A Filosofia do Organismo — Peter Sjöstedt-Hughes

Peter Sjöstedt-Hughes1 nos apresenta a consciência orgânica da realidade, a Filosofia do Organismo de Whitehead.


“O processo é a imanência do infinito no finito; por meio da qual todos os limites são rompidos, e todas as inconsistências são dissolvidas.”

Modos de Pensamento, III. 5

A filosofia do organismo é o nome da metafísica do matemático e filósofo Alfred North Whitehead. Nascido em Kent em 1861, educado em Dorset, Alfred seguiu para o norte e ensinou matemática e física em Cambridge, onde fez amizade com seu aluno, Bertrand Russell, com quem veio colaborar em um projeto para desenvolver bases logicamente inabaláveis para a matemática2. Em 1914, Whitehead tornou-se professor de Matemática Aplicada no Imperial College, em Londres. No entanto, sua paixão pelos problemas filosóficos subjacentes nunca o deixou, e em 1924, aos 63 anos de idade, cruzou o Atlântico para assumir um cargo como Professor de Filosofia na Universidade de Harvard. Whitehead morreu em Cambridge, Massachusetts, em 1947. Sua jornada intelectual passou pela matemática, pela física, lógica, educação, filosofia da ciência e amadureceu em sua profunda metafísica, uma complexa filosofia sistemática que se desenvolve de forma mais abrangente em seu livro de 1929, Processo e Realidade.

A filosofia do organismo é uma forma de filosofia do processo. Este tipo de filosofia procura superar os problemas das tradicionais opções metafísicas do dualismo, do materialismo e do idealismo. Do ponto de vista da filosofia do processo, o erro do dualismo é considerar a mente e a matéria como fundamentalmente distintas; o erro do materialismo é cair nesse erro primário e depois omitir a mente como fundamental; o erro do idealismo é também cair nesse erro primário e depois omitir a matéria como fundamental. A filosofia do organismo procura resolver essas questões através da fusão dos conceitos de mente e matéria, criando assim um “realismo orgânico” tal como Whitehead também denominou sua filosofia. Para ter uma visão geral sobre essa maravilhosa, revolucionária, porém mais lógica filosofia, vamos primeiro analisar o que Whitehead quer dizer com “realismo”, e depois examinar o significado de “orgânico”.

Realismo

“Realismo” tem uma série de significados em filosofia, mas, com relação aos interesses de Whitehead, um realista adota essencialmente a visão de que percebemos a realidade como ela realmente é.

Embora essa idéia possa parecer a muitos como sendo de bom senso, é considerada ingênua por muitos em tradições filosóficas não-realistas. Sua postura anti-realista suplanta o realismo com o representacionalismo — a noção de que, ao invés de perceber diretamente a própria realidade, percebemos uma representação indireta da realidade — que nossa experiência da luz, digamos, é apenas uma representação de ondas de fótons que atingem nossas retinas.

As posições idealistas e materialistas anti-realistas acabam devendo seus erros ao dualismo, a noção de que a mente e a matéria são substâncias distintas. Whitehead destaca o principal dualista, René Descartes (1596-1650), como a figura responsável por inaugurar a queda no anti-realismo, e os consequentes problemas aos quais chegamos na filosofia moderna. 

O católico Descartes atribuiu a mente, enquanto “alma”, apenas à humanidade. O resto da natureza ele classificou como puramente mecânica e, portanto, explicável por meio da matemática. Como resultado das idéias de Descartes, hoje, a ciência e a filosofia (do não-processo) não podem superar o problema do solipsismo — não sendo capazes de demonstrar conclusivamente que nossas experiências são verdadeiramente representativas de uma realidade externa — nem entrelaçar questões, incluindo o difícil problema da consciência: como a mente poderia emergir de ou estar relacionada à atividade do cérebro. Outras questões relacionadas dizem respeito aos problemas do livre arbítrio e do esforço mental: a como a mente poderia influenciar a matéria (especificamente o cérebro e o corpo), se toda causalidade material é mecânica; ao problema da causalidade em si; por que a consciência deveria existir se ela não tem poder; por que temos gosto estético por música ou arte abstrata, e assim por diante.

