Matemática e Educação Liberal – Alfred North Whitehead

matemática e educação liberal

Matemática e Educação Liberal foi extraído de Essays in Science and Philosophy.

O assunto do meu discurso de hoje é a reflexão sobre o papel que os elementos da matemática devem desempenhar em uma educação liberal a favor dos meninos em geral, até a idade de dezenove anos. Refiro-me, é claro, àqueles rapazes que são capazes de receber uma educação liberal. A riqueza pode fazer muito, mas não pode dar cérebro e não pode dar caráter; nem pode proporcionar os interesses intelectuais que provêm da união de um cérebro a um caráter. Por isso, desconsidero a condição de moradia dos meninos e penso apenas naqueles com cérebros justos e interesses decentes. Felizmente, na Inglaterra, estes constituem a grande maioria dos estudantes comuns que chegam às nossas Universidades.

Se passarmos alguns minutos examinando a razão final da agitação existente no mundo escolar, isso nos ajudará a entender a natureza de nosso problema. Estamos, de fato, no meio de uma revolução educacional causada pela morte do impulso clássico que tem dominado o pensamento europeu desde a época da Renascença. Acho um pouco difícil explicar com exatidão o que quero dizer. Não estou me referindo ao mero ensino de um pouco mais ou um pouco menos de latim e grego. Refiro-me à perda dessa duradoura referência à literatura clássica, no sentido de encontrar nela a expressão de nossos melhores pensamentos sobre todos os assuntos. As obras-primas da literatura grega continuam sendo obras-primas da literatura, e o trabalho de um grupo de brilhantes estudiosos as reinterpretou às vistas do mundo moderno. Mas, apesar de tudo, a cena apresentada à nossa visão pela vida humana de hoje é essencialmente diferente daquela apresentada aos gregos de dois mil anos atrás, ou mesmo aos nossos avós, no início do século XIX.

Há três mudanças fundamentais que criam uma lacuna intransponível. A ciência entra agora na própria textura de nossos pensamentos; seus métodos e resultados colorem a imaginação de nossos poetas; eles modificam as conclusões de filósofos e teólogos. As invenções mecânicas, que são o produto da ciência, ao alterar as possibilidades materiais da vida, transformaram nosso sistema industrial e, portanto, mudaram a própria estrutura da Sociedade. Finalmente, a idéia de Mundo significa, agora para nós, todo o mundo redondo dos assuntos humanos, desde as revoluções da China até as do Peru. Até mesmo para os nossos pais ela ainda transmitia apenas a idéia das nações da Europa e, em particular, das margens do Mediterrâneo. Mas esta fase provinciana do pensamento está se tornando rapidamente impossível.

O resultado final dessas mudanças é que a literatura clássica perdeu seu mérito supremo e sua relevância imediata como bússola absoluta na vida moderna. Para citar um exemplo trivial: em Atenas, a referência a uma roda de oleiro pode evocar memórias vívidas de paisagens habituais; em Londres, ela requer uma nota de rodapé. Quer lamentemos ou não, o domínio absoluto das idéias clássicas na educação está necessariamente condenado.

Mas não é possível alterar toda a base de nosso currículo através de uma mera mudança no calendário escolar. Em primeiro lugar, há a dificuldade que os reformadores educacionais amadores geralmente esquecem – que não há tempo. A falta de tempo é a rocha sobre a qual os esquemas educacionais mais justos são arruinados. Destruiu o esquema que nossos pais construíram para atender à crescente demanda pela introdução de idéias modernas. Eles simplesmente aumentaram o número de disciplinas ensinadas. O latim e o grego deveriam ser mantidos, o tempo dado à matemática ampliado, a história moderna e as ciências físicas deveriam ser acrescentadas; e, ao mesmo tempo, a geografia, a música, o desenho e os estudos da natureza não deveriam ser negligenciados. Também, é claro, as línguas modernas foram consideradas indispensáveis.

A tarefa de educar utilizando tal esquema de estudos é francamente impossível. Em toda reforma educacional moderna, a palavra de ordem deve ser “concentração”.

