Dante — George Santayana

No Phaedo de Platão há uma passagem incidental de supremo interesse para o historiador. Ela prefigura, e define com precisão, toda a transição da antiguidade para a idade média, do naturalismo para o supernaturalismo, de Lucrécio para Dante. Sócrates, em sua prisão, está se dirigindo a seus discípulos pela última vez. O tema geral é a imortalidade; mas durante uma pausa no argumento Sócrates diz: “Na minha juventude, […] eu ouvi que alguém leu — conforme ele próprio disse — em um livro de Anaxágoras que a Razão era a responsável e a causa de tudo, e fiquei encantado com essa noção, que me parecia bastante admirável; então eu disse a mim mesmo: ‘Se a Razão é a responsável por tudo, a Razão disporá de tudo da melhor maneira, e colocará cada particular no melhor lugar’, e eu argumentei que, se alguém desejasse descobrir a causa da geração, destruição ou existência de alguma coisa, esse alguém deveria descobrir o que […] era o melhor para essa coisa. […] E eu me alegrei ao pensar que havia encontrado em Anaxágoras um professor das causas da existência, tal como eu desejava, e imaginei que ele me diria antes de tudo se a terra é plana ou redonda; e, qualquer que fosse a verdade, ele procederia […] para mostrar a natureza do melhor, e mostrar que isso era o melhor; e se ele dissesse que a terra estava no centro [do universo], ele explicaria ainda que essa posição era a melhor, e eu ficaria satisfeito com a explicação dada, e não desejaria qualquer outro tipo de causa..[…] Porque eu não podia imaginar que quando ele falava da Razão como responsável pela disposição das coisas, ele pudesse dar qualquer outro relato acerca do seu ser, exceto o de que isso era o melhor..[…] Essas esperanças eu não teria vendido por uma grande soma de dinheiro, e peguei os livros e os li o mais rápido que pude, na minha ânsia de saber do melhor e do pior.

Que expectativas eu tinha formado e como fiquei gravemente decepcionado! Ao prosseguir, encontrei meu filósofo abandonando completamente a Razão ou qualquer outro princípio de ordem, mas recorrendo ao ar, ao éter, à água e a outras excentricidades. […] Dessa maneira, um homem estabelece um vórtice ao redor da terra, e a firma junto ao céu; outro confere o ar como apoio à terra, que seria uma espécie de canal amplo. Qualquer poder capaz de organizá-los da melhor maneira possível nunca entra em suas mentes; e em vez de encontrar qualquer força superior nele, eles esperam antes descobrir outro Atlas do mundo que seja mais forte, mais eterno e mais abrangente do que o bem; acerca do poder imperativo e abrangente do bem, eles nada pensam; e ainda assim este é o princípio que eu gostaria de conhecer, se alguém me ensinasse”.1

Aqui temos o programa de uma nova filosofia. As coisas devem ser entendidas por meio de seus usos ou propósitos, não por seus elementos ou antecedentes; tal como o fato de Sócrates se sentar em sua prisão, quando poderia ter escapado para Euboea, deve ser entendido por sua fidelidade à sua noção do que é melhor, de seu dever para consigo mesmo e para com seu país, e não pela composição de seus ossos e músculos. Tais razões como as que damos para nossas ações —  tais como os motivos que podem mover a assembléia pública para decretar isto ou aquilo — devem ser dadas na explicação da ordem da natureza. O mundo é uma obra da razão. Ele deve ser interpretado, assim como nós interpretamos as ações de um homem, por seus motivos. E esses motivos devemos adivinhar, não por uma fantasiosa mitologia dramática, como a que inventaram os poetas de outrora, mas por um estudo consciente sobre o melhor e o pior na condução de nossas próprias vidas. Por exemplo, a maior ocupação, segundo Platão, é o estudo da filosofia; mas isso não seria possível para o homem se ele tivesse que estar continuamente se alimentando, assim como um animal de pasto, com o nariz no chão. Ora, para evitar a necessidade de comer o tempo todo, os intestinos longos são úteis; portanto, a causa dos intestinos longos é o estudo da filosofia. Ademais, os olhos, nariz e boca estão na frente da cabeça, porque (diz Platão) a frente é o lado mais nobre, — como se as costas não pudessem ser o lado mais nobre (e o lado da frente) se os olhos, nariz e boca estivessem lá! Esse método é o que Molière ridiculariza em Le Malade Imaginaire, quando o refrão canta que o ópio põe as pessoas para dormir porque tem uma virtude dormitiva, cuja natureza é fazer os sentidos adormecerem.

Tudo isso é física ridícula o bastante; mas Platão sabia — embora às vezes se esquecesse — que sua física era jocosa. O importante para nós agora é lembrar que, abaixo dessa física infantil ou metafórica, existe uma moralidade séria. Afinal, o uso do ópio está no fato de que ele seja um narcótico; não importa o porquê, fisicamente, ele é um. O uso do corpo corresponde à mente, seja qual for a origem do corpo. E dizer que eles são as “causas” dos órgãos que os tornam possíveis parece dignificar e justificar esses usos. O que é verdade para determinados órgãos ou substâncias é verdade para todo o quadro da natureza. Seu uso é para servir ao bem — tornar possível a vida, a felicidade e a virtude. Portanto, falando em parábolas, Platão diz, junto com toda a sua escola: Descubra o princípio de ação correto, e você terá descoberto a força governante no universo. Evoque em seu anseio de arrebatamento a essência de um bem supremo, e você terá compreendido a razão pela qual as esferas giram, pela qual a terra é fértil, e pela qual a humanidade sofre e existe. A observação deve ceder à dialética; a arte política deve ceder à aspiração.

Levou muitas centenas de anos para que a revolução se realizasse; Platão tinha um gênio profético e desviou o olhar do que ele era (pois era um grego) para o que a humanidade se tornaria no próximo ciclo civilizatório. Em Dante a revolução se completa, não apenas intelectualmente (pois havia sido concluída intelectualmente muito antes, nos Neoplatonistas e nos Padres da Igreja), porém se completa moral e poeticamente, na medida em que todos os hábitos da mente e todas as sanções da vida pública haviam sido assimilados a ela. Houvera tempo para reinterpretar tudo, obliterando as linhas naturais de segmentação existentes no mundo, e trocando elas por linhas de segmentação morais. A natureza era um composto de propósitos ideais e matéria inerte. A vida era um conflito entre o pecado e a graça. O ambiente era um campo de batalha entre uma hoste de anjos e uma legião de demônios. O melhor e o pior haviam se tornado, tal como Sócrates desejara, os únicos princípios do entendimento.

Tendo se tornado Socrática, a parcela pensante da humanidade dedicou todas as suas energias doravante a definir o bem e o mal em todas as suas notas e em sua essência última; uma tarefa que Dante leva a uma conclusão perfeita. Tão séria e exclusivamente se especulou sobre distinções morais que chegaram a vê-las em formas quase visíveis, tal como Platão havia visto suas idéias. Eles materializaram os termos de sua filosofia moral em objetos e poderes existentes. O bem mais elevado — em Platão ainda se tratava principalmente de um ideal político, o objetivo da política e da arte — chamava-se Deus, o criador do mundo. Os vários estágios ou elementos de perfeição tornaram-se pessoas da divindade, ou inteligências angélicas, ou demônios aéreos, ou tipos inferiores da alma animal. O mal foi identificado com a matéria. Os vários estágios de imperfeição foram atribuídos à brutalidade de vários corpos, que pesavam e sufocavam a centelha de divindade que os animava. Essa centelha, no entanto, poderia ser libertada; então ela voaria novamente para o fogo progenitor e uma alma seria salva.

Tal filosofia não era uma descrição séria da natureza ou da evolução; mas era um julgamento sério sobre elas. O bom, o melhor, o ótimo, foram discernidos; e um conjunto mítico de poderes, que simbolizava esses graus de excelência, fora primeiramente falado e depois acreditado. O mito, quando um outro homem o inventa, pode passar para a história; e quando tal homem é Platão, que há muito viveu, o mito pode passar por revelação. Dessa maneira, os valores morais passaram a ser considerados como forças que trabalham na natureza. No entanto, se eles trabalharam na natureza, que seria um composto de matéria maligna e de forma perfeita, eles devem existir externamente: porque o ideal de excelência acena à distância; ele é aquilo que nós desejamos ser e não somos. As forças que trabalhavam na natureza seriam, portanto, virtudes supernaturais, dominações e poderes; cada coisa natural teria sua incubus supernatural, um anjo da guarda, ou um demônio que a possuía. O supernatural — isto é, algo moral ou ideal considerado como um poder e uma existência — seria tudo sobre nós. Tudo no mundo seria um efeito de algo para além do mundo; tudo na vida representaria um passo para algo mais além da vida.

Nesse sistema, o cristianismo encaixava-se facilmente. Ele o enriqueceu ao acrescentar uma história milagrosa à cosmologia simbólica. Os Platonistas haviam concebido um cosmos no qual havia seres superiores e inferiores, reunidos em círculos concêntricos, em torno desta vil, mas essencial, porção de terra. Os cristãos forneceram uma ação dramática para a qual aquele palco pareceu admiravelmente adequado, uma história na qual toda a raça humana, ou uma única alma, passou sucessivamente por esses palcos superiores e inferiores. Houve uma queda, e talvez houvesse uma salvação. Em certo sentido, mesmo essa concepção de descida do bem, e ascensão em direção a ele novamente, era platônica. Segundo os Platonistas, o bem derramou eternamente sua influência vital, como luz, e recebeu (embora inconscientemente e sem aumento de excelência para si mesmo) raios que, sob a forma de amor e pensamento, voltaram a ele desde os confins do universo. Entretanto, segundo o Platonista, essa radiação de vida e foco de aspiração eram ambos perpétuos. O movimento duplo era eterno. A história do mundo era monótona; ou melhor, o mundo não tinha uma história significativa, mas apenas um movimento como o de uma fonte que jorra para sempre, ou como a circulação da água que está sempre caindo das nuvens em chuva e sempre subindo de novo em vapor. Essa queda, ou emanação do mundo a partir da divindade, era a origem do mal para os Platonistas; o mal consistia apenas na infinitude, materialidade ou alteridade de Deus. Se algo além de Deus pudesse existir, teria que ser imperfeito; a instabilidade e o conflito eram essenciais para a finitude e para a existência. A salvação, por outro lado, era a corrente de retorno da aspiração por parte da criatura para retornar à sua fonte; uma aspiração que se expressava em vários tipos de seres, fixados no eterno, — tipos que levavam, como os degraus de um templo, ao bem inefável no topo.

