A Vontade de Vida e a Vontade de Cultura — Nikolai Berdiaev

“A Vontade de Vida e a Vontade de Cultura” foi extraído da obra The Meaning of History.

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Atualmente, não há tema mais urgente para o conhecimento e para a vida do que a cultura e a civilização, consideradas do ponto de vista de suas relações e distinções. Trata-se do destino que nos está reservado. E nada preocupa mais o homem do que seu destino. O extraordinário sucesso de The Decline of the West (O Declínio do Ocidente), de Spengler, deve-se ao fato de que ele colocou o problema do destino histórico. Em uma época de graves crises e catástrofes, na encruzilhada da história, somos obrigados a refletir seriamente sobre a dinâmica dos destinos culturais e nacionais. Os ponteiros da história universal estão apontando para uma hora fatal, a do crepúsculo, quando é hora de acendermos nossas lâmpadas e nos prepararmos para a noite. Spengler proclamou que a civilização é a ruína de toda cultura. A morte vem em seu encalço.

O tema não é novo. Há muito tempo ele faz parte do pensamento, da filosofia e da história russos. Os grandes pensadores russos do passado já haviam feito a distinção entre cultura e civilização e apresentaram-na nas relações entre a Rússia e a Europa. Nossa consciência eslavófila foi, como um todo, permeada pela hostilidade não à cultura europeia, mas à civilização. A tese do “Ocidente decadente” pretendia ilustrar a morte de uma grande cultura e o triunfo de uma civilização sem alma e ateísta. Homyakov, Dostoiévsky e Leontiev tinham uma veneração genuína pelo grande passado europeu, aquela “terra de santos milagres”, com seus monumentos sagrados e pedras antigas. Mas a Europa havia traído e repudiado seu passado. Uma civilização burguesa ateísta havia se estabelecido sobre as ruínas de uma cultura antiga e sagrada. A luta entre a Rússia e a Europa, o Oriente e o Ocidente, era representada como aquela entre o espírito e a cultura religiosa, de um lado, e uma civilização ateísta sem alma, de outro. Acreditava-se que a Rússia não entraria no caminho da civilização, que ela seguiria um caminho e um destino próprios e que era capaz apenas de uma cultura religiosa e autenticamente espiritual. Esse tema era muito dominante na consciência russa.

Mas será que esse tema era estranho à consciência ocidental? Será que Spengler foi o primeiro a considerá-lo ou será que todo o pensamento ocidental não tendeu para essa direção? A especulação de Nietzsche é a expressão aguda desse pressentimento fatal. Seu anseio pela cultura dionisíaca trágica é peculiar a uma era de civilização triunfante. Tudo o que era genuíno no pensamento ocidental se revoltava contra o triunfo de Mammon e de uma civilização técnica sem alma, em detrimento da cultura espiritual. Os românticos foram todos profundamente, se não mortalmente, afetados por esse triunfo. Carlyle se revoltou com força profética contra essa civilização que matava o espírito. O mesmo fez Léon Bloy em seu engenhoso desmascaramento da “sabedoria burguesa”. Os católicos, simbolistas e românticos franceses se refugiaram na Idade Média, aquela pátria espiritual remota que parecia oferecer a única fuga do ennui mortal da civilização triunfante. Esse impulso ocidental em direção a épocas culturais passadas ou às culturas exóticas do Oriente denotava uma revolta espiritual contra a transição final da cultura para a civilização, mas uma civilização refinada, decadente e espiritualmente fraca demais. Diante do ameaçador não-ser da civilização, os homens que vivem em uma era de decadência cultural são incapazes de realizar um ser autêntico e eterno. Em vez disso, eles buscam refúgio no mundo do passado remoto, que nada pode reviver, ou no mundo das culturas orientais imóveis e cansadas, que lhes são espiritualmente estranhas.

