Comentários ao Salmo 2 – São Tomás de Aquino

Neste artigo, o filósofo cristão, São Tomás de Aquino, apresenta-nos seus comentários ao capítulo segundo do livro bíblico dos Salmos, no qual o salmista narra as maquinações daqueles que se esforçam contra o reino de Davi e de Cristo.


Salmo 2
Por que os gentios se enfureceram?

Por que os gentios se enfureceram, e o povo idealizou coisas inúteis? Os reis da terra levantaram-se, e os príncipes se reuniram, contra o Senhor e contra o seu Cristo.

[Dizendo:] “Rompamos os laços deles, e lançemor fora seu jugo para longe de nós”.

Aquele que habita nos céus rirá deles, e o Senhor zombará deles. Em seguida, Ele lhes falará em sua ira, e em sua fúria os lançará em distúrbios.

Todavia, fui nomeado rei por Ele, sobre Sião, sua montanha sagrada, anunciando seu mandamento.

O Senhor me disse: “Tu és meu filho, neste dia eu te gerei.

Pede-me, e eu te darei os gentios por tua herança, e as maiores partes da terra para tua posse.

Você os governará com uma vara de ferro e os quebrará em pedaços como um vaso de oleiro”.

E agora, ó reis, entendam: recebam instruções, vocês que julgaram a terra.

Sirvam ao Senhor com temor e alegrem-se nEle com tremor. Abracem a disciplina para que, a qualquer momento, o Senhor não se zangue, e vocês não percam o caminho justo.

Quando sua raiva rapidamente se acende, bem-aventurados são todos aqueles que confiam nEle.

No salmo anterior, no qual o salmista de modo geral descrevia, por assim dizer, o estado e a progressão da espécie humana, neste ele procede a um assunto específico, ou seja, suas tribulações, as quais significam as tribulações de Cristo.

E ele faz três observações a esse respeito.

Primeiro, ao rezar, ele implora pela ajuda divina contra as tribulações iminentes.

Em segundo lugar, tendo sido ouvido, ele dá graças; isto está no oitavo salmo: Ó Senhor nosso Senhor, quão admirável é seu nome em toda a terra! (Sl 8,2).

Terceiro, ele descreve a confiança inspirada por essa ajuda, e faz isso no décimo salmo: no Senhor eu confio; como então você diz à minha alma: “Voe para a montanha como um pardal”? (Sl 11,1).

Ora, um homem em tribulação pode pedir duas coisas:

primeiro, para ser liberado;

segundo, que seus inimigos sejam abatidos, e ele o faz no sétimo salmo: Ó Senhor meu Deus, em ti pus minha confiança: salva-me de todos aqueles que me perseguem (Sl 7,1).

Ao pedir para ser liberado, ele implora primeiro por ajuda contra aqueles que o afligem;

segundo, implora por ajuda contra aqueles que planejam enganá-lo, e ele o faz no quinto salmo: dá ouvidos, Senhor, às minhas palavras… expulsa-os (Sl 5,2.10).

Sobre aqueles que o incomodam, ele faz três observações.

Primeiro, ele recorda as maquinações daqueles que se levantaram contra ele no passado.

Segundo, ele implora ajuda contra aqueles que se levantam agora, e o faz no terceiro salmo: por que, Senhor, são multiplicados aqueles que me afligem? (Sl 3,1).

Terceiro, confiando que foi ouvido, ele convida outros a confiarem em Deus, e o faz no quarto salmo: quando eu o invoquei, o Deus de minha justiça me ouviu (Sl 4,1).

Ora, deve-se notar que todo este salmo não contém nada sobre a oração, mas apenas sobre a malícia dos que se levantam.

Deve-se saber sobre este salmo de modo geral que havia duas opiniões sobre ele.

Pois alguns disseram que todo ele faz parte do primeiro salmo, e tal foi a opinião da Gamaliel. E eles disseram que assim como aquele salmo começa bem-aventurado é o homem, então este termina como uma parte dele, bem-aventurados são todos aqueles que confiam nEle, então é como se o círculo se completasse.

Mas há dois argumentos contra essa opinião.

