Sobre o Debate e a Existência — Eric Voegelin

“Sobre o Debate e a Existência” foi publicado originalmente no site Voegelin View: https://voegelinview.com/on-debate-and-existence/

Em nossa condição de cientistas políticos, historiadores ou filósofos, todos nós já tivemos a oportunidade, em um momento ou noutro, de participar de debates com ideólogos — sejam eles comunistas ou intelectuais de convicções mais próximas. E todos nós descobrimos nessas ocasiões que não era possível chegar a um acordo, ou mesmo a uma discordância honesta, porque a troca de argumentos era perturbada por uma profunda diferença de atitude com relação a todas as questões fundamentais da existência humana — com relação à natureza do homem, ao seu lugar no mundo, ao seu lugar na sociedade e na história, à sua relação com Deus. O argumento racional não pôde prevalecer porque o interlocutor da discussão não aceitou como obrigatória para si mesmo a matriz da realidade na qual todas as questões específicas a respeito de nossa existência como seres humanos estão, em última análise, enraizadas; ele sobrepôs à realidade da existência um outro modo de existência, o qual Robert Musil chamou de Segunda Realidade. O argumento não conseguiu alcançar resultados, teve que vacilar e se esgotar, pois ficou cada vez mais claro que não se tratava de um argumento contra um argumento, mas que, por trás da aparência de um debate racional, escondia-se a diferença de dois modos de existência, da existência na verdade e da existência na mentira. Poderíamos dizer que o universo do discurso racional entra em colapso quando a base comum da existência na realidade desaparece.

Corolário: as dificuldades do debate dizem respeito aos fundamentos da existência. O debate com ideólogos é perfeitamente possível nas áreas das ciências naturais e da lógica. Contudo, a possibilidade de debate nessas áreas, que são periféricas à esfera pessoal, não deve ser considerada um presságio da possibilidade de que, no futuro, as áreas centrais à pessoa (a distinção de Max Scheler entre as áreas person periphere e person zentrale) também entrem na zona de debate. Entre os estudantes da União Soviética, há uma tendência a supor que o universo do discurso, hoje restrito a assuntos periféricos, se expandirá, pelo poder irresistível da razão, de modo a incluir os fundamentos da existência. Embora essa possibilidade não deva ser negada categoricamente, também deve ser percebido que não há nenhuma evidência empírica na qual essa expectativa possa se basear. O assunto é de algum interesse porque filósofos do nível de Jaspers se entregam à suposição de que há uma comunidade de seres humanos que existe no nível das ciências naturais e que os cientistas formam uma comunidade. Isso levanta a questão filosófica de saber se uma comunidade é algo que pode ser estabelecido no nível do interesse comum pela ciência, uma questão que, no momento, está completamente esquecida.

O fenômeno da ruptura propriamente dita é bem conhecido. Ademais, as várias Segundas Realidades, as chamadas ideologias, têm sido objeto de estudos extensivos. Mas a natureza do colapso em si, suas implicações para o avanço da ciência e, acima de tudo, os métodos para lidar com a fantástica situação, ainda não foram suficientemente explorados. Obviamente, o tempo de que dispomos não permitirá uma pesquisa exaustiva sobre um tópico tão vasto; ainda assim, proponho no presente artigo pelo menos circunscrever alguns dos pontos relevantes de tal pesquisa. E como um passo para estabelecer os pontos relevantes, colocarei o fenômeno da ruptura em perspectiva histórica.

As Segundas Realidades que causam a ruptura do discurso racional são um fenômeno relativamente recente. Elas cresceram durante os séculos modernos, mais ou menos desde 1500, até atingirem, em nosso tempo, as proporções de uma força social e política que, em momentos mais sombrios, pode parecer forte o suficiente para extinguir nossa civilização — a menos, é claro, que você seja um ideólogo e identifique a civilização com a vitória da Segunda Realidade. Para distinguir a natureza do novo crescimento, bem como para entender suas consequências, precisamos voltar um pouco mais no tempo, para um período em que o universo do discurso racional ainda estava intacto porque a primeira realidade da existência ainda era inquestionável. Somente se soubermos, para fins de comparação, quais são as condições do discurso racional, poderemos nos orientar no confronto contemporâneo com as Segundas Realidades. O melhor ponto de partida para a análise comparativa do problema será a Suma Contra os Gentios de São Tomás. A obra foi escrita como uma exposição e defesa da verdade do cristianismo contra os pagãos, em particular contra os maometanos. Ela foi escrita em um período de turbulência intelectual devido aos contatos com o Islam e a filosofia aristotélica, comparável em muitos aspectos ao nosso, com a importante diferença, porém, de que um debate racional com o oponente ainda era possível ou — deveríamos dizer com mais cautela — ainda parecia possível para Aquino. Refletirei, portanto, sobre os capítulos iniciais da Suma, nos quais Aquino expõe o problema do debate, que não era simples nem mesmo em sua época.

