Baruch Espinosa

baruch espinosa

Benedito (em hebraico, Baruch; em latim, Benedictus) Espinosa é um dos filósofos mais importantes — e certamente o mais radical — do início do período moderno. Seu pensamento combina um engajamento em vários princípios metafísicos e epistemológicos cartesianos com elementos do antigo estoicismo, de Hobbes e do racionalismo judeu medieval em um sistema altamente original. Suas visões extremamente naturalistas sobre Deus, sobre o mundo, sobre o ser humano e sobre o conhecimento servem para fundamentar uma filosofia moral centrada no controle das paixões, levando à virtude e à felicidade. Elas também lançam as bases para um pensamento político fortemente democrático e uma crítica profunda das pretensões da Escritura e da religião sectária. De todos os filósofos do século XVII, Espinosa está entre os mais relevantes hoje em dia.

1. Biografia

Benedito (em hebraico, Baruch; em latim, Benedictus: todos os três nomes significam “abençoado”) Espinosa nasceu em 1632, em Amsterdã. Era o filho do meio de uma proeminente família de modestos recursos na comunidade judaico-portuguesa de Amsterdã. Quando criança, ele fora, sem dúvida, um dos alunos exemplares da escola Talmud Torah da congregação. Ele era intelectualmente dotado, e isso não poderia ter passado despercebido aos rabinos da congregação. É possível que Espinosa, enquanto progredia em seus estudos, estivesse sendo preparado para uma carreira como rabino. Porém, ele nunca chegou aos níveis superiores do currículo, aqueles que incluíam o estudo avançado do Talmud. Aos 17 anos viu-se obrigado a interromper seus estudos formais para ajudar a administrar o negócio de importação da família.

E então, em 27 de julho de 1656, Espinosa recebeu o mais duro decreto de Herém, proibição ou excomunhão, nunca antes pronunciado pela comunidade sefárdica de Amsterdã; esse decreto nunca foi rescindido. Não sabemos ao certo quais foram os “atos monstruosos” e as “heresias abomináveis” de Espinosa, mas um palpite educado surge com bastante facilidade. Sem dúvida, ele estava manifestando apenas aquelas ideias que logo iriam figurar em seus tratados filosóficos. Nessas obras, Espinosa nega a imortalidade da alma; rejeita fortemente a noção de um Deus transcendente e providencial — o Deus de Abraão, Isaac e Jacó; e afirma que a Lei (isto é, os mandamentos da Torá e os princípios legais rabínicos) não foi literalmente dada por Deus e nem se tornou realmente obrigatória para os judeus. Pode haver algum mistério sobre a razão pela qual um dos mais ousados e radicais pensadores da história foi condenado por uma comunidade judaica ortodoxa?

Aparentemente, Espinosa por fim contentou-se em ter uma desculpa para sair da comunidade e deixar o judaísmo para trás; sua fé e seu compromisso religioso já não existiam mais. Em poucos anos ele deixou Amsterdã definitivamente. Quando sua correspondência atual inicia, em 1661, ele vive em Rijnsburg, não muito longe de Leiden. Enquanto esteve em Rijnsburg, trabalhou no Tratado Sobre a Correção do Intelecto, um ensaio sobre o método filosófico, e no Breve Tratado sobre Deus, o Homem e seu Bem-estar, um esforço inicial, mas abortado, para expor suas visões metafísicas, epistemológicas e morais. Sua exposição crítica dos Princípios de Filosofia de Descartes, a única obra que ele publicou sob seu próprio nome em sua vida, foi concluída em 1663, depois que ele mudou-se para Voorburg, nos arredores de Haia. Nessa época, também estava trabalhando no que eventualmente seria chamado de Ética, sua obra-prima filosófica. Entretanto, quando ele viu os princípios de tolerância na Holanda serem ameaçados por forças reacionárias, incluindo a intromissão política da Igreja Reformada Holandesa, a colocou de lado para completar seu “escandaloso” Tratado Teológico-Político, publicado anonimamente, e para grande alarme, em 1670 (um crítico exagerado o chamou de “um livro forjado no inferno pelo próprio diabo”). Quando Espinosa morreu em 1677, em Haia, ainda trabalhava em seu Tratado Político; este logo foi publicado por seus amigos junto com seus outros escritos inéditos, incluindo um Compêndio de Gramática Hebraica.

2. Ética

Ética é um trabalho ambicioso e multifacetado. É também corajoso até o ponto da audácia, como seria de se esperar de uma crítica sistemática e implacável das concepções filosóficas e teológicas tradicionais sobre Deus, o ser humano e o universo, especialmente porque essas concepções servem como fundamento das principais religiões organizadas e de suas regras morais e cerimoniais. O que Espinosa pretende demonstrar (no sentido mais forte dessa palavra) é a verdade sobre Deus, a natureza e especialmente sobre nós mesmos, e os princípios mais certos e úteis da sociedade, da religião e da boa vida. Apesar da grande quantidade de metafísica, física, antropologia e psicologia que ocupam as Partes Um a Três, Espinosa apresentou a mensagem crucial do seu trabalho sobre como ser ético na natureza. Ela consiste em mostrar que nossa felicidade e bem-estar não estão numa vida escravizada às paixões e aos bens transitórios que normalmente perseguimos, nem no apego irrefletido às superstições que passam como religião, mas sim na vida da razão. Para esclarecer e apoiar essas conclusões amplamente éticas, entretanto, Espinosa deve primeiro desmistificar o universo e mostrá-lo pelo que ele realmente é. Isso requer o estabelecimento de alguns fundamentos metafísicos, que são o projeto da Parte Um.

2.1 Deus ou Natureza

“Sobre Deus” começa com algumas definições enganosamente simples de termos que seriam familiares a qualquer filósofo do século XVII. “Por substância entendo o que é em si mesmo e é concebido através de si próprio”; “Por atributo entendo o que o intelecto percebe de uma substância, como constituindo sua essência”; “Por Deus entendo um ser absolutamente infinito, ou seja, uma substância constituída por uma infinidade de atributos, dos quais cada um expressa uma essência eterna e infinita”. As definições da Parte Um são, na verdade, simplesmente conceitos claros que fundamentam o resto de seu sistema. Elas são seguidas por uma série de axiomas que, ele supõe, serão considerados óbvios e não-problemáticos pelo filosoficamente informado (“O que quer que seja, é em si mesmo ou em outro”; “A partir de uma dada causa determinada o efeito segue-se necessariamente”). A partir deles, a primeira proposição se segue necessariamente, e toda proposição subsequente pode ser demonstrada usando apenas o que a precede. (As referências à Ética serão feitas por: parte (I-V), proposição (p), definição (d), scholium (s) e corolário (c)).

Nas proposições um a quinze da Parte Um, Espinosa apresenta os elementos básicos de sua figura de Deus. Deus é o infinito, necessariamente existente (ou seja, auto-causado), substância única do universo. Há apenas uma substância no universo; é Deus; e tudo o mais que é, o é em Deus.

Proposição 1: Uma substância é anterior, em sua natureza, às suas afecções.

Proposição 2: Duas substâncias com atributos diferentes não têm nada em comum uma com a outra. (Em outras palavras, se duas substâncias diferem na natureza, então elas não têm nada em comum).

Proposição 3: Se coisas não têm nada em comum uma com a outra, uma delas não pode ser a causa da outra.

Proposição 4: Duas ou mais coisas distintas se distinguem entre si, seja por uma diferença nos atributos [isto é, as naturezas ou essências] das substâncias, seja por uma diferença em suas afecções [isto é, suas propriedades acidentais].

Proposição 5: Na natureza, não pode haver duas ou mais substâncias com a mesma natureza ou atributo.

Proposição 6: Uma substância não pode ser produzida por outra substância.

Proposição 7: Existir é pertinente à natureza de uma substância.

Proposição 8: Toda substância é necessariamente infinita.

Proposição 9: Quanto mais realidade ou ser cada coisa tem, mais atributos pertencem a ela.

Proposição 10: Cada atributo de uma substância deve ser concebido através dela mesma.

Proposição 11: Deus, ou uma substância que consiste de atributos infinitos, cada um dos quais expressa essência eterna e infinita, necessariamente existe. (A prova desta proposição consiste simplesmente na clássica “prova ontológica da existência de Deus”. Espinosa escreve que “se você negar isso, conceba, se puder, que Deus não existe”. Portanto, pelo axioma 7 [“Se uma coisa pode ser concebida como não-existente, sua essência não envolve a existência”], sua essência não envolve a existência. Porém, isso, pela proposição 7, é um absurdo. Portanto, Deus necessariamente existe, q.e.d.)

Proposição 12: Nenhum atributo de uma substância pode ser verdadeiramente concebido, do qual se segue que a substância pode ser dividida.

Proposição 13: Uma substância que é absolutamente infinita é indivisível.

Proposição 14: Exceto Deus, nenhuma substância pode ser ou ser concebida.

Essa prova de que Deus — um ser infinito, eterno (necessário e auto-causado), indivisível — é a única substância do universo procede em três passos simples. Primeiro, se estabelece que duas substâncias não podem compartilhar um atributo ou essência (Ip5). Depois, prova-se que existe uma substância com atributos infinitos (isto é, Deus) (Ip11). Segue-se, em conclusão, que a existência dessa substância infinita impede a existência de qualquer outra substância. Porque, se houvesse uma segunda substância, ela teria que ter algum atributo ou essência. No entanto, como Deus tem todos os atributos possíveis, então o atributo a ser possuído por essa segunda substância seria um dos atributos já possuídos por Deus. Todavia, já foi estabelecido que não há duas substâncias que possam ter o mesmo atributo. Portanto, não pode haver, além de Deus, nenhuma segunda substância desse tipo.

Se Deus é a única substância, e (pelo axioma 1) o que quer que seja, ou é uma substância ou está em uma substância, então, todo o resto deve estar em Deus. “O que quer que seja, está em Deus, e nada pode ser ou ser concebido sem Deus” (Ip15). As coisas que estão “em” Deus (ou, mais precisamente, nos atributos de Deus) são o que Espinosa chama de ‘modos’ (ou ‘afecções’).

Assim que essa conclusão preliminar for estabelecida, Espinosa revela imediatamente o objetivo de seu ataque. Sua definição de Deus — condenada desde sua excomunhão da comunidade judaica como um “Deus que existe apenas no sentido filosófico” — pretende excluir qualquer antropomorfização do ser divino. No Scholium à proposição quinze, ele escreve contra “aqueles que simulam um Deus constituído de um corpo, uma mente e sujeito a paixões, como o homem. Mas quão longe eles se afastam do verdadeiro conhecimento de Deus está suficientemente estabelecido pelo que já foi demonstrado”. Além de ser falsa, tal concepção antropomórfica de Deus como juiz sobre nós só pode ter efeitos deletérios sobre a liberdade e a atividade humana, na medida em que promove uma vida escravizada à esperança, ao medo e às superstições às quais tais emoções dão origem.