A primeira é que então não haveria cento e cinquenta salmos. A resposta a isso é que eles acrescentam um que se encontra presente nos diversos salmos, e começa assim: eu era o menor […]1.

Porém, o segundo argumento é que, no hebraico, os salmos são organizados de acordo com a ordem das letras, de modo que a ordem é marcada imediatamente onde começa um salmo. Pois no início do primeiro salmo há um aleph, para significar que é o primeiro; no segundo há um bet, para significar que é o segundo; no terceiro há um gimel; e assim por diante em relação aos outros. Portanto, como o bet, que é a segunda letra do alfabeto, é colocado no início deste salmo, é claro que ele é o segundo salmo, e Agostinho defende essa opinião2. Portanto, deve ser dito que este salmo é o segundo na ordem dos Salmos, mas o primeiro a ter um título: e este é seu título.

Ora, a palavra “salmo” vem de “saltério”, que é um tipo de instrumento de dez cordas tocado à mão, por isso é nomeado de psallere, que significa tocar com a mão; ele é tocado a partir de cima. Assim, um “salmo” significa uma canção que Davi cantou, ou pediu para que fosse cantada, com o “saltério”. Ora, misticamente, as dez cordas do saltério significam a Lei de Deus, que consiste em dez preceitos e deve ser tocada à mão (isto é, com boas obras), e a partir de cima, uma vez que os preceitos devem ser cumpridos por causa da esperança das coisas eternas — de outro modo, seria tocada a partir de baixo3. E assim o salmo é de Davi, uma vez que foi composto por ele e trata de seu reino como uma figura do de Cristo. Porque Cristo é adequadamente representado através de Davi, já que se diz que Davi era forte de mãos e Cristo é o poder de Deus (1 Cor 1:18). Pois Davi era atraente na aparência e Cristo é o brilho da glória (Hb 1,3), para quem os anjos desejam olhar (1Pd 1,12).

Por que os gentios se enfureceram, e o povo idealizou coisas vãs? Este salmo está dividido em duas partes.

Na primeira parte, ele narra as maquinações dos que se esforçam contra o reino de Davi e de Cristo.

Na segunda, ele descreve a supressão deles: Aquele que habita no céu rirá deles.

Em relação à primeira, ele narra três coisas:

primeiro, a rebelião daqueles que conspiram;

segundo, contra quem eles estão conspirando;

terceiro, o propósito dessas conspirações.

A segunda começa em contra do Senhor.

A terceira começa em Rompamos os laços deles

Primeiro, portanto, devemos entender que historicamente, quando um povo empreende uma insurreição, murmura-se primeiro entre o povo, e depois a ajuda de homens poderosos é utilizada para realizá-la.

Portanto, ele primeiro descreve os esforços das pessoas que estão murmurando;

segundo, ele descreve a ajuda de homens poderosos: os reis da terra se levantaram, e os príncipes se reuniram.

Dentro de um povo há alguns que têm menos razão — os impetuosos — e alguns que têm mais, a quem chamamos de “cautelosos”.

Os primeiros são movidos à rebelião não pelo pensamento, mas pelo impulso, e por isso ele diz que eles se enfureceram, o que é bestial: como o rugido de um leão, assim também é a ira de um rei (Prov 19,12).

Os segundos são movidos por conselhos, e por isso ele diz a respeito deles, eles idealizaram coisas vãs, uma vez que os pensamentos dos homens . . . são vãos (Sl 93, 11).

Um povo é uma multidão de homens associados por acordo em lei4. E por isso os judeus são chamados de povo, pois estão com e sob a Lei de Deus. Outros são chamados de gentios porque não estão sob a lei de Deus. (Ou, literalmente, no reino de Davi, existiam súditos gentios e judeus fiéis, e ambos se esforçavam contra ele). Então ele diz, por que os gentios se enfureceram, e o povo idealizou coisas vãs? Ele não questiona, mas repreende, tal como em Sabedoria 5:8: o que nos rendeu o orgulho ou que vantagem nos trouxe a ostentação de riquezas?

Além disso, o menor não poderia fazer nada, a menos que tivesse a ajuda do maior, e assim ele descreve aqueles que prestam ajuda.