No sistema cristão essa circulação cósmica tornou-se apenas uma figura ou símbolo que expressa a verdadeira criação, a verdadeira queda e a verdadeira salvação; sendo os três realmente episódios de um drama histórico, que ocorre apenas uma vez. O mundo material seria apenas uma cena, uma cenografia, concebida expressamente para ser apropriada à peça; e essa peça seria a história da humanidade, especialmente de Israel e da Igreja. As pessoas e eventos dessa história teriam uma importância filosófica; todos eles representariam uma parte de um plano providencial. Cada um deles ilustrava a criação, o pecado e a salvação em algum grau, e em algum nível particular

Os judeus nunca se sentiram desconfortáveis por serem seres materiais; mesmo no outro mundo eles esperavam permanecer assim, e sua imortalidade era uma ressurreição da carne. Não lhes parecia plausível que esse excelente quadro de coisas não fosse mais do que um eco tênue, perturbado e não intencional do bem. Pelo contrário, eles achavam este mundo tão bom, intrinsecamente, que tinham certeza de que Deus o teria feito expressamente, e não por uma efluência inconsciente de sua virtude, como os Platonistas haviam acreditado. Sua admiração pelo poder e engenhosidade da divindade atingiu seu máximo quando pensaram nele como o artífice astuto da natureza, e de si mesmos. No entanto, o trabalho parecia mostrar algumas imperfeições; de fato, sua excelência moral era potencial e não atual, uma sugestão do que poderia ser, em vez de um fato consumado. E assim, para explicar as falhas inesperadas em uma criação que eles pensavam ser essencialmente boa, eles colocaram de volta no início das coisas uma experiência que eles tinham diariamente no presente, ou seja, o fato de que os problemas brotam da má conduta.

Os judeus eram vigilantes intencionais da fortuna e de suas vicissitudes. As carreiras dos homens eram sua meditação de dia e de noite; e é preciso pouca atenção para perceber que a frivolidade, a indiferença, a malandragem e a devassidão não contribuem para o bem-estar neste mundo. E, assim como outros povos duramente oprimidos, os antigos judeus tinham uma admiração patética pela segurança e pela abundância. Quão pouco devem ter conhecido essas coisas, para pensar nelas de forma tão arrebatadora e tão poética! Não apenas sua prudência pessoal, mas seu zelo empresarial e religioso os fez abominar aquela má conduta que derrubou a prosperidade. Ela não era mera loucura, mas maldade e a abominação da desolação. Com as lições da conduta continuamente em mente, eles emolduraram a teoria de que todo sofrimento, e até mesmo a morte, era o salário do pecado. Por fim, chegaram ao ponto de atribuir o mal em toda a criação ao pecado casual de um primeiro homem, e à mancha dele que teria sido transmitida a seus descendentes; repercutindo sobre o sofrimento e a morte de todas as criaturas que não são humanas com uma indiferença que surpreenderia os Hindus.

A imperfeição das coisas, na visão hebraica, deve-se a acidentes em sua operação; não, como na visão platônica, a sua separação essencial de sua fonte e seu fim. É em harmonia com isso que a salvação também deve vir em virtude de algum ato especial, como a encarnação ou a morte de Cristo. Assim, os judeus tinham concebido a salvação como um renascimento da existência e grandeza nacional, a ser trazida pela paciência e fidelidade dos eleitos, com tremendos milagres supervenientes para recompensar tais virtudes.

Assim, sua concepção da queda e da redenção foi histórica. E isso foi uma grande vantagem para um homem de imaginação que herdava seu sistema; porque os personagens e os milagres que figuravam em suas histórias sagradas proporcionavam um tema rico de fantasia para se trabalhar, e para as artes retratarem. Os patriarcas desde Adão, os reis e profetas, a criação, o Éden, o dilúvio, a libertação do Egito, os trovões e a lei do Sinai, o templo, o exílio — tudo isso e muito mais que preenche a Bíblia foi um rico recurso, uma tradição familiar que habitava na Igreja, sobre a qual Dante podia se basear, ao mesmo tempo em que se inspirava na tradição clássica paralela que ele também herdou. Para conferir a todas essas pessoas e incidentes bíblicos uma dignidade filosófica, ele só tinha que encaixá-los, tal como os Padres da Igreja haviam feito, na cosmologia neoplatônica, ou, como faziam os doutores de seu próprio tempo, na ética aristotélica.

Assim interpretada, a história sagrada adquiriu para o filósofo uma nova importância para além daquela que parecia ter para Israel no exílio, ou para a alma cristã consciente do pecado. Cada episódio se tornou o símbolo de algum estado moral ou algum princípio moral. Todo pregador da cristandade, ao repetir sua homilia sobre o evangelho da época, foi convidado a criar uma estrutura de interpretações espirituais sobre o sentido literal da narrativa, que, no entanto, ele deveria sempre manter e preservar como fundamento para os outros.2 Em um mundo feito por Deus para a ilustração de sua glória, as coisas e eventos, embora reais, devem ser também simbólicos; pois há intenção e propriedade por trás deles. A criação, o dilúvio, a encarnação, a crucificação e a ressurreição de Cristo, a vinda do Espírito Santo com chamas de fogo e o dom das línguas, foram fatos históricos. A Igreja era herdeira do povo escolhido; era uma instituição histórica e política, com um destino neste mundo, do qual todos os seus filhos deveriam compartilhar, e pelo qual deveriam lutar. Ao mesmo tempo, todos esses fatos, eram mistérios e sacramentos para a alma privada; eram canais para as mesmas graças morais que eram encarnadas na ordem das esferas celestes, e nos tipos de vida moral na terra. Assim, a tradição hebraica trouxe à mente de Dante a consciência de uma história providencial, uma grande tarefa terrena — a ser transmitida de geração em geração — e uma grande esperança. A tradição grega trouxe-lhe uma filosofia natural e moral. Essas contribuições, unidas, criaram a teologia cristã.

Embora essa teologia fosse o guia da imaginação de Dante, e seu tema geral, ainda assim ela não era seu único interesse; ou melhor, ele inseriu no quadro da teologia ortodoxa teorias e visões próprias, ele fundiu tudo em uma só unidade moral e um só entusiasmo poético. A fusão foi perfeita em relação aos elementos pessoais e tradicionais. Ele jogou a política e o amor no caldeirão, e eles também perderam suas impurezas e foram refinados em uma religião filosófica. A teologia tornou-se, para ele, a guardiã do patriotismo e, em um sentido estranhamente literal, o anjo do amor.

A teoria política de Dante é uma teoria sublime e em grande parte original. Ela sofre apenas de sua idealidade extrema, o que a torna inaplicável, e fez com que fosse estudada menos do que merece.

O país de um homem, no sentido moderno, é algo que surgiu ontem, que está mudando constantemente seus limites e seus ideais; é algo que não pode durar para sempre. É o produto de acidentes geográficos e históricos. As diversidades entre nossas diferentes nações são irracionais; cada uma delas tem o mesmo direito, ou falta de direito, a suas peculiaridades. Um homem que é justo e razoável deve hoje em dia, tanto quanto sua imaginação o permita, partilhar do patriotismo dos rivais e inimigos de seu país, — um patriotismo tão inevitável e patético quanto o seu próprio. Sendo a nacionalidade um acidente irracional, como o sexo ou a compleição, a fidelidade de um homem ao seu país deve ser condicional, pelo menos se ele for um filósofo. Seu patriotismo deve ser subordinado à fidelidade racional a coisas como a justiça e a humanidade.

Muito diferente foi a situação no caso de Dante. Para ele, o amor ao país poderia ser algo absoluto e, ao mesmo tempo, algo razoável, deliberado e moral. O que ele achou ao afirmar sua lealdade foi um corpo político bastante ideal, providencial e universal. Esse corpo político tinha duas cabeças, como a águia heráldica, — o papa e o imperador. Ambos eram, por direito, potentados universais; ambos deveriam ter sua sede em Roma; e ambos deveriam dirigir seu governo para o mesmo fim, embora por meios diferentes e em esferas diferentes. O papa deveria zelar pela fé e disciplina da Igreja. Ele deveria testemunhar, em todas as terras e épocas, o fato de que a vida na Terra era meramente preliminar à existência no outro mundo, e que ela deveria ser uma preparação para isso. O imperador, por outro lado, deveria guardar a paz e a justiça em todos os lugares, deixando às cidades livres ou aos príncipes a regulamentação dos assuntos locais. Esses dois poderes haviam sido estabelecidos por Deus através de milagres e comissões especiais. Um evidente projeto providencial que, culminando neles, percorreu toda a história.

Trair ou resistir a esses direitos divinos, ou confundi-los, era, portanto, um pecado da primeira magnitude. Os males dos quais a sociedade sofreu foram a conseqüência de tais transgressões. O papa havia adquirido poder temporal, que era estranho a seu ofício puramente espiritual; além disso, ele havia se tornado um instrumento do rei francês, que estava (o que nenhum rei deveria ser) em guerra com o imperador, e rebelde contra a suprema autoridade imperial; de fato, o papa havia sido visto abandonando Roma em favor de Avignon — um ato que era uma espécie de sacramento satânico, o sinal exterior de uma desgraça interior. O imperador, por sua vez, havia esquecido que era Rei dos Romanos e César, e gostava de vadiar em sua Alemanha natal, entre suas florestas e seus príncipes, como se o mundo inteiro não fosse por direito seu país, e o objeto de sua solicitude.

E aqui o patriotismo maior e teórico de Dante, como católico e romano, passou para seu patriotismo mais estreito e atual como florentino. Teria Florença sido fiel a seus deveres e digna de seus privilégios, sob a dupla autoridade da Igreja e do Império? Florença era uma colônia romana. Teria ela mantido a pureza de seu patrimônio romano, e uma simplicidade e austeridade romana em suas leis? Infelizmente, os imigrantes etruscos haviam contaminado seu sangue, e essa mancha era responsável, pensava Dante, pela corrupção prevalecente nos costumes. Tudo o que tornou Florença grande na história do mundo estava então apenas começando, sua indústria, aperfeiçoamentos, artes e literatura. No entanto, para Dante aquela era florescente parecia uma era de decadência e ruína moral. Ele fez seu antepassado, o cruzado Cacciaguida, elogiar o tempo em que o estreito circuito das muralhas tinha apenas um quinto de seus últimos moradores. “Então a cidade permanecia em paz, sóbria e casta”.3 As mulheres manejavam o distaff, ou balançavam o berço, e contavam a seus filhos as lendas heróicas de Tróia, Fiesole e Roma. Uma mulher podia buscar a melhora na vida sem pintar o rosto; ela não usava uma cinta que merecesse muito mais admiração do que sua própria pessoa. O nascimento de uma filha não amedrontava um bom burguês; seu dote não teria que ser excessivo, nem seu casamento prematuro. Nenhuma casa estava vazia, tendo seus senhores no exílio; nenhuma foi desonrada por orgias inomináveis4 Isso não era tudo; pois se o luxo era uma grande maldição para Florença, a facção era maior. Florença, cidade imperial, longe de ajudar na restituição dos imperadores a seus direitos universais, tinha lutado contra eles traiçoeiramente, em aliança com o invasor francês e o pontífice usurpador. Ela tinha assim minado o único fundamento possível de sua própria paz e dignidade.

Essas foram as tristezas teóricas que pairavam por trás das dores pessoais de Dante em sua pobreza e exílio. Elas o ajudaram a derramar a intensa amargura de seu coração com o sopro da invectiva profética. Elas fizeram com que seu ódio aos papas atuais e à Florença atual se tornasse tão feroz zelo pelo que os papas e Florença deveriam ter sido. Suas paixões e esperanças políticas foram fundidas com um ideal político sublime; essa fusão os sublimou e tornou possível que a expressão delas se elevasse à poesia.

