A Matemática como Elemento na História do Pensamento — Alfred North Whitehead

A Matemática como Elemento na História do Pensamento foi originalmente proferido como uma palestra perante a Sociedade Matemática da Universidade Brown, Providence, R. I. Extraído de Ciência e Mundo Moderno.

A ciência da Matemática Pura, em seus modernos desenvolvimentos, pode se afirmar como a mais original criação do espírito humano. Outro reivindicador para essa posição é a música. No entanto, deixaremos de lado todos os concorrentes e consideraremos a base sobre a qual tal reivindicação pode ser feita em relação à matemática. A originalidade da matemática consiste no fato de que, nas ciências matemáticas, são exibidas certas conexões entre as coisas que, exceto pela ação da razão humana, são extremamente pouco óbvias. Assim, as idéias que agora estão na mente dos matemáticos contemporâneos estão muito distantes de quaisquer noções que possam ser imediatamente derivadas pela percepção que se dá através dos sentidos; a menos que, de fato, seja a tal  percepção estimulada e guiada por conhecimentos matemáticos que lhe são anteriores. Essa é a tese que eu passo a exemplificar.

Suponhamos e projetemos nossa imaginação retrospectivamente em muitos milhares de anos, e nos esforcemos para compreender a simplicidade de pensamento, inclusive, dos maiores intelectos dessas sociedades primitivas. Idéias abstratas, que para nós são imediatamente óbvias, devem ter sido, para eles, assuntos da mais escassa apreensão. Por exemplo, considere a questão do número. Pensamos que o número ‘cinco’ se aplica a grupos apropriados de quaisquer entidades — a cinco peixes, cinco crianças, cinco maçãs, cinco dias. Assim, ao considerar as relações do número ‘cinco’ com o número ‘três’, estamos pensando em dois grupos de coisas, um com cinco membros e o outro com três membros. Porém, nós estamos abstraindo totalmente de qualquer consideração de qualquer entidade em particular, ou mesmo de qualquer tipo de entidade em particular que venha a compor a associação de qualquer um dos dois grupos. Estamos apenas pensando nas relações entre esses dois grupos que são totalmente independentes das essências individuais de qualquer um dos membros de qualquer um dos grupos. Trata-se de um feito de abstração muito notável; e a raça humana deve ter levado séculos para ascender a ele. Durante um longo período, grupos de peixes teriam sido comparados entre si em relação à sua multiplicidade, e grupos de dias entre si. Contudo, o primeiro homem que notou a analogia entre um grupo de sete peixes e um grupo de sete dias realizou um avanço notável na história do pensamento. Ele foi o primeiro homem que entreteve um conceito pertencente à ciência da matemática pura. Naquele momento, adivinhar a complexidade e a sutileza das idéias matemáticas abstratas que estavam à espera de serem descobertas deve ter sido algo impossível para ele. Tampouco ele poderia ter adivinhado que essas noções iriam exercer um fascínio generalizado em cada geração seguinte. Há uma tradição literária equivocada que representa o amor à matemática como sendo uma monomania limitada a uns poucos excêntricos em cada geração. Todavia, seja como for, teria sido impossível prever o prazer derivado de um tipo de pensamento abstrato que não tinha contrapartida na sociedade então existente. Em terceiro lugar, o tremendo efeito futuro do conhecimento matemático sobre a vida dos homens, em suas ocupações diárias, em seus pensamentos habituais e na organização da sociedade deve ter ficado totalmente oculto da antevisão desses primeiros pensadores. Mesmo atualmente existe uma compreensão muito vacilante da verdadeira posição da matemática como um elemento da história do pensamento. Não chegarei ao ponto de afirmar que construir uma história do pensamento sem um estudo profundo das idéias matemáticas das sucessivas épocas é semelhante a omitir Hamlet da peça que leva o seu nome. Isso seria reivindicar demais. No entanto, tal caso é certamente análogo a cortar a parte de Ofélia. Essa símile é singularmente exata. Porque Ofélia é bastante essencial para a peça, ela é muito charmosa, — e um pouco louca. Reconheçamos que a busca da matemática é uma divina loucura do espírito humano, um refúgio da incontrolável urgência dos acontecimentos contingentes.

Quando pensamos em matemática trazemos à nossa mente uma ciência dedicada à exploração do número, da quantidade, da geometria e, nos tempos modernos, que inclui também a investigação de conceitos ainda mais abstratos de ordem e de tipos análogos de relações puramente lógicas. A questão da matemática é que, nela, sempre eliminamos o exemplo particular, e até mesmo qualquer tipo de entidade em particular. De modo que, por exemplo, nenhuma verdade matemática se aplica apenas aos peixes, apenas às pedras ou apenas às cores. Enquanto você estiver lidando com a matemática pura, você estará no reino da abstração completa e absoluta. Tudo o que você alega é que a razão insiste na admissão de que, se quaisquer entidades que possuam uma relação que satisfaça tais-e-tais condições puramente abstratas, então elas devem ter outras relações que satisfaçam a outras condições puramente abstratas.

