Sobre a Física de Aristóteles – Auguste Mansion

“Sobre a Física de Aristóteles” foi extraído da obra “Introdução à Física Aristotélica”, de Auguste Mansion.


A ciência ou filosofia da física compreende, na terminologia aristotélica, um domínio extremamente vasto; ela vai para além da estrutura da física moderna em todos os sentidos; ela estuda, evidentemente de maneira rudimentar, os mesmos fenômenos que esta última, mas não limita sua curiosidade diante deles: hoje em dia, seria chamada de metafísica dos corpos ou de filosofia do mundo material. Contudo, ela não desdenha de descer à descrição dos fatos e de investigar suas leis; dessa maneira, aproxima-se da noção contemporânea de ciência; todavia os fenômenos com os quais lida não se limitam a um tipo particular. Gostaríamos de poder dizer que seu campo de observação se funde com o dos fatos de ordem física, na medida em que eles se opõem aos de ordem psicológica; também aqui o adjetivo física tem um significado demasiado restrito, pois a ciência da alma tem relações tão estreitas com ela que, de várias maneiras, todos os fenômenos psicológicos caem sob seu domínio. Em resumo, não há nenhum fenômeno enquanto tal que não esteja de alguma maneira relacionado a ela.

Entretanto, ela não constitui uma ciência universal; ela tem seus limites e permite que outros ramos do conhecimento existam ao seu lado. Podemos, portanto, notar suas características distintivas e determinar seu legítimo lugar no corpo do conhecimento humano. Em suma, ela deve ser incluída em uma classificação geral das ciências filosóficas, ou mesmo na de todas as ciências, uma vez que não é puramente filosófica.

Aristóteles nos deixou tal classificação? Sem dúvida, sabemos o suficiente sobre sua tradicional divisão da filosofia; mesmo assim não podemos usá-la sem discernimento. Obviamente, as fontes são perfeitamente conhecidas e garantem sua perfeita autenticidade; Não significa que seja possível atribuir um valor absoluto a ele. De fato, ela não passa sem levantar dificuldades de natureza histórica. Zeller1, entre outros, julgou isso com suficiente dureza, de modo a chegar a uma classificação menos lógica, mas mais próxima do esquema formado pelos principais escritos do Estagirita. Não vamos segui-lo nesse caminho. Sem querer examinar o valor de suas críticas, uma observação decisiva se impõe em nosso exame: Aristóteles, sempre que ele fala do lugar atribuído à física no conjunto das ciências, refere-se à classificação tradicional. Do ponto de vista de nosso estudo, portanto, pouco importa se teoricamente ele tinha uma ou mais maneiras de classificar os vários ramos do conhecimento, ou mesmo se ele não tinha nenhuma que abraçasse a universalidade das ciências; podemos nos ater à divisão clássica, como se ela fosse única e completa. Essa classificação é a única que está claramente expressa nos trabalhos do mestre e ele a usa com bastante frequência.

Ela é apresentada com o máximo de desenvolvimento no início do Livro VI da Metafísica e na passagem paralela do Livro XI2.

Não se pode encontrar nenhuma linha de demarcação que permita distinguir ciência e filosofia; estes dois termos parecem ter o mesmo valor; pode-se pelo menos concluir que “filosofias” ou ramos filosóficos são ciências; cada ciência é reciprocamente uma parte da filosofia? A matemática, que aqui toma seu lugar no domínio filosófico3, levar-nos-ia a acreditar nisso, mas não constitui prova suficiente. O fato é que a classificação de Aristóteles abrange todo o conhecimento humano, seja este representado por ciências estritamente filosóficas ou por outras de escopo menos universal.

