Sobre a Filosofia de Descartes, ensaio escrito pelo filósofo e matemático G. W. Leibniz.
Quanto à Filosofia de Descartes, sobre a qual o senhor pede minha opinião, não hesito em dizer, absolutamente, que ela conduz ao ateísmo. É verdade que existem algumas coisas que, para mim, são muito suspeitas e que foram consideradas com atenção: por exemplo, estas duas passagens: de que a causa final não deve ser considerada em física e que a matéria assume sucessivamente todas as formas das quais é capaz. Há uma passagem admirável no Fédon de Platão que, justamente, culpa Anaxágoras pela mesma coisa que me desagradou em Descartes. De meu ponto de vista, acredito que as leis da mecânica que servem de base para todo o sistema dependem de causas finais; ou seja, da vontade de Deus, determinado a fazer o que é mais perfeito; e que a matéria não toma todas as formas possíveis, mas apenas a mais perfeita; Caso contrário seria necessário dizer que haverá um momento em que todos, por sua vez, serão maus, caso que se afasta muito da perfeição do autor das coisas. Quanto ao resto, se Descartes tivesse sido menos dado à hipótese imaginária e se ele tivesse sido mais apegado a experimentos, acho que sua física teria sido digna de ser seguida. Porque é preciso admitir que ele teve um grande aprofundamento. Quanto à sua Geometria e Análise, elas estão longe de ser tão perfeitas quanto alguns afirmam que são, mas estes dedicam-se apenas à investigação de pequenos problemas. Há, ainda, vários erros em sua metafísica, e ele não conheceu a verdadeira fonte das verdades nem [foi capaz de realizar] aquela análise geral das noções, à qual Jung, em minha opinião, possuía melhor entendimento do que ele.1 No entanto, confesso que a leitura de Descartes é muito útil e muito instrutiva, e que gosto incomparavelmente mais de ter a ver com um cartesiano do que com um homem de alguma outra escola. Por fim, considero essa filosofia como a ante-câmara da verdadeira filosofia. Extraído de uma carta a Philipp, 1679.
Um dia, por acaso, eu disse que a filosofia cartesiana, na medida em que era verdadeira, era apenas a ante-câmara da verdadeira filosofia. Um cavalheiro da empresa que frequentava a Corte, que era um homem de alguma leitura e que até participava da discussão sobre as ciências, empurrou a figura até uma alegoria, e talvez até um pouco longe demais; porque ele ali perguntou-me se eu não acreditava que se poderia dizer que os antigos nos tinham mostrado as escadas, que a escola moderna chegara até a ante-câmara e se deveria desejar-me a honra de nos introduzir no gabinete da natureza. Essa tirada de paralelos nos fez rir a todos, e eu lhe disse: Você vê, senhor, que sua comparação agradou à empresa; mas você esqueceu que existe a câmara de audiência entre a ante-câmara e o gabinete, e que bastará se obtivermos uma audiência sem a pretensão de penetrar no interior. Carta a um amigo sobre o cartesianismo, 1695.