Grande parte da linguagem técnica da Parte Um é, ao que parece, retirada diretamente de Descartes. Contudo, mesmo o cartesiano mais dedicado teria tido dificuldade em compreender (e, certamente, em aceitar) a importância integral das proposições um a quinze. O que significa dizer que Deus é substância e que tudo mais está “dentro” de Deus? Espinosa está dizendo que rochas, mesas, cadeiras, pássaros, montanhas, rios e seres humanos são todos propriedades de Deus, e, por isso, podem ser predicados de Deus (assim como se diria que a mesa “é vermelha”)? Parece muito estranho pensar que objetos e indivíduos — o que normalmente pensamos como “coisas” independentes — são, na verdade, meramente propriedades de algo, itens que habitam em outra coisa. Espinosa era sensível à estranheza desse tipo de discurso, sem mencionar os problemas filosóficos a que ele dá origem. Quando uma pessoa sente dor, será que ela é, em última análise, apenas uma propriedade de Deus, e, portanto, Deus sente dor? Tudo isso deu origem a um grande debate acadêmico sobre o que Espinosa significa ao dizer que todas as coisas são modos de Deus ou “em” Deus. Eles também tentaram explicar a razão de haver, a partir da Proposição Dezesseis, uma mudança sutil, mas importante, na linguagem de Espinosa. Deus é agora descrito mais como a substância subjacente de todas as coisas, porém como a causa universal, imanente e sustentadora de tudo o que existe: “Da necessidade da natureza divina deve seguir-se infinitamente muitas coisas em infinitos modos, (ou seja, tudo o que pode recair sob um intelecto infinito)”.

Segundo a concepção judaico-cristã tradicional da divindade, Deus é um criador transcendente, um ser que faz surgir um mundo distinto de si próprio, criando-o do nada. Deus produz este mundo através de um ato espontâneo de livre arbítrio, e poderia muito facilmente não ter criado nada fora de si mesmo. Em contraste, o Deus de Espinosa é a causa de todas as coisas porque todas as coisas seguem causalmente e necessariamente da natureza divina. Ou, como ele diz, do infinito poder ou natureza de Deus “todas as coisas necessariamente fluíram, ou sempre seguiram, pela mesma necessidade e da mesma forma que da natureza de um triângulo se segue, de eternidade a eternidade, que seus três ângulos são iguais a dois ângulos retos” (Ip17s1). A existência do mundo é, portanto, matematicamente necessária. É impossível que Deus exista sem o mundo. Isso não significa que Deus não cause a existência de um mundo livremente, uma vez que nada fora de Deus o constrange a trazê-lo à existência. Porém, Espinosa nega que Deus cria o mundo através de algum ato arbitrário e indeterminado do livre-arbítrio. Deus não poderia ter feito de outra forma. Não há alternativas ao mundo real — nenhum outro mundo é possível — e não há nenhuma contingência ou espontaneidade dentro do mundo. Nada poderia ter sido de outra forma. Tudo é absoluta e necessariamente determinado.

(Ip29): Na natureza não há nada contingente, mas tudo foi determinado a partir da necessidade de existir da natureza divina, e de produzir um efeito de certa forma.
(Ip33): As coisas não poderiam ter sido produzidas por Deus de outra forma, e em nenhuma outra ordem além daquela em que foram produzidas.

Existem, no entanto, diferenças na maneira como as coisas dependem de Deus. Como um ser infinito, Deus tem “atributos” infinitos. Um atributo é melhor entendido como sendo uma forma mais básica de ser, uma natureza geral que se expressa de determinadas maneiras por coisas particulares. Temos conhecimento de apenas dois desses atributos: o pensamento e a extensão. Algumas características do universo decorrem necessariamente de Deus — ou, mais precisamente, da natureza absoluta de um dos atributos de Deus — de forma direta e não mediada. Esses são os aspectos universais e eternos do mundo, e eles não vêm ao ser nem deixam de ser; Espinosa os chama de “modos infinitos”. Eles incluem os princípios mais gerais do universo, juntos governando todas as coisas de todas as maneiras. Do atributo da extensão, seguem-se os princípios que regem todos os objetos estendidos (as verdades da geometria) e as leis que regem o movimento e o resto dos corpos (as leis da física); do atributo do pensamento, seguem-se as leis do pensamento (entendidas pelos comentaristas como sendo ou as leis da lógica ou as leis da psicologia). As coisas particulares e individuais estão causalmente mais distantes de Deus. Elas não são nada além de “afecções dos atributos de Deus, ou modos pelos quais os atributos de Deus são expressos de uma certa e determinada maneira” (Ip25c). Mais precisamente, eles são modos finitos.

Há duas ordens ou dimensões causais que regem a produção e as ações de determinadas coisas. Por um lado, elas são determinadas pelas leis gerais do universo que se seguem imediatamente da natureza de Deus. Por outro lado, cada coisa em particular está determinada a agir e a sofrer ações de outras coisas particulares. Assim, o comportamento real de um corpo em movimento é uma função não apenas das leis universais do movimento, mas também dos outros corpos que estão em movimento e repouso em torno dele e com os quais ele entra em contato.

A metafísica de Espinosa sobre Deus é resumida em uma frase que aparece na edição latina (mas não na original holandesa) de Ética: “Deus, ou a Natureza”, Deus, sive Natura: “Aquele ser eterno e infinito que chamamos Deus, ou Natureza, age a partir da mesma necessidade da qual ele existe” (Parte IV, Prefácio). É uma frase ambígua, uma vez que poderia ser lida como tentativa de divinizar a natureza ou de naturalizar Deus. Entretanto, para o leitor cuidadoso, não há engano na intenção de Espinosa. Os amigos que, após sua morte, publicaram seus escritos deixaram de fora a cláusula “ou Natureza” da versão holandesa, a de mais amplo acesso, provavelmente por medo da reação que essa identificação suscitaria, previsivelmente, entre uma audiência vernacular.

Há, insiste Espinosa, dois lados da Natureza. Primeiro, há o aspecto ativo e produtivo do universo — Deus e seus atributos, do qual tudo mais se segue. Isso é o que Espinosa, empregando os mesmos termos que usou no Breve Tratado, chama de Natura naturans, “Natureza naturante”. Estritamente falando, isso é idêntico a Deus. O outro aspecto do universo é aquele que é produzido e sustentado pelo aspecto ativo, a Natura naturata, “Natureza naturada”.

Por Natura naturata eu entendo qualquer coisa que se siga da necessidade da natureza de Deus, ou de qualquer dos atributos de Deus, ou seja, todos os modos dos atributos de Deus na medida em que são considerados como coisas que estão em Deus, e não podem ser nem podem ser concebidos sem Deus. (Ip29s).

Há algum debate na literatura sobre se Deus também deve ser identificado com Natura naturata. A leitura mais provável é que Deus, como Natureza, é tanto Natura naturans quanto Natura naturata, e que os modos infinito e finito não são apenas efeitos do poder de Deus ou da Natureza, mas, na verdade, herdam e expressam essa substância infinita. Seja como for, a visão fundamental de Espinosa no Livro Um é que a Natureza é um todo indivisível, eterno ou auto-causado e substancial — de fato, é o único todo substancial. Fora da Natureza nada existe, e tudo o que existe é parte da Natureza e é trazido à existência pela Natureza com uma necessidade determinista. Esse ser unificado, único, produtivo, necessário e justo é o que se entende por “Deus”. Por causa da necessidade inerente à Natureza, não existe teleologia no universo. Deus, ou a Natureza, não atua para nenhum fim, e as coisas não existem para nenhum fim determinado. Não existem “causas finais” (para usar a frase aristotélica comum). Deus não “faz” as coisas pelo bem de nada mais. A ordem das coisas apenas decorre das essências de Deus através de um determinismo inviolável. Toda discussão sobre os propósitos, intenções, metas, preferências ou objetivos de Deus é apenas uma ficção antropomórfica.

Todos os preconceitos que aqui me comprometo a expor dependem deste: que os homens normalmente supõem que todas as coisas naturais agem, assim como os próprios homens, por causa de um fim; de fato, eles defendem como certo que o próprio Deus dirige todas as coisas para algum fim certo, pois dizem que Deus fez todas as coisas para o homem, e o homem para que ele possa adorar a Deus. (I, Apêndice)

Deus não é um projetista orientado a metas, que depois julga as coisas pelo grau de conformidade com seus propósitos. As coisas só acontecem por causa da Natureza e de suas leis. “A natureza não tem um fim estabelecido perante ela… Todas as coisas procedem por uma certa necessidade eterna da natureza”. Acreditar o contrário é cair nas mesmas superstições que jazem no coração das religiões organizadas.

[As pessoas] encontram — tanto dentro como fora de si mesmas — muitos meios que são de grande ajuda na busca de suas próprias vantagens, por exemplo, olhos para ver, dentes para mastigar, plantas e animais para comer, o sol para iluminar, o mar para prover peixe… Então, elas consideram todas as coisas naturais como sendo meios para obter vantagens para si. E sabendo que haviam encontrado esses meios, não os tendo proporcionado por si mesmas, tinham razões para acreditar que houvesse outro alguém que tivesse preparado tais meios para seu uso. Porque, depois de considerarem as coisas como meios, elas não poderiam acreditar que as coisas houvessem se feito por si próprias; mas, a partir dos meios que estavam acostumados a preparar para si próprias, elas tinham que inferir que havia um governante, ou vários governantes da natureza, dotados de liberdade humana, que haviam cuidado de todas as coisas para elas, e feito todas as coisas para seu uso.

o elas nunca haviam ouvido nada sobre o temperamento desses governantes, tiveram que julgá-lo a partir de seu próprio temperamento. Assim, afirmaram que os Deuses dirigem todas as coisas para o uso dos homens, a fim de vincular os homens a eles e ser tidos pelos homens com a mais alta honra. Assim, aconteceu que cada uma delas pensou, a partir de seu próprio temperamento, diferentes maneiras de adorar a Deus, de modo que Deus pudesse amá-las acima de tudo, e dirigir toda a Natureza de acordo com as necessidades de seu desejo cego e ganância insaciável. Assim, esse preconceito foi transformado em superstição, e atingiu raízes profundas em suas mentes. (I, Apêndice)

Um Deus que julga, que tem planos e age de propósito é um Deus a ser obedecido e satisfeito. Os pregadores oportunistas são então capazes de jogar com nossas esperanças e medos diante de tal Deus. Eles prescrevem maneiras de agir que são calculadas a fim de evitar a punição por esse Deus e ganhar suas recompensas. Mas, insiste Espinosa, ver Deus ou a Natureza como agindo em nome de fins — encontrar um propósito na Natureza — é interpretar mal a Natureza e “virá-la do avesso”, colocando o efeito (o resultado final) antes da verdadeira causa.

