Sobre a Saudação Angélica — São Tomás de Aquino

Nota: A Ave Maria ou Saudação Angélica, no tempo de São Tomás, consistia apenas na presente primeira parte da oração. A segunda parte — “Santa Maria, Mãe de Deus“, etc. — foi acrescentada mais tarde pela Igreja.


Introdução

Essa saudação tem três partes. O Anjo deu uma parte, a saber: “Salve, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres” [Lc 1,28]. A outra parte foi dada por Isabel, a mãe de João Batista, a saber: “Bendito é o fruto do vosso ventre” [Lc 1,42]. A Igreja acrescenta a terceira parte, isto é, “Maria”, porque o Anjo não disse “Ave, Maria”, mas “Ave, cheia de graça”. No entanto, como veremos, este nome, “Maria”, de acordo com seu significado, concorda com as palavras dos Anjos.

Artigo 1

Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco

Devemos agora refletir a respeito da primeira parte dessa oração porque em tempos antigos os Anjos aparecerem aos homens não era um evento pouco importante; e era particularmente digno de louvor o fato de que o homem lhes mostrasse reverência. Assim, está escrito em homenagem a Abraão que ele recebeu os Anjos com toda cortesia e lhes mostrou reverência. Mas que um Anjo devesse mostrar reverência a um homem é algo que nunca se ouviu até que o Anjo saudasse com reverência a Santíssima Virgem dizendo: “Salve”.

Antigamente, um Anjo não mostrava reverência a um homem, mas um homem reverenciava profundamente um Anjo. Isso porque os Anjos são maiores que os homens, e o são de três maneiras. Primeiro, eles são maiores do que os homens em dignidade. Isso porque os Anjos são de natureza espiritual: “Vós fazeis vossos anjos espíritos” [Sl 104,4]. Porém, por outro lado, o homem é de natureza corruptível, pois Abraão disse: “Falarei com meu Senhor, ao passo que eu sou pó e cinza” [Gn 18,27]. Não era conveniente, portanto, que uma criatura espiritual e incorruptível mostrasse reverência a uma criatura que é corruptível como um homem. Em segundo lugar, um Anjo está mais próximo de Deus. O Anjo, de fato, é da família de Deus, e como se estivesse sempre ao Seu lado: “Milhares de milhares ministraram a Ele, e dez mil vezes cem mil estiveram diante dEle” [Dan 7:10]. O homem, por outro lado, é um pouco estranho e distante de Deus por causa do pecado: “Eu me afastei” [Sl 44,8]. Portanto, é conveniente que o homem reverencie a um Anjo que é íntimo e um dos membros da família do Rei.

Então, em terceiro lugar, os Anjos superam de longe os homens na plenitude do esplendor da graça divina. Pois os Anjos participam no mais alto grau da luz divina: “Existe uma numeração de Seus soldados? E sobre quem não se manifestará Sua luz?”[Jó 25,3]. Assim, os Anjos sempre aparecem entre os homens vestidos de luz, mas os homens ao contrário, embora participem um pouco da luz da graça, o fazem em um grau muito menor e com uma certa obscuridade. Não era, portanto, apropriado que um Anjo mostrasse reverência a um homem até que se chegasse à conclusão de que alguém se encontrava na natureza humana excedendo os Anjos nesses três pontos em que vimos que eles se sobrepunham aos homens — e essa era a Santíssima Virgem. Para mostrar que ela superava os Anjos nisso, o Anjo desejava mostrar sua reverência, e assim ele disse: “Ave”.

Cheia de graça

A Santíssima Virgem era superior a qualquer um dos Anjos na plenitude da graça, e como indicação disso o Anjo mostrou reverência a ela dizendo: “Cheia de graça”. Isso é como se ele tivesse dito: “Eu te mostro reverência porque tu me superas na plenitude da graça”.

Diz-se que a Santíssima Virgem é cheia de graça de três maneiras. Primeiro, no que diz respeito à sua alma, ela era cheia de graça. A graça de Deus é dada para dois propósitos principais, a saber, fazer o bem e evitar o mal. A Santíssima Virgem, então, recebeu a graça no grau mais perfeito, porque ela evitara cada pecado mais do que qualquer outro santo depois de Cristo. Pois o pecado ou é original, e dele ela foi purificada no ventre, ou é mortal ou venial, e destes ela foi livre. Assim é dito: “Vós sois justa, minha amada, e não há mancha alguma em vós” [Cânt. 4,7]. Santo Agostinho diz: “Se pudéssemos reunir todos os santos e perguntar-lhes se estavam inteiramente sem pecado, todos eles, com exceção da Santíssima Virgem, diriam com uma só voz: ‘Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós’ [1 Jo 1,8]. Eu, porém, excetuo essa Virgem Santa acerca da qual, por causa da honra de Deus, desejo omitir toda menção de pecado” [De natura et gratia, 36]. Pois sabemos que a ela foi concedida a graça de vencer todo tipo de pecado por Aquele a quem ela mereceu conceber e gerar, e Ele certamente estava totalmente sem pecado.