A matemática se move na esfera da abstração completa de qualquer caso particular daquilo que ela aborda. Até agora, essa perspectiva da matemática não é óbvia, e podemos facilmente assegurar que ela não é facilmente compreensível, mesmo nos dias de hoje. Por exemplo, pensa-se habitualmente que a certeza da matemática é uma razão para a certeza de nosso conhecimento geométrico do espaço do universo físico. Essa é uma ilusão que viciou grande parte da filosofia no passado, e alguma filosofia no presente. Essa questão da geometria é um caso exemplar de alguma urgência. Existem certas séries alternativas de conjuntos de condições possíveis e puramente abstratas para que haja uma relação de grupos de entidades não-especificadas, que eu chamarei de condições geométricas. Dou-lhes esse nome devido a sua analogia geral com essas condições, que acreditamos preservar respeitando as relações geométricas particulares das coisas observadas por nós em nossa percepção direta da natureza. No que diz respeito às nossas observações, não somos suficientemente precisos para termos certeza das condições exatas que regulam as coisas com as quais nos deparamos na natureza. Mas podemos, através de uma pequena margem de hipótese, identificar essas condições observadas com algum conjunto de condições geométricas puramente abstratas. Ao fazer isso, determinamos de forma particular o grupo de entidades não-especificadas, que são os relata presentes na ciência abstrata. Na matemática pura das relações geométricas, dizemos que, se qualquer entidade de um grupo desfruta de alguma relação entre seus membros satisfazendo esse conjunto de condições geométricas abstratas, então tais condições abstratas adicionais também devem se manter para tais relações. Porém, quando chegamos ao espaço físico, dizemos que alguns grupos definitivamente observados de entidades físicas desfrutam de algumas relações definitivamente observadas entre seus membros que satisfazem esse conjunto de condições geométricas abstratas acima mencionadas. Daí, deduzimos que as relações adicionais que decidimos manter em tal caso devem, portanto, ser mantidas nesse caso particular.

A certeza da matemática depende de sua completa generalidade abstrata. No entanto, não podemos ter uma certeza a priori de que estamos certos ao acreditar que as entidades observadas no universo concreto formam um exemplo particular daquilo que se enquadra em nosso raciocínio geral. Vejamos outro caso, extraído da aritmética. É uma verdade abstrata geral da matemática pura que qualquer grupo de quarenta entidades pode ser subdividido em dois grupos de vinte entidades. Justifica-se, portanto, concluir que um grupo particular de maçãs que acreditamos conter quarenta membros pode ser subdividido em dois grupos de maçãs onde cada um contém vinte membros. Contudo, existe sempre a possibilidade de termos contado mal o grupo grande; de modo que, quando passarmos à prática de subdividi-lo, descobrimos que um dos dois montes tem uma maçã a menos ou uma maçã a mais.

Assim, ao criticar um argumento baseado na aplicação da matemática a questões particulares de fato, há sempre três processos a serem considerados perfeitamente distintos em nossas mentes. Devemos primeiro analisar o raciocínio puramente matemático para ter certeza de que não há meros deslizes — que não há ilogismos casuais devido a falhas mentais. Qualquer matemático sabe por experiência amarga que, ao primeiro elaborar um raciocínio, é muito fácil cometer um pequeno erro que, apesar de tudo, faz toda a diferença. Porém, quando uma parte da matemática foi revisada, e esteve diante dos especialistas durante algum tempo, a chance de um erro casual é quase insignificante. O processo seguinte é certificar-se de que todas as condições abstratas que foram pressupostas se sustentam. Essa é a determinação das premissas abstratas das quais procede o raciocínio matemático. Trata-se de uma questão de considerável dificuldade. No passado, notáveis excessos foram cometidos, e eles foram aceitos durante as gerações dos maiores matemáticos. O principal perigo é o do descuido, a saber, introduzir tacitamente alguma condição, que para nós é natural supor, mas que, de fato, nem sempre precisa ser sustentada. Há outro descuido oposto a esse ponto que não leva ao erro, mas apenas à falta de simplificação. É muito fácil pensar que são necessárias mais condições postuladas do que de fato é o caso. Em outras palavras, podemos pensar que algum postulado abstrato é necessário, o que, de fato, é capaz de ser provado a partir dos outros postulados que já temos em mãos. Os únicos efeitos desse excesso de postulados abstratos são a diminuição de nosso prazer estético no raciocínio matemático, e o fato de nos dar mais problemas quando chegamos ao terceiro processo da crítica.

O terceiro processo de crítica é o de verificar se nossos postulados abstratos são válidos para o caso específico em questão. É em relação a tal processo de verificação para o caso em questão que todos os problemas surgem. Em alguns casos simples, tais como a contagem de quarenta maçãs, podemos com um pouco de cuidado chegar à certeza prática. Todavia, em geral, com exemplos mais complexos, a certeza completa é inalcançável. Sobre esse assunto foram escritos volumes e bibliotecas. Ele é o campo de batalha de filósofos rivais. Há duas questões distintas envolvidas. Há coisas particulares e definidas observadas, e temos que nos certificar de que as relações entre essas coisas realmente obedeçam a certas condições abstratas exatas e definidas. Há aqui uma grande margem para erros. Os métodos exatos de observação da ciência são todos artifícios para limitar essas conclusões errôneas em relação a questões objetivas dos fatos. Mas surge outra questão. As coisas observadas diretamente são, quase sempre, apenas amostras. Queremos concluir que as condições abstratas, que se aplicam às amostras, também se aplicam a todas as outras entidades que, por alguma razão ou outra, nos parecem ser do mesmo tipo. Esse processo de raciocínio desde a amostra até a espécie inteira é a Indução. A teoria da Indução constitui o desespero da filosofia — e, no entanto, todas as nossas atividades baseiam-se nela. De qualquer modo, ao criticar uma conclusão matemática sobre um determinado assunto de fato, as dificuldades reais consistem em descobrir as suposições abstratas envolvidas, e em estimar as evidências de sua aplicabilidade ao caso particular em questão. 