Aqui está uma corda de ferro na qual Dante tocou, e que deu uma força trágica à sua música. Ele registrou a vilania de padres, príncipes e povos. Ele os repreendeu por sua infidelidade às tarefas a eles atribuídas por Deus — tarefas que Dante concebeu com uma definição bíblica e simplicidade. Ele lamentou as consequências dessa iniquidade, as províncias devastadas, as cidades corrompidas e os corpos por enterrar dos heróis, que rolam pelos riachos contaminados. Esses detalhes vigorosos foram exaltados pelo imenso significado que Dante infundiu neles. Seu sempre presente ideal definitivo despertou seu olhar para o fluxo e refluxo das coisas, tornando a experiência delas individualmente mais pungente, e a visão delas juntas mais constante e cumulativa. Dante leu a Itália contemporânea como os profetas hebreus leram os sinais de seus tempos; e qualquer que seja a permissão que nosso julgamento crítico possa fazer para ilusões generosas por parte de qualquer um deles, não pode haver dúvida de que sua integridade de alma, e a absolutização profética de seus julgamentos, fez com que seu domínio sobre os fatos particulares se tornasse muito forte, e seu senso de bem ou mal se tornasse esmagador.

Nem parece que, no fundo, a filosofia política de Dante, assim como a dos profetas hebreus, tenha falhado em relação às grandes causas e aos grandes objetivos do progresso humano. Por trás de concepções míticas e estreitas da história, ele tinha um verdadeiro senso para os princípios morais que realmente condicionam nosso bem-estar. Uma ciência melhor não precisa subtrair nada da percepção que ele tinha sobre a diferença entre o bem político e o mal. O que em sua época parecia um sonho — de que a humanidade deveria ser uma grande comunidade — é agora óbvio para o idealista, o socialista, o comerciante. A ciência e o comércio estão dando, de uma forma muito diferente, certamente, uma realização prática a essa idéia. E a outra metade de sua teoria, aquela da Igreja Católica, é mantida literalmente pela própria Igreja até hoje; e o forasteiro poderia ver naquele ideal de uma sociedade espiritual universal um símbolo ou premonição do direito da mente à liberdade das compulsões legais, ou da fidelidade comum das mentes honestas à ciência, e à sua herança espiritual e destino comuns.

Por outro lado, a pungência dos erros privados de Dante, como o entusiasmo de seus amores privados, emprestou um calor maravilhoso e uma clareza aos grandes objetos de sua imaginação. Com muita frequência, somos impedidos de sentir grandes coisas grandemente por falta de poder para assimilá-las às pequenas coisas que sentimos com entusiasmo e sinceridade. Dante tinha, a esse respeito, a arte de um amante platônico: ele podia ampliar o objeto de sua paixão, e manter o calor e o ardor sobre ele inabalável. Ele havia sido banido injustamente — Florentinus exul immeritus, era como ele gostava de se chamar a si próprio. Aquela injustiça se instalou, mas ela não apodreceu, em seu coração; pois sua indignação se espalhou a todo erro, e trovejou contra Florença, a Europa e a humanidade, na medida em que eles eram corruptos e pérfidos. Dante havia amado. A memória dessa paixão também permaneceu, mas não degenerou em sentimentalismo; pois sua adoração passou para um objeto maior e menos acidental. Seu amor fora uma centelha daquele “amor que move o sol e as outras estrelas”.5 Ele tinha conhecido, naquela revelação, o segredo do universo. As esferas, os anjos, as ciências, estavam doravante cheias de doçura, conforto e luz.

Dessa expansão platônica da emoção, a ponto de preencher tudo o que merece ser para acendê-la, temos uma versão maravilhosa na Vita Nuova de Dante. Esse livro, na superfície, é um relato do encontro de Dante, aos nove anos, com Beatriz, uma criança ainda um pouco mais jovem; de outro encontro com ela aos dezoito anos; de uma paixão mística esmagadora que o amante quis manter em segredo, a ponto de fingir outro apego, tal como um cego; de um consequente afastamento; e da morte de Beatriz, após a qual o poeta resolveu não voltar a falar dela publicamente, até que ele pudesse elogiá-la de forma tão sábia como nenhuma mulher jamais havia sido elogiada antes.

Essa história é intercalada com poemas da mais refinada delicadeza, tanto no sentimento como na versificação. São meditações sonhadoras, alegóricas, musicais, ambíguas em seus significados velados, mas absolutamente claras e perfeitas em sua estrutura artística, como uma obra de marcenaria e vitrais, geométrica, mística e terna. Há uma singular limpidez de sotaque e imagem, uma singular ingenuidade, estranhamente combinada nessas peças com as distinções escolásticas e um deleite em esconder e insinuar, tal como em uma charada.

Os eruditos disputarão para sempre sobre a base exata e o significado dessas confissões de Dante. Os eruditos talvez não sejam os mais aptos para resolver o problema. É uma questão de tato literário e de imaginação simpática. Deve ser deixado à delicada inteligência do leitor, caso ele a tenha; e caso não a tenha, Dante não deseja abrir seu coração para ele. Sua maneira enigmática é sua proteção contra a intromissão de mentes não convencionais.

Sem ultrapassar a esfera da crítica culta, penso que podemos dizer o seguinte: as várias interpretações, quanto a esse assunto, não são mutuamente excludentes. Simbolismo e literalidade, no tempo de Dante, e em sua prática, são simultâneos. Por exemplo, em qualquer história da filosofia medieval, você pode ler que um grande assunto de disputa naquela época era a questão de se os termos ou naturezas universais, como homem, ou humanidade, existiam antes dos particulares, nos particulares, ou depois dos particulares, por abstração do que era comum a todos eles. Ora, esse assunto era sem dúvida muito disputado; mas existe uma solução abrangente e ortodoxa, que representa a verdadeira mente da época, acima dos passatempos ou heresias peculiares dos indivíduos. Tal solução é a de que existem termos ou naturezas universais antes dos particulares, e nos particulares, e depois dos particulares: porque Deus, antes de fazer o mundo, sabia como pretendia fazê-lo, e tinha eternamente em sua mente as noções de um homem perfeito, de um cavalo, etc., após as quais os particulares deveriam ser modelados, ou às quais, em caso de acidente, deveriam ser restauradas, seja pela força curativa e de recuperação da natureza, seja pelas ministrações da graça. Porém, os termos universais ou naturezas também existiam nos particulares, já que os particulares os ilustravam, os compartilhavam, e eram o que eram em virtude daquela participação. No entanto, os universais também existiam após os particulares: porque a mente discursiva do homem, examinando a variedade das coisas naturais, não poderia deixar de notar e abstrair os tipos comuns que freqüentemente se repetem neles; e essa idéia ex postfacto, na mente humana, é também um termo universal. Negar qualquer uma das três teorias, e não ver sua consistência, é deixar escapar o ponto de vista medieval, que, em todos os sentidos da palavra, era católico.

Uma tal solução me parece natural no caso de Beatriz. Dispomos de provas documentais independentes de que no tempo de Dante realmente vivia em Florença um certo Bice Portinari; e há muitos incidentes na Vita Nuova e na Commedia que dificilmente admitem uma interpretação alegórica; tais como a morte de Beatriz, e especialmente a de seu pai, ocasião em que Dante escreve um poema compassivo.6 Que ele havia amado alguém é certo. A maioria das pessoas o fez; e por que Dante, em particular, teria achado a linguagem do amor um véu natural para sua filosofia, se a paixão e a linguagem do amor não tivessem sido sua língua materna? A linguagem do amor é sem dúvida usual nas alegorias dos místicos, e era atual na poesia convencional da época de Dante; mas os próprios místicos são comumente atravessados ou amantes em potencial; e os trovadores se agarraram à corda do amor simplesmente porque era a corda mais responsiva em sua própria natureza, e a que mais facilmente podia ser feita vibrar em seus ouvintes. Dante não era menos sensível do que o homem comum de sua geração; e se ele seguia a moda dos trovadores e místicos, era porque ele compartilhava a disposição deles. O belo, o inacessível, o divino, havia passado diante dele de alguma forma visível; não importa se essa visão veio apenas uma vez, e na forma da atual Beatriz, ou continuamente, e em todas as formas através das quais uma influência divina possa parecer chegar a um poeta. Ninguém mereceria esse nome de poeta — e quem o merece mais do que Dante? — se vistas e sons reais nunca o impressionassem; e ele também dificilmente o mereceria, se o impressionassem apenas fisicamente, e pelo que eles são em si mesmos. Sua sensibilidade cria seu ideal.

Se negar a existência de uma Beatriz histórica parece coisa violenta e gratuita, seria um equívoco muito pior não perceber que a Beatriz é também um símbolo. Em uma ocasião, tal como lemos em Vita Nuova7, Dante se viu, em uma igreja, na presença de Beatriz. Seus olhos estavam inevitavelmente fixos nela; mas como ele desejava esconder sua paixão profunda da multidão fofoqueira, ele escolheu outra senhora, que por acaso estava na linha direta de visão entre ele e Beatriz, e fingiu estar olhando para ela, na realidade olhando para além dela, para Beatriz. Essa senhora interveniente, la donna gentile, tornou-se a cortina para seu verdadeiro amor.8 Contudo, suas atenções para com ela foram tão assíduas que foram mal interpretadas. A própria Beatriz as observou, e pensando que ele ia longe demais e não com um propósito honrado, mostrou seu desagrado ao recusar-se a cumprimentá-lo enquanto ele passava. Isso parece real e terreno: mas qual é nossa surpresa quando lemos expressamente, no Convito, que a donna gentile, a cortina do verdadeiro amor de Dante, é a filosofia.9 Se a donna gentile é filosofia, a donna gentilissima, Beatriz, deve ser algo do mesmo tipo, só que mais nobre. Ela deve ser a teologia, e a teologia, Beatriz sem dúvida o é. Seu próprio nome é tocado, se não selecionado, para significar que ela é aquilo que torna abençoado, o que mostra o caminho da salvação.

Agora a cena na igreja se torna uma alegoria ao longo de toda a história. O jovem Dante, que somos dados a entender, era no fundo uma alma religiosa e devota, em busca da mais alta sabedoria. Porém, intervindo entre sua razão humana e a verdade revelada (pela qual ele realmente estava apaixonado, e desejava conquistar e compreender) ele encontrou a filosofia ou, como devemos dizer, a ciência. À ciência ele deu sua atenção preliminar; tanto que os mistérios da teologia foram momentaneamente obscurecidos em sua mente; e sua fé, para sua grande tristeza, recusou-se a saudá-lo enquanto ele passava. Ele havia caído em erros materialistas; ele havia interpretado as manchas na lua como se elas pudessem ser devidas a causas físicas e não-socráticas; e sua filosofia religiosa havia perdido seu calor, mesmo que sua fé religiosa não tivesse sido realmente posta em perigo. É certo, portanto, que Beatriz, além de mulher, era também um símbolo.

Mas isso não é o fim. Se Beatriz é um símbolo para a teologia, a teologia em si não é definitiva. Ela também é uma avenida, uma interpretação. Os olhos de Beatriz refletem uma luz superna. É a visão inefável de Deus, a visão beatífica, que sozinha pode nos fazer felizes e ser a razão e o fim de nossos amores e de nossas peregrinações.

