Um Esboço para uma Nova Versão d’Os Elementos de Euclides: Tradução, Notas e Comentários acerca das Definições, Postulados e Noções Comuns do Livro I — Bernardo Santos

os elementos de euclides

O objetivo deste trabalho1 é apresentar ao leitor, de modo simples e direto, o esboço de uma leitura didática e filosófica que poderá desenvolver-se numa nova versão da obra prima geométrica milenar, Os Elementos de Euclides. Aqui, apresentaremos a primeira parte do Livro I, o qual trata eminentemente dos fundamentos da Geometria Plana. Neste extrato, que é parte absolutamente fundamental para a obra euclidiana como um todo, buscamos compreender o sentido que Euclides parece expressar nas entrelinhas de seu pensamento pitagórico-platônico, comparando as obras traduzidas que nos estavam à disposição, acrescentando comentários, ilustrações e notas de rodapé sempre que se fizeram necessários para dar a clareza indispensável à leitura. 

Introdução

Todo tradutor, pela própria natureza do ato de tradução, imputa à sua obra um pouco de seu próprio pensar. Sendo assim, não preocupamo-nos em manter aqui uma forma exatamente próxima a da obra original, intenção que nos parece por demais pedante quando consideramos as tentativas anteriores de traduzir esse magnífico trabalho de Euclides; sendo assim, avaliando as versões que nos estavam disponíveis, procuramos criar uma nova, de caráter mais didático, atendo-nos exclusivamente às intenções que o Grande Geômetra aparenta exprimir nas entrelinhas de seus Elementos. O que pretendemos aqui fazer não é descabido nem injustificável, porque, como diria acertadamente Santo Agostinho, “não há mentira quando alguém explica a intenção daquele de que fala, ainda que use uma palavra que o outro não disse, sempre que expressar o mesmo sentido das palavras pronunciadas” (AGOSTINHO apud AQUINO, 2018, p. 133).

Albert Einstein, em artigo intitulado Sobre o Método da Física Teórica, afirmou: “Se Euclides não conseguiu despertar em você um entusiasmo juvenil, então você não nasceu para ser um pensador científico.” (EINSTEIN, 1934) . Mas – podemos perguntar – como Euclides poderia despertar tal entusiasmo se sua leitura for inacessível, e se, por essa razão,  não conseguimos compreender o que ele tentou nos dizer? Formou-se, ao longo dos anos e graças ao abandono de seu uso como livro didático, um tipo de obscuridade em torno de sua obra – o que atualmente nos distancia bastante dela. Tal abandono, já na época em que foi determinado, gerou “uma deficiência lamentável de rigor lógico” e isso até hoje tem “efeitos totalmente danosos no valor escolar” da matemática (WHITEHEAD, 1948), como muito bem frisou o filósofo e matemático inglês, Alfred North Whitehead. Hoje, aquele que busca ler os Elementos o faz, quase sempre, por uma curiosidade meramente histórica. Muitos imaginam que ele caducou, o que não é verdade: Euclides é eterno. Nossa intenção é trazê-lo de volta de sua temporária suspensão: torná-lo novamente inteligível. Com isso não queremos aqui dizer que o reinventamos, mas apenas que o colocamos na linguagem de hoje, às vezes incluindo comentários, separando partes, ou acrescentando termos e exemplos que o próprio autor não utilizou no original. O intento foi o de dar clareza, e clareza de modo tal que qualquer leitor que tenha alguma familiaridade com a própria língua possa seguí-lo de maneira autônoma e assim obter todas as vantagens que esta obra prima milenar nos apresenta. “Não há estrada real para a geometria”, disse Euclides certa vez a Ptolomeu I, e ele estava certo: tudo o que podemos fazer é capinar, aplainar e recapear a velha estrada de sempre; afinal, “a geometria elementar sempre existirá, e a geometria elementar é Euclides” (HEATH, 2010). 