Acontece, portanto, com frequência, que, ao criticar um livro de matemática aplicada — ou um livro de memórias — todo o problema de uma pessoa é com o primeiro capítulo, ou até mesmo com sua primeira página. Pois é aí, logo no início, que o autor provavelmente será encontrado a deslizar em suas suposições. Além disso, o problema não é o que o autor diz, mas sim o que ele não diz. Também não é o que ele sabe que assumiu, mas o que ele inconscientemente assumiu. Não duvidamos da honestidade do autor. É a sua perspicácia que estamos criticando. Cada geração critica as suposições inconscientes feitas por seus pais. Ela até pode concordar com elas, mas as traz à tona.

A história do desenvolvimento da linguagem ilustra esse ponto. Ela é a história da análise progressiva das idéias. O latim e o grego eram línguas flexionais. Isso significa que eles expressam um complexo de idéias não analisadas através da mera modificação de uma palavra; enquanto que o inglês, por exemplo, usa preposições e verbos auxiliares para trazer à tona todo o conjunto de idéias envolvidas. Para certas formas de arte literária, — embora nem sempre — a absorção compacta de idéias auxiliares na palavra principal pode ser uma vantagem. Porém, em um idioma como o inglês, há um ganho esmagador na explicitação. Esse aumento da explicitação é uma exposição mais completa das várias abstrações envolvidas na idéia complexa que é o significado da frase.

Em comparação com a linguagem, podemos agora ver qual é a função em pensamento que é desempenhada pela matemática pura. É uma tentativa resoluta de ir até o fim na direção de uma análise completa, de modo a separar os elementos da mera questão de fato das condições puramente abstratas que eles exemplificam.

O hábito de tal análise esclarece cada ato do funcionamento da mente humana. Primeiro (isolando-o) enfatiza a apreciação estética direta do conteúdo da experiência. Essa apreciação direta significa uma apreensão do que tal experiência é em si mesma, em sua própria essência particular, incluindo seus valores concretos imediatos. Trata-se de uma questão de experiência direta, dependente da sutileza sensível. Há então a abstração das entidades particulares envolvidas, vistas em si mesmas, e separadamente daquela ocasião particular de experiência na qual estamos então as apreendendo. Finalmente, há a apreensão adicional das condições absolutamente gerais satisfeitas pelas relações particulares dessas entidades, tal como naquela experiência. Essas condições ganham sua generalidade pelo fato de serem expressíveis sem referência a tais relações particulares ou àqueles relata particulares que ocorrem naquela ocasião particular de experiência. São condições que podem ser válidas para uma variedade indefinida de outras ocasiões, envolvendo outras entidades e outras relações entre elas. Assim, essas condições são perfeitamente gerais porque não se referem a nenhuma ocasião em particular e a nenhuma entidade em particular (como o verde, ou azul, ou as árvores) que participam de uma variedade de ocasiões, e a nenhuma relação particular entre tais entidades.

Há, no entanto, uma limitação a ser estabelecida à generalidade da matemática; ela é uma qualificação que se aplica igualmente a todas as afirmações gerais. Nenhuma afirmação, exceto uma, pode ser feita a respeito de qualquer ocasião remota que não se relacione com a ocasião imediata, de modo a formar um elemento constitutivo da essência dessa ocasião imediata. Por “ocasião imediata” quero dizer aquela ocasião que envolve como ingrediente o ato individual de julgamento em questão. A única afirmação excetuada é: — Se algo está fora de relação, então é completa a ignorância quanto a isso. Aqui por “ignorância”, quero mesmo dizer ignorância; consequentemente, nenhum conselho pode ser dado sobre como esperá-la, ou tratá-la, na “prática” ou de qualquer outra forma. Ou sabemos algo da ocasião remota pela cognição, que é em si um elemento da ocasião imediata, ou não sabemos nada. Assim, o universo completo, revelado para cada variedade de experiências, é um universo no qual cada detalhe entra em sua devida relação com a ocasião imediata. A generalidade da matemática é a mais completa generalidade consistente com a comunidade de ocasiões que constitui nossa situação metafísica.

É ainda de se notar que as entidades particulares exigem essas condições gerais para seu ingresso em qualquer ocasião; mas as mesmas condições gerais podem ser exigidas por muitos tipos de entidades particulares. Tal fato, de que as condições gerais transcendem qualquer conjunto de entidades particulares, é a base para a entrada na matemática, e na lógica matemática, da noção de “variável”. É através do emprego dessa noção que as condições gerais são investigadas sem qualquer especificação de entidades particulares. Essa irrelevância das entidades particulares não foi geralmente compreendida: por exemplo, a formalidade das formas, isto é, a circularidade, a esfericidade e a cubicidade, tal como na experiência real, não entram no raciocínio geométrico.