Aquino pressupõe o filósofo, tal como fizemos, na situação de debate com um oponente; ele considera essa a situação necessária do filósofo. Pois “assim como cabe ao sapiens meditar sobre a verdade do primeiro princípio e comunicá-la aos outros, também cabe a ele refutar a falsidade oposta”. A verdade sobre a constituição do ser, da qual a existência humana faz parte, não é alcançada em um vácuo intelectual, mas na luta permanente com noções pré-analíticas sobre a existência, bem como com concepções analíticas errôneas. A situação do debate, portanto, é entendida como uma dimensão essencial da existência que reconhecemos como nossa; por um lado, a busca pela verdade é a tarefa perpétua de desvencilhá-la do erro, de refinar sua expressão na disputa com a ingenuidade inesgotável do erro. Como consequência, a filosofia não é um empreendimento solitário, mas social. Seus resultados dizem respeito a todos os homens; ela é realizada pelo sapiens de forma representativa para todos os homens. Mais especificamente, os representados têm o direito de receber respostas não apenas para suas próprias perguntas, mas também de ouvir as respostas aos erros brilhantes e bem propagados que ameaçam desintegrar a ordem da sociedade ao romper a ordem da existência de cada homem pessoalmente. É uma situação e uma obrigação que deve ser enfrentada em nosso século XX, assim como Tomás teve de enfrentá-la em seu século XIII. Portanto, se o sapiens se esquiva da situação de debate, especialmente se ele evita as questões intelectuais cruciais que ameaçam a cidade sitiada, ele se torna negligente em seus deveres para com Deus e o homem, sua atitude é espiritual, moral e politicamente indefensável.

O ofício do filósofo, portanto, é duplo: ele deve expor a verdade, elaborando-a analiticamente, e deve proteger a verdade contra o erro. Contudo, qual é essa verdade que o filósofo deve meditar e expor? Eu a chamei de verdade da existência e, ao usar essa linguagem, modernizei terminologicamente o problema que está no cerne do esforço de São Tomás, bem como do esforço anterior de Aristóteles, ao qual Aquino se refere nas passagens em consideração. A modernização é legítima, como se verá adiante, porque não modifica o problema, mas apenas sua expressão simbólica; e ao mesmo tempo é necessária, porque sem ela não podemos entender que o problema escolástico e clássico é de fato idêntico ao nosso. A fonte das dificuldades que nós, modernos, temos para entender Aristóteles e Aquino é o fato de que a verdade da existência, da primeira realidade, como a chamamos, na época deles ainda não era questionada; portanto, não havia necessidade de distingui-la de uma existência falsa e, consequentemente, não foram desenvolvidos conceitos para um problema que ainda não havia se tornado atual. A verdade da existência era tida por tão evidente que, sem qualquer preparação adicional, a análise poderia prosseguir com o desenvolvimento dos problemas da metafísica conforme eles se apresentavam aos homens que viviam na verdade da existência. Porém, vamos agora dar uma olhada na maneira pela qual Aquino e Aristóteles expressaram seu problema sobre a verdade.

Embora o argumento favorável seja volumoso, as formulações cruciais são sucintas. Aquino, seguindo Aristóteles, considera que a tarefa do filósofo é considerar as causas mais elevadas de todo ser. O fim de cada coisa é aquele pretendido por seu primeiro autor ou agente. No entanto, o primeiro autor e impulsionador do universo é um intelecto. O fim último do universo deve, portanto, ser o bem de um intelecto. Esse bem é a verdade. Consequentemente, a verdade deve ser o fim último de todo o universo, e a consideração do homem sábio visa principalmente à verdade. Aquino então se refere à autoridade do próprio Aristóteles, que estabeleceu que a filosofia primeira é a ciência da verdade, mas daquela verdade que é a origem de toda a verdade, ou seja, que pertence ao primeiro princípio pelo qual todas as coisas são. A verdade pertencente a tal princípio é, claramente, a fonte de toda verdade; pois as coisas têm a mesma disposição tanto na verdade quanto no ser. (SCG I, 1, 1,993b20-30).

