça ou um poema que eles escreveram e ver se a leitura é diferente na presença do autor. Entretanto, isso novamente desperta outras questões. Até que ponto — devemos nos perguntar — um livro é influenciado pela vida de seu autor? Até que ponto é seguro permitir que a vida do homem interprete a do autor? Até que ponto devemos resistir ou dar lugar às simpatias e antipatias que o homem mesmo suscita em nós — tão sensíveis são as palavras, tão receptivas ao caráter do autor? São perguntas que nos pressionam quando lemos vidas e cartas, e devemos respondê-las por nós mesmos, pois nada pode ser mais fatal do que ser guiado pelas preferências dos outros em um assunto tão pessoal.

Não obstante, também podemos ler tais livros com outro objetivo, não para lançar luz sobre a literatura, não para nos familiarizarmos com pessoas famosas, mas para refrescar e exercer nossas próprias potências criativas. Por acaso não há uma janela à direita da estante? Que delícia parar de ler e olhar para fora! Como a cena é estimulante, em seu inconsciente, em sua irrelevância, em seu movimento perpétuo — os potros galopando pelo campo, a mulher enchendo seu balde no poço, o burrinho jogando sua cabeça para trás e emitindo seu longo e acre gemido. A maior parte de qualquer biblioteca nada mais é do que o registro de tais momentos fugazes da vida de homens, mulheres e burrinhos. Toda literatura, à medida que envelhece, tem seus escombros, seu registro de momentos desaparecidos e de vidas esquecidas contadas em sotaques vacilantes e débeis que pereceram. Mas se você se entregar ao deleite da leitura dos escombros, você se surpreenderá: de fato você será surpreendido pelas relíquias da vida humana que foram lançadas aos mofos. Pode ser uma carta — mas que visão ela dá! Podem ser algumas frases — mas que perspectivas sugerem! Às vezes uma história inteira se reúne com tão belo humor, pathos e completude que é como se um grande romancista a tivesse trabalhado, no entanto, trata-se apenas dos escritos de um velho ator, Tate Wilkinson, lembrando a estranha história do Capitão Jones; é apenas um jovem subalterno servindo sob Arthur Wellesley e se apaixonando por uma bela garota em Lisboa; é apenas Maria Allen deixando cair sua costura na sala de visitas vazia e suspirando o quanto ela desejaria ter seguido o bom conselho do Dr. Burney e nunca ter fugido com seu Rishy. Nada disto tem qualquer valor; é insignificante ao extremo; no entanto, como é absorvente de vez em quando atravessar as escombreiras e encontrar anéis, tesouras e narizes quebrados enterrados no enorme passado e tentar separá-los enquanto o potro galopa em volta do campo, a mulher enche seu balde no poço, e o burrinho zurra.

Contudo, a longo prazo, cansamo-nos de ler o entulho. Cansamos de procurar o que é necessário para completar a meia verdade, que é tudo o que os Wilkinsons, os Bunburys, e as Maria Allens são capazes de nos oferecer. Eles não possuíam o poder do artista de dominar e suprimir; eles não podiam contar toda a verdade mesmo em relação a suas próprias vidas; desfiguraram a história que poderia ter sido muito bem construída. Os fatos são tudo o que eles podem nos oferecer, e os fatos são uma forma muito inferior de ficção. Assim, cresce em nós o desejo de realizar por intermédio de meias-declarações e aproximações; de deixar de procurar os mínimos matizes do caráter humano, de desfrutar da maior abstração, da verdade mais pura da ficção. Desse modo, criamos o humor, intenso e generalizado, desconhecedor dos detalhes mas realçado por alguma batida regular e recorrente, cuja expressão natural é a poesia; e esse é o momento de ler a poesia… quando já quase conseguimos escrevê-la.