Eu estimo a Descartes quase tanto quanto se pode estimar a um homem, e embora haja entre suas opiniões algumas que me parecem falsas e até perigosas, não hesito em dizer que devemos quase tanto a Galileu e a ele em questões de filosofia quanto a toda a antiguidade. Lembro-me neste momento apenas de uma das duas propostas perigosas das quais o senhor deseja que eu indique o lugar, a saber Principiorum Philosophicorum Part. 8, Articulo 47, Ins verbis: “Atque omnino parum refert, quid hoc pacto supponatur, quia postea justa leges naturae est mutandum”. Et vix aliquid supponi potest ex quo non idem effectus, quanquam fortasse operosius, deduci possit. Cum enim illarum ope materia formas omnes quarum est capax successive assumat, si formas istas ordine consideremus, tandem ad illam quae est hujus mundi poterimus devenire, adeo ut hie nihil erroris ex falsa hypothesi sit timendum“; Não creio que seja possível formar uma proposição mais perigosa do que essa. Porque, se a matéria recebesse sucessivamente todas as formas possíveis, seguiria que nada de tão absurdo, tão estranho e contrário ao que chamamos de justiça, poderia ser imaginado, coisa que não ocorreu ou que não ocorreria algum dia. Essas são exatamente as opiniões que Spinoza explicou mais claramente, a saber, que justiça, beleza e ordem pertencem apenas às coisas em relação a nós, mas que a perfeição de Deus consiste em uma plenitude de ação tal que nada pode ser possível ou concebível que Ele realmente não produza. Essa também é a opinião de Hobbes, que sustenta que tudo que é possível é passado, ou presente, ou futuro, e que não haverá motivo para confiar na providência se Deus produz tudo e não faz nenhuma escolha entre os seres possíveis. Descartes teve o cuidado de não falar tão claramente, porém decidiu revelar suas opiniões de passagem, com um discurso tal que não seria compreendido senão por aqueles que examinam profundamente este tipo de assunto. Esse, em minha opinião, é o πρὣτον ψεὓδος, o fundamento da filosofia ateísta, que não deixa de dizer coisas que parecem belas em aparência em relação a Deus. Mas a verdadeira filosofia deveria nos dar uma noção totalmente diferente da perfeição de Deus, que poderia nos servir tanto na física quanto na moral; e eu, de minha parte, sustento que, longe de excluir as causas finais da consideração da física, como o pretende Descartes (Parte 1, Artigo 28), é antes por elas que tudo deve ser determinado, já que a causa eficiente das coisas é inteligente, possui uma vontade e consequentemente tende para o Bem; o que ainda está longe da opinião de Descartes, que defende que a bondade, a verdade e a justiça existem tão simplesmente porque Deus, por um ato livre de sua vontade, as estabeleceu, o que é muito estranho. Porque, se as coisas não são boas ou más, a não ser por um efeito da vontade de Deus, o bem não seria um motor de sua vontade, uma vez que ele é posterior à vontade. E sua vontade seria um certo decreto absoluto, sem uma razão; aqui estão suas próprias palavras, Resp. ad object, sext. n. 8: “Attendenti ad Dei immensitatem manifestum est, nihil omnino esse posse quod ad ipso non pendeat, non modo nihil subsistens, sed etiam nullum ordinem, nullam legam, nullamve rationem veri et boni, alioqui enim, ut paulo ante dicebatur, non fuisset plane indifferens ad ea ercanda quae creavit [Ele era, desse modo, indiferente, em relação às coisas que chamamos justas e injustas, e se lhe tivesse agradado criar um mundo no qual os bons fossem para sempre infelizes e os maus (ou seja, aqueles que procuram apenas destruir os outros) felizes, isso seria justo. Assim, não podemos determinar nada quanto à justiça de Deus, e pode ser que Ele tenha feito as coisas de uma forma que chamamos de injusta, já que não há noção de justiça no que diz respeito a Ele, e se se constata que somos infelizes apesar de nossa piedade, ou que a alma perece juntamente com o corpo, isso também será justo — ele continua]: Nam si quae ratio boni ejus per ordinationem antecessisset, ilia ipsuin determinasset ad it quod optimum est faciendum [sem dúvida, e esta é a base da providência e de todas as nossas esperanças; isto é, que haja algo bom e justo em si mesmo, e que Deus, sendo a própria Sabedoria, não deixa de escolher o melhor]. Sed contra quod se determinavit ad ea jam sunt facienda, ideirco, ut habetur in Genesi, sunt valde bona [isso é um contra-senso. Se as coisas não são boas através de qualquer idéia ou noção de bondade em si própria, mas porque Deus o quer, Deus, no Gênesis, teria