Assim, a teoria banal do progresso foi destruída. Ela propagou a crença de que o futuro era sempre mais perfeito do que o passado e que a humanidade estava ascendendo em linha reta para formas de vida mais elevadas. Contudo, a cultura não se desenvolve eternamente. Ela contém as sementes de sua própria destruição. Ela se baseia em princípios que inevitavelmente a transformam em civilização. E esta última é a morte do espírito da cultura, a manifestação de um estado bem diferente do ser ou não-ser. Todavia, esse fenômeno tão típico da filosofia da história exige uma definição. Spengler, no entanto, fornece uma pista para a apreensão de seu significado.

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Toda cultura, no processo de florescimento e de se tornar mais complexa e refinada, esgota suas forças criativas e seu espírito. Até mesmo seus objetivos mudam. Ela se torna cada vez mais preocupada com a realização prática do poder e da organização da vida ao longo de linhas de expansão superficial. A eflorescência das “artes e ciências”, as pesquisas profundas de refinamentos de pensamento, os impulsos mais finos da atividade criativa, as visões de santos ou gênios, tudo isso deixa de inspirar e de ser considerado como a verdadeira e autêntica “vida”, que passa a ser interpretada em termos de vontade de experiência, de poder, de prazer e de domínio dela. E isso traz consigo a morte da cultura. Em uma era de declínio cultural, o desejo de “viver”, de construir e organizar a “vida” é particularmente intenso. Uma era de eflorescência cultural, por outro lado, impõe um certo freio à vontade de “vida”. Quando a ganância pela vida se espalha para as massas, a cultura espiritual mais elevada, que é sempre aristocrática e baseada na qualidade e não na quantidade, deixa de ser a meta. O objetivo agora é buscado na própria “vida”, em sua experiência, poder e felicidade. A cultura perde seu valor inerente e, portanto, a vontade de cultura se extingue. Não há mais vontade de ser gênio e os gênios se tornam raros. A visão desinteressada, o conhecimento e a criação estão em baixa. A cultura não pode permanecer sempre nas alturas, mas deve inevitavelmente descer e cair. Ela é incapaz de sustentar seu alto nível de qualidade e o princípio quantitativo acaba por superá-la. Assim, ocorre uma mutilação social pela qual a energia criativa da cultura é dispersa. E o declínio se instala porque a cultura é incapaz de se desenvolver eternamente ou de realizar os objetivos dos criadores.

A cultura não é a realização de uma nova vida ou estado de ser, mas de novos valores. Todas as suas realizações são simbólicas. Ela não percebe a verdade, a bondade, a beleza, o poder ou a divindade da vida: percebe a verdade apenas em tratados filosóficos e científicos; a bondade em mandamentos éticos e sociais; a beleza em poemas, quadros, estátuas, peças de teatro, música ou monumentos arquitetônicos; a divindade apenas em cultos e simbolismos religiosos. Símiles, imagens e símbolos são todos os meios que ela tem para comunicar a nova vida do estado superior de ser. O ato criativo do conhecimento dá origem ao trabalho científico; o ato ético criativo gera o estabelecimento de costumes e instituições; o ato religioso criativo estabelece o culto, os dogmas e a estrutura simbólica da Igreja, que é apenas a similitude da hierarquia celestial. Onde está, então, a “vida” em si? Pois a cultura não parece ser capaz de alcançar uma transfiguração real. E a energia dinâmica dentro das formas cristalizadas da cultura leva irremediavelmente para longe da cultura, para a experiência e o poder da “vida”. E isso constitui a transição da cultura para a civilização.