Os Elementos podem ser analogamente comparados a um jogo, e é obra que possui mesmo certo caráter lúdico. Ela tem suas próprias regras, e nos apresenta entes com características bem determinadas. Sua maior vantagem, cremos, é desenvolver de maneira intuitiva o senso de prova por meio da intuição relacional e dos entes – e não meramente pela intuição quantitativa, a qual, atualmente, estamos bastante acostumados2 –, senso esse, todavia, que se estende para além da matemática conforme conhecida na modernidade. Para estudá-lo, ou divertir-se com ele, o leitor, exatamente como ocorreu na antiga Grécia, precisará apenas de duas ferramentas, além de papel, lápis e curiosidade: uma régua (desprezando as marcações), com a qual estará habilidado a traçar linhas retas; e um compasso, que lhe permitirá o traçado de círculos. 

Se aqui, com frequência, utilizamos termos emprestados da Filosofia Perene, é necessário dizer que não o fazemos por acaso. É preciso, ademais, lembrar que Euclides é um platônico, e, como tal e por extensão, também um pitagórico. De fato, Os Elementos é obra que assenta-se sobre as idéias da filosofia pitagórica-platônica. Todavia, incluimos notas explicativas e comentários no intuito de que não seja necessário remeter o leitor a outras obras senão para meros fins de curiosidade.

Tradução e Comentários

Definições

Nesta Secção, Euclides definirá os entes3, seres que farão parte do seu sistema de geometria. É importante meditar imaginativamente sobre as características de cada ente a fim de tê-las sempre em mente durante as demonstrações subsequentes pois, de fato, são as características mesmas dos entes definidos que sustentam o todo que se segue. 

  1. Ponto é um ente abstrato considerado, abstrativamente, como desprovido de partes; 

O ponto é uma posição ideal – um lugar escolhido – , no plano ou no espaço, considerada apenas em sua “espacialidade” e excluindo, via abstração, qualquer magnitude – daí o fato de não haverem partes, ou seja, de ele ser indivisível. Ou, como diria o grande Filósofo Brasileiro, Mário Ferreira dos Santos, ponto “é um instante do espaço, sem dimensão” (SANTOS, 1933). Desse modo, podemos perceber intuitivamente que o ponto não possui magnitude. Perceba, ademais, que o símbolo usado para marcar um ponto, “.” – ou seja, a mancha no papel que usamos para indicá-lo – não é o ponto propriamente dito, mas um mero símbolo que simboliza a escolha do lugar, e este símbolo, considerado em si mesmo, possui alguma magnitude.

  1. Uma Linha Qualquer é um ente abstrato considerado, abstrativamente, como sendo um comprimento (qualquer um) que não tem largura;

Figura 1 – Exemplo de Linha Qualquer.

Qualquer comprimento considerado, independentemente da direção que siga e mesmo sendo composto por retas e curvas aleatórias, é uma linha. Por possuir apenas comprimento, abstraindo de qualquer largura possível, uma linha qualquer possui uma única magnitude em uma única dimensão. Além disso, do mesmo modo que o ponto não é propriamente o símbolo que costumamos usar para simbolizá-lo, mas a escolha do lugar efetuada por um ato abstrativo, o mesmo ocorre, mutatis mutandis, com linhas quaisquer: o traçado feito para simbolizá-las possui uma largura, mesmo que ínfima, logo, o traçado em si não é a linha propriamente dita, mas apenas o símbolo que a simboliza.

  1. As extremidades de uma linha qualquer são consideradas pontos;

O início de uma linha, seu trajeto e seu fim são todos lugares, ou seja, eles são considerados abstrativamente como compostos por pontos; ou melhor, todos os lugares que compõem uma linha podem ser considerados como pontos. Sempre que escolhermos dois pontos, poderemos traçar uma linha qualquer que os liga; sendo assim, tal como afirma Platão, “o ponto é o começo de uma linha” (HEATH, 2010), e um outro ponto será seu termo.

  1. Linha Reta é aquela que está posta de maneira sempre uniforme entre as suas extremidades, com os pontos sobre si mesma, sem desvios ou inclinações;

Figura 2 – Exemplo de Linha Reta.

Perceba que a disposição dos pontos que pertencem à reta – partindo do ponto inicial até o ponto final – segue sempre em uma mesma direção, de maneira sempre uniforme e, sendo assim, não há curvas ou desvios em lugar algum de uma linha reta; de modo que, se tal linha sofresse uma revolução, invertendo a posição de seus pontos extremos, ela abstratamente ocuparia exatamente os mesmos espaços.  