À primeira vista, presumo que essas formulações soarão tão estranhas para você quanto soaram para mim. Fala-se de um primeiro motor do universo — que deve ser assumido como um intelecto — do qual emana, de alguma forma, uma ordem do ser que é, ao mesmo tempo, uma ordem da verdade. Por que deveríamos nos preocupar com um primeiro motor e suas propriedades? — você perguntará. E será que a questão realmente melhora quando Aquino identifica o motor primordial com o Deus da revelação e usa o argumento aristotélico para o motor primordial como uma demonstração da existência de Deus? Correndo o risco de despertar a indignação de aristotélicos e tomistas convictos, devo dizer que considero essas questões bastante pertinentes. As questões devem ser levantadas, pois não vivemos mais, tal como Aristóteles e até mesmo Aquino, no centro de um cosmo, que nos cerca de todos os lados de forma esférica, ele próprio cercado pela esfera externa das estrelas fixas. Não podemos mais expressar a verdade da existência na linguagem dos homens que acreditavam em tal cosmo, movido com todo o seu conteúdo por um motor primordial, com uma cadeia de aitia, de causas, estendendo-se de existente a existente descendo até os mais inferiores. O simbolismo do cosmo fechado, que informa os conceitos fundamentais da metafísica clássica e escolástica, foi substituído pelo universo da física e da astronomia modernas.

No entanto, se admitirmos tudo isso, será que a metafísica aristotélica e tomista deve ser jogada no lixo dos simbolismos que já tiveram seu momento de verdade, mas que agora se tornaram inúteis? Você já deve ter imaginado que a resposta será negativa. De fato, grande parte do simbolismo tornou-se obsoleto, mas há um núcleo sólido de verdade nele que pode e deve ser resgatado por meio de alguma cirurgia. Parece que dois estágios dessa cirurgia são indicados:

(1) A primeira operação deve se estender às demonstrações que dependem, para sua validade, da imagem de um cosmos que não é mais o nosso. Se, no entanto, examinarmos o conjunto de demonstrações em apoio às formulações que apresentei, e se removermos dele tudo o que cheira a simbolismo cosmológico, restará como peça fundamental o argumento de que um universo que contém seres inteligentes não pode se originar de uma prima causa que seja menos que inteligente. Embora o contexto do argumento ainda seja o cosmos, pelo menos o argumento em si se baseia especificamente em uma experiência de existência humana que, como tal, é independente da experiência do cosmos.

(2) A segunda operação deve se estender ao próprio motor principal. Devemos distinguir entre a construção simbólica e a realidade à qual ela se refere; e devemos estar cientes das curiosas relações entre a firmeza da convicção de que tal realidade existe e a credibilidade da construção. Se as experiências motivadoras forem conhecidas pelo leitor e compartilhadas por ele, a construção parecerá satisfatória e crível; se as experiências não forem compartilhadas, ou nem mesmo forem conhecidas com muita clareza, a construção se tornará inacreditável e adquirirá o caráter de uma hipóstase. Aristóteles podia se entregar à sua construção com segurança, porque as experiências que motivam o simbolismo eram tidas como certas por todos, sem um exame minucioso; e Aquino, além de viver com a mesma segurança acrítica da experiência, podia, como teólogo cristão, misturar a verdade do motor principal com a verdade da revelação. Hoje, a validade do símbolo e, com sua validade, a realidade à qual ele se refere, está em dúvida, porque as experiências que motivaram sua criação para sua expressão adequada escaparam da consciência pública; e elas puderam escapar da consciência pública com relativa facilidade, porque não foram apresentadas com explicitação suficiente, nem o problema da experiência e da simbolização entrou, de modo algum, em foco claro na metafísica clássica e escolástica. Portanto, a fim de alcançar a verdade contida na construção aparentemente hipostática, devemos tornar explícitas as experiências que a motivam.

As experiências imediatas que a metafísica aristotélica pressupõe não são difíceis de serem encontradas nas fontes clássicas, se as procurarmos; mas, depois de toda essa preparação, receio que elas sejam um anti-clímax por causa de sua aparente simplicidade. Com efeito, somos remetidos a nada mais formidável do que as experiências da finitude e da criaturalidade em nossa existência, de sermos criaturas de um dia, tal como os poetas chamam o homem, de nascermos e estarmos fadados a morrer, da insatisfação com um estado experimentado como imperfeito, da apreensão de uma perfeição que não é deste mundo, mas que é privilégio dos deuses, da possível realização em um estado para além deste mundo, o Platonicepekeina [o Além], e assim por diante. Acabei de mencionar Platão; se examinarmos essa lista de experiências, entenderemos melhor por que, para Platão (que tinha uma sensibilidade mais aguçada para os problemas da existência do que Aristóteles ou Tomás), a filosofia poderia ser, sob um de seus aspectos, a perspectiva da morte; sob outro aspecto, o Eros do transcendente Agathon; sob ainda outro aspecto (que nos leva de volta às formulações de Aristóteles e Aquino), o amor à Sabedoria que, em sua plenitude, é exclusivo a Deus. Nessas concepções platônicas (o catálogo não está completo), podemos ver a filosofia emergindo das experiências imediatas como uma tentativa de iluminar a existência. Ademais, podemos entender como a filosofia — uma vez que tenha, graças a Platão, desenvolvido seu simbolismo e se tornado uma preocupação em andamento — poderia ganhar algo semelhante a uma vida autônoma em termos de construção e demonstração, aparentemente independente das experiências originalmente motivadoras, como poderia se transformar em um empreendimento que teria de se tornar pouco convincente quando, devido a circunstâncias históricas, o leitor não mais compartilhasse da compreensão da existência que o filósofo possuía.