Primeiro, através do poder de ajudar, e sobre isso ele diz, os reis da terra se levantaram, e os príncipes se reuniram, contra o Senhor e contra seu Cristo, como se ele dissesse: “Alguns se enfureceram, mas outros se levantaram“, ou seja, eles eram parte dessa maldade.

Ademais, alguns forneceram ajuda através do aconselhamento sábio, e sobre esses ele diz que se reuniram, ou seja, para consultar. No texto de Jerônimo

5 diz que eles negociaram um com o outro. Como diz Jeremias 5,5, eu irei, portanto, aos grandes homens, e falarei com eles: pois eles conhecem o caminho do Senhor, o julgamento de seu Deus.

Então, quando ele diz, contra o Senhor e contra o seu Cristo, ele está descrevendo aqueles que sofrem a rebelião. Pois ele está indicando aqueles contra os quais a rebelião foi feita — o Senhor e seu rei — porque os reis são chamados de “Cristos”, isto é, os ungidos: não toquem em meus Cristos (Sl 105,15). Portanto, aquele que se rebela contra o rei instituído por Deus, se rebela também contra Deus. Aquele que resiste ao poder, resiste à ordenança de Deus (Rm 13,2). E assim diz ele, contra o Senhor e contra o seu Cristo. Porque eles não vos rejeitaram, mas a mim (1 Sam 8,7).

Misticamente, tais coisas são ditas sobre Cristo à semelhança de Davi. Senhor, disseste pela boca de nosso pai Davi, teu servo: “Por que os gentios se enfureceram, e o povo idealizou coisas vãs? Porque verdadeiramente nesta cidade se reuniram contra vosso santo filho Jesus, a quem vós ungistes” (Atos 4:25, 27). E, de acordo com isso, deve-se entender que os gentios, isto é, os soldados, se reuniram contra Cristo, e que o povo, isto é, os judeus, idealizou coisas vãs, acreditando que o matariam completamente (isto é, que ele não se levantaria novamente). E os reis da terra indica o primeiro Herodes de Ascalon, o que matou os bebês, e o último Herodes Antipas, seu filho, que concordou com Pilatos. E os príncipes indica Pilatos; ele usa o plural no lugar do singular através de um synecdoche. Ou os príncipes podem ser os líderes dos sacerdotes, que se reuniram, ou seja, com a mesma intenção depravada contra o Senhor e contra o seu Cristo.

A seguir, ele descreve o propósito dessas conspirações: rompamos os laços deles. Isto é bem expressado, porque o domínio do rei é chamado de jugo. Diz-se a Jeroboão que ele deveria aliviar o jugo que Salomão lhes havia imposto (1 Rs 12:4). Pois assim como os bois são arreados para o trabalho com um jugo, também o são os homens para o senhorio do rei. Ora, um jugo não pode ser removido a menos que os laços sejam rompidos. Porém, os laços num reino são aquelas coisas pelas quais o poder real se torna firme no reino, tais como soldados, fortalezas e armas. Portanto, eles devem primeiro ser rompidos antes que o jugo possa ser removido.

Espiritualmente, em Cristo, o jugo é a lei da caridade: pois meu jugo é doce (Mat 11:30). Os laços são as virtudes da fé, da esperança e da caridade: cuidem de manter a unidade do Espírito no vínculo da paz (Ef 4,3); seus laços são um elo saudável (Sir 6,31). Portanto, a menos que tais correntes sejam primeiramente quebradas, é impossível que a consciência de um homem não esteja sob o jugo da lei de Cristo: E faz isto quem diz a Deus: afasta-se de nós, não desejamos o conhecimento de seus caminhos (Jó 21:14). Desde a antiguidade você quebrou meu jugo, quebrou meus laços e disse: “Não servirei” (Jr 2,20).

Ou isso é dito por Cristo na pessoa de Davi a seus servos. O glossário diz: é como se eles próprios estivessem lutando: mas, ó meu povo, separemo-nos6; porém, tal não é o que está em questão.

Depois, quando ele diz, Aquele que habita, é descrita a derrubada dos que se rebelaram contra o reino de Davi.