O exercício da razão lógica está sempre preocupado com essas condições absolutamente gerais. Em seu sentido mais amplo, a descoberta da matemática é a descoberta de que a totalidade de tais condições gerais abstratas, que são concomitantemente aplicáveis às relações entre as entidades de qualquer ocasião concreta, estão elas próprias interligadas à maneira de um padrão com uma chave para ele. Esse padrão de relações entre as condições gerais abstratas é imposto igualmente à realidade externa, e às nossas representações abstratas dela, pela necessidade geral de que cada coisa deve ser apenas seu próprio eu individual, com sua própria maneira individual de diferir de tudo o mais. Isso nada mais é do que a necessidade da lógica abstrata, que é o pressuposto envolvido no próprio fato da existência inter-relacionada, conforme revelada em cada ocasião imediata de experiência.

A chave para os padrões significa este fato: que de um conjunto seleto dessas condições gerais — exemplificadas em qualquer uma e na mesma ocasião — um padrão envolvendo uma infinita variedade de outras condições (também exemplificadas na mesma ocasião) pode ser desenvolvido pelo puro exercício da lógica abstrata. Qualquer um desses conjuntos seletos é chamado de conjunto de postulados, ou premissas, a partir dos quais o raciocínio procede. O raciocínio nada mais é que a exposição de todo o padrão de condições gerais envolvidas no padrão derivado dos postulados selecionados.

A harmonia da razão lógica, que divide o padrão completo conforme envolvido nos postulados, é a propriedade estética mais geral decorrente do mero fato de existir concomitantemente na unidade de uma ocasião. Onde quer que haja uma unidade de ocasião, é assim estabelecida uma relação estética entre as condições gerais envolvidas naquela ocasião. Essa relação estética é aquela que é delineada no exercício da racionalidade. O que quer que caia dentro dessa relação é assim exemplificado nessa ocasião, mas o que quer que caia fora dessa relação é assim excluído da exemplificação nessa ocasião. O padrão completo das condições gerais, assim exemplificadas, é determinado por qualquer um dos muitos conjuntos selecionados dessas condições. Tais conjuntos chave são conjuntos de postulados equivalentes. Essa harmonia razoável do ser, que é necessária para a unidade de uma ocasião complexa, juntamente com a realização completa (nessa ocasião) de tudo o que está envolvido em sua harmonia lógica, é o primeiro artigo da doutrina metafísica. Ela significa que o fato dessas coisas estarem juntas implica que elas estão razoavelmente juntas. Isso significa que o pensamento pode penetrar em cada ocasião dos fatos, de modo que, ao compreender suas condições-chave, todo o complexo de seu padrão de condições está aberto diante dele. Chega-se a isto: — se soubermos algo perfeitamente geral sobre os elementos de qualquer ocasião, podemos então conhecer um número indefinido de outros conceitos igualmente gerais que também devem ser exemplificados nessa mesma ocasião. A harmonia lógica envolvida na unidade de uma ocasião é ao mesmo tempo exclusiva e inclusiva. A ocasião deve excluir os desarmônicos, e deve incluir os harmoniosos.

Pitágoras foi o primeiro homem que teve alguma compreensão do alcance total desse princípio geral. Ele viveu no século VI antes de Cristo. Nosso conhecimento sobre ele é fragmentário. Porém, conhecemos alguns pontos que estabelecem sua grandeza na história do pensamento. Ele ressaltou a importância de uma maior generalidade no raciocínio, e ele explicou a importância do número na construção de qualquer representação das condições envolvidas na ordem da natureza. Sabemos também que ele estudou geometria, e descobriu a prova geral do notável teorema sobre os triângulos retângulos. A formação da Fraternidade Pitagórica e os misteriosos rumores sobre seus ritos e sua influência oferecem algumas provas de que Pitágoras descobriu, ainda que vagamente, a possível importância da matemática na formação da ciência. Ao lado da filosofia, ele iniciou uma discussão que tem agitado os pensadores desde então. Ele perguntou: “Qual é o status das entidades matemáticas, como os números, por exemplo, no reino das coisas?”. O número dois, por exemplo, está de certa forma isento do fluxo do tempo e da necessidade de posição no espaço. No entanto, ele está envolvido no mundo real. As mesmas considerações se aplicam às noções geométricas — à forma circular, por exemplo. Diz-se que Pitágoras ensinou que as entidades matemáticas, tais como números e formas, seriam as coisas últimas a partir das quais as entidades reais de nossa experiência perceptiva são construídas. Como foi dito, a idéia parece grosseira, e até mesmo tola. Mas, sem dúvida, ele havia chegado a uma noção filosófica de considerável importância; uma noção que tem uma longa história, e que moveu as mentes dos homens, e até mesmo ingressou na teologia cristã. Cerca de mil anos separam o Credo Athanasiano de Pitágoras, e cerca de dois mil e quatrocentos anos separam Pitágoras de Hegel. Contudo, apesar de todas essas distâncias no tempo, a importância do número definitivo na constituição da Natureza Divina e o conceito do mundo real que exibe a evolução de uma idéia podem ser ambos rastreados de volta até o conjunto de pensamentos de Pitágoras.