Um ideal supremo de paz e perfeição que move o amante, e que move o céu, é mais facilmente nomeado do que compreendido. No último canto do Paraíso, onde Dante está tentando descrever a visão beatífica, ele diz muitas vezes que nossa noção desse ideal precisa ser vaga e inadequada. O valor da noção para um poeta ou um filósofo não está no que ela contém positivamente, mas na atitude que ela o leva a assumir em relação à experiência real. Ou talvez seja melhor dizer que ter um ideal não significa tanto ter qualquer imagem na fantasia, qualquer utopia mais ou menos articulada, mas sim ter uma atitude moral consistente com todas as coisas deste mundo, julgar e coordenar nossos interesses, estabelecer uma hierarquia de bens e males e valorizar eventos e pessoas, não por uma impressão ou instinto pessoal casual, mas de acordo com sua real natureza e tendência. Assim entendido, um ideal último não é uma mera visão do sonhador filosófico, mas uma força poderosa e apaixonada no poeta e no orador. É a voz de seu amor ou ódio, de sua esperança ou tristeza, idealizando, desafiando, ou condenando o mundo.

Foi aqui que a sensibilidade febril do jovem Dante o colocou em boa posição; deu um vigor e clareza sem precedentes à sua visão moral; fez dele o poeta clássico do inferno e do céu. Ao mesmo tempo, ajudou a torná-lo um juiz justo, um terrível acusador, da terra. Tudo e todos em sua época e geração se tornaram para ele, por causa de sua intensa lealdade à sua visão interior, uma instância de graciosidade divina ou de perversidade demoníaca. Sem dúvida, essa agudeza de alma não se devia inteiramente ao dom de amar, ou à disciplina do amor; devia-se em parte também ao orgulho, ao ressentimento, aos preconceitos teóricos. Mas figuras como a de Francesca di Rimini e Manfred, e a luz e o arrebatamento que vibram por todo o Paraíso, dificilmente poderiam ter sido evocados por um gênio meramente irritado. O fundamento e o ponto de partida de tudo em Dante é o intelletto d’amore, o gênio do amor.

Todos ouviram que Deus é amor e que o amor faz o mundo girar; e aqueles que rastrearam essa última noção até sua origem em Aristóteles podem ter alguma noção do que ela significa. Significa, como vimos no início, que não devemos tentar explicar o movimento e a vida por meio de seus antecedentes naturais, porque eles recuam in infinutum. Devemos explicar o movimento e a vida, antes, por meio de seu propósito ou fim, por meio daquele ideal não realizado a que as coisas vivas e em movimento parecem aspirar, e pode ser dito que eles amam. Aquilo que justifica a si próprio não é nenhum fato ou lei; por que com eles não deveria ser diferente? Aquilo que se justifica a si mesmo é o que é bom, o que é como deveria ser. Mas as coisas em movimento, Aristóteles concebeu, declaram, por assim dizer, que não estão satisfeitas, e que deveriam estar em alguma condição diferente. Elas buscam uma realização que ainda é ideal. Essa realização, se incluísse o movimento e a vida, poderia incluí-los apenas interiormente; consistiria em uma atividade sustentada, que nunca caducaria nem sofreria mudanças. Tal atividade é o objetivo imutável para o qual a vida avança e pelo qual suas diferentes etapas são medidas: Todavia, uma vez que o objetivo das coisas, e não suas causas naturais, é o que as explica, podemos chamar essa eventual atividade de sua razão de ser. Ela será o seu motor imóvel.

Mas como, podemos perguntar, — como pode o imutável, o ideal, o eventual, iniciar qualquer coisa ou determinar a disposição e a tendência do que atualmente vive e se move? A resposta, ou melhor, a impossibilidade de dar uma resposta, pode ser expressa em uma única palavra: mágica. É mágico quando um resultado bom ou interessante, porque ele se revelaria bom ou interessante, é creditado com o poder de ordenar as condições e de evocar os seres que devem realizá-lo. É natural que eu tenha fome, e natural que haja coisas adequadas para eu comer — caso contrário, não ficaria com fome por muito tempo; mas se minha fome, no caso de ser suficientemente aguda, fosse capaz de produzir o alimento que ela requer, isso seria magia. A natureza seria provocada pelos feitiços da vontade.

Não esqueço que Aristóteles, com Dante após ele, afirma que o objetivo da vida é um ser à parte já existente, ou seja, a mente de Deus, que eternamente realiza aquilo a que o mundo aspira. No entanto, a influência dessa mente sobre o mundo não é menos mágica do que seria a de um ideal não-existente. Porque seu operar não é reconhecidamente transitório ou físico. Ela mesma não se altera em seu funcionamento. Nenhuma virtude a deixa; ela não sabe sequer, segundo Aristóteles e Plotino, que ela funciona. De fato, ela funciona apenas porque outras coisas estão dispostas a persegui-la enquanto ideal; deixe as coisas manterem essa disposição, e elas perseguirão e emoldurarão seu ideal igualmente, se ele não tiver uma existência atual, ou se por acaso ele existir em outro lugar e em si próprio. Ele funciona exclusivamente por sua capacidade de ideal; portanto, mesmo que exista, ele funciona apenas por magia. A matéria por baixo sente o feitiço de sua presença, e captura algo de sua imagem, pois as ondas do mar podem receber e refletir tremidamente a luz lançada pela lua. O mundo é movido e vivificado em cada fibra por magia, pela magia do objetivo ao qual aspira.

Porém essa magia, na terra, levava o nome do amor. A vida do mundo era um amor, produzido pela atração mágica de um bem que ela nunca possuiu e, enquanto ele permanecer sendo um mundo, ela é incapaz de possuir. As coisas concretas seriam apenas sugestões do que os elementos daquela existência ulterior deveriam ser: eram meros símbolos. A semente de bolota era uma mera profecia — um símbolo existente — para o carvalho ideal; porque quando a semente de bolota cair em boa terra será corrompida, mas a idéia do carvalho surgirá e será manifestada em seu lugar. A semente de bolota seria uma espécie de relicário no qual o poder milagroso da idéia foi de alguma maneira consagrado. Na atribuição vulgar das causas nós, tal como Anaxágoras, nos assemelhamos a um adorador supersticioso de relíquias que deveria esquecer que é a intercessão e os méritos do santo realmente fazem o milagre, e deveria atribuí-lo aos ossos e vestimentas do santo em sua capacidade material. Da mesma maneira, devemos atribuir o poder que as coisas exerceram sobre nós, não à substância mais rara ou mais densa, mas às idéias eternas que coisas existiram ao expressar, e existiram para expressar. As coisas meramente localizadas — como as relíquias do santo — são influências que fluíram para nós a partir de cima. No mundo dos valores elas eram meros símbolos, canais acidentais da energia divina; e como a energia divina, por sua assimilação mágica da matéria, tinha criado essas coisas, a fim de se expressar, elas eram símbolos no conjunto, não apenas em seu uso, mas em sua origem e natureza.

Uma mente convencida de que vive entre coisas que, assim como as palavras, são essencialmente significativas, e que o que elas significam é a atração mágica, chamada amor, o qual atrai todas as coisas após ele, é uma mente poética em sua intuição, mesmo que sua linguagem seja prosa. A ciência e a filosofia de Dante não precisavam ser colocadas em verso para se tornarem poesia: elas eram poesia fundamentalmente e em sua essência. Quando Platão e Aristóteles, seguindo o importante preceito de Sócrates, decretaram que a observação da natureza deveria cessar e uma interpretação moral da natureza deveria começar, eles lançaram ao mundo uma nova mitologia, que tomaria o lugar da homérica, a qual perdia sua autoridade. O poder de ilusão que os poetas haviam perdido foi adquirido por esses filósofos em alto grau; e ninguém nunca esteve tão profundamente sob seu feitiço como Dante. Ele tornou-se para o Platonismo e o Cristianismo o que Homero tinha sido para o Paganismo; e se o Platonismo e o Cristianismo, tal como o Paganismo, deixarem de ser defendidos cientificamente, Dante manterá viva a poesia e a sabedoria deles; e é seguro afirmar que as gerações posteriores invejarão mais do que desprezarão sua filosofia. Quando as controvérsias absurdas e paixões facciosas que, em certa medida, obscurecem a natureza desse sistema, já tiverem passado completamente, ninguém pensará em censurar Dante por sua má ciência, por sua má história e por sua teologia minuciosa. Esas não parecerão manchas em sua poesia, mas partes integrantes dela.

Mil anos depois de Homero, os críticos de Alexandria estavam expondo seus encantadores mitos como se fossem um tratado revelado de física e moral. Mil anos depois de Dante, podemos esperar que sua visão consciente do universo, onde tudo é amor, magia e simbolismo, possa encantar a humanidade exclusivamente como poesia. Assim concebida, a Divina Comédia marca o meio-dia naquele longo sonho diurno do qual os diálogos de Platão marcam o início: uma pausa de dois mil anos no trabalho da razão política, durante a qual a imaginação moral deu origem a uma filosofia alegórica, tal como um menino, que se mantendo em casa durante um dia chuvoso com livros demasiado difíceis e literais para sua idade, pôde articular seu próprio romance a partir das histórias de seu pai, e pôde definir, com precisão infantil, seu amor pela menina ideal, as batalhas e os reinos. A idade média enxergou o bem em uma visão. Cabe à nova era traduzir esses símbolos encantadores para os propósitos da humanidade.


Em uma carta que a tradição atribui a Dante, dirigida a seu protetor, Cangrande della Scala, senhor de Verona e Vicenza, estão estas palavras sobre a Divina Comédia: “O tema de toda a obra, considerado apenas em seu sentido literal, é o estado das almas após a morte, considerado simplesmente como um fato. Porém, se a obra é entendida em sua intenção alegórica, o sujeito dela é o homem, segundo seus méritos e deméritos no uso de seu livre arbítrio, ele está justamente aberto a recompensas e punições”. Isso, porém, não esgota de forma alguma as significações que podemos procurar numa obra de Dante. Quantas delas nos são indicadas na mesma carta, e ilustradas pelo início do centésimo décimo-quarto Salmo: “Quando Israel saiu do Egito, e a casa de Jacó de um povo de língua estranha; Judá foi seu santuário, e Israel seu domínio”. Aqui, Dante nos diz: “se olharmos apenas à letra, o que nos é transmitido é a libertação dos filhos de Israel do Egito no tempo de Moisés; se olharmos para a alegoria disso, o que significa é a nossa redenção realizada por Cristo; se considerarmos o sentido moral, o que se significa é a conversão da alma do seu presente sofrimento e miséria para um estado de graça; e se considerarmos o sentido anagógico [isto é, a revelação contida a respeito de nosso destino mais elevado], o que se significa é a passagem da alma santificada da escravidão da corrupção terrena para a liberdade da glória eterna”.

Quando as pessoas se dispersam tanto por um simples texto a ponto de encontrar todos esses significados nele, podemos esperar que suas próprias obras, quando destinadas a ser profundas, tenham um estágio acima do estágio de aplicação alegórica. Assim, no primeiro canto do Inferno encontramos um leão que impede Dante de se aproximar de uma montanha encantadora; e esse leão, além do que ele é na paisagem do poema, é um símbolo de orgulho ou poder em geral, para o rei da França em particular, e para qualquer ambição política na vida pessoal de Dante que o tenha roubado a felicidade ou o tenha distraído da fé e da piedade. Assim, em toda a Divina Comédia, o sentido e o significado se escondem sob as imagens luminosas; e o poema, além de ser uma descrição do outro mundo, e das recompensas e punições aplicadas às almas, é uma visão dramática das paixões humanas nesta vida; uma história da Itália e do mundo; uma teoria da Igreja e do Estado; a autobiografia de um exilado; e as confissões de um cristão, e de um amante, consciente de seus pecados e do milagre da graça divina que intervém para salvá-lo.