  1. Superfície Qualquer é um ente abstrato considerado, abstrativamente, como um comprimento qualquer com uma largura qualquer;

Figura 3 – Exemplo de Superfície Qualquer.

Percebemos, então, que uma superfície possui duas magnitudes (comprimento e largura) mas não profundidade, ou seja, ela possui apenas duas dimensões, que são estendidas, ou contínuas, em duas direções. Percebemos, ainda, que qualquer ente que tenha essas propriedades, largura e comprimento – mesmo que constituído por curvas e retas aleatórias –, pode ser considerado como superfície.

  1. As extremidades de uma superfície são linhas; 

Tal como a linha tem como extremidades pontos, mutatis mutandis, uma superfície qualquer terá como extremidades linhas quaisquer.

  1. Superfície Plana é aquela que está posta de modo sempre uniforme entre as suas extremidades, com as linhas retas sobre si mesma, sem desvios ou inclinações; 

Figura 4 – Exemplo de Superfície Plana.

Perceba que, se considerarmos um ponto que se moveu, seu trajeto constituirá uma linnha qualquer; e, se seu trajeto for reto, ele constituirá uma linha reta; do mesmo modo, mutatis mutandis, se considerarmos um segmento de linha reta, lateralmente e em movimento linear reto, tal movimento constituirá abstrativamente uma superfície plana.

  1. Um  Ângulo Plano Qualquer é a inclinação relativa que surge entre duas linhas quaisquer num plano em que elas se tocam e no qual ambas as linhas não estão sobre uma mesma linha reta;

Figura 5 – Exemplo de Ângulo Plano Qualquer.

Para o caso de ambas as linhas estarem posicionadas em uma linha reta – ou seja, sobrepostas –, não há ângulo relativo sendo formado por elas. Lembre-se, leitor, que os gregos não consideravam – com certa razão – o zero  como um número, portanto, um “ângulo zero”, que seria formado por retas sobrepostas, não existe aqui como ângulo.

  1. Quando as linhas que têm um ângulo que as relaciona são linhas retas, este ângulo é chamado de  Ângulo Plano Retilíneo; 

Figura 6 – Exemplo de Ângulo Plano Retilíneo.

Repare que, ao definir Linhas quaisquer, Superfícies quaisquer e  ngulos quaisquer, Euclides lança a semente daquilo que pode ser uma Geometria qualquer, porque essas definições abrangem todas as potencialidades desses três entes abstratos básicos. Sendo assim, aquelas geometrias conhecidas por “não-euclidianas”, todas elas, são derivadas das definições dadas por ele. Tais geometrias, em seu desenvolvimento, destacam e definem novas espécies de linhas, superfícies, ângulos e figuras a partir daquele gênero dado por ele, e sua construção se segue a partir dessas novas definições, como é o caso da chamada “Geometria Hiperbólica”, que tem como base uma Superfície Hiperbólica, e as Linhas Curvas Hiperbólicas que constituem essa superfície, bem como os ângulos que tais linhas formam ao  se relacionarem entre si. Obviamente, Euclides preferiu nos apresentar, em seus Elementos, aquela geometria que tem base em Linhas retas, Superfícies retas e  ngulos retilíneos, mas esta é apenas uma das possibilidades latentes de suas Definições.

  1. Quando uma linha reta é posicionada sobre outra linha reta de modo que os ângulos adjacentes (ou seja, os ângulos vizinhos um do outro) formados por elas são iguais, cada um desses ângulos é chamado de  ngulo Reto, e as linhas são ditas perpendiculares uma à outra;  

Figura 7 – Ângulo Reto.

  1. O ângulo maior que o ângulo reto é chamado de  ngulo Obtuso;  

Figura 8 – Ângulo Obtuso.

  1. E o ângulo menor que o ângulo reto é chamado de  Ângulo Agudo; 

Figura 9 – Ângulo Agudo.