E a respeito disso, ele mostra como eles são derrubados:

primeiro, pelo Senhor;

em segundo lugar, por seu Cristo, fui nomeado.

Lutaram contra eles, a saber, o Senhor e seu Cristo, tal como já foi dito.

Sobre o primeiro, quatro coisas devem ser notadas: risos, zombaria, discurso irado e distúrbios.

Pois assim como um menino, sem força e poder, seria ridicularizado por um gigante se ele lutasse contra um gigante, assim, se alguém sem poder desejasse se rebelar contra Aquele que habita nos céus, seria ridicularizado por ele. Olhe para o céu e veja, e contemple o céu, que está mais acima do que você. Se você pecar, em que o prejudicará? (Jó 35,5-6).

E se ele, impotente, persistir, então o mais poderoso o repreende e o ridiculariza. O riso está na boca, segundo Jerônimo no glossário, mas o escárnio está no nariz, enrugado e contraído em mesquinha indignação7. Eu também rirei de sua destruição, e zombarei quando o que você temia chegar até você (Prov 1,26).

Ora, se ele não parar, seguirá a vingança, e assim se diz: lhes falará em sua ira, ou seja, pronunciará a sentença de vingança contra eles. Porque a ira não vem sobre Deus, mas o que pertence às criaturas às vezes é atribuído ao Criador através do antropomorfismo em relação às emoções, que é como uma propensão humana. Ó Senhor, não me repreendas em tua ira (Sl 6,1).

Por fim, é ordenado que a sentença seja executada. E assim ele diz, e em sua fúria os lançará em distúrbios, com um castigo eterno no coração e na alma — ou seja, ele os castigará com seu poder. Ao mover-se em busca de pão, ele sabe que o dia da escuridão já está pronto para ele. A tribulação o aterrorizará, e a aflição o cercará (Jó 15,23-24).

Estas quatro coisas são encontradas no julgamento: porque Ele rirá deles, pondo-os à sua esquerda; Ele zombará deles, dizendo: porque tive fome (Mt 25,42); repreendendo: Ele lhes falará em sua ira; sentenciando: ide, malditos, para o fogo eterno (Mt 25,41); Ele os perturbará, cumprindo a sentença: estes irão para o castigo eterno (Mt 25,46).

A seguir, ele mostra como eles serão subjugados por seu Cristo, quando ele diz, agora, que fui nomeado rei. Ora, o povo, os gentios e os príncipes se levantaram contra Davi, o Cristo.

Portanto, ele mostra primeiro como o Cristo se comporta em relação ao povo.

Segundo, como ele se comporta em relação aos gentios: o Senhor me disse.

Terceiro, como ele se comporta em relação aos reis: e agora, ó reis, entendam.

Portanto, diz ele, fui nomeado rei por Ele, sobre Sião, sua montanha sagrada, anunciando seu mandamento. Ora, deve-se notar que ele foi nomeado rei por Deus em Jerusalém, e trouxe o povo de volta por sua pregação, como se dissesse: “Eles agem desta maneira, mas não podem cumprir sua intenção, já que fui nomeado, isto é, nomeado rei sobre Sião, isto é, sobre o povo dos judeus que estavam em Jerusalém, cujo reduto é Sião, por Ele, isto é, por Deus”. O Senhor é meu ajudante, não temerei o que o homem pode fazer comigo (Sl 117,6). Ó Senhor, põe-me ao teu lado, e que a mão de qualquer homem lute contra mim (Jó 17,3). Ora, fui nomeado rei sobre Sião, sua montanha sagrada, não por minha própria causa, mas para governar o povo de acordo com a Lei de Deus, e assim diz ele, anunciando seu mandamento.

No sentido místico, ele foi nomeado rei de acordo com o seguinte princípio: um rei reinará, e será sábio, e executará juízo e justiça na terra (Jr 23,5).

Sião indica a assembléia dos judeus, que é chamada de montanha sagrada desde que recebeu os raios do sol primeiro. Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt 15,24). Não saberei eu que neste dia fui feito rei sobre Israel? (2 Sam 19,22).

