O Significado da Vida — Alfred Adler

“O Significado da Vida” foi extraído da obra “What Life Could Mean to You“, de Alfred Adler.

Os seres humanos vivem no reino dos significados. Não experienciamos as circunstâncias puras; sempre experienciamos as circunstâncias de acordo com o seu significado para os homens. Mesmo na sua origem, a nossa experiência é qualificada pelos nossos propósitos humanos. “Madeira” significa “madeira na sua relação com a humanidade” e “pedra” significa “pedra como um fator na vida humana”. Se um homem tentasse escapar dos significados e se dedicasse apenas às circunstâncias, seria muito infeliz: isolaria-se dos outros; suas ações seriam inúteis para si mesmo ou para qualquer outra pessoa; em suma, elas seriam sem sentido. Porém, nenhum ser humano pode escapar dos significados. Sempre experienciamos a realidade através do significado que lhe atribuímos; não em si mesma, mas como algo que é interpretado. Será natural supor, portanto, que esse significado é sempre mais ou menos inacabado, incompleto; e até mesmo que ele nunca é totalmente correto. O reino dos significados é o reino dos erros.

Se perguntássemos a um homem: “Qual é o sentido da vida?”, ele talvez não fosse capaz de responder. Na maioria das vezes, as pessoas não se preocupam com essa questão nem tentam formular respostas. É verdade que a questão é tão antiga quanto a história da humanidade e que, em nossa época, os jovens — e também os mais velhos — muitas vezes se perguntam: “Mas para que serve a vida? O que significa a vida?” Podemos dizer, no entanto, que eles só perguntam isso quando sofrem uma derrota. Enquanto tudo corre bem e não enfrentam desafios difíceis, essa questão nunca é colocada em palavras. É em suas ações que cada pessoa inevitavelmente coloca essa questão e a responde. Se fecharmos os ouvidos às suas palavras e observarmos suas ações, descobriremos que cada um tem seu próprio “sentido da vida” e que todas as suas posturas, atitudes, movimentos, expressões, maneirismos, ambições, hábitos e traços de caráter estão de acordo com esse sentido. O homem se comporta como se pudesse confiar em uma determinada interpretação da vida. Em todas as suas ações há uma avaliação implícita acerca do mundo e de si próprio; um veredicto: “Eu sou assim e o universo é assim”; um significado atribuído a si mesmo e um significado atribuído à vida.

Existem tantos significados atribuídos à vida quanto existem seres humanos e, como sugerimos, talvez cada significado envolva mais ou menos erro. Ninguém possui o significado absoluto da vida, e podemos dizer que qualquer significado que seja útil não pode ser considerado absolutamente errado. Todos os significados são variações entre esses dois limites. Entre essas variações, no entanto, podemos distinguir algumas que correspondem melhor e outras que correspondem pior; algumas em que o erro é pequeno e outras em que é grande. Podemos descobrir o que os melhores significados têm em comum, e o que falta aos piores significados. Dessa maneira, podemos obter um “significado da vida” científico, uma medida comum dos significados verdadeiros, um significado que nos permite enfrentar a realidade na medida em que ela diz respeito à humanidade. Aqui, mais uma vez, devemos lembrar que “verdadeiro” significa verdadeiro para a humanidade, verdadeiro para os propósitos e objetivos dos seres humanos. Não existe outra verdade além dessa; e se outra verdade existisse, ela nunca poderia nos dizer respeito; nunca poderíamos conhecê-la; ela seria sem sentido.

Todo ser humano tem três ligações principais; e é essas ligações que ele deve levar em conta. Elas constituem a realidade para ele. Todos os problemas que ele enfrenta estão relacionados a essas ligações. Ele deve sempre dar resposta a esses problemas, pois eles estão sempre questionando-o; e as respostas nos mostrarão sua concepção individual do significado da vida. A primeira dessas ligações está no fato de que vivemos na crosta deste pobre planeta, a Terra, e em nenhum outro lugar. Devemos nos desenvolver sob as restrições e com as possibilidades que nosso local de habitação nos impõe. Devemos nos desenvolver corporal e mentalmente para que possamos continuar nossas vidas pessoais na Terra e ajudar a garantir a continuidade futura da humanidade. Este é um problema que desafia cada homem a encontrar uma resposta; do qual nenhum indivíduo pode escapar. Façamos o que fizermos, nossas ações são nossa própria resposta à situação da vida humana: elas revelam o que consideramos necessário, adequado, possível e desejável. Toda resposta deve ser condicionada pelo fato de que pertencemos à humanidade e que os homens são seres que habitam esta Terra.