Ele parte do princípio de que todo pensamento é prático, poiético ou teorético e distingue três classes correspondentes de ciências. O pensamento, por sua vez, pertence a uma dessas três categorias de acordo com o objeto que ele considera; assim, é poiético, se se trata de coisas que a atividade produtiva do homem alcança; é prático, se considera ações, que dependem de sua livre escolha4. Aristóteles não nos diz aqui5 o que caracteriza exatamente o pensamento teorético; ele apenas observa que a Física é uma ciência teorética porque não é nem poiética nem prática: ela se ocupa de substâncias que têm em si o princípio de seu movimento, ou seja, do conjunto dos fenômenos que se apresentam; enquanto que os fenômenos de ordem poiética ou prática têm sua origem ou no agente produtor, o homem que é a causa deles em virtude de sua inteligência, da arte que possui, ou de alguma outra faculdade, ou no agente prático que os governa pela livre escolha de sua vontade. O que Aristóteles procura aqui, sem dizer isto, é a identidade real ou simplesmente possível entre o agente, que tem o poder de fazer aparecer os fenômenos considerados, e o sujeito pensante que os considera. Em contrapartida, na consideração puramente teorética, o objeto está dado e existe independentemente da pessoa que o considera; por hipótese, esta última não pode mudar nada a respeito dele. O conhecimento de natureza prática ou poiética, que só atinge a ação ou produção própria que o ser conhecedor pode ou não realizar, tem o objetivo de dirigir tal atividade; o conhecimento teorético sobre um fato imutável se detém na contemplação da verdade e não visa para além dela6.

O grupo de ciências teoréticas, que lhe corresponde, inclui não apenas a filosofia física, mas também as ciências matemáticas e a metafísica, que Aristóteles chama de filosofia primeira ou filosofia teológica. Ele distingue seus respectivos objetos da seguinte maneira: a física trata de seres ou essências que são de fato inseparáveis da realidade visível, e além disso dotados de mobilidade; as ciências matemáticas consideram, pelo menos em sua maioria, seres que são imóveis, mas provavelmente também incapazes de existir num estado separado da matéria; por fim, a filosofia primeira trata de seres imóveis que são, ao mesmo tempo, separáveis ou separados de fato do mundo sensível7.

Teremos que voltar a essa definição do objeto da física e então poderemos explicar melhor qual é seu significado exato; ao mesmo tempo, teremos também a oportunidade de expandir suas relações com os dois outros ramos do conhecimento teorético. Não está claro o que esses seres móveis e inseparáveis da matéria, com os quais o físico deve lidar, representam à primeira vista; os exemplos dados a esse respeito são esclarecedores: falam-nos do nariz, do olho, do rosto, da carne, do osso, do animal; da folha, da raiz, da casca, da planta8. Nós simplesmente os chamaríamos de seres da natureza ou mesmo de entes ou partes de seres vivos. Entretanto, como veremos, as ciências físicas não limitam suas investigações ao âmbito da vida.

A fim de introduzir pelo menos uma ordem externa e provisória em relação a esses assuntos, abandonemos o abstrato em favor do concreto: em vez de analisamos uma definição que seja um tanto obscura por ser muito geral, vejamos de que modo sua física foi exposta na obra de Aristóteles, dando a tal palavra todo o alcance de sua noção. Descobriremos que ela abrange toda uma hierarquia de disciplinas filosóficas e científicas que estão notavelmente ligadas. E tal observação é muito simples: enquanto a metafísica é apresentada na obra sobrevivente do mestre por meio de um único tratado semi-acabado, ao passo que de suas obras relativas à matemática resta apenas a memória de algumas dissertações perdidas9, seus escritos físicos formam uma parte muito importante dos trabalhos que ele nos deixou. Apenas eles já representam cerca da metade dos tratados sistemáticos sobreviventes.

A tradição, que os legou, os transmitiu a nós sob a forma de uma coleção de obras de um tipo muito delineado e que se seguem umas às outras em uma ordem mais ou menos invariável. Elas podem ser encontradas agrupadas nessa ordem tradicional no primeiro volume da grande edição de [Immanuel] Bekker (da página 193 até o final, página 789)10; três pequenos escritos apócrifos ficaram entre elas11 sem interromper a sequência de maneira perturbadora. Se desconsiderarmos sua presença no meio da série, é assim que ela se apresenta ao leitor: Física12, o Tratado sobre o Céu13 , o Tratado sobre a Geração e Corrupção14, Meteorologia15, o Tratado sobre a Alma16, a coleção de pequenos tratados conhecidos como Parva Naturalia17, a História dos Animais18, o Tratado sobre as Partes dos Animais19, o Tratado sobre a Marcha dos Animais20, e finalmente o Tratado sobre a Geração dos Animais21.