A importância de um pensador individual deve algo ao acaso. Pois depende do destino de suas idéias na mente de seus sucessores. A esse respeito, Pitágoras teve sorte. Suas especulações filosóficas chegam até nós através da mente de Platão. O mundo platônico das idéias é a forma refinada e revisada da doutrina pitagórica, segundo a qual o número está na base do mundo real. Devido ao modo grego de representar os números por meio de padrões de pontos, as noções de número e de configuração geométrica estão menos afastadas em comparação conosco. Também Pitágoras, sem dúvida, incluiu a formalidade da forma, que é uma entidade matemática impura. Assim, hoje, quando Einstein e seus seguidores proclamam que fatos físicos, como a gravitação, devem ser interpretados como sendo exposições de peculiaridades locais de propriedades espaço-temporais, eles estão seguindo a tradição pitagórica pura. Em certo sentido, Platão e Pitágoras estão mais próximos da ciência física moderna do que Aristóteles. Os dois primeiros eram matemáticos, enquanto que Aristóteles era filho de um médico, embora, naturalmente, ele não ignorasse a matemática. O conselho prático a ser derivado de Pitágoras é o de medir, e assim expressar qualidade em termos de quantidade determinada numericamente. Mas as ciências biológicas, nessa época e até nosso próprio tempo, têm sido esmagadoramente classificatórias. Assim, Aristóteles, por sua Lógica, dá ênfase à classificação. A popularidade da Lógica Aristotélica retardou o avanço das ciências físicas ao longo da Idade Média. O quanto eles poderiam ter aprendido, se ao menos os estudantes tivessem medido em vez de classificar. 

A classificação é uma casa que se encontra a meio caminho entre a concretude imediata da coisa individual e a abstração completa das noções matemáticas. As espécies levam em conta o caráter específico, e os gêneros do caráter genérico. Porém, no procedimento de relacionar noções matemáticas aos fatos da natureza, pela contagem, pela medição, pelas relações geométricas e pelos tipos de ordem, a contemplação racional é elevada das abstrações incompletas envolvidas nas espécies e gêneros definidos para as abstrações completas da matemática. A classificação é necessária. Mas a menos que você possa progredir da classificação para a matemática, seu raciocínio não o levará muito longe.

Entre a época que se estende de Pitágoras a Platão e a época compreendida pelo século XVII do mundo moderno transcorreram quase dois mil anos. Nesse longo intervalo, a matemática havia dado imensos passos em diante. A geometria ganhara o estudo das seções cônicas e a trigonometria; o método da exaustão havia quase antecipado o cálculo integral; e, acima de tudo, a notação aritmética e a álgebra árabe haviam sido introduzidas pelo pensamento asiático. Contudo, o progresso estava em linhas técnicas. A matemática, como elemento formativo no desenvolvimento da filosofia, nunca, durante esse longo período, se recuperou de sua deposição sob as mãos de Aristóteles. Algumas das velhas idéias derivadas da época pitagórico-platônica permaneceram, e podem ser rastreadas dentre as influências platônicas que moldaram o primeiro período de evolução da teologia cristã. No entanto, a filosofia não recebeu nova inspiração do avanço constante das ciências matemáticas. No século XVII, a influência de Aristóteles estava em seu ponto mais baixo, e a matemática recuperou a importância de seu período anterior. Era uma era de grandes físicos e grandes filósofos; e os físicos e filósofos eram igualmente matemáticos. A exceção de John Locke deve ser feita, embora ele tenha sido muito influenciado pelo círculo newtoniano da Royal Society. Na época de Galileu, Descartes, Espinosa, Newton e Leibniz, a matemática foi uma influência de primeira ordem na formação das idéias filosóficas.  Todavia, a matemática, que agora emergiu com destaque, era uma ciência muito diferente da matemática da época anterior. Ela havia ganho em generalidade, e havia começado sua quase incrível carreira moderna de empilhar sutileza de generalização sobre sutileza de generalização; e de encontrar, a cada crescimento de complexidade, alguma nova aplicação, seja para a ciência física, seja para o pensamento filosófico. A notação árabe havia equipado a ciência com uma eficiência técnica quase perfeita na manipulação dos números. Esse alívio de uma luta com detalhes aritméticos (como instanciado, por exemplo, na aritmética egípcia de 1600 a. C.) deu espaço para um desenvolvimento que já havia sido vagamente antecipado na matemática grega posterior. A álgebra agora entrou em cena, e a álgebra é uma generalização da aritmética. Do mesmo modo que a noção de abstração de um número é obtida a partir da referência a qualquer conjunto particular de entidades, também é feita a abstração da álgebra a partir da noção de qualquer número em particular. Assim como o número ‘5’ refere-se imparcialmente a qualquer grupo de cinco entidades, assim, na álgebra, as letras são usadas para referir-se imparcialmente a qualquer número, com a ressalva de que cada letra deve fazer referência ao mesmo número através do mesmo contexto de seu emprego.