Mas se examinarmos esse currículo mais antigo, tal como ele existia na prática, observaremos, a menos que eu esteja muito enganado, que, em geral, ele possuía uma peculiaridade muito marcante. Acreditava-se, com alguma razão, que toda idéia culturalmente cultivada tinha encontrado sua melhor expressão nas literaturas clássicas. O resultado foi que todo o ensino geral de idéias foi associado, e com alguma razão, ao estudo das línguas clássicas. Outros estudos foram, de fato, buscados como meras aquisições técnicas. Os meninos podiam aprender tanto alemão quanto grego; mas era a partir de Sófocles, e não de Goethe, que eles esboçavam suas idéias. A matemática, por exemplo, foi desvinculada de toda discussão de idéias, e reduzida à aquisição sem objetivo de métodos formais nos procedimentos. Em outras palavras, o pensamento moderno não foi introduzido no currículo educacional, mas apenas na técnica moderna. Se, para a massa de meninos e jovens, devemos concentrar nossa educação em temas modernos, devemos primeiro convertê-los em um verdadeiro veículo para a inculcação de idéias. Temos, de fato, de civilizá-los.

Agora, nada é mais difícil do que transmitir aos nossos alunos verdadeiras idéias gerais, ao invés de frases pretensiosas. Ninguém dotado de bom senso pode enfrentar uma classe por muito tempo sem descobrir que todo ensino sadio se preocupa com conquistas definidas e precisas por parte dos alunos – para construir gramaticalmente uma frase em latim, para resolver uma equação quadrática, ou para encontrar, com alguma precisão, o ponto de fusão do chumbo. As generalidades vagas são piores que as inúteis, e, se tentarmos incorporar abstrações em fórmulas curtas e precisas, os alunos simplesmente as aprenderão de cor, como se fossem sons vazios.

Em vista dessa dificuldade, vamos examinar brevemente como as línguas clássicas alcançaram seu indubitável sucesso como veículos de uma educação liberal. A vantagem da educação baseada nelas é que, a cada passo, são colocados objetivos definidos perante o aprendiz. Ele tem que interpretar o autor, conhecer o significado e o status gramatical de cada palavra, e dar o sentido preciso no equivalente em inglês. Não há nada de vago em tudo isso; é uma façanha precisa que o aluno tem que realizar. Tem também a vantagem, que todo professor apreciará, de que é fácil testar se o aluno, de fato, tentou cumprir sua tarefa. A tradução dele pode até não fazer sentido, mas ao menos pode ser que ele conheça o significado das várias palavras, seus casos e seus tempos; e, além de tudo isso, as línguas clássicas possuem o supremo mérito de apresentar grandes idéias simultaneamente à mente. Os mais nobres autores da Grécia e de Roma podem ser lidos. Alguns de nós ainda se lembram de reconstruir, em nossos dias de escola, as reflexões de Lucrécio sobre a natureza do universo, e o relato da batalha do porto de Siracusa, seu triunfo e seu desespero.

Não vou considerar mais a questão do lado literário da educação. Não porque eu subestime sua importância, mas porque somos especialmente responsáveis pela formação lógica. Temos realmente dois objetivos gerais diante de nós. Em primeiro lugar, temos que ensinar o que é a lógica. Não quero com isto dizer que devemos nos entregar à tarefa um tanto fútil de afixar nomes em processos lógicos elementares seguindo a forma das cartilhas da lógica formal. Mas temos que fazer nossos alunos sentirem, por meio de um instinto adquirido, o que significa ser lógico, e fazê-los conhecer uma idéia precisa quando a vêem; ou melhor, o que infelizmente é o mais frequentemente desejado, conhecer uma idéia imprecisa quando a vêem. Em segundo lugar, temos que fazê-los entender que a lógica se aplica à vida. Esta é, de fato, a tarefa mais difícil. A maioria das pessoas concorda que existem idéias abstratas e precisas capazes de tratamento lógico, mas muito poucos realmente acreditam que um homem sensato precise levá-las em conta. Tais e tais idéias, eles dirão, estão bem em teoria, mas, na prática, são inúteis. É aqui que o surpreendente sucesso da ciência moderna em transformar o mundo faz do exame dos elementos de seus métodos lógicos uma parte tão vital da educação moderna. Nesta região, o pensamento antigo é francamente inútil. É possível que os gregos tenham sido, em todos os aspectos, mais exigentes do que nós, e que, se estivessem aqui, eles conduziriam nossas investigações científicas de uma maneira superior a qualquer coisa à qual possamos chegar. Mas os gregos antigos não estão aqui, e o fato é que nosso pensamento científico moderno ofusca completamente qualquer coisa do mesmo tipo que existia no mundo antigo. Neste contexto, é um erro pensar que os gregos descobriram os elementos da matemática, e que acrescentamos as partes avançadas do assunto. O oposto é mais próximo do caso; eles estavam interessados nas partes superiores do assunto, e nunca descobriram seus elementos. Os elementos práticos, como agora são empregados na ciência física, e os elementos teóricos sobre os quais todo o conjunto repousa, eram igualmente desconhecidos para eles. A teoria dos limites de Weierstrass e a teoria dos conjuntos de pontos de Georg Cantor são muito mais aliadas aos modos de pensamento gregos do que nossa aritmética moderna, nossa teoria moderna dos números positivos e negativos, nossa representação gráfica moderna da relação funcional, ou nossa idéia moderna da variável algébrica. A matemática elementar é uma das criações mais características do pensamento moderno. É característica do pensamento moderno em virtude da forma íntima com que correlaciona teoria e prática.