  1. Têrmo, ou Fronteira, é a extremidade de alguma coisa;
  1. Figura é o ente contido por uma fronteira, ou por fronteiras;
  1. Um Círculo é uma figura plana contida por uma única linha curva contínua (esta linha contínua é chamada de Circunferência ou de Periferia do círculo) e que tem um certo ponto interno, de modo que todas as linhas retas possíveis de serem traçadas a partir desse ponto interno até a circunferência são todas iguais entre si; 
esboço elementos de euclides

Figura 10 – Círculo com linhas internas que partem do seu Centro (raios).

Logo após definir figuras, Euclides passa a definir figuras particulares, e o círculo é a figura que tem apenas uma fronteira. Observe que o círculo não é apenas a circunferência que vemos no papel, mas o todo incluso com ela. 

  1. Esse ponto (a partir do qual as linhas retas – ou raios – podem ser  traçadas até a circunferência) é chamado de Centro do círculo; 
  1. Um Diâmetro é uma linha reta qualquer que passa pelo centro do círculo e é limitada em ambas as direções pela circunferência do círculo; tal linha reta também bissecta (isto é, divide em duas partes iguais) o círculo;

Figura 11 – Círculo com seu Diâmetro.

  1. Um Semi-círculo é a figura contida por um diâmetro e pela circunferência cortada por este, e o Centro do semi-círculo é o mesmo que o do círculo; 

Figura 12 – Semi-círculo.

Vale dizer que um Segmento de um Círculo é uma figura contida por uma linha reta e pela parte da circunferência cortada por tal linha reta; o semi-círculo e o segmento de um círculo são figuras constituídas por duas fronteiras. Repare, ademais, que o centro do semi-círculo é o mesmo ponto que seria considerado centro se tal figura fosse um círculo completo; sendo assim, seu centro é relativo ao círculo. 

  1. Figuras Retilíneas são aquelas que estão contidas por linhas retas; Triláteras (ou triangulares) são as figuras contidas por três linhas retas; Quadriláteras são as figuras contidas por quatro linhas retas; e Multi-láteras (ou polígonos) são as figuras contidas por mais que quatro linhas retas;  

Figura 13 – Exemplos de figuras triláteras, quadriláteras e multi-láteras, respectivamente.

Perceba que a quantidade de lados também determina a quantidade de ângulos que uma figura possui, assim como a quantidade de fronteiras.

  1. Das figuras triláteras, Triângulo Equilátero é aquele que tem os três lados iguais; o Triângulo Isósceles é o que tem dois de seus lados iguais; e Triângulo Escaleno é o que tem os três lados desiguais;

Figura 14 – Triângulos equilátero, isósceles e escaleno, respectivamente.

  1. Além disso, das figuras triláteras, Triângulo Retângulo é aquele que tem um ângulo reto; Triângulo Obtuso é aquele que tem um ângulo obtuso; e Triângulo Agudo é aquele que tem seus três ângulos agudos;

Figura 14 – Triângulos retângulo, obtuso e agudo, respectivamente.

  1. Das figuras quadriláteras, o Quadrado é a que tem todos os lados iguais (equilátero) e todos os seus ângulos são retos; o Oblongo (ou Retângulo) é a que tem os quatro ângulos retos, mas não é equilátero; o Rombo (ou Losango) é equilátero, mas não tem ângulos retos; o Rombóide tem os seus lados opostos iguais, mas não é equilátero, e tem os seus ângulos opostos iguais, mas não tem ângulos retos; E todas as outras figuras quadriláteras diferentes destas são chamadas de Trapézios;

Figura 15 – Quadrado e oblongo (ou retângulo), respectivamente.

Figura 16 – Rombo (ou losango) e rombóide, respectivamente.

  1. Linhas retas Paralelas (ou equidistantes) são linhas retas que, estando no mesmo plano e sendo ambas estendidas em ambos os lados indefinidamente, não se encontram uma com a outra em nenhuma das duas direções.

Figura 17 – Exemplo de linhas paralelas.

Observe que Euclides não fala de infinito, mas de indefinido, pois, aqui, ele nos instrui sobre coisas que devemos colocar em ato, delimitar, reproduzir fisicamente; ora, com efeito, o infinito é meramente uma potência,4 uma idéia no sentido de Platão. Desta definição, e por necessidade dela, deriva-se o quinto postulado, que veremos mais adiante.

