“Contra a vida intelectual: um convite à sinceridade” foi escrito por Michael Amorim.
Pouco importando nossos defeitos pessoais e todas as nossas insuficiências, temos de deixar para este país um exemplo não só de alta cultura e pujança intelectual, mas de sinceridade, daquela força que brota do centro de uma autoconsciência séria e inflexível, despida de toda hipocrisia, de toda presunção, de todo artificialismo. Apresentemo-nos uns diante dos outros como nos apresentamos diante de Deus, sem falsos adornos e sem exibicionismo masoquista.
Olavo de Carvalho
Conclui ontem a leitura do mais novo livro do Ronald Robson, “Contra a Vida Intelectual ou iniciação à cultura“. Trabalho sério, muito bem escrito e mortalmente sincero.
Ao contrário do que alguém possa supor, Ronald não sai a distribuir lições de moral ou a apontar o dedo na cara de criadores de conteúdo, coach’s e professores virtuais. O autor fala desde o centro mesmo de sua vida; jamais fazendo polêmica gratuita ou crítica pela crítica. Ronald aborda temas típicos de nosso tempo, mas sem moralismos e cagação de regra.
Nos convida, antes de tudo, a encarar a realidade com todas as suas complexidades e contradições, a sentir o peso do universo sem perder de vista o conselho de Píndaro: Seja a ser quem és. O livro do Ronald nos lembra de algo que o conforto intelectual, a panelinha marketeira, as ideologias e os ideais — por mais nobres que sejam — nos fizeram esquecer: a importância de desesperar-se. Viver é sentir-se perdido, afinal.
Em alguns momentos senti-me lendo Ortega y Gasset em sua tentativa de trazer a filosofia, que alçou vôos altos demais, de volta para a vida concreta, do homem real, de carne e osso; em outros, lendo a enigmática prosa poética de Ângelo Monteiro nos recordando que “o Alto está em baixo. E se não olhássemos primeiro o abaixo, jamais atingiríamos o acima”. A condição humana, demasiada humana, é manter “O sentido da Terra e os olhos puros no céu”. É o que nos diz o poeta e o que perpassa todo o livro do Ronald.
O percurso que o livro segue é digno de nota: vai de assuntos tais como marketing digital, padrões e esquemas da nova direita, passando por linguagem e artes marciais até chegar, nos capítulos finais, a temas como oração, diabo e Deus. No entanto, o autor não apresenta os temas de forma linear, num eixo que segue estático de baixo para cima, não; sua pena nos conduz de baixo para cima, da esquerda para a direita, da direita para a esquerda e de cima para baixo. Percurso típico da autêntica reflexão filosófica. Reflexão que, como nos mostra o Caduceu, símbolo tradicional da divindade astral Mercúrio, é movimentação em espiral firmada, mas não definida, por uma linearidade lógica.
Ao terminar as páginas finais senti-me visitando um quarto escuro cheio de tralhas, de coisas pelas quais tive apego quando criança. E nele encontrei um espelho empoeirado no qual, ao passar a mão, reconheci o reflexo distorcido e abandonado daquilo que, no passado, costumava chamar de “eu”.
O livro do Ronald é um convite à autenticidade. A uma originalidade que foi renegada em nome do estrelismo midiático, a um encontro consigo mesmo depois de ter abandonado a sua própria voz em nome de ideais elevados e posturas vaidosas. Enfim, um convite à vida.
Não se trata de um livro de polêmica contra este ou aquele figurão da direita. Está muito mais para um manifesto contra o espírito burlesco, contra Os Homens Ocos. Uma denúncia da derrocada do autêntico pelo caricato, do original pela cópia, da sinceridade pela farsa íntima. Um convite à vida desde o coração, desde o centro da consciência, naquele “fundo insubornável” de que falava Ortega y Gasset.
Ronald assumiu o papel daquele homem louco de Nietzsche que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: ‘Procuro Deus! Procuro Deus’! Lembrando a todos nós, intelectuais e homens de letras, que faz-se necessário um resgate dos homens de carne e osso, de los hombres veraces procurados desesperadamente por Ortega:
De todas las enseñanzas que la vida me ha proporcionado, la más acerba, más inquietante, más irritante para mí ha sido convencerme de que la especie menos frecuente sobre la Tierra es la de los hombres veraces. Yo he buscado en torno, con mirada suplicante de náufrago, los hombres a quienes importase la verdad, la pura verdad, lo que las cosas son por sí mismas, y apenas he hallado alguno. Los he buscado cerca y lejos, entre los artistas y entre los labradores, entre los ingenuos y los «sabios». Como Ibn-Batuta, he tomado el palo del peregrino y hecho vía por el mundo en busca, como él, de los santos de la Tierra, de los hombres de alma especular y serena que reciben la pura reflexión del ser de las cosas. ¡Y he hallado tan pocos, tan pocos, que me ahogo!
Ortega y Gasset, El Espectador. Obras Completas I.1
Notas:
- “De todas as lições que a vida me ensinou, a mais amarga, a mais inquietante, a que mais me irritou foi a de convencer-me de que a espécie menos frequente na Terra é a dos homens verdadeiros. Olhei em volta, com os olhos suplicantes de um náufrago, procurando encontrar homens para quem a verdade — a pura verdade, o que as coisas são em si mesmas — fosse importante, e quase não encontrei nenhum. Tenho procurado por eles perto e longe, entre artistas e entre agricultores, entre os ingênuos e os “sábios”. Como Ibn-Batuta, peguei o bastão do peregrino e fiz meu caminho pelo mundo em busca, como ele, dos santos da Terra, dos homens de alma especular e serena que recebem o puro reflexo do ser das coisas. E encontrei tão poucos, tão poucos, que me afogo!” ↩︎
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