apenas que considerá-las quando foram feitas e se contentar com seu trabalho, dizendo que tudo era bom; bastava que ele dissesse “eu quero”, ou que se lembrasse que Ele as quis, já que não há diferença formal entre as duas coisas: ser querido por Deus e ser bom. No entanto, é evidente que o autor do Gênesis era de outra opinião, pois ele apresentou um Deus que não se contentaria em tê-las feito, a menos que descobrisse que as tinha feito boas] hoc est ratio eorum bonitatis ex eo pendet, quod voluerit ipsa sic facere“; Essa é uma expressão tão distinta quanto se poderia desejar. Mas depois disso é inútil falar da bondade e da justiça de Deus, e a providência não será mais que uma quimera. É evidente que até mesmo a vontade de Deus será uma ficção empregada para deslumbrar aqueles que não se esforçam o suficiente para sondar essas coisas. Que tipo de vontade (bom Deus!) é aquela que não tem o Bem como objeto ou motivo? Além disso, esse Deus não terá sequer entendimento. Porque se a verdade em si depende apenas da vontade de Deus e não da natureza das coisas, e se o entendimento estiver necessariamente ANTES da vontade (falo de prioritate naturae, non temporis), o entendimento de Deus estará antes da verdade das coisas e consequentemente não haverá verdade no seu objeto. Tal entendimento, sem dúvida, não passa de uma quimera e, consequentemente, será necessário conceber Deus, à maneira de Spinoza, como um ser que não tem nem entendimento nem vontade, mas que produz indiferentemente bem ou mal, e que é indiferente em relação às coisas e consequentemente não se inclina por nenhuma razão, nem para uma coisa, nem para a outra. Desse modo, ou ele não fará nada ou fará tudo. Todavia, declarar que tal Deus fez coisas, ou dizer que elas foram produzidas por uma necessidade cega, uma coisa, me parece, é tão boa quanto a outra. Eu próprio lamento por encontrar essas coisas em Descartes, mas, ao que parece, não tenho meios de desculpá-las. Gostaria que ele pudesse se livrar dessas imputações, bem como de algumas outras que More e Parker lhe acusaram. Porque querer explicar tudo mecanicamente na física não é crime nem impiedade, pois Deus fez todas as coisas de acordo com as leis da matemática; isto é, de acordo com as verdades eternas que são objeto de sabedoria.
Há ainda muitas outras coisas nas obras de Descartes que considero errôneas e pelas quais julgo que ele não incursionou com tanta precisão como se imagina. Por exemplo, em geometria, eu não acredito realmente que ele tenha cometido qualquer paralogismo (como você me informa que alguém lhe disse); ele foi um homem suficientemente hábil para evitar tal coisa, e o senhor pode constatar com isso que eu o julgo de forma justa; mas ele errou por muita presunção, sustentando como impossível tudo aquilo que ele não via meios de se alcançar; por exemplo, ele acreditava que era impossível encontrar uma proporção entre uma linha curva e uma linha reta. Aqui estão suas próprias palavras: Lib. 2, Georn., artieulo 9 fin. editionis Schotenianae de anno, 1659, p. 39: cum ratio quae interrectas et curias existit. non cognita sit nee etiam ab hominibus ut arbitror cognosci queat. Pelo que, estimando os poderes de toda a posteridade pelo seu, ele estava muito enganado. Pouco depois de sua morte foi encontrado um método de atribuição de uma infinidade de linhas curvas, às quais poderiam ser geometricamente atribuídas linhas retas iguais. Ele mesmo o teria percebido se tivesse considerado suficientemente a destreza de Arquimedes. Ele está persuadido de que todos os problemas podem ser reduzidos à equações (quo modo per methodum qua utor, inquit, p..96 lib.3, Geom., id omne quod sub geometricam contemplationem cedid, ad unun idernque genns problematum reducatur, quod est ut quaeratur rator radicum alieujus aequationis). Isso é totalmente falso, como Huygens, Hudde e outros que entendem bem a geometria de Descartes me declararam francamente. É por isso que há necessidade de se fazer muito antes que a álgebra seja capaz de fazer tudo o que é prometido em seu nome. Eu não falo de ânimo leve e há poucas pessoas que examinaram o assunto com tanto cuidado quanto eu.
A física de Descartes tem um grande defeito; isto é, suas regras de movimento ou leis da natureza, que deveriam servir de base, são na maioria das vezes falsas. Há uma demonstração disso. Além disso, seu grande princípio de que a mesma quantidade de movimento é preservada no mundo é um erro. O que eu digo aqui é reconhecido pelos homens mais sensatos da França e da Inglaterra.