A Alemanha, no final do século XVIII e início do século XIX, oferece um exemplo da alta eflorescência da cultura; ela ficou famosa como a terra dos “poetas e filósofos”. Poucas épocas demonstraram tanta disposição para o gênio. No decorrer de várias décadas, o mundo foi enriquecido por gênios como Lessing e Herder, Goethe e Schiller, Kant e Fichte, Hegel e Schelling, Schleiermacher e Schopenhauer, Novalis e todos os românticos. As eras seguintes olharão para trás com inveja dessa grande época. Windelband, o filósofo de seu declínio, lembra-se dessa época de integridade espiritual e gênio espiritual como um paraíso perdido. Mas será que a era de Goethe e Kant, Hegel e Novalis, alcançou a autêntica “vida” superior? Todas as evidências tendem a mostrar que a vida cotidiana na Alemanha era então pobre, de classe média e oprimida. A Alemanha era fraca, miserável e dividida em estados minúsculos; o poder da “vida” não havia sido percebido em lugar algum; e a eflorescência cultural afetou apenas as camadas mais altas do povo, cuja condição geral era lamentável.

Vamos abordar agora a época do Renascimento. Será que essa época incrivelmente criativa realizou a autêntica “vida”? Nietzsche, o romântico, poderia buscar uma fuga da civilização que ele odiava nas delícias da autêntica e poderosa “vida” da Renascença; mas essa “vida” era imaginária. A vida cotidiana da Renascença era terrível e má, e não conseguiu atingir a perfeição da beleza terrestre. A vida de Leonardo e de Michael Angelo foi um longo tormento e uma tragédia. E assim sempre foi. A cultura sempre se mostrou o maior fracasso da vida. Uma antítese parece separar a cultura da “vida” que a civilização tenta realizar. Quando um poderoso estado alemão é finalmente estabelecido, o capitalismo e o socialismo o acompanham, e seus principais esforços são direcionados para fazer valer sua vontade de poder e organização mundial. Porém, Goethe, os grandes idealistas e românticos, a grande filosofia e a arte estarão ausentes dessa poderosa Alemanha imperialista e socialista. Eles terão sido suplantados pela técnica, que tem suas repercussões até mesmo na seca filosófica (nas correntes gnosiológicas). A conquista é o método agora aplicado em todas as esferas à custa da apreensão integral-intuitiva do ser. A poderosa civilização do Império Britânico não tem lugar nem para Shakespeare nem para Byron, assim como Dante e Michael Angelo são inconcebíveis na Itália moderna, que ergueu o pesado monumento a Victor Emmanuel e estabeleceu o fascismo. E é aí que reside a tragédia da cultura e da civilização.

Toda cultura, em um determinado estágio de seu desenvolvimento, revela um princípio que enfraquece seus próprios fundamentos espirituais. A cultura é o desenvolvimento do culto religioso, de sua diferenciação e do desdobramento de seu conteúdo. A filosofia, a ciência, a arquitetura, a pintura, a escultura, a música, a poesia e a moralidade estão todas integralmente incluídas no culto eclesiástico em uma forma indiferenciada e não desenvolvida. A egípcia, a mais antiga das culturas, começou no templo e os sacerdotes foram seus criadores. A cultura também está ligada às tradições e ao culto ancestral. Ela está repleta de símbolos sagrados e sinais de outra realidade espiritual. Toda cultura (mesmo a material) é espiritual e o produto do trabalho criativo do espírito aplicado aos elementos naturais. No entanto, a cultura desenvolve uma tendência a desintegrar-se em seus fundamentos religiosos e espirituais e a repudiar seu próprio simbolismo. Isso é alcançado por meio do processo de “iluminação”, que é comum tanto à cultura ocidental antiga quanto à posterior. E esse fato revela a dialética fatal inerente à cultura. Pois, em um determinado estágio de sua existência, ela começa a duvidar e a criticar as premissas sobre as quais se apóia. Ela prepara sua própria destruição ao se separar de suas fontes. Ela se esgota espiritualmente e desperdiça suas energias. Ela passa do estágio “orgânico” para o “crítico” de sua existência.