Western wind, when wilt thou blow?
The small rain down can rain.
Christ, if my love were in my arms,
And I in my bed again!1

O impacto da poesia é tão duro e direto que neste momento não há outra sensação, exceto a do próprio poema. Que profundas dimensões então visitamos — quão repentina e completa é nossa imersão! Não há nada aqui a que possamos nos agarrar; nada para nos sustentar em nosso vôo. A ilusão da ficção é gradual; seus efeitos são preparados; porém, quem quando lê essas quatro linhas pára para perguntar quem as escreveu ou evoca o pensamento da casa de Donne ou o da secretária de Sidney; ou as enredam na complexidade do passado e na sucessão de gerações?  O poeta é sempre nosso contemporâneo. Nosso ser, neste momento, está centrado e consternado, como em qualquer choque violento de emoção pessoal. Depois, é verdade, a sensação começa a se espalhar em anéis mais amplos através de nossas mentes; os sentidos remotos são alcançados; estes começam a soar, a tecer comentários, e estamos conscientes dos ecos e reflexos. A intensidade da poesia cobre uma imensa gama de emoções. Temos apenas que comparar a força e o direcionamento de 

I shall fall like a tree, and find my grave,
Only remembering that I grieve.2

com a modulação vacilante de

Minutes are numbered by the fall of sands,
As by an hour glass; the span of time 
Doth waste us to our graves, and we look on it; 
An age of pleasure, revelled out, comes home 
At last, and ends in sorrow; but the life,
Weary of riot, numbers every sand, 
Wailing in sighs, until the last drop down,
So to conclude calamity in rest3

ou situar a calma meditativa de

Whether we be young or old, 
Our destiny, our being’s heart and home, 
Is with infinitude, and only there;
With hope it is, hope that can never die, 
Effort, and expectation, and desire, 
And something evermore about to be4

ao lado da completa e inesgotável beleza de

The moving Moon went up the sky, 
And nowhere did abide:
Softly she was going up,
And a star or two beside5

ou da esplêndida fantasia de

And the woodland haunter 
Shall not cease to saunter
When, far down some glade, 
Of the great world’s burning, 
One soft flame upturning 
Seems, to his discerning,
Crocus in the shade6

para nos dar conta da arte variada do poeta; seu poder de fazer de nós atores e espectadores; seu poder de fazer com que sua mão descreva personagens tão bem como se encaixasse nela uma luva, e fazer com que haja um Falstaff ou Lear; seu poder de condensar, de ampliar, de afirmar, de uma vez por todas.

“Só temos que comparar” — com essas palavras, o gato está fora do saco, e a verdadeira complexidade de leitura é admitida. O primeiro processo, o de receber impressões com a máxima compreensão, é apenas metade do processo de leitura; ele deve ser complementado por outro, se quisermos obter o prazer completo que um livro pode proporcionar. Devemos julgar essas impressões multitudinárias; devemos transformar essas formas fugazes numa que seja resistente e duradoura. Mas não imediatamente. Esperemos que a poeira da leitura se assente; que o conflito e o questionamento desapareçam; caminhemos, conversemos, puxemos as pétalas mortas de uma rosa ou durmamos. Então, de repente, sem que nossa vontade intervenha, pois é assim que a Natureza empreende tais transições, o livro regressará, mas de modo diferente. Ele flutuará até o topo de nossa mente, como um todo. E o livro como um todo é diferente do livro recebido no momento presente, em frases separadas. Os detalhes agora encaixam-se em seus lugares. Vemos a forma do início ao fim; é um celeiro, uma pocilga ou uma catedral. Agora, podemos comparar livro com livro, assim como comparamos edifício com edifício. Todavia, esse ato de comparação significa que nossa atitude mudou; não somos mais os amigos do escritor, mas seus juízes; e assim como não podemos ser demasiado simpáticos como amigos, também não podemos ser demasiado severos como juízes. Os livros que desperdiçaram nosso tempo e simpatia, não são eles criminosos? Os escritores de livros falsos — os livros que enchem o ar de decadência e doenças — não são eles os inimigos mais insidiosos da sociedade, os corruptores, os defraudadores? Sejamos, então, severos em nossos julgamentos; comparemos cada livro com o melhor de sua espécie. Penduram-se, então, ali na mente, as formas dos livros que lemos solidificada pelos julgamentos que lhes fizemos — Robinson Crusoe, Emma, O Retorno do Nativo.  Compare os romances com estes — mesmo o mais recente e o menor dos romances tem o direito de ser julgado segundo os melhores. E assim também é com a poesia — quando a embriaguez do ritmo tiver diminuído e o esplendor das palavras tiver desaparecido, uma forma visionária regressará para nós e isto deve ser comparado com Lear, com Phèdre, com O Prelúdio; ou se não com estes, com o que for o melhor ou nos parecer o melhor de sua própria espécie. E podemos estar certos de que a novidade dessa nova poesia e dessa ficção é sua qualidade mais superficial, e de que temos apenas que alterar ligeiramente os padrões pelos quais julgamos as antigas  — e não o reformular. 