Não apresento este ponto de vista em espírito de ociosidade, mas para impor uma conclusão muito séria. No passado, o ensino da matemática elementar sofreu, não apenas porque suas idéias foram sugadas pelos clássicos dominantes, mas também porque foi tratado como uma coleção de meros e desinteressantes prolegômenos a partes mais avançadas do assunto. Todavia, a massa de alunos nunca avançou para essas partes mais avançadas e, em consequência, não ganhou nada além de um conjunto de artifícios sem propósito.

Devemos conceber a matemática elementar como um assunto completo em si mesmo, a ser estudado pelo seu próprio mérito. Ela deve ser purgada de todos os elementos que só podem ser justificados por referência a um curso de estudos mais prolongado. Não pode haver nada mais prejudicial para a verdadeira educação do que passar longas horas na aquisição de idéias e métodos que não levam a lugar nenhum. Isso é fatal para toda a vitalidade intelectual. Produz, por um lado, uma sensação de incompetência, de falta de compreensão e de incapacidade de realmente penetrar no verdadeiro significado das coisas; e, por outro lado, através de uma revolta natural do intelecto auto-respeitador, produz uma aversão às idéias e uma suspeita de que todas elas são igualmente fúteis. Tive uma grande experiência com o produto médio de nossas escolas conforme enviado para as Universidades. Minha conclusão geral não é que eles tenham estado ociosos na escola, ou que tenham sido ensinados de forma descuidada. Pelo contrário, sua educação tem sido evidentemente supervisionada com um vigor consciente. Mas existe um senso de tédio amplamente difundido juntamente com a própria idéia de aprender, e atribuo isto ao fato de terem sido ensinadas muitas coisas meramente soltas no ar, coisas que não têm coerência com qualquer linha de pensamento, como ocorreria naturalmente com qualquer pessoa, por mais intelectual que seja, que tenha seu ser neste mundo moderno. Todo o aparato de aprendizagem lhes parece sem sentido. É claro que qualquer professor individual está desamparado neste assunto; ele está sob o comando do sistema de exames. É aqui que a utilidade de tais organizações, como a que celebra esta reunião de hoje, é aparente. Isso permite que os resultados da experiência em primeira mão adquiram a autoridade de uma demanda coletiva capaz de restringir as Fúrias sem nome que elaboram nossas agendas de exames.

Mas, voltando à matemática elementar: nós a concebemos como um grupo de idéias abstratas, e nosso propósito é ter um caráter tríplice, a saber: (1) o aluno deve finalmente ficar com uma percepção precisa da natureza das abstrações adquiridas pelo uso constante delas, iluminado por explicações e, finalmente, por afirmações precisas; (2) o tratamento lógico de tais idéias deve ser exemplificado por conjuntos de raciocínios que as empregam e as interligam; e (3) a aplicação dessas idéias à natureza, concebidas em seu sentido mais amplo para a inclusão da sociedade humana, deve ser tornada familiar.

