Sobre Processo e Realidade — Alfred North Whitehead

“Sobre Processo e Realidade” é um ensaio extraído da obra “Essays in Science and Philosophy“, do grande filósofo e matemático inglês, Alfred North Whitehead.


Os americanos são sempre calorosos, sempre agradecidos, sempre prestativos, mas sempre astutos; e é isso que me proporciona o prazer contínuo de viver na América, e é por isso que quando encontro um americano espero sempre gostar dele, por causa dessa mistura sempre deliciosa de sagacidade e calor humano.

É claro que qualquer pessoa que tenha algum senso e que escreva sobre filosofia sabe, ou deveria saber, que o mundo é insondável em sua complexidade e que qualquer coisa que você faça deve estar aberta à crítica — deveria estar aberta à crítica, se ela for de alguma utilidade. Ela deve ser considerada como sendo uma tribuna a partir da qual se pode fazer críticas. Ou seja, ser razoavelmente bem-sucedido como filósofo é proporcionar uma nova tribuna; talvez não uma tribuna completamente nova, mas uma pequena alteração de alguma tribuna mais antiga a partir da qual vale a pena fazer críticas. E a crítica é o poder motivador para a avanço do pensamento. Gosto de apontar aos meus alunos que ser refutado por todos os séculos depois de ter escrito algo é o ápice do triunfo. Sempre faço essa observação em relação a Zenão. Ninguém jamais abordou Zenão sem refutá-lo, e cada século acha que vale a pena refutá-lo.

Posso ser inicialmente um pouco egoísta antes de passar à filosofia? Não posso deixar de pensar retrospectivamente, até pouco menos de sete anos atrás, no final de agosto, quando nosso navio com minha esposa e eu chegamos ao porto de Boston. Não conhecíamos ninguém residente em Harvard, embora algumas semanas antes tivéssemos conhecido o Sr. e a Sra. Osborn Taylor em Londres. Chegamos em uma manhã maravilhosa do final de agosto, depois de termos encontrado um furacão de verão na noite anterior. Sentimo-nos muito pequenos e fracos, imaginando o que iria acontecer conosco. E no cais havia três das pessoas mais acolhedoras, Taylor, Woods, e Edgar Pierce. Lembro-me do sentimento reconfortante dessa primeira expressão de gentileza calorosa e avassaladora que imediatamente lançou as bases de uma série de amizades íntimas — não tomadas por uma seleção cuidadosa deste ou daquele grupo remoto, mas as amizades íntimas com aquelas pessoas com as quais tenho a honra de servir Harvard como um de seus colegas. Parece ter sido minha boa sorte o fato de pertencer a um conjunto de amigos íntimos e estimulantes, uma boa sorte que começou no cais com aquela recepção de Woods, Taylor e Edgar Pierce — uma boa sorte que tem continuado desde então. Eu sinto que se um homem quer fazer o seu melhor deveria viver na América, porque lá o tratamento dado a qualquer esforço é tal que estimula tudo aquilo que é ávido dentro de alguém.

Eu gostaria de ser ainda um pouco mais egoísta. Sinto hoje que o hábito matemático de contabilizar as quantidades às vezes é errado. Tenho setenta anos de idade e sinto-me enforcado se assim o sinto. Esse é um dos pensamentos que me vem à mente.

Há outra coisa que eu gostaria de mencionar aos membros mais jovens daqui que estão, naturalmente, em revolta contra a era anterior. Vocês têm em mim um exemplo típico do inglês vitoriano. Fiquei impressionado com o fato de que cada causa que de algum modo votei na Inglaterra finalmente alcançou os triunfos que uma causa pode alcançar. Eu nunca, nunca estive em desacordo final com a maioria dos meus compatriotas. Por vezes, e em geral, votei em uma minoria durante alguns anos antes que a causa triunfasse. A maioria dos meus votos foram votos minoritários, mas eles sempre terminaram naquela maioria final que resolve a questão. E assim deduzo que não posso ter qualquer pretensão de ficar acima, ou além, ou de qualquer forma fora da minha época. Eu sou exatamente um exemplo comum do tom geral do inglês vitoriano, apenas um de um grupo.