Anunciando seu mandamento significa o Evangelho, ou o mandamento especial que é mencionado em João 13:34, um novo mandamento que vos dou: amai-vos uns aos outros, e em João 15:12, este é o meu mandamento, que vos ameis uns aos outros. Ora, ele pregou esse mandamento aos judeus pessoalmente, ou seja, em sua própria pessoa. Jesus percorreu toda a Galiléia, ensinando em suas sinagogas, e pregando o Evangelho do Reino (Mt 4,23). Ora, eu digo que Cristo Jesus foi ministro da circuncisão pela verdade de Deus (Rm 15,8).

Depois, quando ele diz, o Senhor, a mesma narrativa histórica mostra como isso se relaciona com os gentios.

A respeito disso, ele primeiro mostra que é apropriado que Cristo tenha poder sobre os gentios;

em segundo lugar, ele menciona o uso deste poder: você os governará.

Quanto à adequação de Cristo ter poder sobre os gentios, ele primeiro mostra com que direito Cristo detém o poder sobre os gentios;

segundo, ele mostra a recepção desse poder: eu te darei os gentios.

Portanto, diz ele, o Senhor me disse. Isso não se cumpre completamente em Davi, e assim se entende a respeito de Cristo, a quem o domínio sobre os gentios pertence por um duplo direito: hereditariedade e mérito.

Primeiro, ele descreve o direito;

em segundo lugar, ele descreve o mérito: pede-me, e eu te darei.

Cristo é o rei de todas as coisas, como observa Hebreus 1, e isso lhe convém porque ele é o Filho. Se um filho, um herdeiro também, através de Deus (Gl 4,7). E assim essa passagem trata da geração eterna de Cristo, na qual três coisas devem ser notadas.

Primeiro, o modo da geração;

segundo, a natureza de sua filiação;

terceiro, a eternidade do Filho que é gerado.

Ele indica o modo onde ele diz, o Senhor disse, uma vez que o Filho procede do Pai através de um modo intelectual8. A geração de qualquer entidade ocorre através do modo dessa entidade. O modo da natureza divina não é carnal, mas intelectual; de fato, é o próprio ato da intelectualidade.

Em segundo lugar, essa geração é uma procissão que se desenvolve de acordo com a origem que se encontra nas realidades inteligíveis, a qual é como a concepção da palavra proveniente do intelecto. E isso é falar uma palavra dentro do coração, e por isso ele diz, o Senhor disse, como se, ao falar, Ele me gerasse. Assim, o Filho é a Palavra que o Pai falou, isto é, que Ele produziu ao gerar.

Tendo tratado do modo de geração, ele mostra a natureza de sua filiação onde ele diz, meu filho — não adotado, como aqueles sobre os quais se diz, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus (João 1:12), mas por natureza. Portanto, você é meu filho natural, único e consubstancial. Este é meu filho amado (Mt 17,5).

Por fim, ele expressa a eternidade do Filho quando ele acrescenta, neste dia eu te gerei, isto é, eternamente. Pois não é uma geração nova, mas eterna, e assim ele diz, neste dia eu te gerei, porque este dia significa o presente, e o que é eterno sempre é. Ele diz, eu te gerei, e não “eu te gerarei” para expressar a perfeição da geração; pois quando a geração está sem movimento, gerar e ser gerado são simultâneos. Ele diz, neste dia, para expressar a atualidade e clareza apropriadas a Cristo, que habita uma luz inacessível (1 Tim 6:16) e que verdadeiramente é, em quem nada é passado ou futuro ou obscuro, mas claro.

Acima foi descrito o privilégio da geração eterna, pela qual o domínio sobre os gentios pertence a Cristo por direito hereditário; aqui se mostra como ele chegou a possuí-lo por mérito. Neste ponto deve-se considerar que assim como as formas são infundidas em coisas naturais de acordo com a disposição da matéria, do mesmo modo Deus concede seus dons gratuitos: é Deus quem trabalha em vós, tanto no querer como no realizar (Fil 2,13). E assim Ele quer que recebamos dons por pedir e orar. Ele quis nos dar o exemplo disso em Cristo, pois quis que ele pedisse o que lhe pertencia por direito hereditário.

Ora, essa petição para a vocação dos gentios pode ser entendida de duas maneiras.