Nem Deus faz milagres, já que não há — nem pode haver — desvios do curso necessário da natureza. Isso seria Deus ou a Natureza agir contra si própria, o que é um absurdo. A crença em milagres se deve apenas ao desconhecimento das verdadeiras causas dos fenômenos.

Se uma pedra caiu na cabeça de alguém e o matou, eles mostrarão, da seguinte forma, que a pedra caiu para matar o homem. De fato, se não caiu para esse fim, Deus o permitindo, como tantas circunstâncias poderiam ter coincidido por acaso (porque muitas vezes várias circunstâncias coincidem ao mesmo tempo)? Talvez você responda que isso aconteceu porque o vento soprava forte e o homem caminhava por ali. No entanto, eles persistirão: por que o vento estava soprando forte naquela época? Por que o homem estava caminhando daquela maneira naquela época? Se você responder novamente que o vento surgiu, talvez, porque, no dia anterior, enquanto o tempo ainda estava calmo, o mar começou a agitar-se, e que o homem tinha sido convidado por um amigo, eles continuarão — porque não há fim para as perguntas que podem ser feitas: mas por que o mar estava agitado? Por que o homem foi convidado exatamente naquele momento? E assim eles não deixarão de perguntar as causas das causas até que você se refugie na vontade de Deus, ou seja, no santuário da ignorância. (I, Apêndice)

Trata-se de uma linguagem forte, e Espinosa está claramente consciente dos riscos de sua posição. Os mesmos pregadores que se aproveitam de nossa credulidade irromperão contra qualquer um que tente afastar a cortina e revelar as verdades da Natureza. “Aquele que procura as verdadeiras causas dos milagres e está ansioso, como um homem educado, para entender as coisas naturais, e não para maravilhar-se delas como um tolo, é, em geral, considerado e denunciado como um herege impiedoso por aqueles que o povo honra como intérpretes da natureza e dos Deuses. Porque tais intérpretes sabem que, se a ignorância for removida, então a imbecil maravilha, o único meio que têm de argumentar e defender sua autoridade, também será removida”.

Por séculos Espinosa tem sido considerado, por seus inimigos e seus partidários, na literatura acadêmica e na imaginação popular, como um “panteísta”. Não está claro, no entanto, que essa seja a forma adequada de olhar para sua concepção de Deus. Naturalmente, Espinosa não é um teísta tradicional, para quem Deus é um ser transcendente e providencial. No entanto, a identificação de Espinosa com a Natureza significa que ele é — como tantos insistem há tanto tempo, desde o início do século XVIII até a mais recente edição do Cambridge Dictionary of Philosophy — um panteísta?

Em geral, o panteísmo é a visão que rejeita a transcendência de Deus. De acordo com o panteísta, Deus é, de alguma forma, idêntico ao mundo. Pode haver aspectos de Deus que são ontologicamente ou epistemologicamente distintos do mundo, mas para o panteísmo isso não deve implicar que Deus está essencialmente separado do mundo. O panteísta também é capaz de rejeitar qualquer tipo de antropomorfização de Deus, ou atribuir à divindade características psicológicas e morais modeladas pela natureza humana. O Deus do panteísta não é (geralmente) um Deus pessoal.

Dentro dessa estrutura geral é possível distinguir duas variedades de panteísmo. Primeiro, o panteísmo pode ser entendido como a negação de qualquer distinção entre Deus e o mundo natural, e a afirmação de que Deus é, de fato, idêntico a tudo o que existe. “Deus é tudo e tudo é Deus”. Nessa visão, Deus é o mundo e todo o seu conteúdo natural, e nada se distingue entre eles. Trata-se de um panteísmo redutor. Em segundo lugar, o panteísmo pode ser entendido como a afirmação de que Deus é distinto do mundo e de seu conteúdo natural, mas está, não obstante, contido ou imanente dentro dele, talvez na forma como a água é contida em uma esponja saturada. Deus é tudo e em toda parte, nesta versão, em virtude de estar dentro de tudo. Trata-se de panteísmo imanentista; envolve essa afirmação de que a natureza contém dentro de si, além de seus elementos naturais, um elemento sobrenatural e divino imanente.

Espinosa é, então, um panteísta? Qualquer análise adequada da identificação de Espinosa sobre Deus e a Natureza mostrará claramente que Espinosa não pode ser um panteísta no segundo sentido, imanentista. Para ele, não há nada além da Natureza e de seus atributos e modos. E dentro da Natureza certamente não pode haver nada que seja sobrenatural. Se Espinosa está procurando eliminar qualquer coisa, é aquilo que está acima ou além da natureza, que escapa às leis e processos da natureza. Porém, será ele um panteísta no primeiro sentido, redutor?

A questão de se Deus deve ser identificado com toda a Natureza (isto é, Natura naturans e Natura naturata) ou apenas uma parte da Natureza (isto é, apenas Natura naturans), que tem ocupado boa parte da literatura recente, pode ser vista como crucial para a questão do alegado panteísmo de Espinosa. Afinal, se o panteísmo é a visão de que Deus é tudo, então Espinosa será um panteísta somente se ele identificar Deus com toda a Natureza. De fato, é exatamente assim que a questão é frequentemente enquadrada. Tanto aqueles que acreditam que Espinosa é um panteísta como aqueles que acreditam que ele não é um panteísta se concentram na questão de se Deus deve ser identificado com toda a Natureza, incluindo os modos infinito e finito da Natura naturata, ou apenas com a substância e seus atributos (Natura naturans), mas não com os modos. Dessa forma, tem sido argumentado que Espinosa não é um panteísta, porque Deus deve ser identificado somente com a substância e seus atributos, os princípios causais mais universais e ativos da Natureza, e não com quaisquer modos de substância. Outros estudiosos, no entanto, têm argumentado que Espinosa é um panteísta, apenas porque ele identifica Deus com o todo da natureza.

Contudo, o debate sobre a extensão da identificação espinosiana de Deus com a natureza não é realmente o ponto importante quando a questão diz respeito ao alegado panteísmo de Espinosa. Com certeza, se por “panteísmo” se entende a ideia de que Deus é tudo, e se se lê Espinosa como afirmando que Deus é apenas Natura naturans, então o Deus de Espinosa não é tudo e, consequentemente, Espinosa não é um panteísta, pelo menos não no sentido comum. As coisas finitas, segundo essa leitura, embora causadas pelos aspectos eternos, necessários e ativos da Natureza, não são idênticas a Deus ou substância, mas são seus efeitos. Porém, esse não é o sentido mais interessante, segundo o qual Espinosa não é uma panteísta. Porque mesmo que Espinosa de fato identifique Deus com toda a Natureza, não se segue que Espinosa seja um panteísta. A verdadeira questão não é qual é a leitura metafísica correta da concepção de Espinosa acerca de Deus e sua relação com os modos finitos. Em qualquer das interpretações, o raciocínio de Espinosa é naturalista e redutor. Deus é idêntico ou com toda a Natureza ou com apenas uma parte da Natureza; por essa razão, Espinosa compartilha algo com o panteísta redutor. Contudo — e este é o ponto importante — até mesmo o ateu pode, sem muita dificuldade, admitir que Deus não é nada além da Natureza. O panteísmo redutor e o ateísmo mantêm ontologias extensamente equivalentes.

Ao invés disso, a questão do panteísmo de Espinosa será realmente respondida segundo o aspecto psicológico das coisas, no que diz respeito à atitude adequada a se tomar em relação a Deus sive Natura. Com efeito, por mais que se leia a relação entre Deus e a Natureza em Espinosa, é um erro chamá-lo de panteísta na medida em que o panteísmo ainda é uma espécie de teísmo religioso. O que realmente distingue o panteísta do ateu é que o panteísta não rejeita como inadequadas as atitudes psicológicas religiosas exigidas pelo teísmo. Em vez disso, o panteísta simplesmente afirma que Deus — concebido como um ser diante do qual se deve adotar uma atitude de temor adorador — é ou está na Natureza. E nada poderia estar mais longe do espírito da filosofia de Espinosa. Ele não acredita que o temor de adoração ou a reverência religiosa seja uma atitude apropriada a ser tomada diante de Deus ou da Natureza. Não há nada de santo ou sagrado na Natureza, e certamente ela não é o objeto de uma experiência religiosa. Em vez disso, devemos nos esforçar para compreender Deus ou Natureza, com o tipo de conhecimento intelectual adequado ou claro e distinto, que revela as verdades mais importantes da Natureza e mostra como tudo depende essencialmente e existencialmente de causas naturais superiores. A chave para descobrir e experimentar Deus, para Espinosa, é a filosofia e a ciência, não o temor religioso e a submissão adoradora. A segunda dá origem apenas ao comportamento supersticioso e à subserviência às autoridades eclesiásticas; a primeira leva ao esclarecimento, à liberdade e à verdadeira bem-aventurança (ou seja, à paz de espírito).

2.2 O Ser Humano

Na Parte Dois, Espinosa aborda a natureza do ser humano. Os dois atributos de Deus, dos quais temos conhecimento, são extensão e pensamento. Isso, por si só, envolve o que teria sido uma tese espantosa aos olhos de seus contemporâneos, geralmente mal compreendida e vilipendiada. Quando Espinosa afirma na Segunda Proposição que “a extensão é um atributo de Deus, ou Deus é uma coisa estendida”, ele foi quase universalmente — mas erroneamente — interpretado como dizendo que Deus é literalmente corpóreo. Por essa razão, o “espinosismo” tornou-se, para seus críticos, sinônimo de materialismo.

De acordo com uma interpretação, Deus é de fato material, e é até mesmo a própria matéria, mas isso não implica que Deus seja ou tenha um corpo. Outra interpretação, porém, que será adotada aqui, é que o que está em Deus não é a matéria em si, mas sim extensão, como uma essência. E a extensão e o pensamento são duas essências ou naturezas distintas que não têm absolutamente nada em comum. Os modos ou expressões de extensão são corpos físicos; os modos de pensamento são ideias. Como extensão e pensamento não têm nada em comum, os dois domínios da matéria e da mente são sistemas causalmente fechados. Tudo o que é estendido decorre apenas do atributo de extensão. Cada evento corporal é parte de uma série causal infinita de eventos corporais e é determinado apenas pela natureza da extensão e suas leis, em conjunto com suas relações com outros corpos estendidos. Da mesma forma, toda ideia ou evento mental decorre apenas do atributo do pensamento. Qualquer ideia é parte integrante de uma série infinita de ideias e é determinada pela natureza do pensamento e de suas leis, em conjunto com suas relações com outras ideias. Em outras palavras, não há interação causal entre corpos e ideias, entre o físico e o mental. Há, no entanto, uma correlação e um paralelismo profundo entre as duas séries. Para cada modo em extensão que é uma coleção relativamente estável de matéria (um corpo individual), há um modo correspondente no pensamento (uma ideia ou mente). De fato, ele insiste, “um modo de extensão e a ideia desse modo são uma e a mesma coisa, mas expressos de duas maneiras” (IIp7s). Devido à unidade fundamental e subjacente da Natureza ou Substância e seus atributos, o pensamento e a extensão são apenas duas formas diferentes nas quais uma e a mesma Natureza se expressa. Cada coisa material (cada expressão determinada da Natureza através da extensão) tem assim sua própria ideia particular (uma expressão determinada da Natureza através do pensamento) — uma ideia eterna adequada — que corresponde a ela e a representa. Como essa ideia é apenas um modo de um dos atributos de Deus — o pensamento — ela está em Deus, e a série infinita de ideias constitui a mente de Deus ou o intelecto infinito. Tal como ele explica,

Um círculo existente na natureza e a ideia do círculo existente, que também está em Deus, são uma e a mesma coisa, que é explicada através de atributos diferentes. Portanto, quer concebamos a natureza sob o atributo da Extensão, ou sob o atributo do Pensamento, ou sob qualquer outro atributo, encontraremos uma e a mesma ordem, ou uma e a mesma conexão de causas, ou seja, que as mesmas coisas se sucedem. (IIp7s)

Daí resulta, argumenta Espinosa, que as relações causais entre corpos se espelham nas relações lógicas entre as ideias de Deus. Ou, como observa Espinosa na Proposição Sete, “a ordem e a conexão das ideias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas”.