Julgue por meio disso, senhor, se há razão para tomar as opiniões de Descartes por oráculos. Contudo, tal não me impede de considerá-lo um homem admirável, e de dizer entre nós que, se ele ainda vivesse, talvez ele sozinho avançasse mais na física do que um grande número de outros, embora homens muito capazes. Isso me ocorre aqui, e normalmente ocorre aos homens moderados. Os peripatéticos me consideram um cartesiano, e os cartesianos se surpreendem com o fato de eu não ceder a todas as suas idéias fingidas. Porque, quando falo com homens prepostos de uma escola que trata Descartes com desprezo, exalto o brilho de suas qualidades; mas quando se trata de um cartesiano muito zeloso, me vejo obrigado a mudar minha nota para modificar um pouco a opinião demasiadamente elevada que eles têm de seu mestre. Os maiores homens da época em relação a esses assuntos não são cartesianos, ou, se já o foram na juventude, o superaram, e noto entre as pessoas que exercem uma profissão na filosofia e na matemática que aqueles que são propriamente cartesianos normalmente permanecem entre os medíocres e não descobrem nada de importante, não passando de comentaristas sobre seu mestre, apesar de que, quanto ao resto, eles podem se mostrar mais capazes do que o dono da escola. Carta a Philipp, Jan., 1680.
Senhor, como você deseja muito que eu expresse livremente meus pensamentos sobre o cartesianismo, não esconderei nada do que penso dele, do que posso dizer em poucas palavras; e não apresentarei nada sem dar ou poder dar uma razão para isso. Em primeiro lugar, todos aqueles que se entregam absolutamente às opiniões de qualquer autor estão em uma escravidão e tornam-se suspeitos de erro, porquanto dizer que Descartes é o único autor que está isento de erro considerável é uma proposição que poderia ser verdadeira, mas não é provável que o seja. Na verdade, tal apego pertence apenas a mentes pequenas que não têm a força ou tempo livre para meditar por si mesmas, ou que não se darão ao trabalho de fazê-lo. É por isso que as três academias ilustres de nosso tempo, a Royal Society of England, que foi criada primeiro, e depois a Academic Royale des Sciences, em Paris, e a Academia del Cimento, em Florença, protestaram em voz alta que não desejam ser conhecidas como aristotélicas, nem cartesianas, nem epicureas, nem seguidoras de nenhum autor, seja ele qual for.
Também tenho percebido através da experiência que aqueles que são totalmente cartesianos não são adeptos da descoberta; eles são apenas intérpretes ou comentadores de seu mestre, assim como os filósofos escolásticos eram de Aristóteles; e das muitas belas descobertas que foram feitas desde Descartes, eu não conheço nenhuma que venha de um verdadeiro cartesiano. Conheço um pouco esses senhores e os desafio a nomear uma proveniente deles. Isso é uma evidência de que Descartes não conhecia o verdadeiro método ou de que ele não o transmitiu a eles.
O próprio Descartes tinha uma mente suficientemente limitada. Dentre todos os homens, ele destacou-se nas especulações, mas nelas não encontrou nada de útil à vida que seja evidente para os sentidos e que sirva na prática das artes. Todas as suas meditações eram ou muito abstratas, como sua metafísica e sua geometria, ou muito imaginárias, como seus princípios da filosofia natural. A única coisa de uso que ele acreditava ter realizado foi seu telescópio, pensado de acordo com a linha hiperbólica, com o qual ele prometeu nos fazer ver animais — ou partes tão pequenas quanto animais — na lua. Infelizmente, ele nunca foi capaz de encontrar trabalhadores capazes de executar seu projeto, e desde então foi até mesmo demonstrado que a vantagem da linha hiperbólica não é tão grande quanto ele acreditava. É verdade que Descartes foi um grande gênio e que as ciências estão sob grandes obrigações para com ele, mas não da maneira que os cartesianos acreditam. Devo, então, entrar um pouco em detalhes e dar exemplos daquilo que ele tirou dos outros, do que ele mesmo fez, e do que deixou para ser feito. A partir daí, veremos se eu falo sem conhecimento do assunto.