As soluções da filosofia do organismo para esses problemas começam pela rejeição da bifurcação da natureza na mente e na matéria. Com uma reconhecida dívida com o filósofo francês Henri Bergson (1859-1941), Whitehead rejeita tal dualismo através de sua reformulação da percepção. O pressuposto errado subjacente ao anti-realismo é que a percepção é apenas a representação de um objeto, ou, em termos gerais, de um mundo externo. Whitehead rejeita esse pressuposto e o substitui pela noção de que a percepção é parte do objeto ou do mundo. Ele nomeia tal noção reformulada de preensão. Colocando de forma concisa, tal percepção não está em relação ao mundo como representação-para-o-objeto, mas como parte-para-o-todo. Para dar um exemplo humano, a luz que emana de uma estrela muda o olho que a vê, o nervo óptico, o córtex, possivelmente os músculos da boca (fala); e, assim, parte da estrela — sua radiação eletromagnética — torna-se parte de mim. Entretanto, como um filósofo do processo, Whitehead rejeita a existência de coisas sólidas com atributos fixos, e afirma, como fazia Heráclito na Grécia antiga, que tudo é mudança, fluxo3: uma montanha é uma onda, considerando que se passe o tempo suficiente. Assim, para Whitehead, uma estrela é apenas sua atividade, incluindo sua irradiação, e sua energia eletromagnética continua sua atividade dentro de nós — não há uma delimitação absoluta da atividade. Portanto, uma parte de toda a estrela se tornou parte de nossa percepção. Então, um aspecto do elemento realista de sua filosofia é que o objeto real e o sujeito real são parcialmente fundidos. Não somos feitos apenas de poeira estelar, mas também de luz estelar. Contra o solipsismo, sabemos que percebemos a realidade porque nossa percepção é parte dessa realidade e não uma mera representação dela.

Os materialistas podem chegar aqui e dizer que aceitam a linha causal da radiação estelar em relação à alteração fisiológica, mas depois sentem a necessidade de acrescentar uma nova misteriosa linha causal, da alteração cerebral à representação consciente — da matéria à mente. Contudo, com essa adição desnecessária e mística vêm todos os problemas do representacionalismo. O realismo orgânico mantém pura a linha causal original. Mas tal pureza e parcimônia implicam em uma remodelação bastante radical do que se entende ser a realidade, a fim de explicar como a mudança fisiológica já envolve a percepção senciente. Isso nos leva à palavra “orgânico”.

Organicismo

Para Whitehead, a bifurcação do mundo em orgânico e inorgânico também é falsa. Considere a descida de uma linha de complexidade, partindo do Homo-sapiens para as estrelas do mar, para as células, para as moléculas de DNA, para as moléculas menos complexas, para os átomos, e depois para o subatômico. Para Whitehead, essa descida é para o que ele chama de ‘entidades atuais’ ou ‘ocasiões atuais’, ou ‘ocasiões da experiência’, que poderíamos pensar como eventos ontologicamente não-compostos.

Whitehead afirma tudo como sendo orgânico. Como ele sucintamente coloca: “A biologia é o estudo dos organismos maiores; enquanto a física é o estudo dos organismos menores” (A Ciência e o Mundo Moderno, VI, 1925). A divisão in/orgânico é então, em última análise, falsa, e foi sancionada pela suposta idéia do universo mecânico, mais uma vez resultante da divisão da mente/matéria feita por Descartes. Mais importante aqui é que, para Whitehead, as entidades atuais têm um grau de senciência — de consciência, sentimento e propósito — assim como os sistemas, ou “sociedades” como ele as denomina, que são organicamente construídos a partir de entidades atuais. A consciência, tal como nós humanos a temos, é, portanto, um complexo sistema aninhado de sentimentos subordinados: os ‘organismos’ redefinidos que traçamos no caminho do Homo-sapiens às partículas subatômicas, sendo cada um deles sistemas auto-organizadores, também são sencientes em graus, de acordo com a complexidade integrada envolvida. Cada célula de nosso corpo é um tal instrumento de senciência — instrumentos que focalizam seus efeitos na ala do crânio. Tal consciência requer um cérebro humano porque o cérebro canaliza em conjunto a consciência das entidades subordinadas. Onde entidades atuais se formaram como agregados não-auto-organizadores — tais como portas e janelas — não existe uma senciência unificada associada ao próprio agregado — apenas a miríade de senciências menores das quais o agregado é composto: as senciências das moléculas, átomos e partículas subatômicas. Note a implicação de que, embora um cérebro seja necessário para a consciência de alto nível do tipo animal, um cérebro não é necessário para a mera sensibilidade. Analogamente, embora uma orquestra seja necessária para uma sinfonia, uma orquestra não é necessária para um solo de violino. Senciência, ou experiência, já existe como parte da realidade.