Esse uso foi empregado pela primeira vez em equações, que são métodos de fazer perguntas aritméticas complicadas. Nesse contexto, as letras que representam números foram chamadas de “incógnitas”. Mas as equações logo sugeriram uma nova idéia, a saber, a de uma função de um ou mais símbolos gerais, sendo esses símbolos letras que representam quaisquer números. Nesse emprego, as letras algébricas são chamadas de ‘argumentos’ da função, ou às vezes são chamadas de ‘variáveis’. Então, por exemplo, se um ângulo é representado por uma letra algébrica, significando sua medida numérica em termos de uma determinada unidade, a Trigonometria é absorvida por essa nova álgebra. A álgebra se desenvolve assim na ciência geral da análise, na qual se consideram as propriedades de várias funções de argumentos indeterminados. Finalmente, as funções particulares — assim como as funções trigonométricas, as funções logarítmicas e as funções algébricas — são generalizadas na idéia de “uma função qualquer”. Uma generalização muito grande leva a uma certa esterilidade. É essa grande generalização, limitada por uma feliz particularidade, que é a concepção frutífera. Por exemplo, a idéia de qualquer função contínua, pela qual é introduzida a limitação da continuidade, é a idéia frutífera que levou à maioria das aplicações importantes. Essa ascensão da análise algébrica foi concomitante com a descoberta da geometria analítica por Descartes, e seguida com a invenção do cálculo infinitesimal por Newton e Leibniz. De fato, Pitágoras, se pudesse ter previsto a realização do conjunto de pensamento que ele havia colocado em marcha, ter-se-ia sentido plenamente justificado em sua irmandade e em sua exaltação de ritos misteriosos.

Como um exemplo particular do efeito do desenvolvimento abstrato da matemática sobre a ciência daqueles tempos, considere a noção de periodicidade. As recorrências gerais das coisas são muito óbvias em nossa experiência comum. Os dias se repetem, as fases lunares se repetem, as estações do ano se repetem, os corpos em rotação repetem-se em suas posições antigas, os batimentos do coração se repetem, a respiração se repete. Em todos os lados, somos atingidos pela recorrência. Sem a recorrência, o conhecimento seria impossível; pois nada poderia ser remetido à nossa experiência passada. Ademais, a não ser por meio de alguma regularidade na medição da recorrência, tal medição seria impossível. Em nossa experiência, à medida em que ganhamos a idéia de exatidão, a recorrência é fundamental.

Nos séculos dezesseis e dezessete, a teoria da periodicidade assumiu um lugar fundamental na ciência. Kepler delineou uma lei ligando os eixos principais das órbitas planetárias com os períodos em que os planetas descreviam suas órbitas, respectivamente; Galileu observou as vibrações periódicas dos pêndulos; Newton explicou o som como sendo devido à perturbação do ar pela passagem, através dele, de ondas periódicas de condensação e rarefação; Huyghens explicou a luz como sendo devida às ondas transversais de vibração de um éter sutil; Mersenne conectou o período de vibração de uma corda de violino com sua densidade, tensão e comprimento. O nascimento da física moderna dependia da aplicação da idéia abstrata da periodicidade a uma variedade de instâncias concretas. Mas isso seria impossível, a menos que os matemáticos já tivessem trabalhado abstrativamente as várias idéias abstratas que se agrupam em torno das noções de periodicidade. A ciência da trigonometria surgiu a partir das relações dos ângulos de um triângulo em ângulo reto, passando pelas proporções entre os lados e a hipotenusa do triângulo. Então, sob a influência da ciência matemática da análise das funções recém-descoberta, ela se ampliou para o estudo das simples funções periódicas abstratas que tais proporções exemplificam. Assim, a trigonometria tornou-se completamente abstrata; e, ao tornar-se assim abstrata, ela se tornou útil. Ela iluminou a analogia subjacente entre conjuntos de fenômenos físicos totalmente diversos; e, ao mesmo tempo, forneceu as armas pelas quais qualquer um desses conjuntos poderia ter suas várias características analisadas e relacionadas entre si1.

Nada é mais impressionante do que o fato de que, à medida que a matemática retirava-se cada vez mais para as regiões superiores de extremos cada vez maiores do pensamento abstrato, ela voltava à terra com um crescimento correspondente de importância para a análise dos fatos concretos. A história da ciência do século XVII lê-se como se fosse um sonho vívido de Platão ou Pitágoras. Sob essa característica, o século XVII foi tão somente o precursor de seus sucessores.

O paradoxo está agora totalmente estabelecido: as máximas abstrações são as verdadeiras armas com as quais podemos controlar nosso pensamento sobre os fatos concretos. Como resultado da proeminência dos matemáticos no século XVII, o século XVIII foi matematicamente pensado, mais especialmente nos lugares onde predominava a influência francesa. Deve ser feita uma exceção ao empirismo inglês derivado de Locke. Fora da França, a influência direta de Newton sobre a filosofia é melhor vista em Kant, e não em Hume.