Em primeiro lugar, sua ÉTICA é um composto das opiniões dos estóicos e dos epicuristas, algo não muito difícil, pois Sêneca já as havia reconciliado muito bem. Ele deseja que sigamos a razão, ou a natureza das coisas, como diziam os estóicos; com o que todos concordarão. Ele acrescenta que não devemos ser incomodados pelas coisas que não estão em nosso poder. Essa é precisamente a doutrina do Pórtico,2 que estabeleceu a grandeza e a liberdade de seu tão proclamado sábio homem,3 tal a força de sua mente para prescindir de coisas que não dependem de nós, e para suportá-las quando elas acontecem apesar das nossas próprias limitações. É por isso que costumo chamar essa forma de ética de “a arte da paciência”. O bem supremo, segundo os estóicos e também Aristóteles, é agir de acordo com a virtude ou prudência, e o prazer resultante, juntamente com a resolução acima mencionada, é precisamente aquela tranquilidade da alma ou impassibilidade que os estóicos e epicuristas buscavam e também recomendavam, sob diferentes nomes. Basta olhar para o incomparável manual de Epicteto4, e Laércio, o epicuriano,5 para reconhecer que Descartes não avançou muito na prática da ética. Todavia me parece que essa arte de paciência, na qual ele constrói a arte de viver, ainda não é tudo. Uma paciência sem esperança não pode durar e é pouco consoladora, e é nisso que Platão, a meu ver, supera os demais, porque ele nos faz esperar por uma vida melhor usando de bons argumentos, e ele está mais próximo do cristianismo; basta ler seu excelente diálogo sobre a imortalidade da alma ou sobre a morte de Sócrates, que Teófilo traduziu para o francês, para se ter uma boa idéia sobre isso.6 Penso que Pitágoras fez a mesma coisa, e que ele só usou sua doutrina da metempsicose para adaptar-se às capacidades do homem comum, enquanto entre seus discípulos ele raciocinava de uma maneira completamente diferente. Assim, Ocelo Lucano, que foi um de seus discípulos, e do qual temos um pequeno mas excelente fragmento de seu Universo, não diz uma única palavra sobre isso7.
Ser-me-á dito que Descartes estabeleceu particularmente bem a existência de Deus e a imortalidade da alma. Porém, temo que sejamos enganados por belas palavras, porque o Deus de Descartes, ou o ser perfeito, não é Deus como é imaginado ou esperado, ou seja, justo e sábio, que faz tudo para o bem das criaturas na medida do possível, mas é algo semelhante ao Deus de Spinoza, ou seja, o princípio das coisas e um certo poder supremo ou natureza primitiva que põe tudo em movimento e faz todo o que é possível. O Deus de Descartes não tem vontade nem compreensão, pois, segundo Descartes, ele não tem o bem como objeto de sua vontade ou o verdadeiro como objeto de sua compreensão. Consequentemente, ele não alega que seu Deus age de acordo com algum fim, e é por isso que ele remove a busca por causas finais da filosofia, sob o pretexto perspicaz de que somos incapazes de conhecer os fins de Deus.8 Enquanto Platão demonstrou particularmente bem que, se Deus é o autor das coisas e age de acordo com a sabedoria, então, a verdadeira física envolve conhecer os fins e os usos das coisas, já que a ciência envolve conhecer as razões, e as razões do que foi criado por um entendimento são as causas ou intenções finais daquele que criou as coisas. Essas razões são evidentes pelo uso e função que as coisas têm, e é por esse motivo que a consideração das partes de uso é tão útil na anatomia. É por isso que um Deus como o de Descartes não nos permite nenhuma outra consolação que não seja a paciência forçada. Em algumas passagens ele diz que a matéria passa sucessivamente por todas as formas possíveis, ou seja, que seu Deus criou tudo o que é possível e que passa por todas as combinações possíveis, de acordo com uma ordem necessária e inevitável. No entanto, apenas a necessidade da matéria seria suficiente para tal, ou melhor, seu Deus nada mais é do que essa necessidade ou esse princípio da necessidade atuando na matéria da maneira que pode. Portanto, não se deve pensar que esse Deus se preocupa mais com as criaturas inteligentes do que com as outras; cada criatura será feliz ou infeliz, segundo se encontre presa a essas grandes torrentes ou tempestades, e, consequentemente, Descartes tem razão em nos recomendar paciência sem esperança (ao invés de felicidade).