Seria então uma tolice fingir que a segunda parte da leitura  (julgar e comparar)  é tão simples quanto a primeira (abrir amplamente a mente para o rápido afluxo de inúmeras impressões). Continuar lendo sem o livro diante de você, segurar uma sombra contra outra, ter lido amplamente e com compreensão suficiente para fazer tais comparações vivas e esclarecedoras — isso é difícil; e é ainda mais difícil insistir ainda mais e dizer: “Não só o livro é deste tipo, mas é deste valor; aqui ele falha; ali é bem sucedido; isto é mau; isto é bom”. Para cumprir essa parte do dever de um leitor, é preciso ter tanta imaginação, percepção e aprendizagem que é difícil conceber uma mente suficientemente dotada; é impossível para os mais autoconfiantes encontrar mais do que as sementes de tais potências em si próprios. Não seria mais sábio, então, dispensar tal parte da leitura e permitir que os críticos — as autoridades bibliotecárias, togadas e enfeitadas — decidam a questão do valor absoluto do livro para nós? Ainda assim, quão impossível! Podemos enfatizar o valor da simpatia; podemos tentar dissipar nossa identidade à medida que lemos. Mas sabemos que não podemos simpatizar totalmente ou dissipar totalmente; há sempre um demônio em nós que sussurra: “Eu odeio, eu amo”, e não podemos silenciá-lo. De fato, é precisamente porque odiamos e amamos que nossa relação com os poetas e romancistas é tão íntima a ponto de acharmos a presença de outra pessoa intolerável. E mesmo que os resultados sejam abomináveis e nossos julgamentos estejam errados, ainda assim nosso gosto, o nervo da sensação que nos provoca choques, é nosso principal iluminador; aprendemos através do sentimento; não podemos suprimir nossa própria idiossincrasia sem empobrecê-la. No entanto, com o passar do tempo, talvez possamos treinar nosso paladar; talvez possamos fazer com que se submeta a algum controle. Quando ele tiver se alimentado gananciosa e luxuriosamente com livros de todos os tipos — poesia, ficção, história, biografia — e parado de ler em busca de longos espaços para a variedade, para a incongruência do mundo vivo, veremos que ele está modificando-se ligeiramente; ele não é mais tão ganancioso, é mais reflexivo. Começará a nos proporcionar não apenas julgamentos sobre determinados livros, mas nos dirá que existe uma qualidade comum a certos livros. Ouça, ele dirá, como chamaremos ISTO? E nos lerá talvez Lear e depois talvez Agamemnon, a fim de trazer à tona essa qualidade comum. Assim, com nosso gosto para nos orientar, nos aventuraremos para além do livro em particular em busca das qualidades que agrupam os livros; daremos nomes a elas e, com isso, enquadraremos uma regra que traz ordem às nossas percepções. Teremos um prazer ainda maior e mais raro com essa discriminação. Contudo, como regra geral, ela só subsiste quando é perpetuamente rompida pelo contato com os próprios livros — nada é mais fácil e mais estupidificante do que estabelecer regras que existem fora do contato com os fatos, no vácuo —, agora, finalmente, para nos firmarmos nessa difícil tentativa, talvez seja bom recorrer aos raríssimos escritores que são capazes de nos iluminar quanto à literatura como uma arte. Coleridge, Dryden e Johnson, em suas críticas conceituadas, os próprios poetas e romancistas em seus pronunciamentos conceituados, muitas vezes são surpreendentemente relevantes; eles iluminam e solidificam as idéias vagas que vêm tumultuando as profundezas nebulosas de nossas mentes. Mas eles só são capazes de nos ajudar se chegarmos até eles carregados de perguntas e sugestões que obtivemos honestamente no decorrer de nossa própria leitura. Eles não podem fazer nada por nós se nos detivermos à sombra de uma sebe, sob a autoridade deles. Só podemos compreender sua decisão quando ela entra em conflito com a nossa e a destrói.