Postulados, ou Axiomas da Geometria Plana

Os Postulados, nossas “regras do jogo”, são certas noções intuitivas que surgem (porque, como é bastante sabido, ex nihilo nihil fit.5) como regras demonstrativas a partir das Definições euclidianas. Eles derivam-se diretamente da natureza dos entes dados por Euclides. Tais noções são apreendidas intuitivamente no ato mesmo de nossa capacidade abstrativa, quando entendemos as características e relações de cada ente determinado, e, por isso, não precisam ser demonstradas porque elas nos são monstradas6 no nosso momento intuitivo, quando entendemos os entes definidos, e essa monstração já nos é prova7 de sua validade. A base, portanto, da validade demonstrativa dos Postulados (ou dos Axiomas da Geometria Plana) é a monstração, que é garantida pela natureza dos entes definidos: os entes em si mesmos, bem como suas relações mútuas, não são demonstráveis, eles são monstráveis e, por isso, quando considerados em si mesmos, eles também não necessitam de demonstração, embora seja necessário aprender a como construí-los – ou seja, a passá-los da potência ao ato – e tal construção prove, monstrativamente, sua existência. Sendo assim, é evidente que a busca da validade lógica dedutiva dos axiomas da geometria uns nos outros é vã. 

É importante assinalar que há uma diferença entre os entes-ideais-abstratos e os entes-em-ato: Nenhuma linha que tracemos pode ser matematicamente perfeita em satisfazer as Definições euclidianas devido à imperfeição de nossos instrumentos. Podemos ter apenas uma precisão relativa, boa a ponto de se poder desprezar a imperfeição; “a exatidão é uma fraude”, conforme afirmou Whitehead. Assim, essa imperfeição não importa: nosso traçado apenas simboliza os entes verdadeiros (que são os abstratos, os entes ideais), e isso não nos atrapalhará em nossas demonstrações.

Que o seguinte seja suposto como postulado:

  1. É possível traçar uma única linha reta a partir de um ponto qualquer até um outro ponto qualquer;

Este axioma segue-se da natureza mesma do ponto e da linha, uma vez que as extremidades da linha são sempre dois pontos. Como sempre haverá uma distância entre dois pontos quaisquer, haverá sempre uma distância mínima entre eles, e essa distância mínima, por ser única, constitui necessariamente uma única linha reta.

  1. É possível estender (prolongar) uma linha reta finita qualquer  (ou seja, qualquer segmento de reta já definido) até qualquer comprimento desejado, continuamente em linha reta;

Como entes abstratos são entes possíveis, possibilidades latentes, e uma vez que as possibilidades de se escolher pontos e traçar linhas são infinitas, temos que tais fatos derivam esta regra. Mesmo que uma reta já tenha sido traçada (ou seja, atualizada), ela poderá ser estendida em qualquer direção, até a magnitude desejada. 

  1. É possível, a partir de um centro qualquer e com uma distância qualquer (ou seja, com qualquer linha reta), descrever (traçar) um círculo;

Como o  círculo em si é composto por uma circunferência que surge a partir de uma sequência de retas idênticas e que têm sua origem comum no ponto onde será o centro dele, temos que sua natureza deriva tal axioma. A natureza do compasso também evidencia essa regra: a “ponta seca” é fixada no ponto inicial, que será o centro do círculo, e a outra ponta é a que descreve a circunferência com base na distância fixada entre as duas pontas (distância esta que é análoga à uma linha reta), ou seja, a circunferência terá a sua magnitude definida pela distância que separa uma ponta do compasso da outra;

  1. Todos os ângulos retos são iguais entre si; 

Esta regra evidencia a distinção entre entes abstratos e atuais, novamente com base nos entes anteriormente definidos. Um ângulo reto é, idealmente, único e invariável, e é a partir dele que os outros ângulos possíveis (agudos e obtusos) podem ser derivados. Contudo, em ato, todos os ângulos possíveis de serem traçados apresentam alguma imperfeição em seu traçado que os diferirá tanto entre si quanto do ideal; de acordo com o Princípio da Identidade dos Indiscerníveis de G.W. von Leibniz, há sempre alguma discernibilidade entre entes reais, de modo que, se se encontra dois seres indiscerníveis em absoluto – isto é, absolutamente iguais –, os dois são dois apenas em aparência e , na verdade, são um único e o mesmo ser.8 Todavia, com certo grau de precisão relativa no traçado, podemos considerar que todos os ângulos retos-atuais são iguais ao ângulo reto-ideal, desprezando assim as imperfeições. 