Ora, se levarmos em conta a fragilidade do corpo humano e a insegurança em que vivemos, perceberemos que, para o bem de nossas vidas e do bem-estar da humanidade, devemos nos esforçar para consolidar nossas respostas, tornando-as perspicazes e coerentes. É como se estivéssemos diante de um problema matemático: precisamos trabalhar para encontrar uma solução. Não podemos trabalhar de forma aleatória ou baseada em suposições, mas devemos trabalhar de maneira consistente, utilizando todos os meios à nossa disposição. Não encontraremos uma resposta absolutamente perfeita, uma resposta que seja estabelecida de uma vez por todas; mas, mesmo assim, devemos usar toda a nossa capacidade para encontrar uma resposta aproximada. Devemos nos esforçar sempre para encontrar uma resposta melhor, e a resposta deve ser sempre diretamente aplicável ao fato de que estamos presos à crosta deste pobre planeta, a Terra, com todas as vantagens e desvantagens que nossa posição traz.

Aqui chegamos à segunda ligação. Não somos os únicos membros da raça humana. Existem outros ao nosso redor, e vivemos em associação com eles. A fraqueza e os limites do ser humano individual tornam impossível para ele garantir seus próprios objetivos isoladamente. Se ele vivesse sozinho e tentasse resolver seus problemas por conta própria, pereceria. Ele não seria capaz de continuar sua própria vida; ele não seria capaz de continuar a vida da humanidade. O ser humano está sempre ligado a outros seres humanos; e está ligado por causa de suas próprias fraquezas, insuficiências e limites. O maior passo para o seu próprio bem-estar e para o bem-estar da humanidade é a associação. Portanto, toda resposta aos problemas da vida deve levar em conta essa ligação: ela deve ser uma resposta à luz do fato de que vivemos em associação e que pereceríamos se estivéssemos sozinhos. Se quisermos sobreviver, até mesmo nossas emoções devem estar em harmonia com esse grande problema, propósito e objetivo — continuar nossa vida pessoal e continuar a vida da humanidade, neste planeta que habitamos, em cooperação com nossos semelhantes.

Há uma terceira ligação que nos une. Os seres humanos vivem divididos em dois sexos. A preservação da vida individual e comum deve levar em conta esse fato. O problema do amor e do casamento pertence a essa terceira ligação. Nenhum homem ou mulher pode escapar à necessidade de dar uma resposta a isso. O que quer que um ser humano faça quando confrontado com este problema, é essa a sua resposta. Existem muitas maneiras diferentes pelas quais os seres humanos tentam resolver este problema: as suas ações mostram sempre a sua concepção acerca da única maneira pela qual o problema é solucionável para eles próprios. Esses três laços, portanto, estabelecem três problemas: como encontrar uma ocupação que nos permita sobreviver sob as limitações impostas pela natureza da Terra; como encontrar uma posição entre nossos semelhantes, para que possamos cooperar e compartilhar os benefícios da cooperação; como nos adaptar ao fato de que vivemos divididos em dois sexos e que a continuidade e o avanço da humanidade dependem de nossa vida amorosa.

A Psicologia Individual não encontrou nenhum problema na vida que não pudesse ser agrupado sob esses três problemas principais: ocupacional, social e sexual. É em sua resposta a esses três problemas que cada ser humano revela infalivelmente seu próprio sentido profundo do significado da vida. Suponhamos, por exemplo, que consideremos um homem cuja vida amorosa é incompleta, que não se esforça na sua profissão, que tem poucos amigos e que considera doloroso o contato com os seus semelhantes. A partir dos limites e restrições da sua vida, podemos concluir que ele sente que estar vivo é algo difícil e perigoso, que oferece poucas oportunidades e muitas derrotas. Seu campo de ação restrito deve ser interpretado como um julgamento: “A vida significa — preservar-me contra o mal, proteger-me, escapar ileso”. Suponha, por outro lado, que consideremos um homem cuja vida amorosa é uma cooperação íntima e multifacetada, cujo trabalho resulta em realizações úteis, cujos amigos são muitos e cujos contatos com seus semelhantes são amplos e frutíferos. Desse homem, podemos concluir que ele sente a vida como uma tarefa criativa, que oferece muitas oportunidades e nenhuma derrota irrecuperável. Sua coragem em enfrentar todos os problemas da vida deve ser interpretada com base no seguinte julgamento: “Viver significa interessar-me pelos meus semelhantes, fazer parte do todo, contribuir com a minha parte para o bem-estar da humanidade”.