Um tipo de corpo estendido, no entanto, é significativamente mais complexo em sua composição e em suas disposições para agir e receber ação do que qualquer outro. Essa complexidade se reflete em sua ideia correspondente. O corpo em questão é o corpo humano; e sua ideia correspondente é a mente ou a alma humana. A mente humana, então, como qualquer outra ideia, é simplesmente um modo particular do atributo de Deus, o pensamento. Tudo o que acontece no corpo é refletido ou expresso na mente. Dessa forma, a mente percebe, mais ou menos obscuramente, o que está ocorrendo em seu corpo. E, através das interações de seu corpo com outros corpos, a mente está consciente do que está acontecendo no mundo físico ao seu redor. Mas a mente humana não interage com seu corpo mais do que qualquer modo de pensamento interage com um modo de extensão.

Uma das questões prementes da filosofia do século XVII, e talvez o legado mais celebrado do dualismo de Descartes, é o problema de como duas substâncias radicalmente diferentes, como mente e corpo, formam uma união em um ser humano e causam efeitos uma na outra. Como o corpo estendido pode envolver causalmente a mente não estendida, que é incapaz de contato ou movimento, e “movê-la”, ou seja, causar efeitos mentais como dores, sensações e percepções? E como pode uma coisa imaterial como uma mente ou alma, que não tem movimento, colocar um corpo (o corpo humano) em movimento? Espinosa, de fato, nega que o ser humano é uma união de duas substâncias. A mente humana e o corpo humano são duas expressões diferentes — em pensamento e em extensão — de uma e da mesma coisa: a pessoa. E como não há interação causal entre a mente e o corpo, o chamado problema mente-corpo, tecnicamente falando, não surge.

2.3 Conhecimento

A mente humana, à semelhança de Deus, contém ideias. Algumas dessas ideias — imagens sensoriais, “sensações” qualitativas (como dores e prazeres), dados perceptivos — e elementos da imaginação são fenômenos qualitativos imprecisos, constituindo a expressão em pensamento dos estados do corpo tal como ele é afetado pelos corpos que o cercam. Tais ideias não transmitem um conhecimento adequado e verdadeiro do mundo, mas apenas uma imagem relativa, parcial e subjetiva de como as coisas parecem ser para o percebedor. Não há uma ordem sistemática para essas percepções, nem qualquer supervisão crítica pela razão. “Enquanto a mente humana percebe as coisas da ordem comum da natureza, ela não tem um conhecimento adequado, mas apenas um conhecimento confuso e mutilado de si mesma, de seu próprio Corpo e de corpos externos” (IIp29c). Sob tais circunstâncias, somos simplesmente determinados em nossas ideias por nosso encontro fortuito e casual com as coisas no mundo externo. Esse conhecimento superficial nunca nos proporcionará o conhecimento das essências dessas coisas. Na verdade, ele é uma fonte invariável de falsidade e erro. Esse “conhecimento por experiência aleatória” é também a origem de grandes ilusões, uma vez que nós — pensando que somos livres — desconhecemos, em nossa ignorância, como somos determinados por causas.

Ideias adequadas, por outro lado, são formadas de forma racional e ordenada, e são necessariamente verdadeiras e reveladoras das essências das coisas. A “razão”, o segundo tipo de conhecimento (depois da “experiência aleatória”), é a apreensão da essência de uma coisa através de um procedimento discursivo e inferencial. “Uma ideia verdadeira não significa nada além de conhecer uma coisa perfeitamente, ou da melhor maneira” (IIp43s). Ela envolve compreender as conexões causais e conceituais de uma coisa não apenas em relação a outros objetos, mas, mais importante ainda, em relação aos atributos de Deus, os modos infinitos (as leis da natureza) que se seguem imediatamente a eles, e as “noções comuns” que identificam as características presentes em todos os modos de um atributo. A ideia adequada de uma coisa situa clara e distintamente seu objeto em todos os seus nexos causais e relações conceituais, e mostra não apenas que ele é, mas o que é e como e por que é. A pessoa que realmente conhece uma coisa vê as razões pelas quais a coisa estava determinada a ser e não poderia ter sido de outra forma. “É da natureza da Razão considerar as coisas como necessárias, não como contingentes” (IIp44). A crença de que alguma coisa é acidental ou espontânea pode ser baseada apenas em uma compreensão inadequada da explicação causal da coisa, em uma familiaridade parcial e “mutilada” com ela. Perceber por meio de ideias adequadas é perceber a necessidade inerente à Natureza.

A experiência sensorial por si só nunca poderia fornecer as informações transmitidas por uma ideia adequada. Os sentidos apresentam as coisas apenas como elas aparecem, a partir de uma determinada perspectiva, em um determinado momento. Uma ideia adequada, por outro lado, ao mostrar como uma coisa segue necessariamente de um ou outro dos atributos de Deus, a apresenta em seus aspectos “eternos” — sub specie aeternitatis, como Espinosa a define — sem qualquer relação com o tempo. “É da natureza da Razão considerar as coisas como necessárias e não como contingentes. E a Razão percebe tal necessidade das coisas verdadeiramente, ou seja, como ela é em si mesma. Mas essa necessidade das coisas é a própria necessidade da natureza eterna de Deus. Portanto, é da natureza da Razão considerar as coisas sob essa espécie de eternidade” (IIp44). O terceiro tipo de conhecimento, a intuição, recolhe o que é conhecido pela Razão e o agarra em um único e perspicaz ato da mente.

A concepção de Espinosa de conhecimento adequado revela um otimismo inigualável quanto aos poderes cognitivos do ser humano. Nem mesmo Descartes acreditava que poderíamos conhecer toda a natureza e seus segredos mais íntimos com o grau de profundidade e certeza que Espinosa pensava ser possível. Mais notavelmente, uma vez que Espinosa pensava que o conhecimento adequado de qualquer objeto e da Natureza como um todo envolve um conhecimento da essência de Deus e de como as coisas se relacionam com Deus e seus atributos, ele também não tinha escrúpulos em afirmar que podemos, pelo menos em princípio, conhecer a Deus perfeitamente e adequadamente. “O conhecimento da essência eterna e infinita de Deus que cada ideia envolve é adequado e perfeito” (IIp46). “A mente humana tem um conhecimento adequado da essência eterna e infinita de Deus” (IIp47). Nenhum outro filósofo na história se dispôs a fazer essa afirmação. Porém, com efeito, nenhum outro filósofo identificou Deus com a Natureza de forma tão direta.

2.4 Paixão e Ação

Espinosa envolve-se numa análise tão detalhada da composição do ser humano porque ela é essencial para seu objetivo de mostrar como o ser humano é uma parte da Natureza, existindo dentro dos mesmos nexos causais determinísticos que outros seres estendidos e mentais. Isso tem sérias implicações éticas. Primeiro, implica que um ser humano não é dotado de liberdade, pelo menos não no sentido comum desse termo. Como nossas mentes e os eventos em nossas mentes são simplesmente ideias que existem dentro da série causal de ideias que decorre do atributo do pensamento de Deus, nossas ações e volições são tão necessariamente determinadas como quaisquer outros eventos naturais. “Na Mente não há vontade absoluta, ou livre, no entanto, a Mente está determinada a isto ou aquilo por uma causa que também é determinada por outra, e isto novamente por outra, e assim até o infinito” (IIp48).

O que é verdade da vontade (e, é claro, de nosso corpo) é verdade de todos os fenômenos de nossa vida psicológica. Espinosa acredita que isso é algo que não foi suficientemente compreendido pelos pensadores anteriores, que parecem ter querido colocar o ser humano em um pedestal fora (ou acima) da natureza.

A maioria daqueles que escreveram sobre os Afectos e o modo de vida dos homens parece tratar não das coisas naturais, as quais seguem as leis comuns da natureza, mas das coisas que estão fora da natureza. De fato, eles parecem conceber o homem na natureza como um domínio dentro de um domínio. Pois eles acreditam que o homem perturba — em vez de seguir — a ordem da natureza, que ele tem poder absoluto sobre suas ações e que ele é determinado somente por si próprio. (III, Prefácio)

Descartes, por exemplo, acreditava que, para que a liberdade do ser humano seja preservada, a alma deve estar isenta do tipo de leis deterministas que governam o universo material.

O objetivo de Espinosa nas Partes Três e Quatro é, como ele diz em seu Prefácio à Parte Três, restituir o ser humano e sua vida volitiva e emocional ao seu devido lugar na natureza. Porque nada está fora da natureza, nem mesmo a mente humana.

A natureza é sempre a mesma, e sua virtude e seu poder de agir são sempre os mesmos, ou seja, as leis e regras da natureza, segundo as quais todas as coisas acontecem e mudam de uma forma para outra, são sempre e em todos os lugares as mesmas. Portanto, a maneira de entender a natureza de qualquer coisa, de qualquer espécie, também deve ser a mesma, isto é, através das leis e regras universais da natureza.

Nossos afectos — nosso amor, raiva, ódio, inveja, orgulho, ciúme, etc. — “decorrem da mesma necessidade e força da natureza que as outras coisas singulares”. Espinosa, portanto, explica essas emoções — determinadas em sua ocorrência tal como um corpo em movimento e as propriedades de uma figura matemática — da mesma forma como ele explicaria qualquer outra coisa na natureza. “Tratarei a natureza e o poder dos Afectos — e o poder da Mente sobre eles — pelo mesmo Método pelo qual, nas partes anteriores, tratei Deus e a Mente, e considerarei as ações e apetites humanos como se fossem uma questão de linhas, planos e corpos”.