  1. Se uma linha reta cruza sobre outras duas linhas retas de modo que forma com elas – de um mesmo lado da primeira reta – ângulos interiores (isto é, interiores em relação às outras duas retas) que juntos são menores que a soma de dois ângulos retos, estas duas retas cruzar-se-ão em algum ponto de seu prolongamento, no mesmo lado em que estão os dois ângulos que juntos são menores que a soma de dois ângulos retos. 

É evidente que este Postulado é derivado da definição de ângulo reto em relação com a definição das paralelas. Se a soma dos ângulos internos citados for igual a dois ângulos retos somados, as duas retas – que, vale lembrar, são retas considerada análogas às retas ideais e, portanto, desprezam a imperfeição que existe na sua atualização – jamais se encontrarão em seu prolongamento potencialmente infinito (nem em uma direção, nem na outra) por causa da natureza mesma do ângulo reto, isto porque a linha reta que as cruza é perpendicular a ambas e, sendo assim, todos os ângulos desta configuração são retos, razão suficiente para que as duas sejam paralelas, porque a distância entre as retas é sempre a mesma à medida que se avança pelo seu prolongamento em ambas as direções, ad infinitum; para o caso delas não serem paralelas, ou seja, de haverem ângulos agudos ou obtusos na configuração, a soma só poderá ser maior ou menor: se menor, as retas irão encontrar-se em algum ponto possível em seu prolongamento (porque este prolongamento é potencialmente infinito  e a distância entre as retas diminui à medida que se avança no prolongamento) do mesmo lado dos referidos ângulos – tal como demanda o Postulado; se maior, encontrar-se-ão no prolongamento do lado oposto ao dos ângulos. Sendo assim, só se pode rejeitar o axioma das paralelas se se modifica a natureza mesma dos entes definidos ou se se ignora a distinção entre ente-atual e ente-ideal que é própria da filosofia pitagórica; caso contrário, chegaremos ao absurdo. Mostramos, assim, a validade lógica incontestável do Quinto Postulado quando devidamente considerado dentro dos limites estabelecidos por Euclides.

Noções Comuns, ou Axiomas Gerais

Noções Comuns são axiomas, ou regras demonstrativas, que valem não só para a geometria, mas que têm validade para qualquer ciência. Assim como os axiomas geométricos têm validade monstrativa baseada nas Definições, quando considerados em si próprios, de modo similar, mutatis mutandis, a validade monstrativa das Noções Comuns assentar-se-á em outras definições — como a da noção de ser e suas relações —, embora não as abordemos neste trabalho. Basta, por ora, lembrar que a sua não aceitação nos levará ao absurdo (ora, a redução ao absurdo é em si uma prova de validade matemática). Alguns exemplos simples nos serão úteis:  

  1. Coisas que são iguais a uma terceira coisa são também iguais entre si;

Se A e B são, respectivamente, iguais a C, então, A é igual a B. 

  1. Se coisas que são iguais entre si forem adicionadas a outras coisas, que também são iguais entre si, os todos resultantes também serão iguais entre si; 

Se A é igual a B, então, A + C = B + C. 

  1. Se coisas que são iguais entre si forem subtraídas de outras coisas, que são também iguais entre si, os restos serão iguais entre si; 

Se A é igual a B, então, A – C  = B – C.

  1. Coisas que coincidem, quando sobrepostas umas às outras, são iguais entre si;

A validade desta regra evidencia-se mais na geometria mesma (porque basta sobrepor segmentos de reta  para saber se elas têm magnitudes iguais), embora Euclides pareça evitar a demonstração por meio dela sempre que possível. Contudo, ela valerá para quantidades, e também para relações: se uma coisa substitui perfeitamente outra, e a outra por sua vez substitui perfeitamente a uma, elas são consideradas iguais segundo o atributo considerado.