Passo agora à filosofia. Eu disse muito pouco em meu livro Processo e Realidade sobre Hegel por uma razão muito boa. Vocês se lembram que a maior parte da minha vida profissional foi passada como matemático, dando palestras e ensinando matemática, e muito do resto foi dedicado à elaboração de uma lógica simbólica. Portanto, vocês não ficarão surpresos quando eu lhes confessar que a quantidade de filosofia que eu não li supera toda a conta e que, de fato, nunca li uma página de Hegel. Contudo, isto não é verdade. Lembro-me de quando estava com Haldane, em Cloan, que li uma página de Hegel. Todavia, é verdade que eu fui influenciado por Hegel. Eu era um amigo íntimo de McTaggart quase que desde o primeiro dia em que ele veio à Universidade, e o via por alguns minutos quase diariamente, tive muitas conversas com Lord Haldane sobre seu ponto de vista hegeliano, e li livros sobre Hegel. Porém, a falta de conhecimento em primeira mão é uma razão muito boa para não tentar mostrar nenhum conhecimento sobre Hegel por escrito.

Todavia, como disse em meu livro, admito uma afiliação muito próxima com Bradley, exceto que sou diferente de Bradley, quando Bradley concorda com quase todos os filósofos de sua escola e com Platão, na medida em que Platão era um Hegeliano. Eu difiro deles onde todos concordam em seu sentimento de ilusão e relativa irrealidade do mundo temporal. Bergson tem o ponto de vista oposto; ele sustenta que o intelecto necessariamente falsifica a noção de processo. Existem estas duas doutrinas alternativas prevalecentes a respeito do processo aparente no mundo externo: uma, que é a opinião de Bergson, é a de que o intelecto, a fim de informar acerca da intuição experimentada, deve necessariamente introduzir um aparato de conceitos que falsificam a intuição; a outra é a de que o processo é um elemento um tanto superficial e ilusório em nossa experiência do eternamente real, o essencialmente permanente. Este último é o ponto de vista de Bradley, se eu o li corretamente. Penso que às vezes é também o ponto de vista de Platão. É exatamente sobre estes pontos que eu difiro de Bergson por um lado, e de Bradley por outro.

Falo a partir de um conhecimento muito escasso; mas suspeito que sou um pouco mais aristotélico do que Bergson ou Bradley. Eu lamentaria muito, no entanto, ter que ir para a fogueira por tal crença. Aristóteles tem algumas sugestões muito relevantes sobre a análise do devir e do processo. Sinto que existe uma lacuna em seu pensamento, que tão bem quanto o devir precisa ser analisado, assim também é com o perecer. Os filósofos aceitaram com demasiada facilidade a noção de perecimento. Há uma trindade de três noções: ser, devir e perecer. Platão afirma a questão (Platão levanta todas as questões fundamentais sem respondê-las) ao introduzir a noção do que está sempre vindo a ser e nunca é real. O mundo está sempre tornando-se, e à medida que ele se torna, ele morre e perece. Ora, essa noção de perecer é encoberta como uma espécie de escândalo. Broad inclusive vai ao ponto de dizer, de fato, que o passado não é nada, simpliciter. Mais uma vez Platão levanta a questão, quando aponta que o não-ser é uma forma de ser, que o que quer que se possa dizer sobre coisas que são não-ser é uma forma de dizer que elas têm sido. Ele está apenas pensando em suas formas tais como incluindo possibilidades alternativas, quando faz essas observações no Sofista. Mas, tal como todas as observações de Platão, ele tem que refletir e expandir. Podemos estendê-la para significar que o mundo, à medida que passa, perece, e que no perecer ele ainda conserva um elemento no futuro além de si mesmo.