Dois pontos se destacam nessa enumeração seca: a ordem dos livros e seu agrupamento. De fato, ambos se justificam por mais de um motivo: são tão pouco determinados arbitrariamente, que sua fixação pode ser atribuída ao próprio Aristóteles. 

No início de Meteorologia, ele observa, com cuidado incomum, o lugar desse tratado na série da qual faz parte. O alcance desse simples olhar preliminar merece ser considerado por um momento; o Estagirita revisa o conjunto das ciências físicas tal como ele as concebe. Quando ele chega ao meio de seus estudos sobre a natureza, ele dá uma rápida olhada na distância percorrida e no que ainda tem que fazer para completar seu curso. “Tratamos, portanto”, diz ele, “previamente das primeiras causas da natureza e de todo movimento natural, depois das estrelas e sua disposição em suas translações, dos elementos corpóreos, de seu número e qualidades, de suas transformações mútuas, e da geração e corrupção em geral. Resta ainda considerar a parte dessa disciplina que todos os nossos predecessores chamaram de meteorologia; trata-se aqui de fenômenos que ocorrem de maneira conforme a natureza, mas uma natureza mais desordenada que a do primeiro elemento dos corpos, especialmente na região próxima à translação dos astros”22. Segue-se uma enumeração detalhada dos principais fenômenos desse tipo que são objeto de tal trabalho23; depois Aristóteles retoma: “Após essa exposição, veremos se podemos dar algumas explicações, segundo o método indicado, sobre o tema dos animais e plantas, em geral e em particular; pois, uma vez dadas tais explicações, teremos chegado, ao que parece, ao final do plano total, que tínhamos proposto desde o início”24.

O plano geral que foi mencionado por último é imediatamente perceptível; é verdade que não se pode designar nenhuma passagem que mencione tal plano a ser realizado; os livros que precedem o Meteorologia não apresentam nenhuma que o declare com clareza; no máximo há alusões — e mesmo estas são bastante vagas — à ciência da natureza no início da Física25. O fato é que tal plano existia na mente de seu autor, e que ele até o executou em parte em suas obras, no momento em que escreveu a passagem onde é mencionado.

Essa parte executada é fácil de identificar; ainda a temos: ela é encontrada na Física e nos dois tratados que a seguem. A Física trata de fato das “primeiras causas da natureza e de todo movimento natural”26; em seguida, o tema dos tratados Sobre o Céu e Sobre a Geração e Corrupção é claramente separado do que os precede pela partícula ἔτι; isso não é repetido mais adiante nem substituído por um termo equivalente de modo a marcar uma divisão entre essas duas obras. Sem dúvida, eles seguiram-se desde o início, mas não se separaram da maneira que estão agora27. Assim, é fácil explicar o modo como seu conteúdo é lembrado aqui, e que de outra maneira poderia parecer bastante desordenado. Na verdade, as transformações mútuas dos elementos são mencionadas antes da geração e da corrupção, enquanto que o tratado intitulado De Generatione et Corruptione apresenta o estudo desses temas na ordem contrária. Isso porque já no De Caelo (L. II, cap. 7), discute-se a produção dos elementos uns a partir dos outros, embora de um ponto de vista diferente do que na continuação do mesmo trabalho (De Gen. et Corr., L. II). Como esse problema já foi apontado em relação à passagem em que Aristóteles o aborda pela primeira vez, podemos agora nos limitar a tal indicação sumária. As mesmas observações poderiam ser repetidas sobre o número e a natureza dos elementos: Aristóteles retoma seu exame em vários lugares dos dois tratados que se seguem à Física28, — a partir de diferentes pontos de vista, aliás — mas só uma vez informa sobre tais objetos de estudo, quando revê o conteúdo do De Caelo e do De Generatione et Corruptione. Os seis livros que eles constituem juntos são sem dúvida referidos no início de Meteorologia que estamos analisando. Este tratado se segue obviamente a eles; não há necessidade de insistir sobre tal ponto.