Para entender o destino da cultura, é necessário perceber seus princípios dinâmicos e sua dialética fatal. A cultura é o processo vivo e o destino dos povos. Entretanto, torna-se evidente que ela não pode se manter no auge de sua eflorescência. Todo tipo de cultura conhecido pela história demonstra sua tendência a se desintegrar e se transformar em outro estado ao qual o termo “cultura” não se aplica mais. E isso se deve ao fato de que ela desenvolve uma vontade de nova “vida”, de poder e domínio, a todo custo. A vontade de poder a todo custo é o princípio da civilização. Esta última está sempre interessada, enquanto a cultura é desinteressada com relação às suas maiores realizações. Assim, a cultura termina e a civilização começa quando a razão “iluminada” varre todos os obstáculos espirituais existentes no caminho dos lucros e prazeres da “vida” e quando a vontade de poder e o domínio organizado da vida são mais fortes.

A civilização é a passagem da cultura, da contemplação e da criação de valores para a experiência da própria vida, cuja torrente ameaça engolir o homem. A cultura contém um princípio que tende a uma realização prática-utilitária e “realista”, ou seja, civilizadora. A grande filosofia e a arte, assim como o simbolismo religioso, perdem seu significado e sua conexão com a “vida”. O que era considerado as maiores conquistas da cultura agora é desacreditado. Seu caráter sagrado e simbólico é repudiado. A cultura espiritual é proclamada como sendo a ilusão e o auto-engano de uma consciência escravizada, o produto fantasmagórico de uma sociedade mal organizada. A organização e a técnica da vida estão destinadas, em última instância, a emancipar a humanidade da ilusão e do engano da cultura e a lançar as bases de uma civilização “real”. As ilusões espirituais da cultura foram produzidas pela falta de organização e técnica; mas elas estão destinadas a desaparecer quando a civilização dominar a técnica e organizar a vida.

O materialismo econômico é a filosofia típica de uma era de civilização. Ele resolve o mistério e revela o pathos íntimo da civilização. Nem o predomínio da economia nem as abominações da vida espiritual podem ser atribuídos a ele. A dominação da economia já era uma realidade que havia transformado a cultura espiritual em um mero simulacro antes que o materialismo tivesse feito dela uma doutrina. Sua ideologia, de fato, não é mais do que o reflexo da realidade. Ela é essencialmente uma ideologia de uma era de civilização, talvez sua ideologia mais extrema. A civilização é inevitavelmente dominada pela economia, pois ela é técnica por natureza e concebe toda ideologia e cultura espiritual como um mero artifício ou ilusão. Ela expõe o caráter fantasmagórico de toda ideologia e espiritualidade. A civilização considera a organização do poder e da técnica como a abordagem autêntica e a realização da “vida”. Ao contrário da cultura, ela não é religiosa; representa o triunfo da razão “iluminada”, mas esta última se revela abstrata e pragmática. Não se trata de algo simbólico, hierárquico ou orgânico. Ela é realista, democrática e mecânica. Ela não busca realizações simbólicas, mas “realistas” na vida; ela deseja a vida real e não as semelhanças ou símbolos de outros mundos. Na civilização, no capitalismo e no socialismo, o trabalho coletivo sufoca a criação individual. A civilização despersonaliza. A emancipação da personalidade, que a civilização pretende alcançar, é fatal para a originalidade pessoal. O princípio da personalidade se manifesta apenas na cultura. A vontade de poder e “vida” destrói a personalidade. Esse é o paradoxo da história.