Quase todo Processo e Pealidade pode ser lido como uma tentativa de analisar o perecimento no mesmo nível que a análise de Aristóteles do devir. A noção de preensão do passado quer dizer que o passado é um elemento que perece e que, portanto, permanece um elemento no estado além, e que assim é objetivado. Esta é a noção completa. Se você tiver uma noção geral do que significa perecer, você terá realizado uma apreensão do que você quer dizer com memória e causalidade, do que você quer dizer quando sente que o que somos é de infinita importância, porque, à medida que perecemos, somos imortais. Esse é o único pensamento chave em torno do qual todo o desenvolvimento de Processo e Realidade é tecido, e eu acho que de muitas maneiras estou em total concordância com Bradley.

Acho que Bradley se mete numa grande confusão porque aceita a linguagem que é desenvolvida a partir de outro ponto de vista. A maioria das confusões da filosofia deve-se, creio eu, ao uso de uma linguagem que é desenvolvida a partir de um ponto de vista para expressar uma doutrina baseada em conceitos totalmente estranhos.

Quanto às minhas próprias opiniões sobre permanência e transiência, acho que o universo tem um lado que é mental e permanente. Esse lado é aquele principal impulso conceitual que eu chamo de natureza primordial de Deus. É o nisus de Alexandre concebido como atual. Por outro lado, essa atualidade pemanente passa para e é imanente no lado transitório.

Amplie sua visão sobre o fato final que é permanente em meio à mudança. Em sua essência, a realização é limitação, exclusão. Porém, esse fato último inclui em sua visão appetitiva todas as possibilidades de ordem, possibilidades ao mesmo tempo incompatíveis e ilimitadas com uma fecundidade além da imaginação. Etapas finitas de transição, esta fonte de incompatibilidades em sua relevância ordenada para o fluxo das épocas. Assim, o processo da história finita é essencial para a ordenação da visão básica, caso contrário, é mera confusão. A chave para a metafísica é essa doutrina da imanência mútua, cada lado emprestando ao outro um fator necessário para sua realidade. A noção de uma perfeição de ordem, que é (creio) a doutrina de Platão, deve seguir o caminho da única geometria possível. O universo é mais variado, mais Hegeliano.

A obtenção dessa última perfeição de qualquer realização finita depende novamente do frescor. O frescor proporciona a suprema intimidade do contraste, o novo com o velho. Um tipo de ordem surge, desenvolve sua variedade de possibilidades, culmina e passa para a decadência da repetição sem frescor. Esse tipo de ordem decai; não em desordem, mas passando para um novo tipo de ordem.

Eu certamente acho que o universo está se esgotando. Isso significa que nossa época ilustra um tipo especial de ordem física. Por exemplo, este número absurdamente limitado de três dimensões de espaço é um sinal de que você tem algo característico de uma ordem especial. Podemos ver o universo passando para uma trivialidade. Todos os efeitos a serem derivados de nosso tipo de ordem existente estão passando para uma trivialidade. Isso não significa que não existam alguns outros tipos de ordem dos quais você e eu não temos a mínima noção, a menos que por acaso eles sejam encontrados em nossa mentalidade mais elevada e não sejam percebidos por nós em sua verdadeira relevância para o futuro. O universo está lançando as bases de um novo tipo, onde nossas atuais teorias de ordem aparecerão como triviais. Se lembradas, elas serão lembradas ou discernidas no futuro como trivialidades, gradualmente desvanecendo-se no nada. Trata-se da única doutrina possível de um universo que sempre se encaminha para a novidade.

Agora eu já disse o suficiente sobre a filosofia, exceto que gostaria de observar que as fases modernas da matemática ou da lógica matemática não são nada modernas, mas surgem de um grande passado: Grassman, Sir William Hamilton — não o escocês que era um mau metafísico, mas o irlandês que escreveu boa matemática (quando este William Hamilton tinha dez anos de idade, o embaixador persa veio a Dublin, e este menino era a única pessoa disponível que podia fazer um discurso público em persa recebendo o embaixador) — Boole, De Morgan, e para voltar à origem de todos estes esforços, o grande Leibniz. Acho que é bom valorizar essa noção de crescimento das idéias do mundo de geração em geração.


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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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