Primeiro como uma oração, porque ele rezava por eles. Não só por eles, mas também por aqueles que através de sua palavra acreditarão em mim (João 17:20).

Essa petição também pode ser entendida como a Paixão: que por meio de sua morte, para a redenção das transgressões que estavam sob o antigo testamento, os chamados possam receber a promessa de herança eterna (Heb 9,15). E essa petição não foi em vão, pois em tudo ele foi ouvido pela sua reverência (Heb 5,7). Por isso, na seção seguinte, eu te darei os gentios.

Aqui deve ser observado que ninguém vem a Cristo a não ser pelo dom do Pai: ninguém pode vir a mim, a menos que o Pai que me enviou o atraia (João 6:44). A entrega dos gentios é um puro presente, pois os judeus foram, de certa forma, devolvidos, uma vez que já haviam sido dados. Eu digo que Cristo Jesus foi ministro da circuncisão (Rm 15,8). E assim ele diz: “Eu te darei os gentios para que estejam sujeitos a vós, e serão vossa herança”. Que em nome de Jesus todo joelho se curve, dos que estão no céu, na terra e debaixo da terra (Fil 2,10). Pois minha herança é para mim uma boa herança (Sl 15,6).

Não os possui como ministros, como Pedro e Paulo, mas como o Senhor. E de fato Moisés foi fiel em toda sua casa, como servo, por um testemunho das coisas que deviam ser ditas, mas Cristo o foi como o Filho em sua própria casa, a qual casa nós pertencemos (Heb 3,5-6). E assim diz ele, para tua posse. Para que possuais as heranças que foram destruídas, para que possais dizer aos que estão presos: “Vinde”, e aos que estão em trevas: “Mostrem-se … até os confins da terra” (Is 49,8-9; 40,28): uma vez que a Igreja foi edificada em todo o mundo. Porém, depois voltaram à incredulidade por causa de Nicholas9, o herege, e de Maomé.

Alternativamente, isso significa que sua fundação ainda está no futuro. É pouco para você ser meu servo a fim de criar as tribos de Jacó e converter os sedentos de Israel. Eis que eu vos dei para serdes a luz dos gentios, para que sejais minha salvação até mesmo para a parte mais distante da terra (Isa 49:6). A quem ele nomeou herdeiro de todas as coisas (Heb 1,2).

Depois, quando ele diz, você governará, ele descreve o exercício do poder; e isso pode ser explicado historicamente, já que ele foi nomeado rei dos judeus, e ele também governou as outras nações que ele subjugou, como uma figura do governo universal de Cristo. No entanto, como os cidadãos são governados de uma forma (pois os cidadãos são governados com a regra da misericórdia), e os inimigos subjugados de outra forma (ou seja, a regra da justiça severa), diz ele, com uma vara de ferro.

Mas é melhor que isso seja referido à regra espiritual de Cristo, pois é necessário que aquele que governa tenha um cetro: o cetro de seu reino é um cetro de retidão (Sl 44,7). Por isso, é necessário que haja reis, pois eles têm o cetro da disciplina com a qual castigam aqueles que cometem erros. E uma vez que Cristo é nomeado rei por Deus para governar os povos, diz ele, você os governará com uma vara de ferro. E ele acrescenta o ferro para especificar a disciplina inflexível da justiça. Porque a vara pela qual os judeus eram governados não era de ferro; eles frequentemente a jogavam fora adorando ídolos. Mas a vara pela qual Ele governa os gentios é uma vara de ferro, pois uma vez que a multidão de gentios entrou, eles não se retirarão novamente do domínio de Cristo: a mulher criou um homem, que deveria governar todas as nações com uma vara de ferro (Ap 12,12).