No entanto, uma pessoa honrada dentre os cavalheiros cartesianos, enganada pelas belas palavras de seu mestre, me dirá que Descartes estabeleceu a imortalidade da alma particularmente bem, e consequentemente uma vida melhor. Quando ouço coisas como essas, fico surpreso com a facilidade com que se engana as pessoas quando tudo o que se faz é brincar astutamente com palavras agradáveis, mesmo que se corrompa seu significado. Pois assim como os hipócritas usam mal a piedade, os hereges as Escrituras e as pessoas sediciosas a palavra ‘liberdade’, Descartes também usou mal as importantes palavras ‘existência de Deus’ e ‘imortalidade da alma’. Devemos, portanto, esclarecer esse mistério e mostrar-lhes que a imortalidade da alma, segundo Descartes, dificilmente é melhor que seu Deus. Penso sinceramente que não vou agradar a alguns, porque as pessoas não ficam felizes por serem despertadas quando suas mentes estão ocupadas com um sonho agradável. Mas o que mais posso fazer? Descartes ensina que os falsos pensamentos devem ser arrancados antes de se introduzir os verdadeiros. Devemos seguir seu exemplo; e acredito que estarei fazendo um favor ao público se puder desviar as pessoas de doutrinas tão perigosas.
Eu digo, então, que a imortalidade da alma, como Descartes a estabelece, é inútil, e não pode nos consolar de forma alguma. Suponhamos que a alma seja uma substância e que nenhuma substância seja completamente destruída; sendo assim, a alma não perecerá, uma vez que, de fato, nada perecerá na natureza. Porém, como a matéria, a alma também mudará de alguma maneira, e, assim como a matéria que compõe um homem compôs em outros momentos plantas e outros animais, essa alma também será capaz de ser imortal de fato, embora passe por mil mudanças e não tenha lembranças do que foi. Entretanto, essa imortalidade sem memória é completamente inútil para a ética, pois anula toda recompensa e punição. Qual seria a utilidade, Senhor, de se tornar o Rei da China na condição de que você esqueça o que você tem sido? Isso não seria a mesma coisa que Deus criar um Rei da China ao mesmo tempo em que Ele te destroi? É por isso que, para satisfazer a esperança da humanidade, é preciso provar que o Deus que governa tudo é sábio e justo, e que nada permite sem administrar recompensas e castigos; esses são os grandes fundamentos da moralidade. Porém, a doutrina de um Deus que não age para o bem, e a de uma alma imortal sem memória, serve apenas para enganar as pessoas simples e para corromper as pessoas espirituais.
No entanto, eu poderia mostrar os defeitos da chamada demonstração de Descartes, porque ainda há muitas coisas a se provar antes que a demonstração esteja completa. Porém, acho que é inútil nos distrairmos com isso agora, pois essas demonstrações dificilmente seriam úteis mesmo que estivessem corretas, como acabo de mostrar.
Resta-me dizer um pouco sobre as outras ciências que Descartes tratou, a fim de mostrar exemplos do que ele fez, ou do que não fez. Vou começar pela geometria, já que se pensa que esse é o ponto forte do Sr. Descartes. Devemos fazer-lhe justiça e dizer que ele foi um hábil geômetra, mas não tanto a ponto de brilhar mais que os outros. Ele esconde o fato de ter lido Viete, contudo, Viete disse muitas coisas, e o que Descartes acrescentou é, em primeiro lugar, uma investigação mais distinta das linhas curvas sólidas ou as linhas curvas que atravessam o sólido, por meio de equações de acordo com os loci, e, em segundo lugar, o método das tangentes por duas raízes iguais. No entanto, em seus trabalhos geométricos, ele fala com uma insuportável superconfiança. Ele diz ousadamente que todos os problemas podem ser resolvidos por seu método, porém ele foi obrigado a admitir ocasionalmente que, em primeiro lugar, ele era incapaz de resolver os problemas aritméticos de Diofanto e, em segundo lugar, que o inverso das tangentes também o ultrapassava. No entanto, esses inversos de tangentes compreendem a parte mais sublime e mais útil da geometria. Penso que poucos cartesianos entenderão o que acabo de dizer, porque há poucos excelentes geômetras entre eles; eles se contentam em resolver alguns problemas menores mediante os cálculos de seu mestre, e dois ou três grandes geômetras de nosso tempo, os quais geralmente são considerados como sendo um deles, reconhecem o que acabo de dizer demasiado bem para poderem ser considerados cartesianos.