Reunimos os dados do problema a respeito da experiência e da simbolização, na medida em que estavam imediatamente conectados com as formulações de Aquino e Aristóteles. Podemos agora tentar a exegese da existência que está implícita, embora não explicitamente dada, na metafísica clássica e escolástica. No decorrer dessa tentativa, entretanto, surgirão outros dados do problema que nos obrigarão a revisar as proposições iniciais. Portanto, o leitor deve ser avisado de que, depois desse primeiro esforço, teremos de começar de novo.

A existência humana, ao que parece, não é opaca para si própria, mas iluminada pelo intelecto (Aquino) ou nous (Aristóteles). Esse intelecto é tanto parte da existência humana quanto é o instrumento de sua interpretação. Na exegese da existência, o intelecto descobre a si mesmo na estrutura da existência; ontologicamente falando, a existência humana tem estrutura noética. Ademais, o intelecto descobre a si mesmo como uma força que transcende sua própria existência; em virtude do intelecto, a existência não apenas não é opaca, mas de fato se estende para além de si mesma em várias direções em busca de conhecimento. Aristóteles abre sua Metafísica com a frase: “Todos os homens, por natureza, desejam conhecer”. Não vou incomodá-lo com os detalhes do argumento de Aristóteles sobre o ponto, porque suspeito que em sua etiologia do ser, ou seja, na doutrina das quatro causas e na organização das demonstrações de acordo com as quatro causas, tocamos novamente em uma das áreas dos símbolos que é incompatível com o estado atual da ciência e, portanto, terá de ser abandonada em grande parte, se não inteiramente, a fim de alcançar o núcleo da verdade. Em vez disso, usarei um atalho e dividirei os objetos aos quais o desejo de saber se estende em duas classes: (1) coisas do mundo externo e (2) ações humanas.

Com relação às coisas, o desejo de conhecer levanta as questões de sua origem, tanto com relação à sua existência (incluo sob esse título os argumentos hilético e cinético) quanto à sua essência (o argumento eidético). Em ambos os aspectos, a demonstração etiológica de Aristóteles chega, em última instância, à prima causa eterna e imaterial como sendo a origem das coisas existentes. Se agora mudarmos o foco da construção de validade duvidosa para as experiências que motivam sua construção e procurarmos uma terminologia moderna de maior adequação, a encontraremos oferecendo-se nas duas grandes questões metafísicas formuladas por Leibniz em seus Principes de la Nature et de la Grâce, nas perguntas: (1) Por que existe algo ao invés de nada? e (2) Por que algo é como é, e não diferente? Essas duas perguntas são, em minha opinião, o núcleo da experiência verdadeira que motiva as construções metafísicas do tipo aristotélico e tomista. Entretanto, como obviamente nenhuma resposta a essas perguntas será capaz de ser verificada ou falsificada, o filósofo estará menos interessado neste ou naquele simbolismo que finge fornecer a resposta “verdadeira” do que nas próprias perguntas. Pois essas perguntas surgem autenticamente quando a razão é aplicada ao confronto experiencial do homem com as coisas existentes neste mundo; e são elas as perguntas que o filósofo deve manter vivas a fim de proteger a verdade de sua própria existência, bem como a de seus semelhantes, contra a construção de uma Segunda Realidade, que desconsidera essa estrutura fundamental da existência e finge que as perguntas são ilegítimas ou ilusórias.

Corolário I: Heidegger enfatiza muito a primeira das perguntas de Leibniz, mas negligencia a segunda. Ele também não dá atenção ao argumento aristotélico da causa final (que será tratado em breve). Sua ontologia fundamental é baseada em uma análise incompleta da existência. Mesmo nesse estágio inicial, nossa análise da existência já mostra sua importância como um instrumento para classificar as Segundas Realidades e suas várias técnicas de construção, sendo uma delas a omissão de partes da experiência da existência.