É menos fácil determinar com certeza quais obras Aristóteles tinha em mente quando comunicou os estudos sobre animais e plantas, que deveriam completar o plano geral. Não é nem mesmo certo que ele tenha realizado o plano que havia concebido naquela época. Sua escrita sobre plantas, na medida em que existiu, não chegou até nós. Por outro lado, será reconhecido que, juntamente com a História dos Animais, os tratados sobre as Partes dos Animais, sobre a Marcha dos Animais e sobre a Geração dos Animais cumprem muito bem as promessas relativas ao estudo do reino animal. Não é muito difícil acrescentar o Tratado sobre a Alma, que está intimamente relacionado ao estudo da natureza29; isso é ainda mais verdadeiro acerca do escritos em Parva Naturalia que lidam com um assunto diretamente relevante para esse estudo30. É mais difícil determinar a relação de dependência mútua entre esses dois grupos de escritos em relação aos seres vivos; voltaremos a essa questão mais tarde.

Assim, temos as linhas gerais de um plano geral de estudos físicos, formado por Aristóteles. Trata-se certamente de estudos de tal género, mesmo nos últimos tratados, para os quais não fizemos expressamente uma breve análise a fim de o demonstrar; mas, na ausência de outras razões, seria suficiente prová-lo recordando que tais tratados estão dispostos numa série descrita como física: este carácter físico da série é inconfundível, basta olhar para os tratados que constituem as suas unidades principais. 

Não basta, porém, considerar essa mesma série apenas a partir do exterior: passando rapidamente pelo seu conteúdo, poderemos nos convencer do que o próprio Aristóteles e a tradição de sua escola após ele nos ensinaram sobre a sequência dos vários tratados. Essa inspeção a partir de dentro não aumentará a certeza do que já sabemos de outra parte, mas nos fará ver melhor a ligação lógica que une todas as partes da ciência física; seu objeto geral se tornará portanto, até certo ponto, claro.

A Física, que abre a série, é um tratado sobre a natureza31, mas como a natureza segundo Aristóteles é um princípio do movimento, ele dedica a maior parte desse tratado ao estudo do movimento e de tudo o que lhe diz respeito32. Sabe-se que pelo termo movimento (κίνησις), ele designa qualquer mudança de qualquer tipo33: considerado nesse sentido, seu estudo torna-se o estudo do que é comum a todos os fenômenos deste mundo: a passagem de um estado a outro, o devir. A Física é, portanto, corretamente colocada à frente da série: ela é uma introdução geral aos tratados seguintes, ela expõe as características que são comuns aos objetos mais especiais dos trabalhos subsequentes.

O tratado Sobre os Céus nos introduz ao sistema do mundo em Aristóteles, mas esse não é seu objetivo principal. Na realidade, tal como aponta São Tomás de Aquino34, trata-se sobretudo de um estudo do movimento local no universo e de suas causas naturais, os elementos: o elemento chamado éter é a causa do movimento circular das estrelas (L. 1 e II), os quatro elementos terrestres, fogo, ar, água, terra, são as causas dos movimentos retilíneos para cima e para baixo dos corpos leves e pesados. Assim, o conteúdo desse tratado apresenta uma especificação da teoria geral do movimento delineada na Física; de fato, o movimento local é uma espécie do gênero movimento; ele é, se assim podemos expressar, o mais geral, pois é encontrado nos outros. O tratado a seguir continua esse estudo específico do movimento, descendo para outras formas mais particulares de mudança material. Como seu nome indica, ele fala da geração e da corrupção, ou seja, da produção e destruição dos seres e de suas propriedades; depois também fala acerca do aumento e da diminuição, e finalmente da alteração ou mudança qualitativa (1. I); esse estudo inclui naturalmente o da produção e transmutação dos elementos terrestres, pois esses são os primeiros temas onde as espécies de mudança em análise são verificadas (Livro II).