A astronomia de Descartes é em última análise apenas a de Copérnico e Kepler, à qual ele deu uma melhor orientação explicando de forma mais distinta a conexão dos corpos mundanos por meio da matéria fluida que é empurrada por seu movimento, enquanto Kepler, que reteve alguns traços da Escola, ainda fez uso de alguns poderes imaginários. No entanto, Kepler preparou o assunto tão bem que o acordo que o Sr. Descartes fez entre a filosofia corpuscular e a astronomia de Copérnico não foi muito difícil. Digo a mesma coisa sobre a filosofia magnética de Gilbert,9 e no entanto reconheço que o que Descartes disse sobre o ímã, o fluxo e refluxo do mar, e sobre os meteoros é totalmente engenhoso e ultrapassa tudo o que os antigos diziam sobre essas coisas. Todavia, ainda não ouso dizer que ele tenha sido completamente bem-sucedido. Sua ótica tem algumas passagens admiráveis, mas também tem algumas passagens indefensáveis; por exemplo, ele conseguiu estabelecer a proporção entre os senos, mas ao se movimentar por acaso, uma que as razões que ele deu para provar as leis de refração não têm valor. Eu mesmo acho que atualmente os geômetras capazes concordam com isso.Quanto à anatomia e ao conhecimento do homem, Descartes tem uma grande dívida com Harvey, que descobriu a circulação do sangue, embora eu não ache que ele tenha descoberto nada que seja útil e comprovadamente verdadeiro. Ele estava muito preocupado com o raciocínio sobre as partes invisíveis de nosso corpo antes de ter pesquisado adequadamente as visíveis. Steno mostrou claramente que Descartes estava completamente equivocado em sua opinião sobre o movimento do coração e dos músculos. E, lamentavelmente para a física e a medicina, Descartes perdeu sua vida ao acreditar-se excessivamente competente na medicina, adiando a escuta dos outros e o tratamento quando adoeceu na Suécia. É preciso reconhecer que ele era um grande homem e, se tivesse vivido, talvez ele tivesse olhado novamente para certos erros (se sua arrogância o permitisse). Certamente, ele teria feito algumas descobertas importantes. No entanto, também é certo que ele não teria a reputação que tinha em seu tempo, no qual havia poucas pessoas capazes de enfrentá-lo, ou que apenas eram jovens começando. Desde então, porém, foram encontradas coisas na geometria que Descartes achava impossível, e foram feitas descobertas na física que ultrapassam em utilidade todas aquelas ficções agradáveis sobre seus vórtices imaginários. Além disso, o Sr. Descartes ignorou a química, sem a qual é impossível avançar na física aplicada. O que ele disse sobre os sais inspira piedade naqueles que compreendem o assunto, e é bastante claro que ele não conhecia as diferenças entre eles. Se ele tivesse sido menos ambicioso para formar uma seita, mais paciência no raciocínio sobre coisas sensatas e menos inclinação para ser seduzido pelo invisível, ele talvez tivesse lançado as bases da verdadeira física, porque ele possuía o admirável gênio para ter sucesso nisso. Porém, desviando-se do verdadeiro caminho, ele prejudicou sua reputação, que não será tão duradoura quanto a de Arquimedes, e o belo romance da física que ele nos deu logo será esquecido. Portanto, cabe à posteridade começar a construir sobre melhores alicerces, os quais as ilustres Academias estão ocupadas em estabelecer de tal forma que nada pode sacudi-los. Sigamos então seu exemplo; contribuamos para projetos tão excelentes, ou então, se não formos adequados à descoberta, mantenhamos ao menos a liberdade de espírito tão necessária para sermos racionais. Carta a um correspondente não identificado.
Notas:
[1] Joachim Jung, 1587-1657.
[2] Refere-se ao pórtico na ágora da antiga Atenas que hospedava as assembléias de Zenão de Cítio (o fundador da filosofia estóica) e seus seguidores.
[3] Zenão de Cítio.
[4] Enchirídion, ou Manual de Epicteto.
[5] Diógenes Laércio.
[6] Referência ao Fédon de Platão.
[7] De universi natura libellus, Ocelio Lucano.
[8] Descartes, Princípios da Filosofia.
[9] William Gilbert, De magnete.
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