Corolário II: O simbolismo que fornece uma resposta às perguntas é de importância secundária para o filósofo. Isso, no entanto, não quer dizer que ele não tenha uma função importante na proteção da ordem da existência, tanto para o homem quanto para a sociedade. Pois o desenvolvimento de uma construção de resposta, mesmo que tenha de ser revisada à luz de uma análise posterior e mais penetrante da existência, pelo menos protegerá por um tempo contra o erro relativo à verdade da existência. Mas apenas por um tempo. Pois a estrutura da existência é complicada; ela não é conhecida de uma vez por todas. Se for esquecido que a resposta da construção depende, para sua verdade, da compreensão da existência que a motivou; se for erigida em um ídolo válido para sempre, seu efeito será exatamente o oposto da proteção. Para os sentidos, se não for claramente conhecida, a invalidade do símbolo em um momento posterior da história será estendida pelos críticos do símbolo à verdade contida nele. Um símbolo obsoleto pode ter o efeito de destruir a ordem da existência que ele foi criado para proteger.

A segunda classe de objetos considerados por Aristóteles, que nos interessa mais imediatamente como cientistas políticos, são as ações humanas. Com relação a essa classe, a demonstração de Aristóteles é de mais fácil compreensão. De fato, a análise é apresentada na forma de uma demonstração etiológica, tal como as outras, desta vez referente à causa final, mas o esqueleto etiológico da análise pode ser mais facilmente deduzido porque a experiência genericamente humana que é exposta na forma dúbia é imediatamente inteligível. Além disso, na ocasião da causa final, o estilo de Aristóteles muda visivelmente; de repente, ele se torna caloroso e incisivo, como se agora tivéssemos chegado ao coração do problema; e ele se torna discursivo o suficiente para deixar claro que aqui, de fato, tocamos a existência humana em seu centro. A demonstração relativa à causa final, podemos dizer, é a demonstração modelo; os três argumentos relativos à aitia das coisas são derivados no sentido de que sua persuasão deriva, em última instância, da validade da demonstração relativa à causa final. Por isso, citarei a passagem decisiva:

A causa final é um fim que não é para o bem de qualquer outra coisa, mas para o bem do qual todas as outras coisas são. Portanto, se houver um último termo desse tipo, o processo não será ilimitado (apeiron); e se não houver tal termo, não haverá causa final. Aqueles que defendem uma série interminável não percebem que estão destruindo a própria natureza do Bem, embora ninguém tentaria fazer nada se não fosse provável que atingisse algum limite (peras); nem haveria razão (nous) no mundo, pois o homem razoável sempre age em prol de um fim — que é um limite (peras).

Devemos desconsiderar, como eu disse, a linguagem etiológica. Se isso for feito, Aristóteles insiste que a ação humana é racional, mas que a racionalidade depende da condição de um fim último. A regressão indefinida de meios para fins, que por sua vez são meios para outros fins, deve ser interrompida em algum ponto por um fim último, por um summum bonum. O limite da cadeia de meios e fins é a condição da racionalidade na ação. Isso, por si só, é verdade; com certeza, haveria racionalidade pragmática, se um projeto de ação coordenasse adequadamente os meios em direção a um fim, mas não haveria racionalidade substantiva em nenhuma ação, se toda a rede de ações de um homem não pudesse ser orientada em direção a um bem maior, a partir do qual essa racionalidade se irradia para as ações individuais. Aristóteles, entretanto, vai mais longe nessa ocasião. Não só a natureza do Bem seria destruída sem um bem limitador que não fosse um meio para um fim posterior, mas também não haveria razão (nous) no mundo em geral, porque um homem que tem razão (noun echon) só agirá em prol de um fim-limite. O limite parece ser algo inerente à razão; e essa qualificação aparece no contexto da análise da ação, revelando que aqui alcançamos a origem experiencial da qual deriva o argumento relativo a um limite também nas demonstrações relativas ao conhecimento das coisas.

Com efeito, as demonstrações que culminam na suposição de um motor primordial não se baseiam, em última análise, na prova de que um pensador que nega a existência de uma causa primordial e assume uma cadeia infinita de causação se envolverá em contradições (pois não há razão para que o universo não seja ininteligível e, em uma análise mais profunda, não envolva o pensador em contradições insolúveis), mas em uma experiência de que a razão está de fato inserida na ordem do ser e é propriedade da razão ter um limite. Voltamos à proposição inicial sobre a existência humana (comum a Aristóteles e Aquino) de que o intelecto se descobre como parte da existência humana. Aqui, na exegese da existência, parece estar a área crítica na qual se originam as proposições, apresentadas como auto-evidentes, no nível da doutrina metafísica. Devemos examinar esse problema da razão na existência mais uma vez.