É aqui que encontramos a medida comum de todos os “sentidos da vida” equivocados e a medida comum de todos os verdadeiros “sentidos da vida”. Todos os casos de fracasso — neuróticos, psicóticos, criminosos, alcoólatras, crianças problemáticas, suicidas, pervertidos e prostitutas — são fracassos porque lhes falta empatia e interesse social. Eles abordam os problemas do trabalho, da amizade e do sexo sem a confiança de que podem ser resolvidos pela cooperação. O significado que dão à vida é um significado privado: ninguém mais se beneficia com a realização de seus objetivos e seu interesse se limita a si mesmos. Seu objetivo de sucesso é um objetivo de mera superioridade pessoal fictícia e seus triunfos têm significado apenas para eles próprios. Assassinos confessaram sentir poder quando seguravam um frasco de veneno nas mãos, mas claramente estavam confirmando que sua importância era apenas para si mesmos; para o resto de nós, a posse de um frasco de veneno não parece conferir-lhes um valor superior. Um significado privado não é, na verdade, significado algum. O significado só é possível através da comunicação: uma palavra que significasse algo apenas para uma pessoa seria realmente sem sentido. O mesmo se aplica aos nossos objetivos e ações; só têm significado se tiverem significado para os outros. Todos os seres humanos se esforçam por alcançar significado, mas cometem sempre erros se não perceberem que todo o seu significado deve consistir na sua contribuição para a vida dos outros.

Conta-se uma anedota sobre a líder de uma pequena seita religiosa. Um dia, ela reuniu seus seguidores e informou-lhes que o fim do mundo estava previsto para a quarta-feira seguinte. Seus seguidores ficaram muito impressionados, venderam suas propriedades, abandonaram todas as considerações mundanas e esperaram ansiosamente pela catástrofe prometida. A quarta-feira passou sem ocorrências incomuns. Na quinta-feira, eles se reuniram para pedir uma explicação. “Veja em que situação difícil estamos”, disseram. “Abandonamos toda a nossa segurança. Dissemos a todos que descobrimos que o fim do mundo chegaria na quarta-feira e, quando eles riram de nós, não desanimamos, mas repetimos que sabíamos disso graças a uma autoridade infalível. A quarta-feira passou e o mundo ainda está aqui ao nosso redor.”

“Mas a minha quarta-feira”, disse a profetisa, “não é a sua quarta-feira”. Dessa maneira, com um significado privado, ela se protegeu contra qualquer contestação. Um significado privado nunca pode ser posto à prova.

A marca de todos os verdadeiros “sentidos da vida” é o fato de serem sentidos comuns — sentidos que outros podem compartilhar e aceitar como válidos. Uma boa solução para os problemas da vida sempre abrirá caminho também para os outros; pois nela veremos problemas comuns sendo resolvidos com sucesso. Mesmo a genialidade deve ser definida como nada mais do que utilidade suprema: é somente quando a vida de um homem é reconhecida pelos outros como tendo significado para eles que o chamamos de gênio. O significado expresso em tal vida será sempre: “A vida significa — contribuir para o todo”. Não estamos falando aqui de motivos professados. Estamos fechando nossos ouvidos às declarações e olhando para as realizações. O homem que enfrenta com sucesso os problemas da vida humana age como se reconhecesse, plena e espontaneamente, que o significado da vida é o interesse pelos outros e a cooperação. Tudo o que ele faz parece ser guiado pelo interesse de seus semelhantes; e quando encontra dificuldades, ele tenta superá-las apenas por meios que estejam em consonância com o bem-estar humano.

Para muitas pessoas, talvez, este seja um ponto de vista novo, e elas talvez  possam duvidar se o significado que damos à vida deve realmente ser contribuição, interesse pelos outros e cooperação. Elas perguntarão, talvez: “Mas e o indivíduo? Se ele está sempre considerando as outras pessoas e se dedicando aos interesses delas, sua própria individualidade não sofre? Não é necessário, pelo menos para alguns indivíduos, que, para se desenvolverem adequadamente, eles considerem a si mesmos? Não há alguns de nós que deveriam aprender, antes de tudo, a proteger nossos próprios interesses ou a fortalecer nossas próprias personalidades?” Essa visão, acredito, é um grande erro, e o problema que ela levanta é um problema falso. Se um ser humano, no sentido que dá à vida, deseja contribuir e se suas emoções estão todas direcionadas para esse objetivo, ele naturalmente se empenhará em se colocar na melhor situação para contribuir. Ele se adaptará ao seu objetivo, treinará seu senso social e ganhará habilidade com a prática. Uma vez definido o objetivo, o treinamento virá em seguida. Só então ele começará a se equipar para resolver os três problemas da vida e desenvolver suas habilidades. Tomemos o exemplo do amor e do casamento. Se estamos interessados em nosso parceiro, se estamos trabalhando para facilitar e enriquecer a vida dele, é claro que daremos o melhor de nós mesmos. Se pensarmos que devemos desenvolver a personalidade no vácuo, sem um objetivo de contribuição, apenas nos tornaremos dominadores e desagradáveis.