O conceito de senciência universal é conhecido como pan-psiquismo, ou, como é chamado em relação à filosofia do organismo, panexperiencialismo. Embora o panexperiencialismo possa parecer extremo para muitos de nós, criados em uma cultura pós-Cartesiana, ele é sem dúvida a perspectiva mais lógica e parcimoniosa sobre a natureza da realidade. O duro problema de como a senciência evolucionária surgiu da insenciência é resolvido negando a existência da insenciência. A insenciência sempre existiu, apenas sua complexidade evoluiu — uma mudança no grau e não a problemática mudança de espécie.

Para apoiar o pensamento de Whitehead sobre isso, pode-se notar que não temos evidências que demonstrem que a (assim chamada) matéria é insenciente. Pode-se retorquir que não temos provas de que (a maioria) da matéria seja senciente — um nivelamento que não tem posição de inadimplência imediata. Porém, a visão panexperiencialista é mais parcimoniosa e capaz de resolver muitos problemas tradicionais na filosofia da mente, e também é um relato plausível. É parcimoniosa na medida em que reduz um dualismo a um monismo: matéria e mente são uma só coisa, ou seja, a mesma coisa — ambos os termos são meramente abstrações de uma realidade concreta unificada. Ou poderíamos dizer, a matéria é consciente — emotiva e criativa. Essa posição também elimina qualquer misteriosa conexão causal entre mente e matéria (como visto, por exemplo, no epifenomenalismo), e adota plenamente a eficácia causal4 tanto da mente quanto da matéria, uma vez que são do mesmo tipo. As chamadas causas mecânicas em si, envolvendo força física, são apenas abstrações da realidade concreta que inclui a mentalidade associada. Neste aspecto, Whitehead é semelhante a Arthur Schopenhauer (1788-1860) com sua idéia de Vontade como o efeito interno das forças externas observadas, ou a Friedrich Nietzsche (1844-1900) com sua noção da Vontade de Poder. Empunhando a Navalha de Occam, no realismo orgânico percebemos diretamente a causalidade porque percepção é causalidade: ela é o fluxo dos chamados “objetos externos” fundindo-se e, assim, alterando o sujeito. Isto torna falso o ‘Problema de Causalidade’ de David Hume — de que nós não percebemos a causalidade em si — e, portanto, torna redundante o projeto crítico de Immanuel Kant (ou seja, toda sua metafísica posterior), baseado no suposto problema de causalidade de Hume. Parece que Kant despertou de seu sono dogmático em um erro axiomático5.

Realismo Orgânico

Voltando ao realismo, a metafísica de Whitehead argumenta que a percepção envolve a fusão parcial do objeto e do sujeito, do mundo e do organismo perceptivo. Nas palavras de Whitehead, “A filosofia do organismo dedica-se principalmente à tarefa de tornar clara a noção de ‘estar presente em outra entidade’”. (Processo e Realidade, 79-80.). Não há dicotomia absoluta e transformação mágica da matéria na mente através de alguma linha causal desconhecida, como é o conceito comum hoje em dia. Ao contrário, os elementos do mundo já são sencientes, de modo que tal fusão sujeito-objeto não é apenas a alteração do organismo, mas a fusão da realidade panexperiencial consigo mesma. Assim, não percebemos simplesmente a realidade — tornamo-nos um com a realidade emotiva, proposital e criativa que opera ao nosso redor e através de nós:

Assim, como revelado na essência fundamental de nossa experiência, a união das coisas envolve alguma doutrina de imanência mútua… Estamos no mundo e o mundo está em nós“.

(Alfred North Whitehead – Modos de Pensamento, VIII, 1938)

© Peter Sjöstedt-H 2016

Notas:

[1] Peter Sjöstedt-Hughes cursa seu PhD na Universidade de Exeter. Ele é o autor de Noumenautics, e uma inspiração para a nova encarnação do super-herói filósofo, Marvel Karnak. Pode-se contatá-lo através de seu site, https://www.philosopher.eu.

[2] N.T.: Uma obra monumental, o Principia Mathematica.

[3] N.T.: Contudo, segundo Whitehead: “No fluxo inescapável, há algo que permanece; na permanência avassaladora, há um elemento que escapa ao fluxo.” Processo e Realidade

[4] N. T.: cf. Simbolismo: Seu Significado e Efeito.

[5] essa crítica a Kant e Hume encontra-se em Simbolismo: Seu Significado e Efeito.


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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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