Corolário: O leitor moderno, a menos que seja um especialista em metafísica, terá dificuldades para entender a etiologia aristotélica, bem como nossa análise atual, porque o termo aition, traduzido nos idiomas modernos como causa, não tem o significado de causa que o leitor moderno associa a ele. Os aitia não têm nada a ver com causa e efeito nas ciências naturais; eles se referem a uma relação na hierarquia do ser que podemos chamar neutramente de “derivação”. Aristóteles pode dizer, por exemplo (Met. 994a311): “A geração hilética de uma coisa a partir de outra não pode continuar ad infinitum (por exemplo, a carne a partir da terra, a terra a partir do ar, o ar a partir do fogo, e assim por diante sem fim): nem as causas cinéticas podem formar uma série interminável — o homem, por exemplo, sendo movido pelo ar, o ar pelo sol, o sol pelo conflito, e assim por diante sem limite.” Obviamente, a etiologia de Aristóteles ainda está profundamente enraizada na especulação jônica sobre o cosmos, que, por sua vez, ainda está próxima do reino da simbolização mítica. A etiologia, portanto, não deve ser entendida como tendo algo a ver com a cadeia de causa e efeito no tempo, no sentido moderno.

O problema do limite pertence estritamente à análise da existência; não tem nada a ver com a infinitude ou a criação do mundo. O próprio Aristóteles sustentou firmemente que o mundo existe desde o infinito; sua rejeição da regressão infinita diz respeito exclusivamente à hierarquia do ser que culmina no motor principal. Além disso, Aquino o segue nessa questão: Ele admite que nenhum filósofo jamais apresentou uma razão válida para que o mundo tenha um início no tempo; sua convicção de que o mundo não é infinito no tempo, mas criado, não se baseia em argumentos filosóficos, mas na fé na revelação. Deve-se observar que Aristóteles não ficou emocionalmente perturbado, até onde sabemos, com a infinidade do tempo; e podemos nos perguntar se ele teria ficado perturbado com a infinidade do espaço que se tornou agudamente aparente com o desenvolvimento da física e da astronomia desde o século XVI d.C. A questão é interessante porque, desde Pascal, tornou-se moda na interpretação da modernidade reconhecer na perda da posição do homem no centro de um cosmo fechado uma das causas de perturbação e desequilíbrio psíquico. A interpretação da modernidade resultaria em um quadro bastante diferente, se a infinidade do tempo e do espaço fosse experimentada como perturbadora porque a existência perdeu sua verdade e, com sua verdade, seu equilíbrio.

À luz da análise anterior, que introduziu novos fatores no problema da existência, faremos agora nosso segundo esforço, repetindo primeiro as proposições que terão de ser defendidas. O homem descobre sua existência como iluminada por dentro pelo Intelecto ou Nous. O intelecto é o instrumento de auto-interpretação, tanto quanto é parte da estrutura interpretada. A existência, dissemos, tem uma estrutura noética. Além disso, verificou-se que o intelecto pode transcender a existência em várias direções em busca de conhecimento. Essas formulações provisórias podem agora receber mais precisão. Em virtude da estrutura noética de sua existência, podemos dizer que o homem se descobre como sendo não um mundo em si mesmo, mas um existente entre outros; ele experimenta um campo de existentes do qual faz parte. Ademais, ao descobrir a si mesmo em sua limitação como parte de um campo de existências, ele se descobre como não sendo o criador desse campo de existências ou de qualquer parte dele. A existência adquire seu significado pungente por meio da experiência de não ser auto-gerada, mas ter sua origem fora dela mesma. Por meio da iluminação e da transcendência, entendidas como propriedades do Intelecto ou Nous, a existência humana encontra-se, portanto, na situação em que surgirão as questões relativas à origem e ao fim da existência.

Corolário: A descrição anterior me parece mais exata do que o termo descritivo de Heidegger, Geworfenheit. O geworfen passivo requer um sujeito que realiza o ato de arremessar. Ou o estado de Geworfenheit deve ser explicitado pelo nome do sujeito, talvez um criador daemônico no sentido gnóstico, ou o termo deve ser considerado metodologicamente defeituoso, pois introduz um elemento de construção na descrição estritamente noética da existência.