Este assunto, conforme assim esboçado, de modo amplo, é limitado pelas seguintes considerações: há muito pouco tempo; as idéias que devem ser introduzidas são apenas as de fundamental importância para todo o raciocínio matemático, e não devem ser complicadas demais para que um menino comum as possa entender.

A maioria destes requisitos se auto-justifica, e não preciso dizer mais nada sobre eles. Vê-se que todo o espírito destas sugestões vai no sentido de uma redução da mera quantidade de raciocínios abstratos a serem realizados, porém, no sentido de uma extensão do tempo dedicado à consideração das idéias em si mesmas, especialmente através da ajuda de suas aplicações a exemplos. Por exemplos, quero dizer exemplos importantes. O que queremos é uma hora do Califa Omar [khayyam], para queimar e destruir por completo todos os problemas matemáticos bobos que sobrecarregam nossos livros didáticos. Protesto contra a apresentação da matemática como um assunto idiota com aplicações idiotas.

Por exemplo, pegue a teoria dos gráficos, que, em seu lado teórico, deveria ensinar aos meninos a idéia abstrata de uma relação funcional entre quantidades variáveis. Esta idéia abstrata está incorporada em alguns exemplos teóricos simples, como o gráfico retilíneo da função algébrica linear de uma variável, o gráfico parabólico da função quadrática e também pelos gráficos ondulados da função senoidal e cosseno, que ilustram a natureza geral das funções periódicas. Desta forma, o menino se familiariza com a idéia de uma lei abstrata e precisa. Se o tempo permitir, a lei do inverso do quadrado pode ser exibida em um gráfico, e também a lei fundamental do crescimento geométrico através da plotagem de funções como 2 elevado a x, 3 elevado a x, etc., e, para os alunos mais experientes, poder-se-ia considerar a série expx ou seja, “e” elevado a x. Mas, para a massa de rapazes, alguns exemplos bem escolhidos de relações funcionais precisas seriam certamente melhores do que um curso mais ambicioso em um campo mais amplo.

Agora, ainda conservando por ora o lado abstrato do trabalho, a consideração dos zeros destas funções de uma só vez introduz equações como um ramo de estudo necessário. As equações lineares e quadráticas adquirem um significado importante, assim como os zeros das funções seno e cosseno. Neste ponto, sugiro que o estudo da álgebra abstrata pode muito bem ser interrompido. Eu eliminaria completamente todas as multiplicações e divisões prolongadas, e as teorias de maior medida comum e de menor múltiplo, e formas complicadas de equações lineares e quadráticas. Elas não levam a nada de importante na mente dos meninos e consomem uma grande quantidade de tempo valioso. Seria bastante suficiente limitar a prática em multiplicação aos casos em que um fator é linear, e a prática em divisão aos casos em que o divisor é linear. Da mesma forma, a fatorização, se admitida, deveria ser rigidamente confinada ao caso de dois fatores lineares com o objetivo de exemplificar a teoria dos zeros de funções quadráticas. Novamente, para a massa de meninos, o tratamento algébrico das expressões fracionárias consome inutilmente um tempo valioso. É claro que é necessária uma ampla prática na manipulação algébrica, mas deve ser restrita a alguns tipos de operações mais necessárias.

Notar-se-á que, embora defendendo a omissão de uma grande parte da álgebra normalmente ensinada, eu incluiria as definições de seno e cosseno e o estudo de seus gráficos. Eu não sugiro que a trigonometria, propriamente dita, seja introduzida. Com isto me refiro à aplicação das funções trigonométricas à teoria do triângulo. Isto, em geral, ocuparia muito tempo, com muito pouco resultado intelectual. O verdadeiro uso destas funções na matemática elementar é sua representação da idéia de periodicidade. Talvez, no entanto, eu esteja muito sanguíneo na esperança de que sua compreensão esteja dentro do alcance de um menino comum.