Após a teoria geral dessas várias modalidades de movimento, o Meteorologia as considera nas determinações últimas que elas apresentam na realidade do universo. Não são apenas os meteoros, ou seja, os fenômenos que ocorrem na atmosfera, que são descritos, mas também outros que têm como sede a superfície ou as profundezas de nosso globo.35 Assim termina o estudo dos fenômenos comuns ao mundo orgânico e inorgânico, e dos que são especiais à matéria inorgânica. 

Se nos aproximamos do âmbito da vida, podemos encontrar em traços largos o mesmo método que vai do geral ao especial, do que é comum a toda uma categoria ao que é específico para as espécies que nele se enquadram. Assim, o Tratado da Alma pode ser considerado como uma teoria geral da Vida, já que a alma é um princípio, um princípio distintivo, dos animais e até mesmo de todos os seres vivos36.

O prólogo do pequeno Tratado sobre a Sensação e os Sensíveis liga diretamente a coleção da Parva Naturalia ao De Anima: neste último trabalho, a alma e suas faculdades foram definidas em si mesmas, e resta fazer um estudo direto dos seres animados, animais ou plantas, e de suas propriedades37. Tal estudo é feito aqui primeiramente a partir de um ponto de vista geral; de fato, a coleção apresenta os fenômenos comuns à alma e ao corpo, que se encontram em todos os seres vivos ou em classes inteiras de animais.

Um estudo mais particular do reino animal, de suas espécies, dos fenômenos gerais e especiais de natureza anatômica e fisiológica, pode ser encontrado nos tratados zoológicos que concluem a série de escritos físicos. Não vamos parar para discutir sua ordem exata, pois tal discussão seria em parte enganosa: não temos elementos suficientes para poder fazer um julgamento fundamentado sobre o assunto, e os tratados desse tipo que não chegaram até nós foram talvez de igual importância aos que sobraram38. Quanto aos escritos sobre as plantas, eles desapareceram completamente.

Apesar dessas lacunas, esta revisão rápida é suficientemente completa para nos permitir abarcar num relance o conjunto das ciências físicas, da sua sequência e do seu encadeamento lógico na conceção de Aristóteles. Poderíamos ter mencionado vários outros escritos perdidos dos quais ele foi o autor, também relacionados à natureza e ao mundo material39; mas não parece que sua perda seja muito deplorável sob nosso ponto de vista; certamente ainda temos as obras-primas que nos dão a estrutura de seu sistema de filosofia natural.

O lugar que a Física ocupa nesse edifício científico mostra imediatamente sua importância primordial; ela serve como uma introdução a todas as ciências menos gerais que serão ensinadas nos tratados posteriores. E porque Aristóteles em seu método expõe primeiro as visões mais gerais da ciência da natureza, ela é também seu trabalho mais filosófico nessa série. Essa dupla consideração nos compromete a um estudo minucioso a respeito dela; sob a orientação do próprio mestre, vamos assim realizar a idéia de uma introdução filosófica ao conjunto das ciências físicas.

Todavia, teremos que restringir o alcance de nossas investigações; a maior parte da Física é, como lembramos, dedicada à análise do movimento, mas ela contém outros pontos que não são desprovidos de importância. Quando se refere ao conteúdo geral do tratado, no início de Meteorologia, Aristóteles nos fala sobre “as primeiras causas da natureza e de todo o movimento natural”40. Todos os comentadores têm visto isso como uma alusão a uma divisão da Física em duas partes, uma que lida com as causas, a outra com o movimento. Entre os antigos, Olympiodorus e John Philoponus parecem ter hesitado, não sabendo se deveriam colocar a divisão entre os livros II e III, ou entre os livros IV e V41. São Tomás de Aquino, com sua habitual solidez de julgamento, a colocou depois do Livro II, e não há dúvida de que ele estava certo42.