O objeto-matéria da Divina Comédia é, portanto, o universo moral em todos os seus níveis —  romântico, político, religioso. Para apresentar esses fatos morais de maneira gráfica, o poeta realizou um duplo trabalho de imaginação. Primeiro ele escolheu algum personagem histórico que pudesse ilustrar plausivelmente cada condição da alma. Depois ele retratou essa pessoa em alguma atitude característica e simbólica da mente e do corpo, e em um ambiente simbólico apropriado. Dar incorporação material a idéias morais por tal método seria hoje em dia muito artificial, e talvez impossível; mas no tempo de Dante tudo era favorável à tentativa. Estamos acostumados a pensar em bens e males como funções de uma vida natural, faíscas que se apagam no choque casual dos homens com as coisas ou uns com os outros. Para Dante, era evidente que as distinções morais podiam ser discernidas, não apenas como surgem incidentalmente na experiência humana, mas também, e mais genuinamente, como são exibidas na ordem da criação. O próprio Criador era um poeta que produzia alegorias. O mundo material era uma parábola que ele tinha construído no espaço, e ordenou que fosse decretada. A história era uma grande charada. Os símbolos dos poetas terrenos são palavras ou imagens; os símbolos do poeta divino eram coisas naturais e a sorte dos homens. Eles tinham sido concebidos com um propósito; e tal propósito, como o Corão também declara, tinha sido precisamente o de mostrar a grande diferença que há aos olhos de Deus entre o bem e o mal.

Na cosmologia platônica, as esferas concêntricas seriam corpos formados e animados por inteligências de várias ordens. Quanto mais nobre uma inteligência, mais rápida e exterior, ou superior, era a esfera que ela movia; de onde surgiu a identificação de “superior” com melhor, que sobrevive, absurdamente, até os dias de hoje. E embora Dante não pudesse atribuir a verdade literal a suas fantasias sobre o inferno, o purgatório e o céu, ele acreditava que um verdadeiro céu, purgatório e inferno tinha sido formado por Deus de propósito para receber almas de diferentes destinos e complexidades; de modo que, embora a imaginação do poeta — a menos que ela reeditasse a revelação divina — fosse apenas humana e não profética, ainda assim ela era uma imaginação genuína e plausível, movendo-se nas linhas da natureza, e antecipando coisas tais como a experiência poderia muito bem perceber. A objetivação da moralidade de Dante, sua arte de dar formas visíveis e habitações locais às virtudes e vícios ideais, foi para ele um exercício filosófico e profundamente sério. Deus criara a natureza e a vida com base nesse mesmo princípio. O método do poeta repetia a magia do Gênesis. Sua imaginação simbólica espelhava esse mundo simbólico; era uma sincera antecipação dos fatos, não uma mera alegoria laboriosa e voluntariosa.

Tal situação tem uma consequência curiosa. Provavelmente, pela primeira e última vez na história do mundo, uma classificação elaborada por um moralista sistemático guiou a visão de um grande poeta. Aristóteles havia distinguido, nomeado e classificado as diversas virtudes, com seus opostos. Mas observe: se o outro mundo foi feito de propósito — tal como foi — para expressar e tornar palpáveis aquelas distinções morais que eram eternas, e para expressá-las e torná-las palpáveis em grandes detalhes, com todas as suas possíveis matizes e variedades; e se Aristóteles tinha classificado corretamente as qualidades morais, tal como ele havia classificado — então segue-se que Aristóteles (sem sabê-lo) deve ter fornecido a planta baixa, por assim dizer, do inferno e do céu. Tal era o pensamento de Dante. Com a Ética de Aristóteles aberta diante dele, com uma dica suplementar, aqui e ali, extraída do catecismo, e com uma preferência arraigada (piedosa e quase filosófica) pelo número três e seus múltiplos, ele não precisava viajar sem uma mapa. O mais visionário dos assuntos, a vida após a morte, poderia ser tratado com sobriedade científica e profunda sinceridade. Essa visão não era para ser um sonho sem graça. Era para ser uma meditação sóbria, uma profecia filosófica, um provável drama — a mais pungente, terrível, e consoladora de todas as verdades possíveis.

O bem — este foi o pensamento fundamental de Aristóteles e de toda a ética grega, —, o bem é o fim a que a natureza visa. As exigências da vida não podem ser radicalmente perversas, uma vez que elas são os juízes de toda excelência. Nenhum homem, tal como diz Dante, poderia odiar sua própria alma; ele não poderia de uma só vez ser, e contradizer, a voz de seus instintos e emoções. Nem poderia um homem odiar a Deus; pois se esse homem se conhecesse a si mesmo, veria que Deus é, por definição, seu bem natural, o objetivo último de suas aspirações atuais.10 Como era impossível, de acordo com sua percepção, que nossas faculdades fossem intrinsecamente más, todo o mal tinha que surgir da desordem dentro da qual essas faculdades caem, quando sua fraqueza ou força é demasiado grande em relação umas às outras. Se a parte animal do homem fosse forte demais para sua razão, ele caía na incontinência, ou seja, na luxúria, na gula, na avareza, na ira ou no orgulho. A incontinência surgiu de uma busca excessiva ou inoportuna de algo bom, de uma parte daquilo a que a natureza visa; pois comida, crianças, propriedade e caráter são bens naturais. Tais pecados são, portanto, os mais desculpáveis e os menos odiosos. Dante coloca aqueles que pecaram por amor no primeiro círculo do inferno, mais próximo à luz do sol, ou no mais alto círculo do purgatório, mais próximo ao paraíso terrestre. Abaixo dos amantes, em cada caso, estão os glutões, — onde um poeta do norte teria sido obrigado a colocar seus bêbados. Abaixo deles encontram-se os avarentos, — pior porque menos abertos à desculpa de uma mera falta de autocontrole infantil.

A desordem das faculdades pode surgir, no entanto, de outra maneira. O elemento combativo ou espirituoso, mais do que os sensos, pode ficar fora de controle e levar a crimes de violência. A violência, tal como a incontinência, é suficientemente espontânea em sua origem pessoal, e não seria odiosa se não infligisse, nem pretendesse infligir, danos aos outros; de modo que, além da incontinência, há malícia nela. A má vontade aos outros pode surgir do orgulho, porque se ama ser superior a eles, ou da inveja, porque se abomina que eles pareçam superiores a si próprio; ou através do desejo de vingança, porque se espera ferir a alguém por causa de algum dano. Pecados desse tipo são mais graves que os da incontinência tola; complicam mais o mundo moral; introduzem infinita oposição de interesses, e crimes perpétuos e autopropagadores. Eles são odiosos. Dante sente menos pena daqueles que sofrem por eles: ele se lembra dos sofrimentos que esses malfeitores causaram, e sente uma espécie de alegria em se unir à justiça divina, e de bom grado os chicotearia ele mesmo.

Pior ainda que a violência, porém, é a astúcia: o pecado daqueles que, a serviço de sua intemperança ou de sua malícia, abusaram do dom da razão. Corruptio optimi pessima; e converter a razão, a faculdade que estabelece a ordem, em um meio de organizar a desordem, é uma perversidade verdadeiramente satânica: ela transforma o mal em uma arte. Mas mesmo essa perversidade tem etapas; e Dante distingue dez tipos de desonestidade ou fraude simples, assim como três tipos de traição.

Além dessas transgressões positivas, há a possibilidade de uma morosidade geral e indiferença. A isso Dante, com sua natureza fervorosa, odeia particularmente. Ele coloca os laodicenses à margem de seu inferno; dentro do portão, para que possam permanecer sem esperança, mas fora do limbo, para que possam ter tormentos a suportar, e serem picados por vespas e moscões numa atividade morosa.11

A esses vícios, conhecidos por Aristóteles, o moralista católico foi obrigado a acrescentar dois outros: o pecado original, do qual a descrença espontânea é uma consequência, e a heresia, ou má fé, após uma revelação ter sido dada e aceita. O pecado original, e o paganismo que o acompanha, se não levam a nada pior, são uma mera privação da excelência e envolvem, na eternidade, uma mera privação da alegria: eles são punidos no limbo. Os suspiros são ouvidos, mas não se ouve nenhuma lamentação, e a única tristeza é a de se viver no desejo sem esperança. No além, esse destino é mais apropriadamente imputado aos mais nobres e lúcidos, uma vez que frequentemente é essa a experiência deles aqui. Dante nunca foi tão justo quanto nesse momento12. A heresia, por outro lado, é um tipo de paixão quando honesta, ou um tipo de fraude quando política; e é punida ou como orgulho, em tumbas ardentes13, ou como uma facção, por perpétuas feridas abertas e mutilações horríveis14.

Até agora, com essas ligeiras adições, Dante está seguindo Aristóteles; mas aqui uma grande divergência se instala. Se um poeta pagão tivesse concebido a idéia de ilustrar o catálogo de vícios e virtudes em cenas poéticas, ele teria escolhido episódios adequados na vida humana, e pintado os personagens típicos que figuravam neles em seu ambiente terreno; pois a moralidade pagã é uma instalação terrestre. Não é assim com Dante. Seu poema descreve este mundo apenas em retrospectiva; o primeiro plano é ocupado pelas consequências eternas do que o tempo havia trazido à tona. Tais consequências são fatos novos, não apenas, como para o racionalista, os fatos antigos concebidos em sua verdade; eles muitas vezes revertem, em sua qualidade emocional, os eventos que representam. Tal reversão se torna possível pela teoria de que a justiça é parcialmente retributiva; que a virtude não é sua própria recompensa suficiente, nem o vício sua própria punição suficiente. De acordo com tal teoria, esta vida contém apenas uma parte de nossa experiência, mas ainda assim determina o resto. A outra vida é uma segunda experiência, mas não contém nenhuma aventura nova. Ela é totalmente determinada pelo que fizemos na Terra; uma vez que a árvore cai, assim ela jaz, e as almas após a morte não têm mais iniciativa.

A teoria que Dante adota media entre as duas visões anteriores; na medida em que é grega, ela concebe a imortalidade idealmente, como algo atemporal; mas na medida em que é hebraica, ela concebe uma nova existência e um segundo e diferente sabor de vida. Dante pensa em uma segunda experiência, mas que é totalmente retrospectiva e imutável. Trata-se de um epílogo que resume a peça, e é o último episódio dela. O objetivo de tal epílogo não é continuar a peça indefinidamente: uma noção tão romântica de imortalidade nunca entrou na mente de Dante. O objetivo do epílogo é meramente reivindicar (de uma maneira mais inconfundível do que a peça, estando mal representada, podia fazer ela mesma) a excelência do bem e a miséria do vício. Se esta vida fosse tudo, ele acha que os ímpios poderiam até rir. Se não fossem totalmente felizes, pelo menos poderiam vangloriar-se de que sua sorte não era pior que a de muitos homens bons. Nada faria uma diferença esmagadora. As distinções morais seriam em grande parte impertinentes e notavelmente emaranhadas. Se eu for um simples amante do bem, talvez eu possa tolerar tal situação. Posso dizer das excelências que prezo o que Wordsworth diz de sua Lucy: pode não haver ninguém para louvá-los e poucos para amá-los, mas eles fazem toda a diferença para mim.