Todavia Cristo supera a Santíssima Virgem pois foi concebido e nasceu sem pecado original, enquanto que a Santíssima Virgem foi concebida no pecado original, mas não nasceu nele. Ela exerceu as obras de todas as virtudes, enquanto que os Santos são conspícuos para o exercício de certas virtudes especiais. Assim, um se distingue pela humildade, outro pela castidade, outro pela misericórdia, na medida em que são os exemplos especiais dessas virtudes — como, por exemplo, São Nicolau é um exemplo da virtude da misericórdia.

A Santíssima Virgem é o modelo de todas as virtudes. Nela está a plenitude da virtude da humildade: “Eis a escrava do Senhor” [Lc 1,38]. E ainda: “Ele olhou para a humildade de sua serva” [Lc 1,48]. Portanto, ela é também um exemplo da virtude da castidade: “Porque eu não conheço homem” [Lc 1,34]. E assim é com todas as virtudes, tal como é evidente. Maria foi cheia de graça não só no desempenho de todo o bem, mas também na prevenção de todo o mal. Com efeito, a Santíssima Virgem estava cheia de graça pelo transbordar dessa graça sobre sua carne ou corpo. Porque embora seja uma grande coisa nos Santos o fato de que a abundância da graça santificou suas almas, ainda assim, a alma da Virgem Santa foi tão cheia de graça que de sua alma a graça derramou em sua carne, da qual foi concebido o Filho de Deus. Hugo de São Victor diz a esse respeito que: “Porque o amor do Espírito Santo inflamou de tal modo sua alma, Ele fez uma maravilha em sua carne, na medida em que dela nasceu o Deus feito homem”. “E, portanto, também o Santo que de vós há de nascer será chamado Filho de Deus” [Lc 1,35].

A plenitude da graça em Maria foi tal que seus efeitos transbordaram sobre todos os homens. É uma grande coisa em um Santo quando ele tem a graça de realizar a salvação de muitos, mas é extremamente maravilhoso quando a graça é de tal abundância que é suficiente para a salvação de todos os homens do mundo, e isso é verdade para Cristo e para a Santíssima Virgem. Assim, “mil escudos”, ou seja, remédios contra os perigos, “pendem dela” [Cânt. 4,4]. Da mesma maneira, a ajuda dela é possível em cada obra de virtude. Dela foi dito: “Em mim está toda a graça do caminho e da verdade, em mim está toda esperança de vida e de virtude” [Cânt. 24,25]. Portanto, Maria é cheia de graça, superando os Anjos nessa plenitude e muito apropriadamente é chamada de “Maria”, que significa “em si própria iluminada”: “O Senhor encherá sua alma de brilho” [Is 48:11]. E ela iluminará outros em todo o mundo, razão pela qual ela é comparada ao sol e à lua.

O Senhor é convosco

A Santíssima Virgem excede os Anjos em sua familiaridade com Deus. O Anjo Gabriel indicou isso quando disse: “O Senhor é convosco” — como se quisesse dizer: “Eu te reverencio porque estás mais familiarizada com Deus do que eu, porque o Senhor está contigo”. Pelo Senhor; ele se refere ao Pai com o Filho e o Espírito Santo, que, desse mesmo modo, não estão com nenhum Anjo ou qualquer outro espírito: “O Santo que nascer de vós será chamado Filho de Deus” [Lc 1,35]. Deus, o Filho, estava em seu seio: “Alegrai-vos e louvai, ó morada de Sião; porque grande é Aquele que está no meio de vós, o Santo de Israel” [Is 12,6].

O Senhor não está com o Anjo da mesma maneira que com a Santíssima Virgem; pois com ela Ele é como um Filho, e com o Anjo Ele é o Senhor. O Senhor, o Espírito Santo, está nela como em um templo, para que seja dito: “O templo do Senhor, o santuário do Espírito Santo”], porque ela concebeu através do Espírito Santo. “O Espírito Santo virá sobre vós” [Lc 1,35]. A Santíssima Virgem está mais próxima de Deus do que um Anjo, porque com ela estão o Senhor Pai, o Senhor Filho e o Senhor Espírito Santo — numa palavra, a Santíssima Trindade. De fato, sobre ela cantamos: “Nobre lugar de descanso do Deus Triuno”. “O Senhor é convosco” são as palavras mais louváveis que o Anjo poderia ter proferido; e, portanto, ele reverenciava tão profundamente a Santíssima Virgem porque ela é a Mãe do Senhor e Nossa Senhora. Por isso, ela é muito bem chamada de “Maria”, que na língua síria significa “Senhora”.

A Santíssima Virgem excede os Anjos em pureza. Ela não só é pura, mas obtém pureza para os outros. Ela é a própria pureza, totalmente desprovida de toda culpa do pecado, pois ela nunca incorreu em pecado mortal ou venial. Portanto, também ela estava livre das penalidades do pecado. O homem pecador, pelo contrário, incorre numa maldição tripla por causa do pecado.