Há outra pista que nos permite concluir que a contribuição é o verdadeiro sentido da vida. Se olharmos à nossa volta hoje e observarmos a herança que recebemos dos nossos antepassados, o que vemos? Tudo o que resta deles são as contribuições que deram à vida humana. Vemos terras cultivadas; vemos estradas e edifícios; vemos os resultados comunicados de sua experiência de vida, nas tradições, nas filosofias, nas ciências e nas artes, na técnica de lidar com nossas situações humanas. Todos esses resultados foram deixados por homens que contribuíram para o bem-estar humano. O que aconteceu com os outros? O que aconteceu com aqueles que nunca cooperaram, que deram um significado diferente à vida, que perguntaram apenas: “O que posso obter da vida?” Eles não deixaram nenhum vestígio para trás. Não apenas estão mortos; suas vidas inteiras foram fúteis. É como se a própria Terra tivesse falado com eles e dito: “Não precisamos de vocês. Vocês não são adequados para a vida. Não há futuro para seus objetivos e esforços, para os valores que vocês prezavam, para suas mentes e almas. Vão embora! Vocês não são desejados. Morram e desapareçam!” O julgamento final para as pessoas que dão qualquer outro significado à vida além da cooperação é sempre: “Vocês são inúteis. Ninguém quer vocês. Vão embora!” Em nossa cultura atual, é claro, podemos encontrar muitas imperfeições. Onde descobrimos que ela falha, devemos mudá-la; mas a mudança deve ser sempre aquela que promove ainda mais o bem-estar da humanidade.

Sempre houve homens que compreenderam esse fato; que sabiam que o sentido da vida é interessar-se por toda a humanidade e que tentaram desenvolver o interesse social e o amor. Em todas as religiões encontramos essa preocupação com a salvação do homem. Em todos os grandes movimentos do mundo, os homens têm se esforçado para aumentar o interesse social, e a religião é um dos maiores esforços nesse sentido. As religiões, no entanto, têm sido frequentemente mal interpretadas; e é difícil ver como elas podem fazer mais do que já estão fazendo, a menos que se dediquem mais a essa tarefa comum. A Psicologia Individual chega à mesma conclusão de maneira científica e propõe uma técnica científica. Ela dá, acredito, um passo à frente. Talvez a ciência, ao aumentar o interesse dos seres humanos por seus semelhantes e pelo bem-estar da humanidade, seja capaz de se aproximar mais da meta do que outros movimentos, políticos ou religiosos. Abordamos o problema de um ângulo diferente, mas o objetivo é o mesmo — aumentar o interesse pelos outros.

Uma vez que o significado dado à vida funciona como se fosse o anjo da guarda ou o demônio perseguidor de nossas carreiras, é de extrema importância que compreendamos como esses significados são formados, como eles diferem uns dos outros e como podem ser corrigidos se envolverem grandes erros. Esta é a província da psicologia, enquanto distinta da fisiologia ou da biologia — o uso, para o bem-estar humano, da compreensão dos significados e da maneira como eles influenciam as ações e a sorte das pessoas. Desde os primeiros dias da infância, podemos ver tentativas sombrias de encontrar esse “significado da vida”. Até mesmo um bebê se esforça para avaliar seus próprios poderes e sua participação na vida que o rodeia. Ao final do quinto ano de vida, a criança alcança um padrão de comportamento unificado e cristalizado, seu próprio estilo de abordar problemas e tarefas. Ela já fixou sua concepção mais profunda e duradoura do que esperar do mundo e de si mesma. A partir de agora, o mundo é visto através de um esquema estável de apercepção: as experiências são interpretadas antes de serem aceitas, e a interpretação sempre está de acordo com o significado original dado à vida. Mesmo que esse significado seja muito errado, mesmo que a abordagem dos nossos problemas e tarefas nos traga continuamente infortúnios e agonias, ele nunca é facilmente abandonado. Os erros no significado dado à vida só podem ser corrigidos reconsiderando a situação em que a interpretação errada foi feita, reconhecendo o erro e revisando o esquema de apercepção. Em raras circunstâncias, talvez, um indivíduo possa ser forçado pelas consequências de uma abordagem errada a revisar o significado que deu à vida e possa conseguir realizar a mudança por si mesmo. No entanto, ele nunca o fará sem alguma pressão social ou sem descobrir que, se continuar com a abordagem antiga, estará no fim de suas forças: e, na maioria das vezes, a abordagem pode ser melhor revisada com a ajuda de alguém treinado na compreensão desses significados, que pode se juntar à descoberta do erro original e ajudar a sugerir um significado mais apropriado.