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A passagem da cultura para a civilização implica uma profunda mudança na relação entre o homem e a natureza e, portanto, nesse ambiente social e no destino último. O materialismo econômico apontou essa verdade, mas de uma maneira peculiar à consciência do homem que vive em uma era civilizada. O advento triunfante da máquina abriu uma nova era na qual a vida perde seu caráter orgânico e seu ritmo natural; o homem é separado da natureza por um ambiente artificial de máquinas, pelos próprios instrumentos de sua pretendida dominação da natureza. Como uma reação contra seu ideal ascético medieval, o homem deixa de lado a resignação e a contemplação e tenta dominar a natureza, organizar a vida e aumentar suas forças produtivas. Isso, no entanto, não ajuda a levá-lo a uma comunhão mais próxima com a vida interior e a alma da natureza. Pelo contrário, ao dominá-la tecnicamente e organizar suas forças, o homem se afasta ainda mais dela. A organização revela-se como a morte do organismo. A vida se torna cada vez mais uma questão de técnica. A máquina imprime sua marca no espírito humano e em todas as suas manifestações. Assim, a civilização não tem um fundamento natural ou espiritual, mas mecânico. Isso representa, par excellence, o triunfo da técnica sobre o espírito e o organismo. Sua especulação e arte tendem a se tornar cada vez mais técnicas. A arte futurista é tão característica da civilização quanto a arte simbolista é da cultura. A predominância de correntes gnosiológicas, metodológicas e pragmáticas na filosofia também é sua característica peculiar. A própria ideia de uma filosofia “aplicada” nasce da vontade de poder e do desejo de descobrir seu princípio. A civilização também desenvolve o princípio da especialização às custas da integridade da cultura espiritual. Todos os homens se tornam especialistas e exercem funções especializadas.

A máquina e a técnica são o produto do desenvolvimento mental e das descobertas da cultura, mas elas minam seus fundamentos orgânicos e matam seu espírito. A cultura, tendo perdido sua alma, torna-se civilização. As questões espirituais são desconsideradas; a quantidade substitui a qualidade. A afirmação da vontade de “vida”, poder, organização e felicidade terrena provoca o declínio espiritual da humanidade, pois a vida espiritual mais elevada baseia-se no ascetismo e na resignação. Essa é a tragédia e o destino dos eventos históricos. O conhecimento e a ciência tornam-se o instrumento de realização da vontade de poder, de felicidade terrena e de triunfo da técnica cujo único objetivo é o desfrute da vida em suas manifestações imediatas. A arte também se torna um instrumento da técnica e um elemento decorativo na organização da vida. Toda a beleza da cultura associada a seus templos e palácios agora se torna uma exposição de um museu sem vida. O museu é o único vínculo que a civilização tem com o passado. Surge um culto à vida que não leva em conta nenhum propósito mais profundo por trás dele. Nada mais tem um valor autêntico. Nenhum momento ou experiência da vida é suficientemente profundo para permitir a comunhão com a eternidade. Todo instante e toda experiência são apenas meios para acelerar os processos da vida que aspiram a uma falsa eternidade e ao vampiro que a tudo devora, que é o futuro, a promessa de poder e de felicidade. O ritmo sempre acelerado da civilização destrói toda noção de passado, presente ou eternidade.

A civilização, em oposição à cultura, a qual se dedica à contemplação da eternidade, tende a ser futurista. O maquinário e a técnica são os principais responsáveis pela aceleração da vida e por sua aspiração exclusiva ao futuro. A vida orgânica é mais lenta, menos impetuosa e mais preocupada com o essencial, enquanto a vida civilizada é superficial e acidental, pois coloca os meios e instrumentos da vida à frente dos fins, cujo significado se perde. A consciência dos homens civilizados se concentra exclusivamente nos meios e na técnica da vida, considerados como a única realidade, enquanto seus objetivos são considerados ilusórios. A técnica, a organização e os processos produtivos são uma realidade, enquanto a cultura espiritual é irreal, um mero instrumento da técnica. A relação entre os fins e os meios é invertida e pervertida. Tudo é sacrificado à “vida” e ao seu crescente poder, organização e prazer. Mas qual é o propósito da “vida”? A vida tem algum fim ou significado? Essa perda de qualquer senso de propósito é a morte de uma cultura. A máquina adquire um poder mágico sobre o homem. No entanto, o repúdio romântico à máquina e à civilização como sendo apenas um estágio no destino humano e uma prova que fortalece o espírito humano é incapaz de melhorar as coisas, pois um simples renascimento da cultura é impossível. Em uma era de civilização, a cultura é sempre romântica e voltada para a comunhão com épocas religiosas e orgânicas passadas. Essa é uma lei. O estilo clássico é impossível na civilização. Todos os melhores representantes da cultura no século XIX eram românticos. Todavia, o único caminho real para a cultura é a transfiguração religiosa.