No século dezenove, a influência geral da matemática diminuiu. O movimento romântico na literatura e o movimento idealista na filosofia não eram produtos de mentes matemáticas. Também, mesmo na ciência, o crescimento da geologia, da zoologia e das ciências biológicas em geral estava, em cada caso, totalmente desconectado de qualquer referência à matemática. A principal excitação científica do século foi a teoria darwiniana da evolução. Assim, os matemáticos estavam em segundo plano no que diz respeito ao pensamento geral daquela época. Mas isso não significa que a matemática estivesse sendo negligenciada, ou mesmo que ela não fosse influente. Durante o século XIX, a matemática pura fez quase tanto progresso quanto durante todos os séculos anteriores, a partir de Pitágoras. É claro que o progresso foi mais fácil, porque a técnica tinha sido aperfeiçoada. Porém, considerando isso, a mudança na matemática entre os anos 1800 e 1900 é muito notável. Se acrescentarmos os cem anos anteriores, e tomarmos os dois séculos que precedem o tempo presente, somos praticamente tentados a datar a fundação da matemática em algum lugar no último quarto do século XVII. O período da descoberta dos seus elementos se estende de Pitágoras a Descartes, Newton e Leibniz, e a ciência desenvolvida foi criada durante os últimos duzentos e cinquenta anos. Não se trata de uma vanglória quanto ao gênio superior do mundo moderno; porque é mais difícil descobrir os seus elementos do que desenvolver a ciência.

Ao longo do século XIX, a influência da ciência foi sua influência sobre a dinâmica e a física, e daí, derivativamente, sobre a engenharia e a química. É difícil avaliar sua influência indireta sobre a vida humana por meio dessas ciências. No entanto, não houve influência direta da matemática sobre o pensamento geral da época.

Ao rever esse rápido retrato da influência da matemática ao longo da história européia, vemos que ela teve dois grandes períodos de influência direta sobre o pensamento geral, ambos os períodos durando cerca de duzentos anos. O primeiro período foi aquele que se estendeu de Pitágoras a Platão, quando a possibilidade da ciência — e seu caráter geral — surgiu pela primeira vez junto aos pensadores gregos. O segundo período compreendeu os séculos XVII e XVIII de nossa época moderna. Ambos os períodos tinham certas características comuns. No primeiro, tal como no período posterior, as categorias gerais de pensamento em muitas esferas de interesse humano encontravam-se em estado de desintegração. Na época de Pitágoras, o paganismo inconsciente, com sua roupagem tradicional de belos rituais e de ritos mágicos, estava passando para uma nova fase sob duas influências. Havia ondas de entusiasmo religioso, buscando a iluminação direta nas profundezas secretas do ser; e, no pólo oposto, havia o despertar do pensamento analítico crítico, que sondava com frieza os significados últimos. Em ambas as influências, tão diversas em seus resultados, havia um elemento comum — uma curiosidade despertada, e um movimento em direção à reconstrução dos caminhos tradicionais. Os mistérios pagãos podem ser comparados à reação puritana e à reação católica; o interesse científico crítico era semelhante em ambas as épocas, embora com pequenas diferenças de importância substancial.

Em cada época, os estágios iniciais foram colocados em períodos de crescente prosperidade e de novas oportunidades. A esse respeito, elas diferiram do período de decadência gradual nos séculos II e III, quando o cristianismo avançava para a conquista do mundo romano. É somente em um período — afortunado tanto em suas oportunidades de desengajamento da pressão imediata das circunstâncias como em sua curiosidade ávida — que o Espírito-da-Era pode empreender qualquer revisão direta daquelas abstrações finais que se escondem nos conceitos mais concretos a partir dos quais o pensamento sério de uma era começa. Nos raros períodos em que tal tarefa pode ser realizada, a matemática torna-se relevante para a filosofia. Porque a matemática é a ciência das abstrações mais completas a que a mente humana pode chegar.

O paralelo entre as duas épocas não deve ser pressionado demais. O mundo moderno é maior e mais complexo do que a antiga civilização às margens do Mediterrâneo, ou mesmo do que a Europa que enviou Colombo e os Padres Peregrinos através do oceano. Não podemos agora explicar nossa época através de uma fórmula simples que se torne dominante e que depois será colocada para descansar por mil anos. Portanto, a submersão temporária da mentalidade matemática a partir do tempo de Rousseau parece já estar no fim. Estamos entrando em uma era de reconstrução, na religião, na ciência e no pensamento político. Tais épocas, para evitar a mera oscilação ignorante entre os extremos, devem buscar a verdade em sua profundidade última. Não pode haver uma visão dessa profundidade da verdade a não ser por meio de uma filosofia que leve plenamente em conta essas abstrações finais, cujas interconexões cabe à matemática explorar.

A fim de explicar exatamente como a matemática está ganhando importância geral no momento atual, vamos partir de uma perplexidade científica particular e considerar as noções para as quais somos naturalmente levados por alguma tentativa de desvendar suas dificuldades. Atualmente, a física é perturbada pela teoria quântica. Não preciso explicar agora o que é essa teoria para aqueles que ainda não estão familiarizados com ela.2 Entretanto, a questão é que uma das linhas mais esperançosas de explicação é a de assumir que um elétron não atravessa continuamente seu caminho no espaço. A noção alternativa quanto ao seu modo de existência é que ele aparece em uma série de posições discretas no espaço que ele ocupa por sucessivas durações de tempo. É como se um automóvel, movendo-se ao ritmo médio de trinta milhas por hora ao longo de uma estrada, não percorresse a estrada continuamente; mas aparecesse sucessivamente nos marcos sucessivos, permanecendo por dois minutos em cada marco.