Nossos afectos estão divididos em ações e paixões. Quando a causa de um evento reside inteiramente em nossa própria natureza — mais particularmente, nosso conhecimento ou ideias adequadas — e nós somos a “causa adequada” dele, então trata-se de um caso de atuação da mente. Por outro lado, quando algo acontece em nós cuja causa está fora de nossa natureza, então somos passivos e sofrendo ação. Normalmente, o que acontece, tanto quando estamos agindo como quando estamos sofrendo ação, é alguma mudança em nossas capacidades mentais e físicas, o que Espinosa chama de “um aumento ou diminuição de nosso poder de agir” ou de nosso “poder de perseverar no ser”. Todos os seres são naturalmente dotados de tal poder ou impulso. Esse conatus, que é um estado de inércia existencial, constitui a “essência” de qualquer ser. “Cada coisa, na medida do possível por seu próprio poder, esforça-se para perseverar em seu ser”. Um afecto é qualquer mudança nesse poder, para melhor ou para pior. Os afectos que são ações são mudanças nesse poder que têm sua fonte (ou causa adequada) somente em nossa natureza; os afectos que são paixões são aquelas mudanças nesse poder que se originam pelo menos parcialmente fora de nós.

Devemos nos esforçar para aprender a moderar e conter as paixões e nos tornarmos seres ativos e autônomos. Se conseguirmos isso, então seremos “livres” na medida em que qualquer coisa que nos aconteça não resultará de nossas relações com coisas externas, mas de nossa própria natureza (tal como se segue e é determinada em última instância e necessariamente pelos atributos de Deus dos quais nossas mentes e corpos são modos). Seremos, consequentemente, verdadeiramente libertos dos inconvenientes dos altos e baixos emocionais desta vida. O modo de realizar isso é aumentar nosso conhecimento, nosso estoque de ideias adequadas, e reduzir ao máximo o poder ou a força de nossas ideias inadequadas, as quais decorrem não apenas da natureza da mente, mas de ser uma expressão de como nosso corpo é afetado por outros corpos. Em outras palavras, precisamos nos libertar da dependência dos sentidos e da imaginação — uma vez que uma vida guiada pelos sentidos e pela imaginação é uma vida sendo afetada e conduzida pelos objetos ao nosso redor — e confiar o máximo que pudermos somente em nossas faculdades racionais.

Devido ao nosso impulso inato de perseverança — o que, no ser humano, é chamado de “vontade” ou “apetite” — naturalmente buscamos as coisas que acreditamos que nos beneficiarão aumentando nosso poder de agir e evitamos ou fugimos daquelas coisas que acreditamos que nos prejudicarão diminuindo nosso poder de agir. Isso proporciona a Espinosa uma base para a catalogação das paixões humanas. Pois as paixões são todas funções das formas pelas quais as coisas externas afetam nossos poderes ou capacidades. A Alegria (Laetitiae, às vezes traduzida como “prazer”), por exemplo, é simplesmente o movimento ou passagem para uma maior capacidade de ação. “Por Alegria… entenderei aquela paixão pela qual a Mente passa para uma maior perfeição” (IIIp11s). Quando a alegria é uma paixão, ela é sempre provocada por algum objeto externo. A Tristeza (Tristitiae, ou “dor”), por outro lado, é a passagem para um estado de perfeição menor, também ocasionada por uma coisa exterior a nós. O Amor é simplesmente a Alegria acompanhada por uma consciência da causa externa que conduz em direção a uma maior perfeição. Nós amamos aquele objeto que nos beneficia e nos causa alegria. O Ódio nada mais é do que “a tristeza acompanhada da ideia de uma causa externa”. A Esperança é simplesmente “uma alegria inconstante que surge a partir da imagem de uma coisa futura ou passada de cujo resultado duvidamos”. Esperamos por uma coisa cuja presença, ainda incerta, trará alegria. Tememos, entretanto, uma coisa cuja presença, igualmente incerta, trará tristeza. Quando aquilo cujo resultado era duvidoso se torna certo, a esperança se transforma em confiança, enquanto que o temor se transforma em desespero.

Todas as emoções humanas, na medida em que são paixões, são constantemente dirigidas para fora, para as coisas e suas capacidades de nos afetar de uma forma ou de outra. Despertados por nossas paixões e desejos, buscamos ou fugimos daquelas coisas que acreditamos causar alegria ou tristeza. “Esforçamo-nos para promover a ocorrência do que imaginamos que leve à Alegria, e para evitar ou destruir o que imaginamos que seja contrário a ela, ou que leve à Tristeza”. Nossas esperanças e medos flutuam dependendo do fato de considerarmos os objetos de nossos desejos ou aversões como remotos, próximos, necessários, possíveis ou improváveis. Porém, os objetos de nossas paixões, sendo externos a nós, estão completamente fora de nosso controle. Assim, quanto mais nos permitimos ser controlados por eles, mais estamos sujeitos às paixões e menos ativos e livres somos. O resultado é uma imagem bastante patética de uma vida atolada nas paixões, perseguindo e fugindo dos objetos mutáveis e fugazes que as ocasionam: “Somos movidos de muitas maneiras por causas externas, e… como ondas no mar, impelidas por ventos contrários, nós nos movimentamos sem saber nosso resultado e destino” (IIIp59s). O título da Parte Quatro de Ética revela, com perfeita clareza, a avaliação de Espinosa sobre tal vida para um ser humano: “Sobre a escravidão humana, ou os poderes dos afectos”. Ele explica que o ser humano tem “carência de poder para moderar e conter os efeitos que chamo de Cativeiro”. Porque o homem que está sujeito aos afectos não está sob o controle de si próprio, mas sob o da fortuna, a cujo poder ele está tão fortemente sujeito que muitas vezes, mesmo vendo o melhor para si mesmo, é forçado a seguir o pior”. Padecer muito amor por uma coisa “que é passível de muitas variações e que nunca poderemos possuir plenamente” é, diz ele, uma espécie de “doença da mente”.

2.5 Virtude e Felicidade

A solução para essa situação é antiga. Como não podemos controlar os objetos que tendemos a valorizar e que permitimos influenciar nosso bem-estar, devemos, em vez disso, tentar controlar nossas próprias avaliações e assim minimizar a oscilação que os objetos externos e as paixões exercem em nós. Nunca poderemos eliminar completamente os efeitos passivos. Somos essencialmente uma parte da natureza, e nunca podemos nos remover completamente das séries causais que nos ligam às coisas externas. Porém, em última análise, podemos neutralizar as paixões, controlá-las e conseguir um certo grau de alívio de sua turbulência.

O caminho para conter e moderar os efeitos é através da virtude. Espinosa é um egoísta psicológico e ético. Todos os seres buscam naturalmente sua própria vantagem — preservar seu próprio ser e aumentar seu poder — e é justo que o façam. É nisso que consiste a virtude. Como somos seres pensantes, dotados de inteligência e razão, o que é de maior vantagem para nós é o conhecimento. Nossa virtude, portanto, consiste na busca do conhecimento e da compreensão, de ideias adequadas. O melhor tipo de conhecimento é uma intuição puramente intelectual das essências das coisas. Esse “terceiro tipo de conhecimento” — além da experiência aleatória e do raciocínio — vê as coisas não em sua dimensão temporal, não em sua existência duracional e em relação a outras coisas particulares, mas sob o aspecto da eternidade (sub specie aeternitatis), ou seja, abstraídas de todas as considerações de tempo e lugar e situadas em seu relacionamento com Deus e seus atributos. Elas são apreendidas, portanto, em sua relação conceitual e causal com as essências universais (pensamento e extensão) e com as leis eternas da natureza.

Concebemos as coisas como reais de duas maneiras: ou na medida em que as concebemos como existindo em relação a um determinado tempo e lugar, ou na medida em que as concebemos como estando contidas em Deus e seguindo a necessidade da natureza divina. Todavia, as coisas que concebemos desta segunda maneira como verdadeiras, ou reais, concebemos sob uma espécie de eternidade, e nessa medida elas envolvem a essência eterna e infinita de Deus. (Vp29s)

Contudo, isso serve apenas para dizer que, em última instância, nós nos esforçamos por um conhecimento de Deus. O conceito de qualquer corpo envolve o conceito de extensão; e o conceito de qualquer ideia ou mente envolve o conceito de pensamento. Mas o pensamento e a extensão são apenas atributos de Deus. Portanto, a concepção apropriada e adequada de qualquer corpo ou mente envolve necessariamente o conceito ou conhecimento de Deus. “O terceiro tipo de conhecimento procede de uma ideia adequada de certos atributos de Deus para um conhecimento adequado da essência das coisas, e quanto mais entendemos as coisas dessa forma, mais entendemos Deus” (Vp25d). O conhecimento de Deus é, portanto, o maior bem da mente e sua maior virtude.

O que vemos quando entendemos as coisas através do terceiro tipo de conhecimento, sob o aspecto da eternidade e em relação a Deus, é a necessidade determinista de todas as coisas. Vemos que todos os corpos e seus estados seguem necessariamente da essência da matéria e das leis universais da física; e vemos que todas as ideias, incluindo todas as propriedades das mentes, seguem necessariamente da essência do pensamento e de suas leis universais. Essa percepção só pode enfraquecer o poder que as paixões têm sobre nós. Não temos mais esperança ou medo do que acontecerá, e não ficamos mais ansiosos ou desanimados com nossas posses. Consideramos todas as coisas com equanimidade, e não somos afetados de maneira desordenada e irracional por eventos passados, presentes ou futuros. O resultado é um autocontrole e uma calma mental.

Quanto mais este conhecimento de que as coisas são necessárias diz respeito a coisas singulares, que imaginamos mais distinta e vividamente, maior é o poder da Mente sobre os afectos, como a própria experiência também testemunha. Pois vemos que a tristeza sobre algum bem que pereceu diminui assim que o homem que o perdeu percebe que esse bem não poderia, de forma alguma, ter sido mantido. Da mesma forma, [porque consideramos a infância como uma coisa natural e necessária,] vemos que ninguém tem pena dos bebês por causa de sua incapacidade de falar, de andar, de raciocinar, ou porque vivem tantos anos, por assim dizer, inconscientes de si mesmos. (Vp6s)

Nossos afectos, ou as nossas próprias emoções podem ser compreendidos dessa maneira, o que diminui ainda mais o seu poder sobre nós.