E os quebrará em pedaços como um vaso de oleiro, o que é explicado em Jeremias: Entrei na casa do oleiro, e reparei! que ele estava fazendo um trabalho na roda. E o vaso que ele estava fazendo de barro com as mãos se partiu, e girando ele fez outro vaso, pois lhe pareceu bom aos olhos fazê-lo (Jer 18:3-4). E depois, eis que, como o barro está na mão do oleiro, assim você está na minha mão (Jer 18:6). Pois quando um vaso de oleiro é recém feito, se estiver mal formado, pode ser facilmente quebrado e restaurado a uma boa forma. Os judeus tinham sido convertidos, portanto não precisavam ser quebrados, pois sua fé é a mesma que a nossa. Ora, os gentios eram idólatras, e por isso precisavam ser quebrados para que pudessem receber outra forma, isto é, outra — a verdadeira — fé.

Ou com uma vara de ferro poderia ser entendida de outra forma, ou seja, como referindo-se a pessoas boas, e como um vaso de oleiro como referindo-se a pessoas más, que em última análise devem ser esmagadas. Eis que este está destinado para a queda e para a ressurreição de muitos (Lucas 2:34). Sua destruição virá de repente, quando não for prevista, e quebrar-se-á em pequenas partes, uma vez que o vaso do oleiro é quebrado em pedaços com poderosa quebra (Isa 30:34-35). E quem é justo, que seja justificado ainda, e quem está imundo, que seja imundo ainda (Ap 22,11).

Em seguida, quando ele diz e agora, ele descreve como ele se comporta em relação aos reis. Ele os detém, admoestando-os e atraindo-os para o serviço de Deus.

A respeito disso, ele primeiro descreve a admoestação;

e, em segundo lugar, ele atribui o motivo da admoestação: para que, a qualquer momento, o Senhor não se irrite.

Ora, ele os admoesta a três coisas: à verdade da doutrina, à humildade da submissão, e à recepção da correção.

A segunda está onde ele escreve sirvam.

A terceira está em abracem.

Ora, alguém pode saber a verdade de duas maneiras: ou através de investigação – e aqueles que a conhecem dessa maneira são chamados de “inteligentes” – ou através de instrução, e tais são chamados de “educáveis”.

O mesmo é verdade para aqueles que governam. Para alguns, que são chamados de reis, é confiada a governança universal. A outros, que são chamados de juízes, é confiado algum julgamento particular.

Portanto, os primeiros são exortados a entender, pois aquele que entende deve possuir o governo (Prov 1,5).

Os segundos são exortados a serem instruídos, para que recebam dos outros a forma de julgamento, e assim ele diz, escutem os reis, e compreendam, aprendam, vocês que são juízes dos confins da terra (Sb 6,2).

Depois, quando ele diz, sirvam, ele coloca apropriadamente servir após entender, uma vez que o serviço de Deus, que é a adoração, é a profissão de fé. E assim se deve primeiro acreditar e depois professar e servir. Com o coração, acreditamos pela justiça; mas com a boca a confissão é feita para a salvação (Rm 10,10).

Ele diz, ao Senhor, porque basta que aquele que serve a um homem esteja sujeito a ele externamente pela obediência, mas é necessário que aquele que serve a Deus esteja sujeito a ele interiormente em sua alma, tendo uma boa disposição. Agora minha alma estará sujeita a Deus (Sl 61,2).

Ele diz, com temor, pois aquele que permanece santo não permite o pecado, de tal modo que aquele que pensa que está de pé, deve tomar cuidado para não cair (1 Cor 10,12).

E deve-se notar, seguindo Agostinho, que um rei serve a Deus na medida em que ele é um homem, por viver justamente, mas também na medida em que ele é um rei por fazer leis contrárias àquelas coisas que são contrárias à justiça de Deus10. Assim, este salmo prefigura o estado da Igreja, pois no início, os reis da terra fizeram leis contra Cristo e os cristãos, mas depois estabeleceram leis em favor de Cristo.

E isso é mostrado primeiro quando ele disse que eles levantaram-se,

e segundo, em sirvam ao Senhor.

Para que esse serviço não pareça miserável, acrescenta ele, e alegrar-se nEle com tremor, pois o temor do Senhor não é miserável, mas alegre, em razão do qual Aarão respondeu a Moisés… “Como eu poderia agradar ao Senhor . . . tendo um coração triste?” (Lv 10,19). Mas para que essa alegria não envolvesse presunção ou negligência, ele acrescenta com tremor, o que é um medo imediato. Com temor e tremor, trabalhe sua salvação (Fil 2,12).

