Três Definições de Democracia  — Eric Voegelin

“Três Definições de Democracia”  foi escrito por Eric Voegelin.


Em primeiro lugar, vamos falar dos clichês relativos ao Estado e à Democracia, clichês que devem ser removidos se quisermos abordar qualquer tipo de problema político. O “Estado” tem tido um significado bastante particular na Alemanha desde o período romântico e, particularmente, por meio da filosofia do direito e do Estado de Hegel. Portanto, citarei a passagem-chave da Filosofia do Direito de Hegel, na qual o Estado é definido, para que os senhores possam ver como não se pode e não se deve fazer ciência política.

É o que diz o §257:

“O Estado é a atualidade da Idéia ética. É a mente ética qua a vontade substancial manifesta e revelada a si mesma, conhecendo e pensando a si mesma, realizando o que sabe e na medida em que sabe. O Estado existe imediatamente no costume, mediatamente na auto-consciência, no conhecimento e na atividade individual, enquanto a auto-consciência, em virtude de seu sentimento em relação ao Estado, encontra no Estado, como sua essência e o fim e produto de sua atividade, sua liberdade substantiva.”1

E ainda outra frase do parágrafo seguinte:

“O Estado é absolutamente racional na medida em que é a atualidade da vontade substancial que ele possui na auto-consciência particular, uma vez que essa consciência tenha sido elevada à consciência de sua universalidade. Essa unidade substancial é um fim absoluto e imutável em si mesmo, no qual a liberdade entra em seu direito supremo. Por outro lado, esse fim último tem o direito supremo contra o indivíduo, cujo dever supremo é ser um membro do Estado.”

Não pretendo, de modo algum, contestar o fato de que essas frases fazem sentido dentro da gnose hegeliana. E se alguém é um hegeliano profissional, pode se sentir edificado por elas.

Mas o que nós, na política, queremos saber é se o Sr. Ministro X entende de seus negócios, se tem iniciativa, se está informado, se rouba mais do que é absolutamente necessário, se mente mais do que é publicamente benéfico, e assim por diante, mas não que o Estado é a realidade da idéia moral. Isso é completamente desinteressante na política. Portanto, na política, temos que ver com coisas humanas, e se, no lugar dos homens que são os representantes, colocarmos o Estado como um clichê dessa maneira, tal como Hegel faz aqui, então já nos afastamos completamente da reflexão política.

O segundo desses clichês é “Democracia”. Aqui devemos entrar em mais detalhes. Não se pode fazer nada com uma definição de democracia de livro-texto, que, aliás, é apenas um clichê. Não adianta saber que existem três formas de governo, uma monarquia, uma aristocracia e uma democracia, e que em uma monarquia um está à frente, que em uma aristocracia vários governam e que em uma democracia todos governam. Também não adianta saber que na democracia o povo governa e que existe o grande princípio da soberania popular. Tudo isso não tem nenhuma utilidade para a compreensão humana da democracia. É preciso recorrer a outras definições de democracia, que não devem ser entendidas como definições no sentido de livros didáticos, mas como observações empíricas de seres humanos inteligentes.

Três Definições de Democracia

A seguir, apresentarei três dessas definições.

A primeira é de George Santayana, o filósofo americano: A democracia é o sonho irrealizável de uma sociedade de plebeus patrícios2. Se os homens fossem todos patrícios, o que, aliás, eles não são, então uma democracia poderia funcionar. Porém, como a maioria é composta de plebeus, as maiores objeções podem ser levantadas contra a praticabilidade de uma democracia.

Você vê que essa definição está voltada para o problema humano, mas não é uma definição de livro didático. Você não pode escrevê-la e levá-la para casa como um dogma a respeito da democracia. Mas ainda há outras perspectivas sobre a democracia que complementam essa, sem que sejam, portanto, falsas. Churchill certa vez definiu a democracia como a pior forma de governo, com exceção de todas as outras.3

Todas as formas de governo são ruins, porque precisam levar em conta o fator humano da imperfeição. A democracia é uma forma miserável de governo simplesmente pelas razões que Santayana mencionou na primeira definição. O que realmente é necessário é uma sociedade de plebeus patrícios, e nós não temos isso. Contudo, temos de tolerar a democracia, pois as outras formas de Estado são ainda piores.