Vamos dar um exemplo simples das diferentes maneiras pelas quais as situações da infância podem ser interpretadas. Experiências infelizes na infância podem receber significados totalmente opostos. Um homem com experiências infelizes no passado não vai se deter nelas, exceto quando elas lhe mostram algo que pode ser remediado no futuro. Ele vai pensar: “Precisamos trabalhar para eliminar essas situações infelizes e garantir que nossos filhos tenham uma vida melhor”. Outro homem sentirá: “A vida é injusta. As outras pessoas sempre têm o melhor. Se o mundo me tratou assim, por que eu deveria tratar o mundo da maneira melhor?” É assim que alguns pais falam de seus filhos: “Eu tive que sofrer tanto quando era criança e superei isso. Por que eles não deveriam?” Um terceiro homem sentirá: “Tudo deve ser desculpado por causa da minha infância infeliz”. Nas ações dos três homens, suas interpretações serão evidentes; e eles nunca mudarão suas ações, a menos que mudem suas interpretações. É aqui que a psicologia individual rompe com a teoria do determinismo. Nenhuma experiência é causa de sucesso ou fracasso. Não sofremos com o choque de nossas experiências — o chamado trauma —, mas tiramos delas apenas aquilo que serve aos nossos propósitos. Somos auto-determinados pelo significado que damos às nossas experiências; e provavelmente há sempre algum erro envolvido quando tomamos experiências específicas como base para nossa vida futura. Os significados não são determinados pelas situações, mas nós nos determinamos pelos significados que damos às situações.

Contudo, existem certas situações na infância das quais frequentemente se extrai um significado gravemente errado. É das crianças que se encontram nessas situações que provém a maioria dos fracassos. Em primeiro lugar, devemos considerar as crianças dotadas de órgãos imperfeitos, que sofrem de doenças ou enfermidades durante a infância. Essas crianças estão sobrecarregadas e será difícil para elas sentirem que o sentido da vida é contribuir. A menos que haja alguém próximo a elas que possa desviar sua atenção de si mesmas e despertar seu interesse pelos outros, essas crianças provavelmente se ocuparão principalmente com suas próprias sensações. Mais tarde, elas podem se desanimar ao se compararem com aqueles ao seu redor, e pode até acontecer, em nossa civilização atual, que seus sentimentos de inferioridade sejam acentuados pela piedade, ridicularização ou rejeição de seus semelhantes. Todas essas são circunstâncias nas quais elas podem se fechar em si mesmas, perder a esperança de desempenhar um papel útil em nossa vida comum e se considerar pessoalmente humilhadas pelo mundo.

Acho que fui a primeira pessoa a descrever as dificuldades que uma criança enfrenta quando seus órgãos são imperfeitos ou suas secreções glandulares são anormais. Esse ramo da ciência fez progressos extraordinários, mas dificilmente isso foi feito na direção que eu gostaria que tivesse seguido. Desde o início, eu buscava um método para superar essas dificuldades, e não um motivo para atribuir a responsabilidade pelo fracasso à hereditariedade ou à condição física. Nenhuma imperfeição dos órgãos obriga a um estilo de vida errado. Nunca encontramos duas crianças cujas glândulas tenham os mesmos efeitos sobre elas. Muitas vezes vemos crianças que superam essas dificuldades e que, ao superá-las, desenvolvem faculdades incomuns a fim de serem úteis. Dessa forma, a Psicologia Individual não é uma boa propaganda para esquemas de seleção eugênica. Muitos dos homens mais eminentes, homens que fizeram grandes contribuições para nossa cultura, nasceram com órgãos imperfeitos; muitas vezes sua saúde era precária e, às vezes, morreram prematuramente. São principalmente essas pessoas que lutaram arduamente contra as dificuldades, tanto físicas quanto externas, que trouxeram avanços e novas contribuições. A luta os fortaleceu e eles seguiram em frente. A partir do corpo, não podemos julgar se o desenvolvimento da mente será ruim ou bom. Até agora, porém, a maior parte das crianças que nasceram com órgãos e glândulas imperfeitos não foram treinadas na direção certa; suas dificuldades não foram compreendidas e elas se tornaram principalmente interessadas em si mesmas. É por essa razão que encontramos um número tão grande de fracassos entre as crianças cujos primeiros anos foram sobrecarregados com órgãos imperfeitos.