A civilização é, por sua natureza, “burguesa” no sentido espiritual mais profundo da palavra. “Burguês” é sinônimo precisamente do reino civilizado deste mundo e da vontade civilizada de poder organizado e de desfrutar da vida. O espírito da civilização é o das classes médias; ele é apegado e se apega a coisas corruptivas e transitórias; e teme a eternidade. Ser um burguês é, portanto, ser um escravo da matéria e um inimigo da eternidade. As aperfeiçoadas civilizações européia e americana deram origem ao sistema capitalista industrial, que representa não apenas um poderoso desenvolvimento econômico, mas o fenômeno espiritual da aniquilação da espiritualidade. O capitalismo industrial da civilização provou ser o destruidor do espírito eterno e das tradições sagradas. A civilização capitalista moderna é essencialmente ateísta e hostil à idéia de Deus. O crime de matar a Deus deve ser atribuído a ela, e não ao socialista revolucionário, que simplesmente se adaptou ao espírito “burguês” civilizado e aceitou sua herança negativa.

A civilização industrial-capitalista, é verdade, não repudiou totalmente a religião: ela estava preparada para admitir sua utilidade e necessidade pragmáticas. Assim, a religião, que havia encontrado uma expressão simbólica na cultura, tornou-se pragmática na civilização. Ela poderia, de fato, ser útil e prática na organização e promoção da vida. A civilização é, por sua natureza, pragmática. A popularidade do pragmatismo nos Estados Unidos, a terra clássica da civilização, não deve causar surpresa. O socialismo, por outro lado, repudiou a religião pragmática, mas defende pragmaticamente o ateísmo como sendo mais útil para o desenvolvimento das forças vitais e para a satisfação mundana das grandes massas da humanidade. Entretanto, a abordagem pragmática e utilitária do capitalismo foi a verdadeira fonte do ateísmo e da falência espiritual. O deus útil e praticamente eficaz do capitalismo não pode ser o Deus verdadeiro. Ele pode ser facilmente desmascarado. O socialismo está negativamente certo. O Deus das revelações religiosas e da cultura simbólica havia desaparecido há muito tempo da civilização capitalista, assim como ela havia se afastado Dele. Ela deu as costas a tudo o que era ontológico; de fato, é anti-ontológica, mecanicista e fictícia. Seu automatismo, sua técnica e seu mecanismo constituem uma antítese ao caráter orgânico, cósmico e espiritual de todo o ser. A vida econômica do homem não é em si mesma mecânica ou fictícia; ela tem raízes reais e divinas na vida, pois o homem tem o dever e o impulso de se desenvolver economicamente. No entanto, o divórcio entre a economia e a vida, a exaltação da economia como o princípio máximo da vida, a interpretação técnica da vida e o princípio capitalista fundamental do lucro transformam a vida econômica do homem em uma ficção. O sistema capitalista está semeando as sementes de sua própria destruição ao minar o fundamento espiritual da vida econômica do homem. O trabalho perde todo o propósito e a justificativa espiritual e, como resultado, lança uma condenação contra todo o sistema. O socialismo é a penalidade que ele paga. Mas o socialismo dá continuidade ao trabalho da civilização e reflete seus princípios “burgueses”; ele tenta desenvolver ainda mais a civilização sem infundir-lhe um novo espírito. Dessa maneira, a civilização industrial fabrica ficções, inevitavelmente exaure tanto a disciplina espiritual quanto o princípio motivador do trabalho e, assim, prepara sua própria queda.