Se assim for, se ler um livro como ele deve ser lido exige as mais raras qualidades da imaginação, discernimento e julgamento, talvez você possa concluir que a literatura é uma arte muito complexa e que é improvável que sejamos capazes, mesmo depois de uma vida inteira de leitura, de dar qualquer contribuição valiosa à sua crítica. Devemos permanecer leitores; não devemos investir mais na glória que pertence a esses seres raros que também são críticos. Ademais, ainda temos nossas responsabilidades como leitores e até mesmo nossa importância. Os padrões que elevamos e os julgamentos que emitimos invadem o ar e se tornam parte da atmosfera que os escritores respiram enquanto trabalham. Cria-se uma influência que lhes inspira, mesmo que ela nunca chegue a ser impressa. E essa influência, se bem dirigida, vigorosa, individual e sincera pode ter grande valor atualmente, no momento mesmo em que a crítica está necessariamente em suspenso; quando os livros passam em revista tal como uma procissão de animais em uma galeria de tiro, e o crítico tem apenas um segundo para carregar, apontar e atirar, podendo ser desculpado se ele confundir coelhos com tigres, águias com galinhas de granja, ou falhar completamente e desperdiçar seu tiro com alguma vaca pacífica que pasta em outro campo. Se, por detrás dos tiros erráticos da imprensa, o autor sentir que há outro tipo de crítica, a opinião das pessoas que leem por amor à leitura — aos poucos e de forma não profissional  —, julgando com grande simpatia, e ainda assim com grande severidade, será que isso não poderia melhorar a qualidade de seu trabalho? E se, através de nossas possibilidades, os livros se tornassem mais fortes, mais ricos e mais variados, isso seria um fim que valeria a pena alcançar.

No entanto, quem é que lê com o objetivo de atingir um fim, por mais desejável que seja? Será que não há certas atividades que praticamos porque elas são boas em si mesmas, e alguns prazeres que são últimos? E esse não seria um deles? Por vezes sonhei, em algumas ocasiões, que, quando alvorecia o Dia do Julgamento, e os grandes conquistadores, juristas e estadistas vinham para receber suas recompensas — suas coroas, seus louros e seus nomes esculpidos indelevelmente no mármore imperecível — o Todo-Poderoso voltava-se para Pedro e lhe dizia, não sem certa inveja quando nos avistava a vir com nossos livros debaixo dos braços: “Veja, estes não precisam de prêmio.  Não há nada a oferecer a eles aqui. Eles são os que amaram a leitura”.


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Ensaio extraido de um dos livros da coleção “The Collected Essays”.

Notas:

[1] Vento ocidental, quando soprarás?
A chuvinha abaixo pode chover.
Cristo, se meu amor estivesse em meus braços,
E eu em minha cama outra vez!

[2] Eu cairei como uma árvore, e encontrarei minha sepultura,
Apenas recordando que lamento.

[3] Minutos são numerados pela queda das areias,
Tal como numa ampulheta; a duração do tempo
Faz-nos perecer até chegarmos ao túmulo, e olhamos para ele;
Uma era de prazer, divertida, regressa a casa.
Finalmente, termina em tristeza; mas a vida,
Cansada de tumultos, numera cada areia,
Lamentando-se em suspiros, até a última gota que cai,
Assim, conclui-se a calamidade no repouso

[4] Quer sejamos jovens ou velhos,
Nosso destino, que é o coração e o lar de nosso ser,
Está com a infinitude, e somente lá;
Com a esperança é que está, esperança que nunca pode morrer,
Esforço, expectativa e desejo,
E algo mais que sempre está prestes a ser

[5] A lua em movimento subiu pelo céu,
E em nenhum outro lugar se alojou:
Suavemente ela estava se elevando,
E uma ou duas estrelas ao seu lado

[6] E o caçador da floresta.
Não deixará de vagar
Quando, de longe, em alguma clareira,
Da grande queima do mundo,
Uma chama macia em ascensão
Parece, a seu ver,
O crocodilo na sombra

Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

One thought on “Como se Deve Ler um Livro? – Virgínia Woolf

  1. O texto traduzido expressa uma das formas mais eficazes de personalidade: atiçar a fera da individualidade. Sabemos ser importante as opiniões alheias sobre um Romance clássico, mas que diferença fará em sua vida se não lermos, e verificarmos com nossos próprios olhos, ouvidos e paladar tal Romance? Sem mencionar que ocorre progressão no gosto do leitor, saltando da biografia para romance e saltando outra vez, agora para a poesia! Agradeço a tradução, ajuda a minha formação literária, obrigado!

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