O resultado geral destas sugestões é que a álgebra elementar seria restrita à consideração das funções mais simples de um variável. A regra de ouro deve ser que, até o final do curso, os alunos nunca devem ver expressões com mais de uma incógnita. É tradicional, logo no início do estudo da ciência, apresentar funções contendo um grande número de letras, a, b, c, d, e, f, com instruções para substituí-las por valores particulares. Sou totalmente incapaz de conceber qual é o valor educacional deste procedimento ingênuo. Tudo o que se quer começar é o cálculo dos valores de casos particulares das funções simples para valores particulares da variável única. Então surge a idéia de qualquer valor da função e, para colocar a questão tecnicamente, chegamos à letra “y“, que fica por si só à esquerda da equação, e a função ao lado direito.

Finalmente, talvez alcancemos a idéia da forma algébrica e introduzamos os coeficientes como parâmetros com as letras a, b, c. Mas, exceto por causa da forma algébrica, mais de uma variável, como argumento para uma função, nunca é desejada no estudo elementar.

Lá se vai a parte teórica do assunto. Tratei disso primeiro porque, em vista de outras sugestões sobre as aplicações práticas, foi necessário para explicar de que forma o tempo seria ganho, e quais são as idéias teóricas a serem conduzidas e a serem aplicadas.

Mas desejo enfaticamente evitar sugerir que idéias tão abstratas como variáveis e funcionalidade sejam melhor introduzidas pela consideração de funções algébricas abstratas, por mais simples que sejam. Pelo contrário, uma consideração preparatória de exemplos concretos através de métodos gráficos é certamente necessária. Aí chegamos a uma das principais causas da fraqueza do treinamento matemático tradicional. Isto está totalmente fora de relação com a exposição real do espírito matemático no pensamento moderno, com o resultado de que ele permaneceu satisfeito com os exemplos bobos e não-sistemáticos. Agora, o efeito que queremos produzir em nossos alunos é gerar uma capacidade de aplicar idéias ao universo concreto. Assim, os exemplos que escolhemos formam a própria espinha dorsal de nosso ensino. O estudo da álgebra deve começar com um estudo sistemático da aplicação prática das idéias matemáticas de quantidade a algum assunto importante. Agora, que assunto podemos escolher para representar o fluxo de quantidades sem a intervenção necessária da técnica algébrica desde o início? Muitas sugestões podem ser feitas, e é óbvio que muitos assuntos em mãos competentes podem ser igualmente bons. Minha sugestão em sua forma mais crua, e mais agressiva, é que metade do ensino da história moderna seja entregue aos matemáticos. A frase “que seja entregue” não é muito precisa; pois a metade a qual me refiro é a metade que, embora seja a verdadeira base de todo o conhecimento das nações, dificilmente é ensinada. Nossos clássicos colegas, excelentes companheiros como eles são, têm suas limitações; e entre elas está esta: eles não estão muito preparados em seus equipamentos mentais para apreciar as estimativas quantitativas das forças que estão moldando a sociedade moderna. Mas, sem tais estimativas, a história moderna que se desdobra diante de nós é um emaranhado sem sentido.

Agora, entre outras peculiaridades do século XIX está esta: que, ao iniciar a coleta sistemática de estatísticas, tornou-se possível o estudo quantitativo das forças sociais. Temos em mãos estatísticas de comércio, tanto externo quanto interno, estatísticas de tráfego ferroviário, estatísticas de colheita, de preços, de saúde da população, de educação, de criminalidade, de retorno de renda, de gastos nacionais, de clima, de preços, de pobreza, e de épocas de nascer e pôr-do-sol ao longo do ano. A redução delas a gráficos, o estudo cuidadoso das peculiaridades desses gráficos, a busca de correlações entre eles e o estudo dos eventos públicos que corresponderam no tempo às peculiaridades na forma gráfica, ensinariam mais matemática e mais conhecimento das forças sociais modernas do que todos os nossos métodos atuais juntos. Nossas relações com nossas colônias, com a França, com a Alemanha, com os Estados Unidos, poderiam ser traçadas estatisticamente. Os problemas poderiam ser resolvidos pelos meninos – como expressar verbalmente o efeito da guerra sobre a vida social de uma nação, como mostram os gráficos. Também podem ser dadas as estatísticas e dizer-lhes para exibi-las em forma gráfica, e declarar as características gerais dos gráficos assim obtidos. A noção de taxas de aumento, incorporando as idéias essenciais do cálculo diferencial, emerge daí.