Dante, entretanto, não era apenas um simples amante da excelência: ele também era um odiador aguçado da maldade, que tomou tragicamente o mundo moral e quis elevar as distinções que ele sentia para algo absoluto e infinito. Ora, qualquer homem que esteja enraizado em suas preferências dirá provavelmente, com Maomé, Tertuliano e Calvino, que o bem é desonrado se aqueles que o desprezam podem ficar impunes e nunca se arrepender de sua negligência; que quanto mais horríveis forem as consequências do mal, mais tolerável será a presença do mal no mundo; e que somente os gritos e contorções eternos dos condenados tornarão possível aos santos sentarem-se em silêncio e estarem convencidos de que há perfeita harmonia no universo. Sobre tal princípio, na célebre inscrição que Dante situa sobre a porta do inferno, lemos que o amor primordial, assim como a justiça e o poder, estabeleceram aquela casa de tortura; o amor primordial, isto é, aquele bem que, pela punição extrema daqueles que o desprezam, é honrado, vingado, e dado a brilhar como o sol. Os amaldiçoados são amaldiçoados pela glória de Deus.

Essa doutrina, não posso deixar de pensar, é uma grande vergonha para a natureza humana. Ela mostra como é desesperada, no fundo, a loucura de uma filosofia egoísta ou antropocêntrica. Essa filosofia começa por nos assegurar que tudo é obviamente criado para servir às nossas necessidades; depois sustenta que tudo serve aos nossos ideais; e, no final, revela que tudo serve aos nossos ódios cegos e às nossas reticências supersticiosas. Porque meu instinto constitui algo como tabu, todo o universo, com insana intensidade, deve tabuá-lo para sempre. Essa paixão foi herdada por Dante, e não foi desconfortável para seu baço amargo e intemperado. No entanto, às vezes, ele via além disso. Como muitos outros videntes cristãos, ele trai aqui e ali uma visão esotérica acerca de recompensas e punições, o que as torna simplesmente símbolos da qualidade intrínseca dos bons e maus caminhos. O castigo, ele então parece dizer, não é nada acrescentado; é o que a própria paixão busca; ele é uma realização, que horripila a alma que a desejava.

Por exemplo, os espíritos recém-chegados ao inferno não precisam do diabo com sua forca para levá-los ao castigo. Eles se lançam avidamente, por sua própria vontade15. Da mesma maneira, as almas no purgatório são mantidas por sua própria vontade, na penitência que estão fazendo. Nenhuma força externa as retém, mas até que sejam completamente purgadas elas não têm capacidade, porque não estão dispostas, de se absolver16. Toda a montanha, dizem, treme e irrompe em salmodia quando qualquer um se liberta e chega ao céu. Seria demasiado esplendor dizer que essas almas mudam sua prisão quando mudam seu ideal, e que um estado inferior da alma é seu próprio purgatório, e determina sua própria duração? Em um lugar, em todo caso, Dante proclama a natureza intrínseca da punição em termos expressos. Entre os blasfemos está um certo rei de Tebas, que desafiou os trovões de Júpiter. Ele se mostra indiferente a sua punição e diz: “Tal como eu estava vivo, tal eu estou morto”. Onde Virgílio exclama, com uma força que Dante nunca havia encontrado em sua voz antes: “Na medida em que seu orgulho não é mortificado, você é castigado ainda mais. Nenhuma tortura, além de tua própria fúria, seria suficientemente dolorosa para corresponder à tua fúria”17 E, de fato, a imaginação de Dante não pode superar, nem mesmo igualar, os horrores que os homens trouxeram sobre si mesmos neste mundo. Se tivéssemos que escolher a mais temível das cenas do Inferno, teríamos que escolher a história de Ugolino, mas isso é apenas um recital pálido do que Pisa tinha realmente testemunhado.

Um exemplo mais sutil e interessante, se menos óbvio, pode ser encontrado na punição de Paolo e Francesca di Rimini. O que torna esses amantes tão infelizes no Inferno? Eles ainda estão juntos. Uma eternidade flutuando no vento, nos braços um do outro, pode ser um castigo para os amantes? É exatamente isso que sua paixão, se deixada para falar por si mesma, teria escolhido. É nisso que a paixão pára, e de bom grado se prolongaria para sempre. O juízo divino só a levou à sua palavra. Esse destino é exatamente o que Aucassin, no conto conhecido, deseja para si e para sua querida Nicolette, — não um céu a ser conquistado pela renúncia, mas a posse, mesmo que seja no inferno, do que ama e fantasia. E um grande poeta romântico, Alfred de Musset, na verdade transtorna Dante por não ver que um destino tão eterno como ele designou para Paolo e Francesca não seria a ruína de seu amor18, mas a perfeita realização dele. Este último parece ser muito verdadeiro; mas será que Dante ignorou a verdade disso? Em caso afirmativo, que instinto o guiou a escolher exatamente o destino para esses amantes que eles teriam escolhido para si mesmos?

Há uma grande diferença entre os aprendizes na vida, e os mestres, — Aucassin e Alfred de Musset estavam entre os aprendizes; Dante era um dos mestres. Ele podia sentir os novos impulsos da vida tão intensamente como qualquer jovem, ou qualquer romancista; porém ele viveu essas coisas, ele conhecia o possível e o impossível; ele via sua relação com o resto da natureza humana, e com o ideal de uma felicidade e paz suprema. Ele havia descoberto a necessidade de dizer continuamente a si mesmo: Você deve renunciar. E por essa razão ele não precisava de nenhum outro mobiliário para o inferno além dos ideais literais e das realizações de nossas pequenas paixões absolutas. A alma que é possuída por qualquer uma dessas paixões, no entanto, tem outras esperanças em suspensão. O próprio amor sonha com mais do que a mera posse; para conceber a felicidade, deve conceber uma vida a ser compartilhada em um mundo variado, cheio de eventos e atividades, que serão laços novos e ideais entre os amantes. Entretanto, o amor ilícito não pode desabrochar nessa realização pública. Está condenado a ser mera posse-possessão no escuro, sem um ambiente, sem futuro. É o amor entre as ruínas. E é precisamente isto que é o tormento de Paolo e Francesca — amor entre as ruínas de si mesmos e de tudo o mais que eles poderiam ter tido que dar um ao outro. Abandone-se, Dante nos diria, — abandone-se totalmente a um amor que não é nada além de amor, e você já está no inferno. Só um poeta inspirado poderia ser um moralista tão sutil. Só um moralista sadio poderia ser um poeta tão trágico.

O mesmo tato e a mesma sensação fina que aparecem nesses pequenos dramas morais aparecem também na paisagem simpática em que cada episódio é ambientado. O poeta de fato realiza o feito que ele atribui ao Criador; ele evoca um mundo material para ser o teatro adequado para as atitudes morais. A imaginação popular e os precedentes de Homero e Virgílio o levaram a meio caminho nesse trabalho simbólico, pois a tradição quase sempre carrega um poeta que é bem sucedido. A humanidade, desde a mais remota antiguidade, tinha concebido um inferno subterrâneo escuro, habitado por fantasmas infelizes. Nos tempos cristãos, tais sombras haviam se tornado almas perdidas, atormentadas por demônios hediondos. Mas Dante, com a tabela aristotélica dos vícios diante dele, transformou essas vagas cavernas ventosas em um labirinto simétrico. Sete terraços concêntricos desceram, passo a passo, em direção às águas do Estige, que por sua vez circundavam as paredes selvagens da Cidade de Dis, ou Plutão. Dentro dessas paredes, mais dois terraços desceram até a borda de um prodigioso precipício — talvez a mil milhas de profundidade — que formou o poço do inferno. No fundo deste, ainda afundando suavemente em direção ao centro, estavam dez sulcos ou valas concêntricas, para conter dez tipos de vilões; e finalmente um último precipício absoluto caiu no lago congelado de Cocytus, no centro mesmo da terra, no meio do qual Lúcifer foi congelado entre traidores menores.

Precisão e horror, verdade gráfica e moral, nunca foram tão maravilhosamente combinados como na descrição desse inferno. Contudo, a concepção do purgatório é mais original, e talvez mais poética. A própria abordagem do lugar é encantadora. Ouvimos falar dele primeiro na aventura fatal atribuída a Ulisses por Dante. Inquieto em Ítaca após seu retorno de Tróia, o herói havia convocado seus companheiros sobreviventes para uma última viagem de descoberta. Ele havia navegado com eles para além dos Pilares de Hércules, contornando a costa africana; até que após três meses de mar aberto, ele viu uma montanha colossal, um grande cone truncado, que pairava diante dele. Essa era a ilha e a colina do purgatório, nos próprios antípodas de Jerusalém. No entanto, antes que Ulisses pudesse pousar ali, uma tempestade o atingiu; e sua galé se afundou, vagando sobretudo, naquele mar não navegado, à vista de um novo mundo. Assim devem os pagãos falhar na salvação, embora alguns impulsos oráculares os aproximem do objetivo.

Quão simples é o sucesso, por outro lado, para os ministros da graça! Da boca do Tibre, onde as almas dos cristãos se reúnem após a morte, um leve esquife, pilotado por um anjo e impulsionado apenas por suas asas brancas, desce rapidamente o mar em direção à montanha do purgatório, ali deposita os espíritos que ele carrega, e volta à boca do Tibre novamente no mesmo dia. Lá se vai a aproximação do purgatório. Quando um espírito pousa, encontra as saias da montanha largas e espalhadas, mas a encosta logo se torna dura e precipitada. Quando ele passa pelo portão estreito do arrependimento, ele deve permanecer sobre cada uma das bordas que circundam a montanha em várias alturas, até que um de seus pecados seja purgado, e depois sobre a próxima borda acima, se ele tiver sido culpado também do pecado que é expiado por ali. A montanha é tão alta que levanta sua cabeça até a esfera da lua, acima do alcance das tempestades terrestres. O topo, que é uma ampla planície circular, contém o Jardim do Éden, regado pelos rios Lethe e Eunoe, um para curar todas as memórias dolorosas, e o outro para trazer todos os bons pensamentos à clareza. Desse lugar, que literalmente toca o céu mais baixo, o vôo para cima é fácil de esfera em esfera.

A astronomia da época de Dante entrou de maneira bela em sua obra poética. Ela descreveu e mediu um firmamento que ainda seria identificado com o céu póstumo dos santos. As esferas invisíveis rodopiantes daquela astronomia tinham a terra como centro. As sublimes complexidades desse sistema ptolemaico estavam dia e noite diante da mente de Dante. Ele adora nos dizer em que constelação o sol está nascendo ou se pondo, e que porção do céu está então sobre os antípodas; ele carrega em sua mente um orrery que lhe mostra, a qualquer momento, a posição de cada estrela.