  1. O todo é maior do que qualquer das partes que o compõem.

Se x = a + b + c, então, a, b e c são partes que compõem x, logo:

  • x é maior que a; 
  • x é maior que b; 
  • x é maior que c; 
  • x é maior que a + b;
  • x é maior que b + c; 
  • e x é maior que a + c.

Notas

[1] Apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso de meu bacharelado em Matemática.

[2] Para mais acerca desta argumentação, cf. René Guénon, O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos.

[3] “Ente” é aquilo que tem o ser como sua essência. Ele pode ser em ato (ou seja, ser faticamente, ser de fato) ou de modo abstrativo e ideal (ou seja, ser potencialmente); para mais, cf. o verbete “Ente” no Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais, Mário Ferreira dos Santos (1933).

[4] Cf. Ato e Potência em Aristóteles (REALE, 2007); para uma distinção acerca dos graus de certeza, cf. Aristóteles em Nova Perspectiva, (CARVALHO, 2013).

[5] “Nada surge do nada”.

[6] “A demonstração exige o termo médio, a monstração, entretanto, não o exige – A demonstração exige o termo médio, pois é uma operação que consiste em comparar o que se pretende provar a algo devidamente já provado. A monstração segue uma via intuitiva. A evidência do que se mostra impõe-se por si mesma, pois a sua não aceitação levaria ao absurdo.”, Filosofia Concreta, Tese 4, Mário Ferreira dos Santos (2009).

[7] “Chama-se de prova, em geral, qualquer processo da mente pelo qual adquirimos de alguma coisa uma certeza.” Filosofia Concreta, Prova, Mário Ferreira dos Santos (2009).

[8] Para uma explicação acerca deste princípio Cf. Leibniz-Clarke: Correspondências (2021).

Considerações Finais

Explicitados os fundamentos do Livro I d’Os Elementos de modo didático e explicativo, método que poderá ser repetido nos outros livros que compõem a obra, resta agora traçarmos um método didático que nos conduzirá pela parte prática do Livro I num trabalho posterior, e que poderá estender-se ao restante da obra. Este poderá ser: 1.Tradução com explicação sucinta da questão; 2. Subdivisão da resolução do problema em partes explicativas e inclusão de figuras com passo-a-passo; 3. Conclusão explicativa com as observações necessárias.

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Referências

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  • AQUINO, SANTO TOMÁS DE. Catena Aurea: exposição contínua sobre os evangelhos, vol. 1; tradução: Fabio Florence, Felipe Denardi, Leonardo Serafini Penitente, Ricardo Harada, Roberto Mallet e Ronald Robson. — Campinas, SP: Ecclesiae, 2018.
  • BYRNE, OLIVER. The First Six Books of the Elements of Euclid. London: William Pickering, 1847.
  • CARVALHO, OLAVO DE. Aristóteles em Nova Perspectiva – Introdução à Teoria dos Quatro Discursos. Campinas, SP: VIDE Editorial, 2013.
  • COMMANDINO, FREDERICO. Euclides – Elementos de Geometria. São Paulo: Edições Cultura, 1944.
  • HEATH, THOMAS L. The Thirteen Books of Euclid’s Elements. In: The Great Books, v. 11. In: ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. The University of Chicago, 1952.
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  • EVES, HOWARD. Introdução à História da Matemática; tradução: Hygino H. Domingues. — Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004.
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  • SANTOS, MÁRIO FERREIRA DOS. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais, A-C, vol. 1. São Paulo: Editora Matese, 1963.
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  • SANTOS, MÁRIO FERREIRA DOS. Pitágoras e o Tema do Número. São Paulo: IBRASA, 2000.
  • WHITEHEAD, ALFRED NORTH. A Ciência e o Mundo Moderno; tradução: Bernardo Santos. — João Pessoa: Diário Intelectual, 2022.WHITEHEAD, ALFRED NORTH. Matemática e Educação Liberal. Essays in Science and Philosophy. London,  Rider and Company, 1948.

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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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