Finalmente, a teoria e a prática poderiam ser combinadas encontrando gráficos que satisfaçam, de maneira aproximada, as simples leis funcionais que estão sendo estudadas simultaneamente.

Estou bem ciente de que esta sugestão de estudo estatístico pode parecer fantasiosa, e talvez seja declarada como impossível. É claro que, num primeiro esboço rápido, não se pode esperar ter colocado todos os detalhes da idéia em sua relação correta uns com os outros. Mas antes que toda a sugestão seja definitivamente descartada, eu gostaria de saber exatamente por que é impossível e por que é fantasioso. As informações a serem transmitidas são da maior importância para a conduta subsequente da vida em sociedades autônomas; ilustram idéias abstratas importantes, e os meios de estudo são fáceis de serem utilizados. Além disso, o curso de trabalho envolveria simples esforços definidos por parte dos estudantes. Este método de conduzir o estudo elementar da análise matemática me parece ser eminentemente prático, e levar consigo sua própria justificativa em cada etapa.

O tratamento matemático de nossas idéias espaciais é obviamente fundamental para a educação. Não posso fingir estar satisfeito com os efeitos imediatos da abolição dos Elementos de Euclides como livro didático. Instalou-se uma lamentável deficiência de rigor lógico, com efeitos totalmente danosos no valor escolar da matéria. Minha crença é que a ciência como instrumento educacional tem sido arruinada desde os tempos de Euclides por visões falaciosas do método lógico, que parecem ser tanto predominantes quanto tradicionais. Há uma idéia de que as premissas lógicas de um assunto, como a geometria, são proposições que têm alguma qualidade peculiar de auto-evidência, que não é meramente de grau. De fato, está implícito que existem premissas naturais que devem ser utilizadas como tais porque são evidentes e incapazes de serem provadas.

Me disseram que há alguns animais cujos centros de inteligência, tais como são, estão distribuídos de maneira bastante uniforme por todo o corpo, de modo que, por mais que você os corte pela metade, ambas as partes são igualmente lúcidas. Algo assim é o que acontece em qualquer ciência. As proposições que, por alguma razão ou outra, reclamam nossa credibilidade, estão distribuídas por todo o corpo da matéria. A função da lógica dedutiva é, através da criação de um sistema lógico coerente, uni-las, de modo a nos permitir reunir suas constatações. Contudo, geralmente, há mais evidências para as proposições mais complexas do que para as premissas. O principal requisito para uma premissa não é a verdade óbvia, mas a simplicidade. Não há verdade óbvia sobre a lei da gravitação; mas a ciência das atrações, que se baseia nela, é verificada ao longo de toda a linha de pensamento, na medida em que é aplicada às questões comuns.

Assim, a fim de reunir ao máximo nossas provas para um conjunto de proposições, é desejável que as premissas assumidas sejam as menores e mais simples possíveis, e, é claro, quanto mais plenamente reivindicam nossa confiança, melhor. Mas nenhum desses requisitos é absolutamente necessário sob pena de falácia lógica. Nossa seleção de premissas é arbitrária e deve ser guiada pelo propósito que temos em vista. Tais considerações lógicas têm agora uma profunda influência em nossas concepções sobre o verdadeiro modo de apresentar a geometria. Elas levam à conclusão de que a velha apresentação tradicional está errada.

Em primeiro lugar, é de grande importância que os estudantes, antes de considerarem qualquer prova lógica, se familiarizem completamente com o conjunto de idéias e as propostas que devem compor o cronograma do assunto. Eles devem observar que algumas proposições parecem óbvias, e que outras podem ser verificadas experimentalmente através da medição de diagramas desenhados com precisão. 

Desta forma, um cronograma de proposições importantes deve ser cuidadosamente considerado. Então, deve ser feita uma seleção de algumas das proposições mais simples e óbvias e que devem ser tratadas como premissas lógicas. Elas são nossos axiomas de geometria, não os axiomas da geometria; e a partir delas, pelo raciocínio mais rígido, justificando cada passo à medida que avançamos, o resto do cronograma deve ser provado.