A primeira caiu sobre a mulher que concebe em corrupção, carrega seu filho com dificuldade e o faz nascer em dor. A Santíssima Virgem foi totalmente livre disso, pois concebeu sem corrupção, deu à luz seu filho em conforto e o fez nascer em alegria: “brotará e florescerá, e se regozijará com alegria e louvor” [Is 35,2].

A segunda pena foi infligida ao homem, pois ele ganhará seu pão com o suor de sua fronte. A Santíssima Virgem também foi imune a isso porque, como diz o Apóstolo, as virgens estão livres das preocupações deste mundo e estão totalmente ocupadas com as coisas do Senhor [1 Cor 7:34].

A terceira maldição é comum tanto para o homem quanto para a mulher, em que ambos retornarão um dia ao pó. A Santíssima Virgem foi poupada dessa pena, pois seu corpo foi elevado ao céu, e assim acreditamos que depois de sua morte ela foi ressuscitada e transportada ao céu: “Levanta-te, Senhor, em teu lugar de descanso, tu e a arca que santificaste” [Sl 132,8].

Artigo 2

Bendita sois vós entre as mulheres

Como a Santíssima Virgem era imune a esses castigos, ela é “bendita entre as mulheres”. Pois somente ela [dentre as mulheres] escapou da maldição do pecado, trouxe à luz a Fonte da bênção e abriu a porta do Céu. É certamente apropriado que seu nome seja “Maria”, que é semelhante à Estrela do Mar (“Maria-maris stella“), pois assim como os marinheiros são dirigidos para o porto pela Estrela do Mar, assim também os cristãos são guiados por Maria para a glória.

Artigo 3

Bendito é o fruto do vosso ventre“.

O pecador freqüentemente busca algo que não encontra; mas ao homem justo é concedido encontrar o que ele busca: “A substância do pecador é guardada para o justo” [Prov 13,22]. Assim, Eva procurou o fruto da árvore do bem e do mal, mas não encontrou nele o que buscava. Tudo o que Eva desejava, porém, foi dado à Santíssima Virgem. Eva procurou aquilo que o diabo lhe prometeu falsamente, ou seja, que ela e Adão seriam como deuses, conhecendo o bem e o mal. “Sereis”, disse o mentiroso, “como deuses” [Gn 3,5]. Mas ele mentiu, porque “é mentiroso e pai da mentira” [Jo 8,44]. Eva não se fez como Deus depois de ter comido do fruto, mas era diferente de Deus, pois por seu pecado ela se afastou de Deus e foi expulsa do paraíso. A Santíssima Virgem, entretanto, e todos os cristãos encontraram no fruto de seu ventre Ele, por meio do qual todos nós estamos unidos a Deus e somos feitos semelhantes a Ele: “Quando Ele aparecer, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como Ele é” [1Jo 3,2].

Eva procurava prazer no fruto da árvore porque era bom para se comer. Mas ela não encontrou esse prazer nele e, pelo contrário, descobriu imediatamente que estava nua e foi atingida pela tristeza. No fruto da Santíssima Virgem encontramos doçura e salvação: “Quem come Minha carne… tem a vida eterna” [Jo 6,55].

O fruto que Eva desejava era belo de se ver, mas esse Fruto da Santíssima Virgem é muito mais belo, pois os Anjos desejam olhar para Ele: “Tu és mais formoso do que os filhos dos homens.” [Sl 44,2]. Ele é o esplendor da glória do Pai. Eva, portanto, procurou em vão o que desejava no fruto da árvore, assim como o pecador está desapontado com seus pecados. Devemos buscar no fruto do ventre da Virgem Maria o que desejarmos. Este é Aquele que é o fruto abençoado por Deus, que O tem preenchido com toda graça, que por sua vez é derramada sobre nós que O adoramos: “Bendito seja Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com bênçãos espirituais em Cristo” [Ef 1,3]. Ele, também, é reverenciado pelos Anjos: “Bênção e glória e sabedoria e ação de graças, honra e poder e força, ao nosso Deus” [Ap 7,12]. E Ele é glorificado pelos homens: “Toda língua deve confessar que o Senhor Jesus Cristo está na glória de Deus Pai” [Fil 2,11]. A Santíssima Virgem é realmente abençoada, mas muito mais abençoado é o fruto de seu ventre: “Bem-aventurado aquele que vem em nome do Senhor” [Sl 117,26].


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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

2 thoughts on “Sobre a Saudação Angélica — São Tomás de Aquino

  1. Malabarismo intelectual e muita reverência a Maria, mulher digna de todo respeito mas não há respaldo real nas escrituras para seu culto como é feito hoje.Fico com a pequena parte deste textão que diz ” Cristo é Maior”

    1. Não há respaldo nas escrituras para achar que todo o Cristianismo deve derivar das escrituras. O sola scriptura não tem fundamento algum, além de ser ilógico.

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