O segundo tipo de situação que frequentemente leva a um equívoco no sentido dado à vida é a situação da criança mimada. A criança mimada é treinada para esperar que seus desejos sejam tratados como leis. Ela recebe destaque sem ter que trabalhar para merecê-lo e geralmente passa a sentir esse destaque como um direito adquirido. Consequentemente, quando ela se depara com circunstâncias em que não é o centro das atenções e em que outras pessoas não têm como objetivo principal considerar seus sentimentos, ela fica muito perdida: sente que seu mundo a decepcionou. Ela foi treinada para esperar e não para dar. Nunca aprendeu outra maneira de enfrentar os problemas. Os outros foram tão subservientes a ela que ela perdeu sua independência e não sabe que pode fazer as coisas por si mesma. Seu interesse era dedicado a si mesma e nunca aprendeu sobre o uso e a necessidade da cooperação. Quando enfrenta dificuldades, essa criança tem apenas um método para lidar com elas: fazer exigências às outras pessoas. Parece-lhe que, se conseguir recuperar sua posição de destaque, se conseguir forçar os outros a reconhecerem que ela é uma pessoa especial e que deve receber tudo o que deseja, só então sua situação melhorará.

Essas crianças mimadas, agora crescidas, são talvez a classe mais perigosa da nossa comunidade. Algumas delas podem fazer grandes demonstrações de boa vontade; podem até se tornar muito “adoráveis” a fim de garantir uma oportunidade de tiranizar; mas elas estão em greve contra a cooperação — enquanto seres humanos comuns, em nossas tarefas humanas comuns. Há outras que estão em revolta mais aberta: quando não encontram mais o calor e a subordinação fáceis a que estavam acostumadas, sentem-se traídas; consideram a sociedade hostil a si mesmas e tentam se vingar de todos os seus semelhantes. E se a sociedade mostra hostilidade ao seu modo de vida (como quase certamente fará), elas interpretam essa hostilidade como uma nova prova de que são maltratadas pessoalmente. É por isso que as punições são sempre ineficazes; elas não fazem nada além de confirmar a opinião: “Os outros estão contra mim”. Mas quer a criança mimada entre em greve ou se revolte abertamente, quer tente dominar pela fraqueza ou se vingar pela violência, ela está, na verdade, cometendo o mesmo erro. Encontramos pessoas que tentam os dois métodos em momentos diferentes. Seu objetivo permanece inalterado. Elas sentem que “a vida significa — ser o primeiro, ser reconhecido como o mais importante, conseguir tudo o que quero” e, enquanto continuarem a dar esse significado à vida, todos os métodos que adotarem estarão errados.

A terceira situação em que é fácil cometer um erro é a situação de uma criança negligenciada. Essa criança nunca soube o que é o amor e a cooperação: ela cria uma interpretação da vida que não inclui essas forças amigáveis. É compreensível que, quando ela enfrenta os problemas da vida, superestime a dificuldade deles e subestime sua própria capacidade de enfrentá-los com a ajuda e a boa vontade dos outros. Ela descobriu que a sociedade é fria com ela e esperará que seja sempre assim. Em especial, ela não perceberá que pode conquistar afeto e estima por meio de ações úteis aos outros. Assim, ela suspeitará dos outros e será incapaz de confiar em si mesma. Na verdade, não há experiência que possa substituir o afeto desinteressado. A primeira tarefa de uma mãe é proporcionar ao filho a experiência de uma pessoa confiável: mais tarde, ela deve ampliar e expandir esse sentimento de confiança até que ele inclua o resto do ambiente da criança. Se ela falhar na primeira tarefa — conquistar o interesse, o afeto e a cooperação da criança —, será muito difícil para a criança desenvolver interesse social e sentimento de camaradagem em relação aos seus semelhantes. Todos têm a capacidade de se interessar pelos outros, mas essa capacidade deve ser treinada e exercitada, ou seu desenvolvimento será frustrado.

Se existisse um tipo puro de criança negligenciada, odiada ou indesejada, provavelmente descobriríamos que ela seria simplesmente cega à existência da cooperação; que seria isolada, incapaz de se comunicar com os outros e completamente ignorante de tudo o que poderia ajudá-la a conviver com outros seres humanos. Porém, como já vimos, um indivíduo nessas circunstâncias pereceria. O fato de uma criança sobreviver ao período da infância é prova de que recebeu algum cuidado e atenção. Portanto, nunca lidamos com tipos puros de crianças negligenciadas: lidamos com aquelas que receberam menos consideração do que o normal ou que foram negligenciadas em alguns aspectos, mas não em outros. Em suma, basta dizer que a criança negligenciada é aquela que nunca encontrou uma pessoa de confiança. É muito triste para nossa civilização que tantos fracassos na vida venham de crianças órfãs ou ilegítimas; e que devemos agrupar essas crianças, em geral, entre as crianças negligenciadas.