Em primeiro lugar, é necessário o uso puramente técnico da matemática para determinar se essa concepção explica, de fato, as muitas características desconcertantes da teoria quântica. Se a noção sobreviver a esse teste, sem dúvida a física irá adotá-la. Até agora, a questão cabe apenas à matemática e à ciência física, a fim de que se estabeleça entre elas, com base em cálculos matemáticos e observações físicas.

Agora, porém, um problema é passado para os filósofos. Essa existência descontínua no espaço, assim atribuída aos elétrons, é muito diferente da existência contínua de entidades materiais que costumamos assumir como óbvia. O elétron parece estar tomando emprestado o caráter que algumas pessoas atribuíram aos Mahatmas do Tibete. Tais elétrons, com os prótons correlatos, são agora concebidos como sendo as entidades fundamentais a partir das quais os corpos materiais da experiência comum são compostos. Assim, se essa explicação for admitida, temos que rever todas as nossas noções sobre o caráter último da existência material. Porque, quando penetramos nessas entidades finais, essa descontinuidade assombrosa da existência espacial se revela.

Não há dificuldade em explicar o paradoxo, se consentirmos em aplicar à resistência aparentemente estável e indiferenciada da matéria os mesmos princípios que os agora aceitos para o som e a luz. Uma nota sonora constante é explicada como sendo o resultado das vibrações no ar: uma cor constante é explicada como sendo o resultado das vibrações no éter. Se explicarmos a resistência constante da matéria sobre o mesmo princípio, conceberemos cada elemento primordial como um fluxo e refluxo vibratório de uma energia ou atividade subjacente. Suponhamos que nos atenhamos à idéia física de energia: então cada elemento primordial será um sistema organizado de fluxo vibratório de energia. Assim, haverá um período definido associado a cada elemento; e dentro desse período, o sistema de fluxo oscilará de um máximo estacionário a outro máximo estacionário, — ou, tomando uma metáfora das marés oceânicas, o sistema oscilará de uma maré alta a outra maré alta. Esse sistema, formador do elemento primordial, é um nada em um instante qualquer. Ele requer todo o seu período para se manifestar. De forma análoga, uma nota de música é um nada em um instante qualquer, e também requer todo o seu período para manifestar-se.

Assim, ao perguntar onde está o elemento primordial, devemos nos estabelecer sobre sua posição média no centro de cada período. Se dividirmos o tempo em elementos menores, o sistema vibratório enquanto uma entidade eletrônica não tem existência. O caminho no espaço de tal entidade vibratória — onde a entidade é constituída pelas vibrações — deve ser representado por uma série de posições destacadas no espaço, analogamente ao automóvel que é encontrado em marcos sucessivos e em nenhum lugar entre eles.

Primeiro devemos perguntar se há alguma evidência para associar a teoria quântica à vibração. Essa pergunta é imediatamente respondida de forma afirmativa. Toda a teoria se concentra em torno da energia radiante de um átomo, e está intimamente associada com os períodos dos sistemas de ondas radiantes. Parece, portanto, que a hipótese de existência essencialmente vibratória é a forma mais esperançosa de explicar o paradoxo da órbita descontínua.

Em segundo lugar, um novo problema é agora colocado diante de filósofos e físicos, se entretivermos a hipótese de que os elementos últimos da matéria são em sua essência vibratórios. Com isso quero dizer que, além de ser um sistema periódico, tal elemento não teria existência. Com essa hipótese, temos que perguntar quais são os ingredientes que formam o organismo vibratório. Já nos livramos da matéria com sua aparência de resistência indiferenciada. Exceto por alguma compulsão metafísica, não há razão para fornecer outro material mais sutil para substituir a matéria que acabou de ser excluída. O campo está agora aberto para a introdução de alguma nova doutrina do organismo que possa tomar o lugar do materialismo com o qual, desde o século XVII, a ciência tem sobrecarregado a filosofia. Deve-se lembrar que a energia dos físicos é obviamente uma abstração. O fato concreto, que é o organismo, deve ser uma expressão completa do caráter de uma ocorrência real. Tal deslocamento do materialismo científico, se alguma vez ocorrer, não pode deixar de ter consequências importantes em todos os campos do pensamento.

Finalmente, nossa última reflexão deve ser a de que, no fim, voltamos a uma versão da antiga doutrina de Pitágoras, da qual a matemática, e a física matemática, tiraram sua ascensão. Ele descobriu a importância de lidar com abstrações; e, em particular, direcionou a atenção para o número enquanto caracterizador das periodicidades das notas de música. A importância da idéia abstrata da periodicidade estava assim presente logo no início tanto da matemática quanto da filosofia européia.

No século XVII, o nascimento da ciência moderna exigiu uma nova matemática, mais completamente equipada para a análise das características da existência vibratória. E agora, no século XX, encontramos físicos em grande parte empenhados em analisar as periodicidades dos átomos. Na verdade, Pitágoras, ao fundar a filosofia européia e a matemática européia, dotou-as da mais sortuda das suposições — ou será que se tratou de um flash da genialidade divina, penetrando na natureza mais íntima das coisas?

Notas:

[1] Para uma consideração mais detalhada sobre a natureza e função da Matemática Pura, cf. minha Introdução à Matemática.

[2] Conferir o Capítulo VIII de Ciência e Mundo Moderno.


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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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