Um acumular tão constante da tradição astronômica pode nos parecer pueril ou pedante; mas para Dante a situação astronômica tinha o encanto de uma paisagem, literalmente cheia das mais maravilhosas luzes e sombras; e também tinha o encanto de uma descoberta duramente conquistada que desvendou os segredos da natureza. Pensar direito, ver as coisas como elas são, ou como elas podem naturalmente ser, interessou-o mais do que imaginar coisas impossíveis; e nisto ele mostra não falta imaginação, mas verdadeiro poder imaginativo e maturidade imaginativa. Somos nós que somos fracos demais para conceber e dominar o mundo real, ou covardes demais para enfrentá-lo, e que fugimos dele para aquelas ficções baratas que por si só nos parecem boas o suficiente para a poesia ou para a religião. Em Dante, a fantasia não é vazia ou arbitrária; é séria, alimentada pelo estudo das coisas reais. Ela adota sua tendência e diviniza seu verdadeiro destino. Sua arte é, no sentido original grego, uma imitação ou ensaio da natureza, uma antecipação do destino. Por isso, detalhes curiosos da ciência ou da teologia entram em seu verso. Com a simples fé e simplicidade de sua época ele dedica essas interessantes imagens, que o ajudam a esclarecer os mistérios deste mundo.

Há um tipo de sensualismo ou esteticismo que decretou em nossos dias que a teoria não é poética; como se todas as imagens e emoções que entram numa mente cultivada não estivessem saturadas de teoria. A prevalência de um tal sensualismo ou esteticismo bastaria por si só para explicar a impotência das artes. A vida da teoria não é menos humana ou menos emocional do que a vida do senso; ela é mais tipicamente humana e mais profundamente emocional. A filosofia é uma experiência mais intensa do que a vida comum, assim como a música pura e sutil, ouvida por ocasião da aposentadoria, é algo mais aguçado e intenso do que o uivo das tempestades ou o estrondo das cidades. Por isso, a filosofia, quando um poeta não é descuidado, entra inevitavelmente em sua poesia, já que ela entrou em sua vida; ou melhor, o detalhe das coisas e o detalhe das idéias passam igualmente em seu verso, quando ambos se encontram no caminho que o levou ao seu ideal. Protestar contra a teoria na poesia seria como objetar às palavras ali; pois as palavras também são símbolos sem o caráter sensorial das coisas que elas representam; e no entanto, é somente pela rede de novas conexões que as palavras lançam sobre as coisas, ao evocá-las, que a poesia surge de todo. A poesia é uma atenuação, um re-manuseio, um eco de experiência grosseira; ela mesma é uma visão teórica das coisas que estão à distância de um braço.

Nunca antes ou desde então um poeta viveu em uma paisagem tão larga como Dante; pois nossos infinitos tempos e distâncias são de pouco valor poético enquanto não temos uma imagem gráfica do que pode preenchê-los. Os espaços de Dante foram preenchidos; eles se ampliaram até os limites da imaginação humana, das habitações e dos destinos da humanidade. Embora os santos não habitassem literalmente as esferas, mas o empírico além, cada espírito podia se manifestar naquela esfera cujo gênio era mais parecido com o seu. Na visão de Dante, os espíritos aparecem como pontos de luz, dos quais às vezes também fluem vozes, assim como brilho. Além de relatar suas palavras (que geralmente são sobre as coisas da terra), Dante nos fala pouco sobre elas. Ele tem de fato, no final, uma visão de uma rosa celestial; níveis sobre níveis de santos estão sentados como em um anfiteatro, e a Divindade os sobrepõe na forma de um arco-íris triplo, com um semblante de homem no meio. Contudo, isso é, declaradamente, um mero símbolo, uma imagem um tanto convencional à qual Dante recorre de má vontade, por falta de uma imagem melhor para tornar sua intenção mística. O que talvez nos ajude a desvendar essa intenção é o fato, que, segundo ele, as esferas celestes não são a verdadeira sede de nenhuma alma humana; que os puros se elevam através delas com facilidade e velocidade crescentes, quanto mais se aproximam de Deus; e que os olhos de Beatriz — a revelação de Deus ao homem — são apenas espelhos, derramando meramente a beleza e a luz refletida.

Essas pistas sugerem a doutrina de que o objetivo da vida é o próprio seio de Deus; não qualquer forma finita de existência, por melhor que seja, mas uma completa absorção e desaparecimento na divindade. Assim pensaram os neoplatonistas, dos quais toda essa paisagem celestial é emprestada; e as reservas que a ortodoxia cristã requer nem sempre permaneceram presentes nas mentes dos místicos e poetas cristãos. Dante aborda esse mesmo ponto na memorável entrevista que ele tem com o espírito de Piccarda, no terceiro canto do Paraíso. Ela está na esfera mais baixa do céu, a da lua inconstante, porque depois de ter sido roubada de seu convento e casada à força, ela não sentiu nenhuma necessidade de renovar seus votos anteriores. Dante lhe pergunta se ela nunca anseia por uma estação superior no paraíso, uma mais próxima de Deus, o objetivo natural de todas as aspirações. Ela responde que compartilhar a vontade de Deus, que estabeleceu muitas mansões diferentes em sua casa, é ser verdadeiramente uma com ele. O desejo de estar mais próximo de Deus levaria a alma para mais longe, pois se oporia à ordem que ele estabeleceu.19

Mesmo no céu, portanto, o santo cristão deveria manter sua fidelidade essencial, sua separação e sua humildade. Ele deveria sentir-se ainda desamparado e perdido em si mesmo, tal como Tobias, e feliz apenas pelo fato de que o anjo do Senhor o estava segurando pela mão. Para Piccarda, dizer que ela aceita a vontade de Deus não significa que ela a compartilha, mas que ela se submete a ela. Ela vacilaria, pois sua natureza moral o exige, como Dante — Platonista incorrigível — perfeitamente percebeu; mas ela não ousa mencionar isso, pois sabe que Deus, cujos pensamentos não são seus pensamentos, o proibiu. A esfera inconstante da lua não lhe proporciona uma felicidade perfeita; mas, castigada como ela é, ela diz que isso lhe traz felicidade suficiente; tudo aquilo que um coração partido e contrito tem a coragem de esperar.

Tais são as inspirações conflitantes sob as belas harmonias do Paraíso. Não era a alma do poeta que estava em conflito aqui; eram apenas suas tradições. Os conflitos de seu próprio espírito haviam sido deixados para trás em outras regiões; naquela eira da terra para a qual, do alto do céu, ele contemplou quando olhou para trás com admiração20, surpreso de que os homens encarassem tão apaixonadamente esse problema das formigas, assunto pelo qual ele julga melhor, diz Dante, quem menos pensa a respeito.

Com esse ditado, o poeta talvez esteja consciente de uma falha pessoal; pois Dante estava longe de ser perfeito, mesmo como poeta. Ele era um homem de seu tempo, e muitas vezes escrevia com uma paixão ainda não esclarecida em juízo. Tanto é o interesse puramente pessoal e dramático que nos domina quando lemos sobre um Bonifácio ou um Ugolino que esquecemos que essas figuras históricas supostamente foram transmutadas no eterno, e se tornaram pedaços no mosaico de essências platônicas. O próprio Dante quase o esquece. O leitor moderno, acostumado a ficções insignificantes e caprichosas, e esperando ser entretido por imagens sem pensamentos, pode não notar essa falta de perspectiva, ou pode se regozijar com ela. Mas, se ele for judicioso, não se alegrará por muito tempo. Os Bonifácios e os Ugolinos não são as figuras verdadeiramente profundas, as figuras verdadeiramente adoráveis da Divina Comédia. Eles são, em um sentido relativo, as vulgaridades nela contidas. Sentimos demais, em tais casos, o calor do preconceito ou da indignação do poeta. Ele não é justo, como costuma ser; ele não se detém a pensar, como quase sempre faz. Ele esquece que está no mundo eterno, e mergulha por ora em uma briga em algum mercado italiano, ou na câmara municipal de algum condottiere faccioso. As passagens — como aquelas sobre Bonifácio e Ugolino — que Dante escreve com essa disposição, são poderosas e veementes, mas não são bonitas. Elas marcam mais o objeto de sua invectiva do que o revelam; chocam mais do que movem o leitor.

Esse tipo inferior de sucesso —  pois ainda é um sucesso em retórica — recai sobre o poeta porque ele abandonou a metade platônica de sua inspiração e tornou-se, por enquanto, totalmente histórico, totalmente hebraico ou romano. Ele seria uma mente muito inferior se ele sempre se movesse nesse nível. Com as esferas platônicas e a ética aristotélica retiradas, sua Comédia não teria sido divina. Pessoas e incidentes, para serem verdadeiramente memoráveis, têm que ser tornados significativos; têm que ser vistos em seu lugar no mundo moral; têm que ser julgados, e julgados corretamente, em sua dignidade e valor. Um sentimento pessoal casual em relação a elas, por mais apaixonado que seja, não pode tomar o lugar da compreensão solidária que compreende e da ampla experiência que julga.

Uma vez mais (o que é fundamental com Dante) o amor, como ele o sente e o torna, não é um amor normal ou saudável. Sem dúvida, era suficientemente real, mas muito contido e expresso na fantasia; de modo que quando se estende Platonicamente e se identifica tão facilmente com a graça de Deus e com a sabedoria revelada, sentimos a suspeita de que se o amor em questão tivesse sido natural e humano, ele teria oferecido mais resistência a uma transformação tão mística. O poeta que deseja passar convincentemente do amor para a filosofia (e isso parece um progresso natural para um poeta) deveria, portanto, ser um amante sincero e completo — um amante como Goethe e seu Fausto — em vez de ser como Platão e Dante. Fausto também passa de Gretchen para Helena, e em parte volta novamente; e Goethe fez ainda mais passagens. Se alguma delas tivesse levado a algo que não só fosse amado, mas merecesse ser amado, que não só pudesse inspirar uma vida inteira, mas que deveria inspirá-la — então deveríamos ter tido um progresso genuíno.

No espaço seguinte, Dante fala demais de si mesmo. Há um sentido no qual esse egoísmo é um mérito, ou pelo menos um motivo de interesse para nós modernos; pois o egoísmo é a atitude distintiva da filosofia moderna e do sentimento romântico. Ao ser egoísta, Dante estava à frente de seu tempo. Sua filosofia teria perdido um elemento de profundidade, e sua poesia um elemento de pathos, se ele não se tivesse colocado no centro do palco e descrito tudo como sua experiência, ou como uma revelação feita a si mesmo e feita em prol de sua salvação pessoal. Mas o egoísmo de Dante vai muito além do que era necessário, para que a visão transcendental não falhe em sua filosofia. Ele se estendeu tanto que lançou a sombra de sua pessoa não apenas sobre os terraços do purgatório (como ele tem o cuidado de nos dizer repetidamente), mas sobre a Itália inteira e a Europa inteira, que ele viu e julgou sob a influência evidente de paixões e ressentimentos privados.

Ademais, o impulso da personalidade, tão intrusivo, não é, em todos os aspectos, digno de contemplação. Dante é muito orgulhoso e muito amargo; ao mesmo tempo, ele é curiosamente tímido; e às vezes pode-se cansar de seus tremores e lágrimas perpétuos, de seus desmaios e de suas intrincadas dúvidas. Um homem que sabe que está sob a proteção especial de Deus, e de três senhoras celestes, e que tem um sábio e mágico como Virgílio como guia, poderia ter olhado até mesmo para o inferno com um pouco mais de confiança. Quão longe está esse trêmulo e desmaiado filósofo da coragem risonha de Fausto, que vê seu cãozinho inchar em um monstro, depois em uma nuvem, e finalmente se transformar em Mefistófeles, e que diz de uma só vez: Das also war des Pudels Kern! Sem dúvidas, Dante era medieval, e a contrição, a humildade e o medo do diabo eram grandes virtudes naqueles dias; mas a conclusão a que devemos chegar é precisamente que as virtudes daqueles dias não eram as melhores virtudes, e que um poeta que representa aquele tempo não pode ser um porta-voz justo nem um porta-voz supremo da humanidade.