Mas gostaria de lembrar que não há nenhuma falácia lógica em manter um conjunto logicamente redundante de premissas. Podemos, se quisermos, indicar aos nossos alunos que algumas das proposições assumidas podem ser provadas pelas outras, mas não há absolutamente nenhuma necessidade de dar a prova se acharmos que é muito longa ou muito difícil. O que é necessário para a educação é que o aluno saiba definitivamente quais proposições foram assumidas, que estes axiomas devem trazer consigo alguma forte evidência de verdade e que o raciocínio deve ser rigidamente preciso e completo. Mas, onde a hipótese é muito simples, as falácias lógicas são imperdoáveis. Também pode ser desejável manter algumas proposições no cronograma para considerações experimentais que não são, em última análise, sujeitas a prova lógica. Por exemplo, a teoria da semelhança é o fundamento de todos os mapas e planos, e é altamente desejável avaliar suas propostas elementares, mesmo que não possam ser comprovadas.

Mas, como no caso da álgebra, o cronograma deve ser rigidamente purgado de todas as proposições que possam parecer ao estudante como sendo meras curiosidades sem nenhum rumo importante.

Mas quais são os princípios importantes das verdades geométricas? Em certo sentido, a própria ciência é sua própria justificativa. É a estrutura quase instintivamente adotada para afirmar nossas experiências do universo. Para explicar por que nos sentimos cansados, indicamos o número de quilômetros que percorremos; para explicar por que levou tantos dias para arar um campo, indicamos seu número de acres. Em cada tentativa de explicação dos fatos materiais da vida, recorremos a idéias geométricas. A geometria é a rainha das ciências físicas. Assim, em certo sentido, podemos trazer qualquer teorema geométrico para o cronograma. Mas nosso tempo é limitado, e faremos bem em nos concentrar em algumas verdades da mais ampla aplicação e da mais imediata importância. O que quer que coloquemos no cronograma exclui necessariamente algo mais, e esta consideração rege nossa seleção.

O tratamento de toda a doutrina da semelhança constitui, por si só, quase um tema menor. Ela nos enfrenta na seleção das escalas de nossos gráficos e de outros diagramas. Também se alia naturalmente à doutrina da proporção aritmética, que em seus elementos recebe um simples tratamento algébrico.  Isto, mais uma vez, encontra uma aplicação na variação proporcional das entradas de tabelas estatísticas, correspondentes a variações da população ou de outros agregados fundamentais. Gostaria, neste momento, de fazer um apelo para que a inclusão do paralelogramo e do polígono de forças como exemplos fundamentais da aplicação da geometria à ciência. Mas já fui conduzido a um discurso que, contra minha intenção original, se desviou para uma discussão técnica.

Temos considerado o lugar da matemática elementar em uma educação liberal. Qual, em poucas palavras, é o resultado final de nossas reflexões? É que os elementos da matemática devem ser tratados como o estudo de um conjunto de idéias fundamentais, cuja importância o aluno pode apreciar imediatamente: que toda proposição e método que não possa passar neste teste, por mais importante que seja para um estudo mais avançado, deve ser implacavelmente cortada: que, com o tempo assim ganho, as idéias fundamentais colocadas diante dos alunos possam ser consideravelmente ampliadas de modo a incluir o que, em essência, é o método da geometria e das coordenadas, a idéia fundamental do cálculo diferencial em relação às taxas de aumento, e a noção geométrica de semelhança. Também, por último, temos insistido que importantes aplicações sistemáticas dessas idéias ao mundo concreto devem ser estudadas simultaneamente – por exemplo, alguns conjuntos de estatísticas sociais ou científicas e o uso do polígono de forças na solução gráfica de problemas mecânicos. Este resumo aproximado pode ser ainda abreviado em um princípio essencial, a saber: simplificar os detalhes e enfatizar os princípios e aplicações importantes.

As sugestões que eu me aventurei a apresentar foram feitas sem hesitações. Sinto-me encorajado a falar com a convicção de que temos agora uma oportunidade de ouro para reconstituir nosso esquema de educação matemática. Mas tais oportunidades são perigosas. Se o ensino matemático não for agora revivificado por um sopro de realidade, não podemos esperar que ele sobreviva como um elemento importante na educação liberal do futuro.


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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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