Essas três situações — órgãos imperfeitos, mimos e negligência — são um grande desafio que pode levar a um significado equivocado da vida; e as crianças nessas situações quase sempre precisarão de ajuda para revisar sua abordagem aos problemas. Elas devem ser ajudadas a encontrar um significado melhor. Se tivermos olho para essas coisas — o que significa, na verdade, se tivermos um interesse genuíno por elas e nos treinarmos nessa direção —, seremos capazes de ver o significado delas em tudo o que fazem. Sonhos e associações podem ser úteis: a personalidade é a mesma na vida onírica e na vida desperta, mas nos sonhos a pressão das exigências sociais é menos aguda e a personalidade se revela com menos proteções e dissimulações. A maior ajuda de todas, porém, para compreender rapidamente o significado que um indivíduo dá a si mesmo e à vida vem através de suas memórias. Cada memória, por mais trivial que ele possa achar dela, representa para ele algo memorável. É memorável por causa de sua influência na vida tal como ele a imagina; ela lhe diz: “É isso que você deve esperar”, ou “É isso que você deve evitar”, ou “Assim é a vida!”. Devemos enfatizar novamente que a experiência em si não é tão importante quanto o fato de ser justamente essa experiência que persiste na memória e é usada para cristalizar o significado dado à vida. Toda memória é um memento.

As memórias da primeira infância são especialmente úteis para mostrar há quanto tempo existe essa abordagem peculiar do indivíduo em relação à vida e para revelar as circunstâncias em que ele cristalizou pela primeira vez sua atitude perante a vida. A memória mais antiga de todas ocupa um lugar muito importante por duas razões. Primeiro, ela contém a avaliação fundamental do indivíduo e de sua situação; é sua primeira síntese das aparências, seu primeiro símbolo mais ou menos completo acerca de si mesmo e das exigências que lhe são impostas. Segundo, ela é seu ponto de partida subjetivo, o início da autobiografia que ele criou para si mesmo. Portanto, muitas vezes podemos encontrar nela o contraste entre uma posição de fraqueza e inadequação em que ele se sentia e o objetivo de força e segurança que ele considera seu ideal. Para os fins da psicologia, é indiferente se a memória que um indivíduo considera como a primeira é realmente o primeiro evento de que ele se lembra — ou mesmo se é uma memória de um evento real. As memórias só têm importância pelo que são tomadas/compreendidas — pela sua interpretação e por sua influência na vida presente e futura.

Aqui podemos citar alguns exemplos de primeiras lembranças e ver o “sentido da vida” que elas consolidam. “A cafeteira caiu da mesa e me queimou.” Assim é a vida! Não devemos nos surpreender ao descobrir que a menina cuja autobiografia começou dessa maneira foi perseguida por um sentimento de impotência e superestimou os perigos e as dificuldades da vida. Também não devemos nos surpreender se, em seu coração, ela repreendeu outras pessoas por não cuidarem suficientemente dela. Alguém foi muito descuidado ao deixar uma criança tão pequena exposta a tais riscos! Uma imagem semelhante do mundo é apresentada em outra primeira lembrança: “Lembro-me de ter caído de um carrinho de bebê quando tinha três anos de idade”. Com essa primeira lembrança, veio um sonho recorrente: “O mundo está chegando ao fim e eu acordo no meio da noite e vejo o céu vermelho brilhante e com fogo. Todas as estrelas caem e colidimos com outro planeta. Mas, pouco antes da colisão, eu acordo.” Quando perguntado se tinha medo de alguma coisa, esse estudante respondeu: “Tenho medo de não ter sucesso na vida”, e fica claro que sua primeira lembrança e seu sonho recorrente atuam como desânimos e o confirmam no medo do fracasso e da catástrofe.

Um menino de 12 anos que foi levado à clínica por causa de enurese e contínuos conflitos com a mãe relatou como sua primeira lembrança: “Minha mãe pensou que eu estava perdido e saiu correndo para a rua gritando meu nome, muito assustada. Durante todo esse tempo, eu estava escondido em um armário dentro de casa”. Nessa lembrança, podemos interpretar o seguinte: “A vida significa chamar atenção causando problemas. A maneira de obter segurança é através da falsidade. Sou ignorado, mas posso enganar os outros”. Sua enurese também era um meio bem adaptado para se manter no centro das preocupações e da atenção, e sua mãe confirmava essa interpretação da vida com sua ansiedade e nervosismo em relação a ele. Como nos exemplos anteriores, esse menino havia adquirido desde cedo a impressão de que a vida no mundo exterior era cheia de perigos e concluído que só estaria seguro se os outros estivessem apreensivos por ele. Só assim ele poderia garantir a si próprio que eles estariam lá para protegê-lo, caso fosse necessário.

A primeira lembrança de uma mulher de trinta e cinco anos era a seguinte: “Quando eu tinha três anos, desci ao porão. Enquanto eu estava na escada, no escuro, um primo um pouco mais velho do que eu abriu a porta e desceu atrás de mim. Eu estava com muito medo dele.” A partir dessa lembrança, parecia provável que ela não estivesse acostumada a brincar com outras crianças e que se sentisse especialmente desconfortável com o sexo oposto. A suposição de que ela era filha única se confirmou; e ela ainda estava solteira aos trinta e cinco anos.