A teoria ética de Espinosa é, em certa medida, estóica e lembra as doutrinas de pensadores como Cícero e Sêneca:

Não temos um poder absoluto para adaptar as coisas fora de nós ao nosso uso. No entanto, suportaremos calmamente as coisas que nos acontecem e que são contrárias ao que o princípio de nossa vantagem exige, se estivermos conscientes de que cumprimos nosso dever, de que o poder que temos não poderia ter se estendido ao ponto de evitar essas coisas, e que somos parte de toda a natureza, cuja ordem nós seguimos. Se entendermos isso de forma clara e distinta, aquela parte de nós que é definida pela compreensão, ou seja, a melhor parte de nós, ficará inteiramente satisfeita com isso, e se esforçará para perseverar nessa satisfação. Pois, até onde entendemos, não podemos desejar nada, exceto o que é necessário, nem ficar absolutamente satisfeitos com nada, exceto com o que é verdade. (IV, Anexo)

O que, no final, substitui o amor apaixonado pelos “bens” efêmeros é um amor intelectual por um bem eterno e imutável que podemos possuir plenamente e de forma estável, Deus. O terceiro tipo de conhecimento gera um amor por seu objeto, e dentro desse amor não reside uma alegria apaixonada, mas uma alegria ativa e até mesmo a própria bem-aventurança. Partindo da visão de Maimônides sobre a eudaimonia humana, Espinosa argumenta que o amor intelectual da mente por Deus é nossa compreensão do universo, nossa virtude, nossa felicidade, nosso bem-estar e nossa “salvação”. É também nossa liberdade e autonomia, à medida que nos aproximamos da convicção de que aquilo que nos acontece decorre somente de nossa natureza (como um modo determinante e determinado de um dos atributos de Deus) e não como o resultado das formas como as coisas externas nos afetam. A “pessoa livre”, para Espinosa, é aquela que suporta os dons e perdas da fortuna com equanimidade e faz apenas aquelas coisas que acredita ser “as mais importantes da vida”. Ela também, apesar do egoísmo fundamental, se envolve em um comportamento para com os outros que é tipicamente considerado “ético”, e até mesmo altruísta. Ela preocupa-se com o bem-estar e o florescimento virtuoso de outros seres humanos. Ela faz o que pode através da benevolência racional (em oposição à piedade ou alguma outra paixão) para assegurar que eles também alcancem alívio dos distúrbios das paixões através da compreensão, e assim se tornem mais parecidos com ela (e, portanto, mais úteis para ela). Ela o faz não por motivos altruístas, mas egoístas: ela vê que é do seu próprio interesse estar em comunhão com outros indivíduos racionalmente virtuosos. Além disso, a pessoa livre não está ansiosa pela morte. A pessoa livre não espera por nenhuma recompensa eterna, de outro mundo, nem teme nenhum castigo eterno. Ela sabe que a alma não é imortal em nenhum sentido pessoal, mas que é dotada apenas de um certo tipo de eternidade. Quanto mais a mente é constituída de ideias verdadeiras e adequadas (que são eternas), mais ela permanece — dentro do atributo de pensamento de Deus — após a morte do corpo e o desaparecimento da parte da mente que corresponde à duração do corpo. Essa compreensão de seu lugar no esquema natural das coisas traz para o indivíduo livre uma verdadeira paz da mente, e até mesmo a salvação.

Há uma série de ramificações sociais e políticas que decorrem das doutrinas éticas de ação e bem-estar humano de Espinosa. Como a discórdia e o desentendimento entre os seres humanos é sempre o resultado de nossas paixões diferentes e mutáveis, indivíduos “livres” — que compartilham a mesma natureza e agem sobre os mesmos princípios — formarão naturalmente e sem esforço uma sociedade harmoniosa. “Na medida em que os homens são dilacerados por afectos que são paixões, eles podem ser contrários uns aos outros …[Mas] na medida em que os homens vivem de acordo com a orientação da razão, eles devem fazer somente aquelas coisas que são boas para a natureza humana e, portanto, para cada homem, ou seja, aquelas coisas que concordam com a natureza de cada homem. Portanto, na medida em que os homens vivem de acordo com a orientação da razão, eles devem sempre concordar entre si” (IVp34-35). Os seres humanos livres serão mutuamente benéficos e úteis, e serão tolerantes com as opiniões e até mesmo com os erros dos outros. Entretanto, os seres humanos geralmente não vivem sob a orientação da razão. O Estado ou soberano, portanto, é necessário para assegurar — não pela razão, mas pela ameaça da força — que os indivíduos sejam protegidos da busca desenfreada do interesse próprio por parte de outros indivíduos. A transição de um estado natural, onde cada um busca sua própria vantagem sem limitações, para um estado civil envolve a renúncia universal a certos direitos naturais — tais como “o direito que todos têm de vingar-se, e de julgar o bem e o mal” — e o investimento dessas prerrogativas em uma autoridade central. Enquanto os seres humanos forem guiados por suas paixões, o Estado é necessário para que eles “vivam harmoniosamente e sejam úteis uns aos outros”.

3. Tratado Teológico-Político

O objetivo ostensivo do Tratado Teológico-Político (TTP), amplamente vilipendiado em seu tempo, é, como seu subtítulo proclama, mostrar que “a liberdade de filosofar não só pode ser concedida sem prejuízo da piedade e da paz da Comunidade, mas que a paz da Comunidade e da Piedade são ameaçadas pela supressão dessa liberdade”. Porém, a intenção final de Espinosa é revelar a verdade sobre a Escritura e a religião e, assim, diminuir o poder político exercido nos estados modernos pelas autoridades religiosas. Ele também defende, pelo menos como um ideal político, a política tolerante, secular e democrática.

3.1 Sobre Religião e as Escrituras

Espinosa começa o TTP alertando seus leitores, por meio de uma espécie de “história natural da religião”, precisamente daquelas crenças e comportamentos supersticiosos que o clero, brincando com as emoções humanas comuns, encoraja em seus seguidores. Uma pessoa guiada pelo medo e pela esperança, as principais emoções de uma vida dedicada à busca de vantagens temporais, volta-se, diante dos caprichos da fortuna, para comportamentos calculados para garantir os bens que deseja. Assim, rezamos, adoramos, fazemos oferendas votivas, sacrificamos e nos envolvemos em todos os vários rituais da religião popular. Entretanto, as emoções são tão passageiras quanto os objetos que as ocasionam e, portanto, as superstições fundamentadas nessas emoções estão sujeitas a flutuações. O clero ambicioso e egoísta faz o seu melhor para estabilizar essa situação e dar alguma permanência a essas crenças e comportamentos. “Esforços imensos têm sido feitos para investir a religião, verdadeira ou falsa, com tanta pompa e cerimônia ao ponto de ela poder suportar qualquer choque e evocar constantemente a mais profunda reverência em todos os seus adoradores” (TTP, Prefácio, G III.6-7/S 2-3). Os líderes religiosos são geralmente incitados em seus propósitos pela autoridade civil, que ameaça punir todos os desvios da ortodoxia teológica como “sedição”. O resultado é uma religião estatal que não tem fundamentos racionais, um mero “respeito pelos eclesiásticos” que envolve adulação e mistérios, mas nenhum verdadeiro culto a Deus.

A solução para essa situação, acredita Espinosa, é examinar de novo a Bíblia e encontrar as doutrinas da “verdadeira religião”. Só então poderemos delimitar exatamente o que precisamos fazer para demonstrar o devido respeito por Deus e obter a bem-aventurança. Isso reduzirá a influência que as autoridades religiosas têm sobre nossa vida emocional, intelectual e física, e restabelecerá uma relação adequada e saudável entre o Estado e a religião. Uma análise cuidadosa da Bíblia é particularmente importante para qualquer argumento que defenda que a liberdade de filosofar — essencialmente, a liberdade de pensamento e de expressão — não é prejudicial à piedade. Se puder ser demonstrado que a Escritura não é uma fonte da “verdade natural”, mas portadora apenas de uma simples mensagem moral (“Ame seu próximo”), então as pessoas verão que “a fé é algo distinto da filosofia”. Espinosa pretende mostrar que nessa mensagem moral — e não nas palavras, origem ou história das Escrituras — está a sacralidade daquilo que de outra forma é meramente um documento humano. A Bíblia ensina apenas “obediência [a Deus]”, não conhecimento. Assim, filosofia e religião, razão e fé, habitam duas esferas distintas e exclusivas, e nenhuma delas deve entrar no domínio da outra. A liberdade de filosofar e de especular pode, portanto, ser concedida sem qualquer dano à verdadeira religião. Na verdade, tal liberdade é essencial para a paz pública e a piedade, uma vez que a maioria dos distúrbios civis surgem de disputas sectárias. O perigo real para uma república provém daqueles que adoram não a Deus, mas a algumas palavras em uma página: “Dir-se-á que, embora a lei de Deus esteja inscrita em nossos corações, a Escritura é no entanto a Palavra de Deus, e não é mais permitido dizer da Escritura que ela está mutilada e contaminada do que dizer isso da Palavra de Deus. Em resposta, devo dizer que tais opositores estão levando sua piedade longe demais e estão transformando a religião em superstição; de fato, ao invés da Palavra de Deus, eles estão começando a adorar semelhanças e imagens, ou seja, papel e tinta” (TTP, cap. 12, G III.159/S 145-6).

A partir de uma leitura adequada e bem informada das Escrituras, uma série de coisas se tornam claras. Primeiro, os profetas não eram homens de excepcionais talentos intelectuais — ou seja, não eram filósofos naturalmente dotados — mas simplesmente indivíduos muito piedosos, até mesmo moralmente superiores, dotados de imaginações vívidas. Eles eram capazes de perceber a revelação de Deus através de suas faculdades imaginativas, por meio de palavras ou figuras reais ou imaginárias. Foi isso que lhes permitiu apreender aquilo que está além dos limites do intelecto. Ademais, o conteúdo de uma profecia variava de acordo com o temperamento físico, poderes imaginativos, e opiniões particulares ou preconceitos do profeta. Segue-se que a profecia, embora tenha suas origens no poder de Deus — e a esse respeito, no esquema metafísico de Espinosa, não é diferente de qualquer outro evento natural —, não proporciona um conhecimento privilegiado dos fenômenos naturais ou espirituais. Os profetas não são necessariamente confiáveis quando se trata de assuntos do intelecto, em questões de filosofia, história ou ciência; e seus pronunciamentos não estabelecem parâmetros sobre o que deve ou não ser acreditado a respeito do mundo natural, com base em nossas faculdades racionais.

Espinosa fornece um relato igualmente deflacionário sobre a eleição de Deus, ou da “vocação”, aos hebreus. É “infantil”, insiste ele, para qualquer um basear sua felicidade na singularidade de seus dons; no caso dos judeus, seria a singularidade de serem escolhidos entre todas as pessoas. Os antigos hebreus, de fato, não superavam outras nações em sua sabedoria ou em sua proximidade com Deus. Eles não eram nem intelectualmente nem moralmente superiores a outros povos. Eles eram “escolhidos” apenas com respeito à sua organização social e boa sorte política. Deus ou a Natureza lhes deu um conjunto de leis (através de um sábio legislador, Moisés), às quais eles obedeceram, e isso enfraqueceu os inimigos ao seu redor. O resultado natural dessa ajuda “interna” e “externa” é que sua sociedade foi bem ordenada e seu governo autônomo persistiu por muito tempo. Sua eleição foi, portanto, temporal e condicional, e seu reino já se foi há muito tempo. Assim, “no momento atual não há nada especial sobre o qual os judeus possam se arrogar acima de outras nações” (TTP, cap. 3, G III.56/S 45). Espinosa rejeita assim o particularismo que muitos — inclusive os rabinos sefarditas de Amsterdã — defendiam no judaísmo. A verdadeira piedade e bem-aventurança são universais em seu escopo e acessíveis a qualquer pessoa, independentemente de seu credo confessional.