Mas onde se encontram a origem e o fim da existência? Como preliminar para a resposta, devemos interpretar o fenômeno do questionamento em si; e para esse propósito, devemos acrescentar à iluminação e à transcendência duas outras propriedades do Intelecto, as propriedades da ideação e do raciocínio. Por meio da iluminação e da transcendência, a existência passou a ser vista como uma coisa existente, em um campo de coisas existentes. Por meio da propriedade de ideação do Intelecto, é possível generalizar as características da existência que foram descobertas em uma natureza da existência, criar uma idéia de existência e chegar à proposição de que a origem e o fim da existência devem ser encontrados em uma coisa existente, não mais do que em outra. Não ser a origem e o fim de si mesmo é genericamente a natureza das coisas existentes. Com essa proposição, alcançamos a base experimental para as extensas demonstrações de Aristóteles e Aquino de que a regressão infinita em busca da origem não pode ter nenhum resultado válido; o postulado do peras, do limite, é o simbolismo pelo qual ambos os pensadores reconhecem a verdade de que a origem e o fim da existência não podem ser encontrados ao se percorrer indefinidamente o campo das coisas existentes. Porém, se não podem ser encontrados no campo das coisas existentes, onde podem ser encontrados? A essa pergunta, o Intelecto, em virtude de seu poder de raciocínio, responderá que ela deve ser encontrada em algo que está para além do campo das coisas existentes, em algo ao qual o predicado “existência” é aplicado por cortesia da analogia.

Corolário: A análise da existência tem de prosseguir passo a passo; e tem de usar expressões verbais como “iluminar”, “tornar-se consciente”, “transcender” e assim por diante. A aparência de um processo no tempo assim criado, entretanto, não deve ser tomada como realidade. O processo é inerente à análise, não à existência. Na realidade, todos os momentos da estrutura, divididos em etapas analíticas, estão presentes de uma só vez e são “conhecidos” de uma só vez na experiência pré-analítica. A sabedoria pré-filosófica tem suas expressões compactas — como “O que vem a ser deve perecer” — que, em um olhar intuitivo, dimensionam a natureza da existência. A análise da existência não pode fazer mais do que tornar explícito o que todo homem sabe independentemente dela. Essa situação levanta a questão: “Com que objetivo a análise é realizada?” —  uma questão que será abordada no texto. E, além dessa questão, surge outra: com que propósito uma compreensão da existência deveria ser expandida para as formas simbólicas da metafísica do tipo aristotélico ou tomista; que propósito poderiam servir as demonstrações do motor primordial, convertidas por Aquino em provas da existência de Deus, especialmente porque elas não provam nada que não seja conhecido antes de a prova ser realizada?

Tentei mostrar que o conhecimento de algo que “existe” para além da existência é inerente à estrutura noética da existência. E esse resultado é confirmado pelas demonstrações aristotélicas e tomistas, nas quais o postulado do peras, sempre que é formulado, é ricamente preenchido com as suspeitas expressões adverbiais de “evidentemente”, “obviamente”, “claramente”, que indicam que a premissa do argumento não é derivada de nenhuma demonstração, mas que o motor principal que emerge da demonstração foi de fato introduzido com a premissa não provada. Em busca do significado de tais demonstrações (deixando de lado a utilidade anteriormente mencionada dos símbolos para funções protetoras e defensivas), parece sugerir-se a possibilidade de que demonstrações desse tipo sejam um Mito do Logos oferecido pelo Intelecto como um presente de veneração à constituição do ser.

Nesse ponto, a análise deve ser interrompida. Qualquer elaboração adicional apenas ofuscaria a estrutura básica que acabou de ser delineada. Portanto, não entrarei em problemas como a via negativa, ou via remotiva, ou analogia entis, que são instrumentos racionais para se chegar à clareza sobre o algo; pois todo raciocínio em tais formas só faz sentido se houver concordância sobre a estrutura da existência que exige a busca de seus problemas por tais meios. Como no caso das perguntas formuladas por Leibniz, o filósofo está mais interessado hoje na estrutura experiencial que motiva a especulação do que nas respostas em si. A análise tentou mostrar que os problemas da transcendência, as questões de origem e fim e o postulado do limite são inerentes à estrutura noética da existência; eles não são doutrinas ou proposições desta ou daquela especulação metafísica, mas precedem toda a metafísica; e esses problemas da existência não podem ser abolidos descartando-se esta ou aquela especulação como insatisfatória ou obsoleta. Em uma época que tem boas razões para duvidar da validade de grande parte da metafísica clássica e escolástica, é, portanto, de suma importância desvincular dos esforços metafísicos do passado a verdade da existência que os motivou e informou.

Usei novamente a expressão “verdade da existência”. Agora podemos defini-la como a consciência da estrutura fundamental da existência, juntamente com a disposição de aceitá-la como condição humana. Da mesma forma, definiremos a inverdade da existência como uma revolta contra a condicio humana e a tentativa de sobrepor sua realidade por meio da construção de uma Segunda Realidade.