Uma terceira definição é do humorista americano Mark Twain, que cito com especial carinho, já que eu mesmo sou membro da Mark Twain Society, assim como Churchill. Mark Twain diz que a democracia se baseia em três fatores: “liberdade de expressão, liberdade de consciência e a prudência de nunca praticar nenhuma delas.”4

Com isso, agora temos uma interpretação da primeira definição de Santayana; pois o interessante aqui é o fato de que a liberdade de expressão e a liberdade de consciência pertencem à sociedade livre, mas que uma democracia não pode funcionar se seus membros tiverem princípios e quiserem realizá-los. Esse insight de Mark Twain é um lugar-comum da política democrática que pode ser lido em todos os livros didáticos de política ingleses ou americanos.

Cortesia, Compromisso e Concessão

Toda sociedade que funcione, uma sociedade de patrícios, baseia-se em cortesia, em compromissos, em concessões às outras pessoas. Quem tem uma idéia fixa e quer que ela seja posta em prática, ou seja, quem interpreta a liberdade de expressão e a liberdade de consciência no sentido de que a sociedade deve se comportar da maneira que ele considera correta, não está qualificado para ser cidadão de uma democracia.

A interação política de toda sociedade, de toda sociedade patrícia e funcional, é patrícia. Ela se baseia no fato de que se pensa muito sobre o que os outros fazem, mas não se diz nada; de que se está sempre ciente de que na sociedade há mais de um bem a ser alcançado, não apenas o bem da liberdade, mas também o bem da segurança, o bem do bem-estar, e que se eu me especializar em um ou outro desses bens, poderei levar toda a sociedade à desordem, porque poderei destruir o equilíbrio entre a realização dos bens nos quais a sociedade se baseia.

Eu poderia até mesmo destruí-la se continuasse a defender o bem que é o meu cavalo de batalha e que quero que seja aceito e realizado neste momento — se eu o forçar continuamente sobre os outros; pois eles se tornarão recalcitrantes e obstinados. Esse é o problema que Aristóteles tratou sob o título de stasis5. Se eu me endurecer com uma idéia específica e buscar apenas esse objetivo, esse bem, então, como reação, surge a contra-stasis, o contra-endurecimento e, com isso, a impossibilidade de cooperação social.

Atualmente, estamos excelentemente equipados com liberdade de expressão e liberdade de consciência [mas com relação] ao terceiro fator enfatizado por Mark Twain, a sabedoria ou a esperteza de não fazer uso incondicional desses direitos, ainda há uma escassez ameaçadora. E uma democracia não funcionará enquanto houver falta dessa sabedoria.

Notas:

  1. Georg W. F. Hegel, Philosophy of Right, trans. T. M. Knox (Nova York: Oxford University Press, 1967), pp. 155-56. ↩︎
  2. Voegelin está resumindo a discussão sobre democracia em George Santayana, A Vida da Razão: A Razão na Sociedade (Nova York: Scribners, 1936), 321-24. ↩︎
  3. A citação original é: “De fato, foi dito que a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras formas que foram experimentadas de tempos em tempos” (Winston Churchill, W. S. Churchill: His Complete Speeches, 1897-1963, vol. 7, ed. Robert Rhodes James [New York: The New York Times]. Robert Rhodes James [Nova York: Chelsea House Publishers, 1974], 7.566). ↩︎
  4.  A citação original é: “É pela graça de Deus que em nosso país temos essas três coisas indescritivelmente preciosas: liberdade de expressão, liberdade de consciência e a prudência de nunca praticar nenhuma delas” (Joseph R. Conlin, ed., The Morrow Book of Quotations in American History [Nova York: McMorrow, 1984], 294). ↩︎
  5. Consulte Eric Voegelin, Plato and Aristotle, vol. 3 de Order and History (1957), pp. 322, 349. CW 16. ↩︎

Original disponível em: https://voegelinview.com/democracy-a-society-of-patricians-2011/


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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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