Talvez tenhamos agora revisto os objetos principais que povoaram a imaginação de Dante, os objetos principais em meio aos quais sua poesia nos transporta; e se a genialidade de um poeta serve para nos transportar para seu mundo encantado, o caráter desse mundo determinará a qualidade e a dignidade de sua poesia. Dante nos transporta, com poder inconfundível, primeiro para a atmosfera de um amor visionário; depois para a história de sua conversão, afetada por esse amor, ou pela graça divina identificada com ele. O ideal supremo ao qual sua conversão o trouxe de volta é expresso para ele pela natureza universal, e se encarna entre os homens na dupla instituição de uma religião revelada e de um império providencial. Para traçar a sorte dessas instituições, somos transportados em seguida para o panorama da história, em suas grandes crises e seus grandes homens; e particularmente para o panorama da Itália no tempo do poeta, onde examinamos os crimes, as virtudes e as tristezas daqueles que se destacam em promover ou frustrar o ideal da cristandade. Essas numerosas pessoas são colocadas diante de nós com a simpatia e a brevidade de um dramaturgo; no entanto, não se trata de um mero carnaval, de uma danse macabre: pois ao longo do tempo, acima das confusas lutas de festas e paixões, ouvimos a voz firme, a sentença implacável, do profeta que as julga.

Assim Dante, dotado do mais terno sentido de cor, e da mais firme arte do design, colocou todo o seu mundo em sua tela. Visto ali, esse mundo se torna completo, claro, belo e trágico. É vívido e verdadeiro em seus detalhes, sublime em sua marcha e em sua harmonia. Não se trata de poesia onde as partes são melhores do que o todo. Aqui, como em alguma grande sinfonia, tudo é cumulativo: os movimentos conspiram, a tensão cresce, o volume se redobra, a melodia aguçada sobe cada vez mais alto; e tudo termina, não com um estrondo, não com algum incidente casual, mas em reflexão sustentada, no sentido de que não terminou, mas permanece por nós em sua totalidade, uma revelação e um recurso para sempre. Ela nos ensinou a amar e a renunciar, a julgar e a adorar. O que mais um poeta poderia fazer? Dante poetizou toda a vida e a natureza como ele as encontrou. Sua imaginação dominava e concentrava o mundo inteiro. Ele assim tocou o objetivo final ao qual um poeta pode aspirar; ele estabeleceu o padrão para todo o desempenho possível, e se tornou o tipo de poeta supremo. Isso não quer dizer que ele seja o “maior” dos poetas. O relativo mérito dos poetas é uma coisa árida a ser discutida. A questão pode sempre ser aberta de novo, quando um crítico aparece com um temperamento fresco ou um novo critério. E menos ainda precisamos dizer que nenhum poeta maior jamais poderá surgir; podemos estar confiantes do contrário. Mas Dante dá um exemplo bem sucedido da mais alta espécie de poesia. Sua poesia cobre todo o campo do qual a poesia pode ser obtida, e ao qual a poesia pode ser aplicada, desde os recessos mais íntimos do coração até os limites mais profundos da natureza e do destino. Se dar valor imaginativo a algo é a tarefa mínima de um poeta, dar valor imaginativo a todas as coisas, e ao sistema que as coisas compõem, é evidentemente sua maior tarefa.

Dante cumpriu essa tarefa, naturalmente sob condições e limitações especiais, pessoais e sociais; mas ele a cumpriu, e assim ele cumpriu as condições da poesia suprema. Mesmo Homero, como estamos começando a perceber hoje em dia, sofria de uma certa convencionalidade e unilateralidade. Havia muito na vida e na religião de seu tempo que sua arte ignorava. Era uma arte lisonjeadora, eufemística; tinha uma espécie de cegueira generalizada, como aquela que agora associamos a um sermão da moda. Era poesia dirigida à casta dominante do estado, aos conquistadores; e espalhou um glamour intencional sobre suas brutalidades passadas e auto-enganos do presente. Não há tal parcialidade em Dante; ele pinta o que odeia tão francamente quanto o que ama, e em todas as coisas é completo e sincero. Se alguma adequação semelhante for alcançada novamente por qualquer poeta, ela não será, presumivelmente, por um poeta do sobrenatural. Daí em diante, para qualquer imaginação ampla e honesta, o sobrenatural deve figurar como uma idéia na mente humana, — uma parte do natural. Concebê-la de outra maneira seria ficar aquém da percepção desta época, não expressá-la ou completá-la. Dante, entretanto, por essa mesma razão, pode ser esperado que continue sendo o poeta supremo do sobrenatural, o expoente incomparável, depois de Platão, daquela fase de pensamento e sentimento na qual o sobrenatural parece ser a chave para a natureza e para a felicidade. Essa é a hipótese sobre a qual, até agora, a unidade moral tem sido melhor alcançada neste mundo. Aqui, então, temos a mais completa idealização e compreensão das coisas alcançadas pela humanidade até o momento. Dante é o tipo consumado de poeta.

Notas:

[1] Platão, Phaedo,97B-99C, tradução de Jowett. Mudei a interpretação de νοῡς de “mente” para “razão”.

[2]Est pro fundamento tenenda veritas historiae et desuper spirituales expositiones fabricandae.” Tomás de Aquino, Summa Theologiae, i. quaest. 102, conclusio.

[3] Paradiso, XV. 97, 99: 

“Fiorenza dentro dalla cerchia antica.
Si stava in pace, sobria e pudica.”

[4] Ibid., 100-26:

Non avea catenella, non corona,
Non donne contigiate, non cintura
Che fosse a veder pin che la persona.
Non faceva nascendo ancor paura
La figlia al padre, chè il tempo e la dote
Non fuggan quinci e quindi la misura.
Non avea case di famiglia vote;
Non v’era giunto ancor Sardanapalo
A mostrar ciò che in camera si puote….
O fortunate! Ciascuna era certa
Delia sua sepoltura, ed ancor nulla
Era per Francia nel letto deserta.
L’ una vegghiava a studio della culla,
E consolando usava l’ idiomaChe prima i padri e le madri trastulla;
L’ altra traendo alia rocca la chioma,
Favoleggiava con la sua famiglia
De’ Troiani, di Fiesole, e di Roma.”

[5] Paradiso, XXXIII. 143-45:

Volgeva il mio disiro e il velle,
Si come rota ch’ egualmente è mossa,
L’ amor che move il sole e l’ altre stelle.”

[6] Vita Nuova, § 22: “Secondo l’ usanza della sopradetta cittade, donne con donne, e uomini con uomini si adunino a cotale tristizia; molte donne s’ adunaro colà, ove questa Beatrice piangea pietosamente, &c.

Também, Purgatorio, XXXI. 50, 51:

Le belle membra in ch’ ioRinchiusa fui, e sono in terra sparte.”

[7] Vita Nuova, § V.

[8] Schermo della veritade,— Filosofia Natural.

[9] Convito, II. cap. 16: “Faccia che gli occhi d’ esta Donna miri; gli occhi di questa Donna sono le sue dimostrazioni, le quali dritte negli occhi dello intelletto inhamorano l’ anima, libera nelle condizioni. Oh dolcissimi ed ineffabili sembianti, e rubatori subitani della mente umana, che nelle dimostrazioni negli occhi della Filosofia apparite, quando essa alli suoi drudi ragiona! Veramente in voi è la salute, per la quale si fa beato chi vi guarda, e salvo dalla morte della ignoranza e delli vizi…. E cosi, in fine di questo secondo Trattato, dico e affermo che la Donna, di cui io innamorai appresso lo primo amore, fu la bellissima e onestissima figlia dello Imperadore dell’ universo, alla quale Pittagora pose nome Filosofia”.

[10] Purgatorio, XVII. 106-11:

Or perchè mai non può dalla salute
Amor del suo suggetto volger viso,
Dall’ odio proprio son le cose tute:
E perchè intender non si può diviso,
E per sè stante, alcuno esser dal primo,
Da quello odiare ogni affetto è deciso.

[11] Inferno, iii. 64-66:

Questi sciaurati, che mai non fur vivi,
Erano ignudi e stimolati molto
Da mosconi e da vespe ch’ erano ivi.

[12] Ibid., IV. 41, 42:

Semo perduti, e sol di tanto offesi
Che senza speme vivemo in disio.”

Cf. Purgatorio, III. 37-45, onde Virgílio diz:

State contenti, umana gente, al quia;
Chè se potuto aveste veder tutto,
Mestier non era partorir Maria;
E disiar vedeste senza frutto
Tai, che sarebbe lor disio quetato,
Ch’eternalmente è dato lor per lutto.
Io dico d’Aristotele e di Plato,
E di molti altri.” E qui chinò la fronte;
E più non disse, e rimase turbato.”

[13] Inferno, IX. 106-33, e X.

[14] Ibid., XXVIII.

[15] Inferno, III. 124-26:

E pronti sono a trapassar lo rio,
Chè la divina giustizia gli sprona
Si che la tema si volge in disio.

[16] Purgatorio, XXI. 61-69:

“Della mondizia sol voler fa prova,
Che, tutta libera a mutar convento,
L’alma sorprende, e di voler le giova….
Ed io che son giaciuto a questa doglia
Cinquecento anni e più, pur mo sentii
Libera volontà di miglior soglia.”

[17] Inferno, XIV. 63-66:

“O Capaneo, in ciò che non s’ammorza
La tua superbia, se’ tu più punito:
Nullo martirio, fuor che la tua rabbia,
Sarebbe al tuo furor dolor compito.”

[18] Alfred de Musset, Poésies Nouvelles, Souvenir:

“Dante, pourquoi dis-tu qu’il n’est pire misère
Qu’un souvenir heureux dans les jours de douleur?
Quel chagrin t’a dicté cette parole amère,
Cette offense au malheur?
… Ce blasphème vanté ne vient pas de ton cœur.
Un souvenir heureux est peut-être sur terre
Plus vrai que le bonheur….
Et c’est à ta Françoise, à ton ange de gloire,
Que tu pouvais donner ces mots à prononcer,
Elle qui s’interrompt, pour conter son histoire,
D’un éternel baiser!”

[19] Paradiso, III. 73-90:

Se disiassimo esser più superne,
Foran discordi li nostri disiri
Dal voler di colui che qui ne cerne,…
E la sua volontate è nostra pace;
Ella è quel mare al qual tutto si move
Ciò ch’ella crea, e che natura face.”
Chiaro mi fu allor com’ ogni dove
In cielo è Paradiso, e sì la graziaDel sommo ben d’un modo non vi piove.

[20] Paradiso, XXII. 133-39:

“Col viso ritornai per tutte e quante
Le sette spere, e vidi questo globo
Tal, ch’io sorrisi del suo vil sembiante;
E quel consiglio per migliore approbo
Che l’ha per meno; e chi ad altro pensaChiamar si puote veramente probo.


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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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