Corolário: A análise da existência aqui oferecida pertence apenas aos elementos estruturais que informaram as demonstrações da metafísica clássica e escolástica. De longe, ela não esgota a estrutura da existência; grandes áreas, como, por exemplo, a existência histórica, nem sequer foram tocadas.

Traçamos o problema da verdade na realidade, tal como aparece nas estranhas formulações de Aquino e Aristóteles, até sua origem na estrutura noética da existência. Agora retomaremos o problema do debate como ele se apresentou a Aquino. A Suma Contra os Gentios defende a verdade da fé contra os pagãos. Mas como se pode fazer isso, se o parceiro em potencial para o debate não aceitará um argumento das Escrituras? Vamos ouvir o próprio Aquino sobre a questão. É difícil argumentar a verdade da fé contra os gentios, ele admite, porque eles não concordam conosco em aceitar a autoridade de qualquer Escritura pela qual possam ser convencidos de seu erro. E então ele continua:

Assim, contra os judeus somos capazes de argumentar por meio do Antigo Testamento, enquanto contra os hereges somos capazes de argumentar por meio do Novo Testamento. Mas os maometanos e os pagãos não aceitam nem um nem outro. Devemos, portanto, recorrer à razão natural, à qual todos os homens são obrigados a dar seu consentimento.”

A passagem formula de forma sucinta o problema do debate no século XIII e, junto com ele, por implicação, a profunda diferença que caracteriza a situação do debate em nosso próprio tempo. Pois todo debate a respeito da verdade de proposições específicas pressupõe um pano de fundo de topoi inquestionáveis mantidos em comum pelos parceiros do debate. Em um debate com os judeus, os topoi inquestionáveis são fornecidos pelo Antigo Testamento; em um debate com os hereges, pelo Novo Testamento. Mas onde os encontramos no debate com os gentios? Não me parece acidental que, na resposta a essa pergunta, Aquino passe da linguagem anterior do Intelecto para a linguagem da Razão, sem explicar melhor essa mudança. Lembremos de nossa análise da existência: tivemos que distinguir entre as várias propriedades do Intelecto, entre Iluminação, Transcendência, Ideação e Raciocínio.

Se Aquino acredita que pode contar com o poder da Razão para forçar o assentimento dos gentios, ele tacitamente assume que o raciocínio dos gentios operará dentro da mesma estrutura noética de existência que o seu — uma suposição bastante justificada em vista do fato de que os pensadores maometanos foram os próprios transmissores de Aristóteles para os ocidentais. Pois, obviamente — isto é, obviamente para nós — as operações lógicas do Intelecto qua Razão chegarão a resultados amplamente diferentes, se a Razão tiver sido desligada da condicio humuna. Os topoi inquestionáveis que Tomás tem em comum com os gentios de seu tempo, a quem ele dirige seu argumento, de tal modo inquestionáveis que ele nem mesmo os formula, mas pode tomá-los como certos, são os topoi da existência. Ele pode justamente presumir que seus oponentes estão tão interessados quanto ele próprio no Por que e no Como da existência, nas questões da natureza do homem, da natureza divina, da orientação do homem em direção ao seu fim, da ordem justa nas ações do homem e da sociedade, e assim por diante.

Essas, no entanto, são precisamente as suposições que não podemos mais fazer na situação do debate em nosso tempo. Retomando a lista de Aquino, devemos dizer que não podemos argumentar com base no Antigo Testamento, nem no Novo Testamento, nem na Razão. Nem mesmo pela Razão, porque o argumento racional pressupõe a comunidade da existência verdadeira; somos forçados a descer mais um degrau para lidar com o oponente (até mesmo a palavra “debate” é difícil de aplicar) no nível da verdade existencial. As especulações da metafísica clássica e escolástica são edifícios da razão erguidos sobre a base experiencial da existência na verdade; elas são inúteis em um encontro com edifícios da razão que foram erguidos em uma base experiencial diferente. No entanto, não podemos nos recolher a esses edifícios e deixar o mundo passar, pois, nesse caso, estaríamos sendo negligentes em nosso dever de “debater”. O “debate” deve, portanto, assumir as formas de (1) uma análise cuidadosa da estrutura noética da existência e (2) uma análise das Segundas Realidades, no que diz respeito tanto às suas construções quanto à estrutura motivadora da existência na falsidade. O “debate” sob essa forma dificilmente é uma questão de raciocínio (embora continue sendo uma questão do Intelecto), mas sim da análise da existência que precede as construções racionais; é de caráter médico, pois precisa diagnosticar as síndromes da existência falsa e, por sua estrutura noética, iniciar, se possível, um processo de cura.


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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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