Tendo admoestado a verdade da doutrina e a humildade da submissão, ele finalmente admoesta à recepção da correção: abracem, para que ninguém possa viver como lhe agrada, mas sim como deveria.

E assim acrescenta disciplina: abracem os preceitos e a boa moral, ou as adversidades, como um muro de guarda e proteção. E sua disciplina tem corrigido … e me ensinará (Sl 17:36).

E ele inclui o motivo da admoestação, para que a qualquer momento Ele não se zangue. E há duas razões: para evitar o castigo; e para alcançar a glória: bem-aventurados são todos aqueles que confiam nEle.

Ele diz, para que a qualquer momento, por causa da paciência de Deus, uma vez que, nesta era, ele se detém por um longo tempo. Como diz o Salmo 7,12-13, será que ele ficará irado todos os dias..., dizendo, a menos que você se converta, como se dissesse: “Você deve obedecer à admoestação para que o tempo do castigo não chegue”. Para que vocês não percam o caminho justo, a saber, o caminho da justiça e da sociedade do bem, o que seria muito doloroso para aqueles que provaram a doçura da justiça.

No texto de Jerônimo tem vocês pereçam do caminho, sem justo11. Porque, quando um homem está no mundo, é como se ele estivesse “a caminho”, pois se ele cair, pode se levantar. Porém, o que se diz perecer não pode ser reparado, mesmo que esteja caindo não do caminho, mas “a caminho”. Entretanto, se ele perecer do caminho, certamente é irreparável. E porque ninguém entende, perecerá para sempre (Jó 4:21). E assim diz ele, quando sua raiva rapidamente se acende

Ele acrescenta outra razão, que é a de alcançar a glória, como que para dizer, abraçem a disciplina porque sua raiva rapidamente se acende, bem-aventurados todos aqueles que confiam nEle. Quando sua raiva rapidamente se acende é bem dito, pois Ele não arde dessa forma quando castiga como pai, mas no futuro Ele consumirá e queimará quando castigar com o castigo eterno. Eis que o nome do Senhor vem de longe, sua ira arde e é pesada de suportar; seus lábios estão cheios de indignação, e sua língua como fogo devorador (Isa 30:27).

Ele diz, rapidamente, porque não julgará os pecados individuais separadamente, mas todos ao mesmo tempo. Portanto, esse julgamento será dentro de pouco tempo e não durará mais de mil anos, como disse Lactantius. Em um momento, num piscar de olhos, na última trombeta (1 Cor 15:52). E então todo o bem será transformado na glória da imortalidade. Assim, bem-aventurados são todos aqueles que confiam, como que para dizer: “A vingança certamente tocará aqueles que confiam, mas eles serão abençoados, porque chegaram ao reino”. Esta bem-aventurança ou glória parecerá maior em contraste com a punição do mal. Abençoado seja o homem que confia no Senhor, e o Senhor será sua confiança (Jr 17,7).

Original disponível em: https://aquinas.cc/la/en/~Psalm.Ps2.n12.12


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Notas:

[1] Tomás refere-se aqui ao Salmo apócrifo 151.

[2] Agostinho, In primam psalmum annotatio (Patrologia Latina [Migne], 36:65–66).

[3] Cf. Agostinho, Expositions on the Psalms 32 (Corpus Christianorum Series Latina, 38:251) and 91 (CCSL, 39:1282).

[4] Cf. Agostinho, Cidade de Deus 19.21.

[5] Psalterum juxta Hebraios.

[6] Glossa interlinearis.

[7] Peter Lombard, Magna glossatura (Patrologia Latina [Migne], 191:71); Jerome, Commentarioli in Psalmos 2.4 (Corpus Christianorum Series Latina, 72:182); cf. ST II-II, q

[8] Cf. Suma Teológica  I, q. 34, a. 2, e Comentário a João 1, lição. 1.

[9] Provavelmente é uma referência ao fundador dos Nicolaítas mencionado em Ap 2:6.

[10] Agostinho, Epístola 185, seção. 5 (Patrologia Latina [Migne], 33:801).

[11] Psalterum juxta Hebraios.

Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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