A civilização é impotente para realizar seu sonho de engrandecimento eterno. A torre da Babilônia permanecerá inacabada. A Guerra Mundial já ilustra a queda da civilização européia, o colapso do sistema industrial e o desmascaramento das ficções que alimentaram o mundo “burguês”. Essa é a dialética trágica do destino histórico.

Tanto a cultura quanto a civilização estão baseadas nela. Somente uma abordagem dinâmica pode nos ajudar a entender tudo. E só então veremos que tudo no destino histórico tem uma tendência a se transformar em seu oposto, que tudo está repleto de contradições e carrega as sementes de sua própria destruição.

O imperialismo é o produto técnico da civilização. Não é cultura. É a vontade pura e simples de dominação e organização universal. Ele faz parte do sistema capitalista e é técnico por natureza. Esse é o imperialismo “burguês” inglês e alemão dos séculos XIX e XX. Ele deve ser diferenciado dos imperialismos divinos do passado, do Sacro Império Romano-Germânico e do Império Bizantino, que eram simbólicos e pertencem à cultura e não à civilização. O imperialismo revela a dialética intransponível do destino histórico. Sua vontade de dominação universal desintegra e derrete os corpos históricos dos estados nacionais pertencentes à cultura. O Império Britânico é o fim da Inglaterra como um estado nacional. Mas a voraz vontade imperial contém a semente da morte. O imperialismo, em seu desenvolvimento incontrolável, mina seus próprios alicerces e prepara a transição para o socialismo, que também é governado pela vontade de poder e organização universais e que, portanto, é apenas mais um estágio e uma manifestação da civilização. Tanto o imperialismo quanto o socialismo são a expressão de uma profunda crise cultural. Eles representam o triunfo da civilização em detrimento da cultura. Isso não significa que a cultura esteja morrendo, pois em seu sentido mais profundo ela é eterna. A cultura antiga entrou em colapso e aparentemente morreu. Todavia, na verdade, ela continua a viver em nós como um estrato profundo em nosso ser. E, da mesma maneira, em uma era de civilização, a cultura vive uma vida qualitativa e não quantitativa em nossas entranhas. A civilização traz consigo a barbárie, a vulgarização ou a perda das formas perfeitas que a cultura proporciona. Esse processo de barbarização tem vários aspectos. Assim, uma época de barbárie medieval inicial sucedeu a era da cultura helênica e da civilização romana universal. Esse barbarismo elementar foi o resultado do sangue novo que havia sido infundido na antiga civilização pelos novos povos recém-chegados das florestas do norte. Porém, a barbárie à qual a alta perfeição da civilização européia e mundial pode dar origem é de outro tipo. É um barbarismo contaminado pelo óleo de máquina e por todos os defeitos de uma civilização técnica. Essa é a dialética peculiar à civilização. Ela esgota a energia espiritual do homem e as fontes de cultura, e isso finalmente introduz o reinado não das forças naturais e bárbaras no melhor sentido da palavra, mas do automatismo mágico e do mecanismo como substituto do ser autêntico. A civilização nasceu da vontade do homem de ter “vida” real, poder e felicidade, em oposição à natureza simbólica e contemplativa da cultura. A transfiguração técnica é um dos caminhos que levam da cultura à “vida” e sua transfiguração. O homem estava destinado a segui-la a fim de descobrir plenamente todas as suas potencialidades técnicas. Mas esse caminho não leva ao ser autêntico e só ajuda a destruir a imagem do homem.