Central para a análise da religião judaica por parte de Espinosa — embora ela seja aplicável a qualquer religião — é a distinção entre a lei divina e a lei cerimonial. A lei de Deus impõe apenas o conhecimento, o amor a Deus e as ações necessárias para alcançar essa condição. Tal amor não deve surgir do medo de possíveis penalidades ou da esperança de qualquer recompensa, mas somente da bondade de seu objeto. A lei divina não exige nenhum rito ou cerimônia em particular, como sacrifícios, restrições alimentares ou celebrações festivas. Os seiscentos e treze preceitos da Torá não têm nada a ver com benevolência ou virtude. Eles foram dirigidos apenas aos hebreus para que eles pudessem governar a si próprios em um estado autônomo. As leis cerimoniais ajudaram a preservar seu reino e garantir sua prosperidade, mas foram válidas apenas enquanto essa entidade política durou. Elas não são vinculativas para todos os judeus em todas as circunstâncias. Elas foram, de fato, instituídas por Moisés por uma razão puramente prática: para que as pessoas pudessem cumprir seu dever e não seguir seu próprio caminho. Isso é verdade não apenas sobre os ritos e práticas do judaísmo, mas sobre as cerimônias exteriores de todas as religiões. Nenhuma dessas atividades tem nada a ver com a verdadeira felicidade ou piedade. Elas servem apenas para controlar o comportamento das pessoas e preservar uma sociedade em particular.

Uma função prática semelhante é desempenhada pelas histórias de milagres. A Escritura fala em uma linguagem adequada para afetar a imaginação das pessoas comuns e obrigar sua obediência. Em vez de apelar para as causas naturais e reais de todos os eventos, seus autores às vezes narram as coisas de uma forma calculada para mover as pessoas — especialmente as pessoas pouco instruídas — para a devoção. “Se a Escritura descrevesse a queda de um império no estilo adotado pelos historiadores políticos, o povo comum não seria estimulado…” A rigor, no entanto, os milagres — entendidos como divinamente provocados por desvios do curso normal da natureza — são impossíveis. Cada evento, por mais extraordinário que seja, tem uma causa e explicação natural. “Nada acontece na natureza que não siga suas leis” (TTP, cap. 6, G III.83/S 73). Isso é simplesmente uma consequência das doutrinas metafísicas de Espinosa. Milagres, como tradicionalmente concebidos, exigem uma distinção entre Deus e a natureza, algo que a filosofia de Espinosa descarta em princípio. Além disso, a ordem da natureza é inviolável, na medida em que a sequência de eventos na natureza é uma consequência necessária dos atributos de Deus. Certamente existem “milagres” na acepção de eventos cujas causas naturais são desconhecidas para nós, e que, por isso, atribuímos aos poderes de um Deus sobrenatural. Todavia, trata-se, mais uma vez, de recuar à superstição, “o inimigo amargo de todo o verdadeiro conhecimento e da verdadeira moral”.

Ao analisar a profecia em termos de vividez da imaginação, de eleição judaica como fortuna política, de lei cerimonial como uma espécie de expediente social e político, e de crença em milagres como uma ignorância das necessárias operações causais da natureza, Espinosa naturaliza (e, consequentemente, desmistifica) alguns dos elementos fundamentais do judaísmo e de outras religiões e mina os fundamentos de seus ritos externos e supersticiosos. Ao mesmo tempo, ele reduz assim a doutrina fundamental da piedade a uma fórmula simples e universal, naturalista em si mesma, envolvendo amor e conhecimento. Esse processo de naturalização atinge seu espantoso clímax quando Espinosa passa a considerar a autoria e a interpretação da Bíblia propriamente dita. Os pontos de vista de Espinosa sobre a Escritura constituem, sem dúvida, as teses mais radicais do Tratado, e explicam a razão pela qual ele foi atacado com tanto vigor por seus contemporâneos. Antes dele, outros sugeriram que Moisés não era o autor do Pentateuco inteiro (por exemplo, Abraham ibn Ezra no século XII e, no século XVII, o filósofo inglês Thomas Hobbes). Porém ninguém levou essa pretensão ao limite extremo do modo que Espinosa levou, argumentando a seu favor com tanta ousadia e extensão. Tampouco houve alguém antes dele disposto a tirar disso as conclusões sobre o status, significado e interpretação da Escritura da maneira que ele tirou.

Espinosa negou que Moisés tivesse escrito tudo, ou mesmo a maior parte da Torá. As referências feitas no Pentateuco a Moisés em terceira pessoa; a narração de sua morte e, particularmente, dos acontecimentos que se seguiram a sua morte; e o fato de que alguns lugares são chamados por nomes que eles não tinham no tempo de Moisés, todos “deixam claro, sem sombra de dúvida”, que os escritos comumente referidos como “os Cinco Livros de Moisés” foram, de fato, escritos por alguém que viveu muitas gerações depois dele. Moisés, com certeza, compôs alguns livros de história e sobre o direito; e os restos desses livros há muito perdidos podem ser encontrados no Pentateuco. Contudo, a Torá, tal como a temos, e também os outros livros da Bíblia hebraica (como Josué, Juízes, Samuel e Reis) não foram escritos nem pelos indivíduos cujos nomes eles trazem, nem por qualquer pessoa que neles apareça. Espinosa acredita que todos eles foram, de fato, compostos por um único historiador que viveu muitas gerações após os acontecimentos narrados, e que este provavelmente fora Ezra, o Escriba. Ele foi o líder pós-Exílio que recolheu os muitos escritos que lhe haviam chegado e começou a tecê-los em uma única narrativa (no entanto, não ininterrupta). O trabalho de Ezra foi posteriormente completado e complementado pelo trabalho editorial de outros. O que possuímos agora, então, nada mais é do que uma compilação, um tanto mal administrada, aleatória e “mutilada”.

Quanto aos livros dos Profetas, eles são de proveniência ainda mais tardia, compilados (ou “amontoados juntos”, na opinião de Espinosa, por um cronista ou escriba talvez no período do Segundo Templo. A canonização da Escritura ocorreu somente no segundo século a.C., quando os fariseus selecionaram uma série de textos dentre uma multidão de outros. Uma vez que o processo de transmissão foi histórico, envolvendo a veiculação de escritos de origem humana durante um longo período de tempo através de numerosos escribas, e porque a decisão de incluir alguns livros em vez de outros foi tomada por seres humanos falíveis, há boas razões para acreditar que uma porção significativa do texto do “Antigo Testamento” é corrupta.

Embora não houvesse, em 1670, nada de novo na afirmação de que Moisés não escreveu toda a Torá, a alegação de Espinosa ao argumentar que isso tem grande significado para a forma como a Escritura deve ser lida e interpretada foi notavelmente inovadora Ele ficou consternado com a forma como a própria Escritura era adorada, com a reverência concedida às palavras da página e não à mensagem que elas transmitiam. Se a Bíblia é um documento histórico (isto é, natural), então ela deve ser tratada como qualquer outra obra da natureza. O estudo da Escritura, ou hermenêutica bíblica, deve, portanto, prosseguir como o estudo da natureza, ou da ciência natural: coletando e avaliando dados empíricos, ou seja, examinando o “livro” em si próprio — juntamente com as condições contextuais de sua composição — por seus princípios gerais.

Eu acredito que o método de interpretação das Escrituras não é diferente do método de interpretação da Natureza, e na verdade está em total concordância com ele. Porque o método de interpretação da Natureza consiste essencialmente em compor um estudo detalhado da Natureza a partir do qual, enquanto fonte de nossas informações confiáveis, podemos deduzir as definições das coisas da Natureza. Agora, exatamente da mesma forma, a tarefa de interpretação das Escrituras exige que façamos um estudo direto da Escritura, e a partir disso, como fonte de nossos dados e princípios estabelecidos, deduzir por inferência lógica o entendimento dos autores da Escritura. Desta forma — ou seja, não permitindo outros princípios ou dados para a interpretação da Escritura nem para o estudo de seu conteúdo, exceto aqueles que só podem ser coletados da própria Escritura e de um estudo histórico da Escritura — pode-se fazer um progresso constante sem qualquer perigo de erro, e pode-se lidar com assuntos que ultrapassam nosso entendimento com não menos confiança do que aqueles que são conhecidos por nós pela luz natural da razão. (TTP, cap. 7, G III.98/S 87).

Assim como o conhecimento da natureza deve ser buscado somente na natureza, também o conhecimento da Escritura — uma apreensão de seu significado pretendido — deve ser buscado somente nas Escrituras e através do exercício apropriado de investigação racional e textual.

Quando interpretada corretamente, a mensagem universal transmitida pela Escritura é uma mensagem moral simples: “Conhecer e amar a Deus, e amar o próximo como a si mesmo”. Essa é a verdadeira palavra de Deus e o fundamento da verdadeira piedade, e ela se encontra incorrupta em um texto defeituoso, adulterado e corrupto. A lição não envolve doutrinas metafísicas sobre Deus ou a natureza, e não requer nenhum treinamento sofisticado em filosofia. Em contraste com o relato de Maimônides, Espinosa insiste que o objetivo da Escritura não é transmitir verdade ou conhecimento, mas obrigar a obediência e regular nossa conduta. “A doutrina bíblica não contém especulação abstrata ou raciocínio filosófico, mas assuntos muito simples, capazes de serem compreendidos pela mente mais preguiçosa” (TTP, cap. 13, G III.167/S 153). Na medida (e somente na medida) em que a Escritura é bem sucedida em edificar moralmente seus leitores e inspirá-los a obedecer a palavra de Deus e tratar os outros com justiça e caridade, ela é “divina”. Espinosa afirma, de fato, que a familiaridade com a Escritura não é sequer necessária para a piedade e a bem-aventurança, pois sua mensagem pode ser conhecida apenas por nossas faculdades racionais, embora com grande dificuldade para a maioria das pessoas. “Aquele que, embora não familiarizado com esses escritos, sabe, à luz natural, que existe um Deus com os atributos que relatamos, e que também persegue um modo de vida verdadeiro, é totalmente abençoado”.

Segue-se, portanto, que os únicos mandamentos práticos que pertencem apropriadamente à religião são aqueles que são necessários para cumprir o preceito moral e “confirmar em nossos corações o amor ao próximo”. “Uma fé católica deve portanto conter somente aqueles dogmas que a obediência a Deus exige absolutamente, e sem os quais tal obediência é absolutamente impossível… todos eles devem ser dirigidos a este único fim: que há um Ser Supremo que ama a justiça e a caridade, a quem todos devem obedecer para serem salvos, e devem adorar praticando a justiça e a caridade ao próximo” (TTP, cap. 14, G III.177/S 161-2). Quanto a outros dogmas, “cada um deve abraçar aqueles que ele, sendo o melhor juiz de si mesmo, sente que mais fará para fortalecer em si o amor à justiça”.