Um desenvolvimento mais elevado do sentimento social é demonstrado no seguinte: “Lembro-me de minha mãe me deixar empurrar o carro de bebê da minha irmãzinha”. Nesse caso, porém, podemos também procurar sinais de que a pessoa só se sente à vontade com pessoas mais fracas e, talvez, de dependência da mãe. Quando nasce um novo filho, é sempre melhor obter a cooperação dos filhos mais velhos para cuidar dele, despertar o interesse deles pelo recém-chegado e permitir que compartilhem a responsabilidade pelo seu bem-estar. Se a cooperação deles for obtida, eles não serão tentados a sentir que a atenção dada ao bebê diminui a importância deles.

O desejo de estar em companhia nem sempre é prova de um interesse real pelos outros. Uma menina, quando questionada sobre sua primeira lembrança, respondeu: “Eu estava brincando com minha irmã mais velha e duas amigas”. Aqui podemos ver claramente uma criança se esforçando para ser sociável, mas obtemos uma nova perspectiva sobre seu esforço quando ela menciona seu maior medo: “Tenho medo de ficar sozinha”. Devemos, portanto, procurar sinais de uma falta de independência.

Se, uma vez encontrado e compreendido o significado dado à vida, temos a chave para toda a personalidade. Às vezes, afirma-se que o caráter humano é imutável, mas essa posição só pode ser defendida por aqueles que nunca encontraram a chave certa para a situação. Como já vimos, porém, nenhum argumento ou tratamento pode ser bem-sucedido se não conseguir descobrir o erro original; e a única possibilidade de melhora reside no treinamento para uma abordagem mais cooperativa e corajosa da vida. A cooperação é também a única salvaguarda que temos contra o desenvolvimento de tendências neuróticas. Portanto, é de suma importância que as crianças sejam treinadas e incentivadas à cooperação; que tenham permissão para encontrar seu próprio caminho entre crianças de sua idade, em tarefas e jogos comuns. Qualquer bloqueio na cooperação terá resultados muito sérios. A criança mimada, por exemplo, que aprendeu a se interessar apenas por si mesma, levará essa falta de interesse pelos outros para a escola. Suas aulas só lhe interessarão na medida em que ela achar que pode ganhar o favor do professor; ela só ouvirá o que considerar vantajoso para si mesma. À medida que se aproxima da idade adulta, sua falta de senso social se tornará cada vez mais evidentemente calamitosa. Quando seu erro ocorreu pela primeira vez, ela deixou de se treinar para a responsabilidade e a independência; e agora está dolorosamente mal preparada para qualquer prova da vida.

Não podemos culpar a criança agora por seus defeitos: só podemos ajudá-la a corrigi-los quando ela começar a sentir as consequências. Não esperamos que uma criança que nunca aprendeu geografia responda com sucesso a uma prova sobre o assunto; e não podemos esperar que uma criança que nunca foi treinada em cooperação responda corretamente quando tarefas que exigem treinamento em cooperação são apresentadas a ela. Contudo, todos os problemas da vida exigem capacidade de cooperação para serem resolvidos; todas as tarefas devem ser dominadas dentro da estrutura da nossa sociedade humana e de uma forma que promova o nosso bem-estar humano. Somente o indivíduo que compreende que a vida significa contribuição será capaz de enfrentar suas dificuldades com coragem e com boas chances de sucesso.

Se professores, pais e psicólogos compreenderem os erros que podem ser cometidos ao se dar um sentido à vida e se eles próprios não cometerem os mesmos erros, podemos ter a certeza de que as crianças que têm demonstrado falta de interesse social passarão a ter uma melhor percepção das suas próprias capacidades e das oportunidades que a vida lhes oferece. Quando enfrentarem problemas, elas não desistirão de seus esforços, não procurarão uma saída fácil, não tentarão fugir ou jogar o fardo sobre os ombros dos outros, não exigirão tratamento especial e simpatia, não se sentirão humilhadas e não buscarão vingança, nem perguntarão: “Para que serve a vida? O que eu ganho com isso?” Elas dirão: “Devemos construir nossas próprias vidas. Essa é nossa tarefa e somos capazes de cumpri-la. Somos os donos de nossas próprias ações. Se algo novo precisa ser feito ou algo antigo substituído, nenhum outro além de nós mesmos precisa fazer isso”. Se a vida for encarada dessa maneira, como uma cooperação entre seres humanos independentes, não vemos limites para o progresso de nossa associação humana.


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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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