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Um tipo diferente de vontade de “vida” e de sua transfiguração pode surgir em uma cultura. A civilização não é a única transição possível a partir da cultura com sua antítese trágica para a “vida” e sua transfiguração. Há também o caminho de uma transfiguração religiosa da vida e da realização do verdadeiro ser. Podemos estabelecer quatro períodos ou estados no destino histórico do homem: barbárie, cultura, civilização e transfiguração religiosa. Esses estados não podem ser examinados exclusivamente sob o ponto de vista da cronologia, pois podem coexistir; eles representam, de fato, as diferentes predisposições do espírito humano. Contudo, um desses estados tende a predominar em uma determinada época. Assim, a era helenística e a da civilização romana universal estavam destinadas a dar origem à vontade de transfiguração religiosa. E isso explica a origem do cristianismo, cuja missão essencial era transfigurar a vida. Ao fazê-lo, realizou milagres; a vontade de realizar milagres está sempre intimamente ligada à vontade de realizar uma autêntica transfiguração da vida. Todavia, historicamente, o cristianismo passou por períodos de barbárie, cultura e civilização, embora em todos eles ainda representasse essencialmente uma transfiguração da vida. Em sua cultura, o cristianismo foi preeminentemente simbólico, contribuindo com símiles, símbolos e imagens da transfiguração. Em seu período de civilização, ele se tornou principalmente pragmático, o meio de desenvolver os processos da vida e a técnica da disciplina espiritual. Mas nos picos da civilização, sua vontade de milagre enfraqueceu e morreu. Os cristãos civilizados ainda professam uma crença morna em milagres passados, mas não os esperam mais e perderam toda a vontade fervorosa de alcançar o milagre transfigurador. Mas essa fervorosa vontade de milagre e a transfiguração orgânico-espiritual da vida devem reaparecer e inspirar uma cultura moribunda com outro tipo de vida que não a oferecida por uma civilização mecânica e técnica. A religião não pode permanecer como uma mera parte da vida, engavetada e negligenciada. Ela deve alcançar a verdadeira transfiguração ontológica da vida que a cultura alcança apenas simbolicamente e a civilização apenas tecnicamente. No entanto, talvez ainda tenhamos um período de civilização na atmosfera.

A Rússia era um país de destino enigmático que abrigava o pensamento apaixonado de uma transfiguração religiosa da vida. Nossa vontade de cultura sempre foi acompanhada pela vontade de “vida”. Ela tinha dois aspectos que muitas vezes se confundiam: a luta por uma transfiguração social da vida em civilização e por uma transfiguração religiosa, um milagre nos destinos da sociedade humana ou de um povo. Estamos enfrentando a crise da cultura sem ter experimentado totalmente a última. Os russos sempre tenderam a ficar insatisfeitos com a cultura como um estágio intermediário da existência. Pushkin e a era alexandrina constituem o auge da cultura russa. A literatura e o pensamento russos do final do século XIX não eram mais representativos da cultura, mas sim de um impulso à “vida” e à transfiguração religiosa. Esse foi o caso de Gogol, Tolstói e Dostoiévski, bem como de Soloviev, Leontiev e Fedorov; e esse também foi o caráter das correntes filosóficas religiosas mais recentes. Nossas tradições culturais sempre foram muito fracas. Como resultado, estamos criando uma civilização feia, pois o elemento bárbaro em nós é sempre forte e nossa vontade de transfiguração da religião é atingida por uma espécie de perspectiva doentia. Mas a consciência russa tem uma percepção mais aguda e profunda da crise cultural e da tragédia do destino histórico do que a dos povos mais afortunados do Ocidente. Talvez o povo russo tenha também uma capacidade maior de afirmar sua vontade de realizar o milagre da transfiguração religiosa. Como todos os povos do mundo atual, não temos cultura e estamos destinados a trilhar o caminho da civilização. Contudo, nunca estaremos tão presos ao simbolismo cultural ou ao pragmatismo da civilização quanto os povos do Ocidente. A vontade do povo russo precisa ser purificada e temperada, e nosso povo tem uma grande expiação reservada para ele. Somente então sua vontade de transfigurar a vida lhe dará o direito de determinar sua missão no mundo.


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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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