Esse é o coração do argumento de Espinosa a favor da tolerância, da liberdade de filosofar e da liberdade de expressão religiosa. Ao reduzir a mensagem central da Escritura — e o conteúdo essencial da piedade — a uma simples máxima moral, livre de quaisquer doutrinas supérfluas especulativas ou práticas cerimoniais; e ao libertar a Escritura do fardo de ter que comunicar verdades filosóficas específicas ou de prescrever (ou proibir) uma infinidade de comportamentos requeridos, ele demonstrou que a filosofia é independente da religião e que a liberdade de cada indivíduo de interpretar a religião como desejar pode ser mantida sem qualquer prejuízo à piedade.

Quanto à questão do que Deus — o exemplo da verdadeira vida — realmente é, se ele é fogo, ou espírito, ou luz, ou pensamento, ou algo mais, ela é irrelevante para a fé. E assim também é a questão quanto ao porquê ele é o exemplo da verdadeira vida, seja porque ele tem uma disposição justa e misericordiosa, ou porque todas as coisas existem e agem através dele e, consequentemente, nós também compreendemos através dele, e através dele vemos o que é verdadeiro, justo e bom. Sobre tais questões, não importa quais crenças um homem tem. Nem tampouco importa se alguém acredita que Deus é onipresente em essência ou em potência, se ele dirige tudo a partir do livre arbítrio ou da necessidade de sua natureza, se ele estabelece leis como regra ou as ensina como sendo verdades eternas, se o homem obedece a Deus a partir do livre arbítrio ou da necessidade do decreto divino, se a recompensa do bem e a punição do ímpio é natural ou sobrenatural. O ponto de vista que se assume sobre essas e outras questões similares não tem relação com a fé, desde que tal crença não leve à assunção de uma licença maior para pecar, ou impeça a submissão a Deus. De fato… cada pessoa está no dever de adaptar tais dogmas religiosos à sua própria compreensão e de interpretá-los para si de qualquer forma que o faça sentir que pode aceitá-los mais prontamente com total confiança e convicção. (TTP, cap. 14, G III.164/S 162-3)

Fé e piedade não pertencem à pessoa que tem o argumento mais racional para a existência de Deus ou o entendimento filosófico mais profundo de seus atributos, mas à pessoa “que melhor exibe obras de justiça e caridade”.

3.2 O Estado

O conceito de religião de Espinosa tem claras ramificações políticas. Sempre houve uma agenda quase política por trás de sua decisão de escrever o TTP, uma vez que seu ataque foi dirigido à ingerência política por parte das autoridades religiosas. Porém, ele também aproveitou a oportunidade para fazer uma apresentação mais detalhada e minuciosa de uma teoria geral do estado que está apenas esboçadamente presente na Ética. Tal exame da verdadeira natureza da sociedade política é particularmente importante para seu argumento a favor da liberdade intelectual e religiosa, pois ele deve demonstrar que tal liberdade não só é compatível com o bem-estar político, mas que é essencial para tal.

O egoísmo individual de Ética coloca-se num contexto pré-político — o chamado “estado de natureza”, uma condição universal onde não há lei ou religião ou justiça e injustiça — como o direito de cada indivíduo de fazer o que puder para se preservar. “Seja o que for que cada pessoa — sempre que for considerada unicamente sob o domínio da Natureza — acredite ser a seu favor, seja sob a orientação da boa razão ou sob o domínio da paixão, pode, por direito natural soberano, buscar e obter para si por qualquer meio, pela força, engano, súplica ou de qualquer outra forma que melhor possa, e pode, consequentemente, considerar como seu inimigo qualquer pessoa que tente impedi-la de obter o que deseja” (TTP, cap. 16, G III.190/S 174). Naturalmente, essa é uma condição bastante insegura e perigosa sob a qual se vive. Na célebre frase de Hobbes — e Espinosa foi claramente influenciado pela leitura daquele pensador britânico — a vida no estado de natureza é “solitária, pobre, desagradável, brutal e curta”. Como criaturas racionais, logo percebemos que estaríamos melhor, ainda que de uma perspectiva completamente egoísta, se chegássemos a um acordo entre nós para refrear nossos desejos opostos e a busca desenfreada do interesse próprio — em suma, que seria de maior interesse para nós vivermos sob a lei da razão e não sob a lei da natureza. Assim, concordamos em entregar a um soberano nosso direito natural e nosso poder de fazer o que pudermos para satisfazer nossos interesses. Esse soberano — seja ele um indivíduo (caso em que o estado resultante é uma monarquia), um pequeno grupo de indivíduos (uma oligarquia) ou o corpo-político como um todo (uma democracia) — será absoluto e irrestrito no alcance de seus poderes. Será encarregado de manter todos os membros da sociedade conforme o acordo, principalmente jogando com seu medo das consequências da quebra do “contrato social”.

A obediência ao soberano não infringe nossa autonomia, pois ao seguir os comandos do soberano estamos seguindo uma autoridade que autorizamos livremente e cujos comandos não têm outro objetivo que não seja nosso próprio e racional interesse próprio. O tipo de governo que mais provavelmente respeitará e preservará essa autonomia, que emitirá leis baseadas em uma boa razão e servirá aos fins para os quais o governo é instituído é a democracia. Ela é a forma “mais natural” de governo decorrente de um contrato social — desde que, em uma democracia, o povo obedeça apenas às leis que emanam da vontade geral do órgão político — e ela é a menos sujeita aos vários abusos de poder. Em uma democracia, a racionalidade dos comandos do soberano está praticamente assegurada, já que é improvável que a maioria de um grande número de pessoas concorde com um projeto irracional. A monarquia, por outro lado, é a forma menos estável de governo e a que mais provavelmente degenera em tirania.

Uma vez que as práticas religiosas externas se sobrepõem ao comportamento e às relações dos cidadãos, elas se enquadram nos “negócios do Estado” e, portanto, dentro da esfera de poder do soberano. O soberano deve ter domínio completo em todos os assuntos públicos seculares e espirituais. Não deve haver nenhuma igreja separada da religião instituída e regulamentada pelo Estado. Isso evitará o sectarismo e a multiplicação de disputas religiosas. Todas as questões relativas aos ritos e cerimônias religiosas externas devem estar sob a alçada do soberano. Isso é do melhor interesse de todos, já que a vontade soberana, idealmente e em conformidade com seu dever “contratual”, assegura que tais práticas estejam de acordo com a paz e segurança públicas e com o bem-estar social. O soberano deve governar de tal modo que suas ordens façam cumprir a lei de Deus. A justiça e a caridade adquirem assim a força do direito civil, apoiada pelo poder do soberano. (Por essa razão, é enganoso proclamar Espinosa como um defensor da separação da igreja e do Estado).

Por outro lado, o domínio sobre o “culto interior a Deus” e sobre as crenças que o acompanham — em outras palavras, a piedade interior — pertence exclusivamente ao indivíduo. Trata-se de um direito inalienável, privado, e não pode ser legislado, nem mesmo pelo soberano. Ninguém pode limitar ou controlar os pensamentos de outra pessoa de qualquer modo, e seria imprudente e destrutivo para a política que um soberano tentasse fazer isso. Nem a fala pode ser controlada verdadeira e efetivamente, já que as pessoas sempre dirão o que querem, pelo menos em particular. “Cada um é, por direito natural e absoluto, o mestre de seus próprios pensamentos, e assim o fracasso total acompanhará qualquer tentativa em uma comunidade de forçar os homens a falar apenas de acordo com o prescrito pelo soberano, apesar de suas opiniões diferentes e opostas” (TTP, cap. 20, G III.240/S 223). Deve haver, de acordo com Espinosa, alguns limites para a fala e o ensino. O discurso sedicioso, que incentiva os indivíduos a anularem o contrato social, não deve ser tolerado. No entanto, o melhor governo estará erroneamente do lado da leniência e permitirá a liberdade da especulação filosófica e a liberdade de crença religiosa. Certas “inconveniências” resultarão algumas vezes, sem dúvida, de uma liberdade muito ampla. Mas a tentativa de regular tudo por lei é “mais suscetível de despertar vícios do que de reformá-los”. Em uma passagem que prefigura a defesa utilitária da liberdade de John Stuart Mill quase dois séculos depois, Espinosa acrescenta que “essa liberdade é primordial na promoção das ciências e das artes, pois somente aqueles cujo julgamento é livre e imparcial podem alcançar o sucesso nesses campos” (TTP, cap. 20, G III.243/S 226).

É difícil imaginar uma defesa mais apaixonada e racional da liberdade e da tolerância do que aquela oferecida por Espinosa.

Bibliografia

Obras de Espinosa

Spinoza Opera, edited by Carl Gebhardt, 5 volumes (Heidelberg: Carl Winters, 1925, 1972 [volume 5, 1987]). Abbreviated in SEP entry as G. Note: A new critical edition of Spinoza’s writings is now being prepared by the Groupe de recherches spinoziste; this will eventually replace Gebhardt. As of July 2012, three volumes have appeared: Tractatus Theologico-Politicus, Tractatus Politicus, and Premiers écrits, all published by Presses Universitaires de France.
Spinoza, Benedictus, The Collected Writings of Spinoza, 2 vols., Edwin Curley, translator (Princeton: Princeton University Press, vol. 1: 1985; vol. 2: 2016). The Ethics is in vol. 1; the Theological Political Treatise is in vol. 2.
Spinoza, Theological-Political Treatise, Samuel Shirley, translator, second edition (Indianapolis: Hackett Publishing, 2001). Abbreviated in SEP entry as S.
Spinoza, The Letters, Samuel Shirley, translator (Indianapolis: Hackett Publishing, 1995).

Recomendação de Literatura Secundária em Inglês

Note: There is an enormous body of literature on Spinoza in many languages, especially French, Italian, Dutch and German. This is a highly selective list of books in English that are especially helpful for the study of Spinoza’s philosophy in general, as well as for learning more about particular dimensions of his thought. There is also the irregularly published series Studia Spinozana, each volume of which contains essays by scholars devoted to a particular theme.
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Other Internet Resources

  • Necessarily Eternal: A Catablog of (All) Things Spinoza
  • Spinoza Bibliografie (in German), an online bibliography at the Spinoza Gesellschaft e.V..
  • Spinoza Ethica Help-Web, created and maintained by Bert Hamminga.

Descartes, René | emotion: 17th and 18th century theories of | Leibniz, Gottfried Wilhelm | Spinoza, Baruch: modal metaphysics | Spinoza, Baruch: physical theory | Spinoza, Baruch: political philosophy | Spinoza, Baruch: psychological theory | Spinoza, Baruch: theory of attributes

Este artigo foi publicado originalmente no site Plato Stanford: https://plato.stanford.edu/entries/spinoza/

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Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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