De fato, no início do Livro III, o Estagirita começa o estudo do movimento tentando estabelecer sua definição; os desenvolvimentos subsequentes nesse mesmo livro e no seguinte visam elucidar o que diz respeito a certos acessórios do movimento, o lugar, o tempo, etc.; Aristóteles tem o cuidado de apontar que essa é a razão pela qual ele fala disso43. Assim, esses dois livros formam um todo com a segunda metade da obra, onde o movimento é discutido em cada página.

Ora, esse estudo do movimento é apenas o desenvolvimento de um ponto especial estabelecido no objeto mais geral com o qual a parte inicial do tratado estava relacionada, a natureza. É porque a natureza é o princípio do movimento que nos esforçamos para esclarecer a noção de movimento; existe, portanto, acima dele e anteriormente a ele, um dado mais geral que é tratado por si mesmo, a natureza, que é o objeto próprio da ciência física44. É a respeito dela que todo o segundo livro está diretamente relacionado, e o primeiro livro também parece estar ligado a ela desde suas primeiras linhas45.

É aqui, então, que devemos buscar a verdadeira introdução à filosofia da natureza; esses dois livros iniciais desempenham na economia do tratado o mesmo papel que este desempenha no corpo dos escritos físicos; neles o autor estabelece os princípios gerais que aplicará futuramente e estabelece as definições sobre as quais todos os demais se basearão.

Desde o início, ademais, lemos nele o princípio do método cuja aplicação contínua temos observado até agora em todos os demais trabalhos do mestre: “É necessário”, diz ele, “avançar do universal para o particular”46. Há, portanto, razão para se acreditar que veremos a sua aplicação também aqui. Nossa tarefa, portanto, será analisar o mais fielmente possível esses poucos capítulos da Física, tentar penetrar seu espírito e tendência, e ver em traços largos quais são as consequências das idéias gerais que Aristóteles apresenta neles. Para esse fim, recorreremos com frequência aos insights que muitas passagens de suas outras obras, especialmente seus escritos físicos, sem dúvida nos darão, pois nelas ele frequentemente relembra princípios estabelecidos anteriormente, toca em pontos já brevemente indicados, desenvolve uma teoria que havia sido esboçada anteriormente ou a ilumina com alguma nova aplicação. Com ele, melhor que com qualquer outro, pode-se verificar esta verdade segundo a qual não há melhor comentador de um autor do que este mesmo autor.

Notas:

  1. Eduard Zeller, Die Philosophie der Griechen (A Filosofia dos Gregos), II, 2, 3me éd., 1879, p. 179-185. ↩︎
  2. Metafísica, VI (E), 1; XI (K), 7. ↩︎
  3. 1026 a18-19. ↩︎
  4. Isso não significa que um julgamento de ordem prática, por exemplo, seja capaz de comandar a ação por si só; trata-se de uma questão que compete à psicologia examinar (Cf. De Anima, III, 9, 432 b29-433 a8, e c. 10); trata-se aqui apenas da divisão das ciências, entendida de uma maneira muito geral. ↩︎
  5. 1025 b18-28. Além disso, tanto quanto sabemos, não há passagem onde Aristóteles defina o pensamento teorético: a palavra é provavelmente muito clara por si só. ↩︎
  6. Ética a Nicômaco, VI, 2, 1139 a 6-b13. Ver 1. 27; Cf. Metafísica II (α), 1, 993 b20-21. ↩︎
  7. Metafísica, VI (Ε), 1, 1026 a6-19. ↩︎
  8. Ibid., 1026 a1-2. ↩︎
  9. Ver Zeller, op. cit., p. 90, nota 1. ↩︎
  10. Na edição de Didot, a Física e os tratados sobre o Céu e a Geração e Corrupção estão agrupados no meio do volume II (págs. 248-467); os outros ocupam o volume III, em uma ordem diferente da da edição de Bekker e com mais alguns pequenos escritos apócrifos, De Coloribus, etc. ↩︎
  11. O Tratado para Alexandre sobre o Mundo (págs. 391-401), o Tratado sobre o Vento (págs. 481-486) e o Tratado sobre o Movimento dos Animais (págs. 698-704). A esses poderiam ser acrescentadas as partes inautênticas da História dos Animais. ↩︎
  12. Φυσικὴ ἀκρόασις, em oito livros (págs. 184-267). O sétimo livro parece não fazer parte do resto da obra, ↩︎
  13. Περὶ οὐρανοῦ, em quatro livros (págs. 268-313). ↩︎
  14. Περὶ γενέσεως καὶ φθορᾶς, em dois livros (págs. 314-338). ↩︎
  15. Μετεωρολογικά, em quatro livros (págs. 338-390). ↩︎
  16. Περὶ Ψυχῆς, em três livros (págs. 402-435). ↩︎
  17. Περὶ αἰσθήσεως καὶ αἰσθητῶν (Da Sensação e do Sensível), Περὶ μνήμης καὶ ἀναμνήσεως (Da Memória e da Recordação), Περί ύπνου και εγρηγόρσεως (Sobre o Sono e a Vigília), Περὶ ἐνυπνίων καὶ τῆς καθ’ ὕπνου μαντικῆς  (Sobre o Sono e a Adivinhação Durante o Sono), Περὶ μακροβιότητος καὶ βραχυβιότητος (Da Longevidade e Brevidade da Vida), Περὶ νεότητος καὶ γήρως (Da Juventute e da Velhice), καὶ ζωῆς καὶ θανάτου (Da Vida e da Morte), Περὶ ἀναπνοῆς (Da Respiração) (págs. 436-480). ↩︎
  18. Περὶ τὰ ζῷα ἱστοριῶν, em dez livros, vários dos quais não são autênticos ou são de autenticidade duvidosa (págs. 486-638). ↩︎
  19. Περὶ ζῴων μορίων, em quatro livros (págs. 639-697). ↩︎
  20. Περὶ πορείας ζῴων, (págs. 704-714). ↩︎
  21. Περὶ ζῴων γενέσεως, em cinco livro (págs. 715-789). ↩︎
  22. Meteorologia., I, 1, 338 a20-b22. ↩︎
  23. Ibid, 338 b22-339 a5. Pode-se perguntar em conexão com essa passagem se o programa ali desenvolvido não exclui o conteúdo do Livro IV; sabe-se que a conexão deste livro com o resto da obra é difícil de se estabelecer; mas essa questão não é importante aqui e está para além do escopo deste estudo. ↩︎
  24. Ibid., 339 a 5-9. ↩︎
  25. Cf. Física., I, 1, 184 a14-16; 2, 184 b26, 185 a18; II, 2, 194 a12 e seguintes.;
    III, 1, 200 b13. ↩︎
  26. Meteorologia, I, 1, início (338 a20). ↩︎
  27. Zeller, The Philos. of the Greeks, 11, 2, p. 87, nota 1. ↩︎
  28. Especialmente De Caelo, III, 3, 4, 5; De Generat. et Corr., Il, 1, 2, 3. ↩︎
  29. De Anima, I, 1, 402 a4-10. ↩︎
  30. De Sensu, 1, 436 a6-b1. ↩︎
  31. Física, I, 1, 184 a14-15; ↩︎
  32. Esse estudo do movimento inclui os livros III-VIII. Cf. Física, III, 1, início (200 b19); ↩︎
  33. Cf. Ibid., 200 b33-201 a1. ↩︎
  34. S. Tomás, De Caelo et Mundo. Prooemium; De Generatione et Corruptions. Prooemium. ↩︎
  35. Veja a enumeração desses vários fenômenos no prólogo do trabalho, Meteorologia I, 1. ↩︎
  36. Cf. De Anima, I, 1, 402 a4-7; II, 1, 412 e 13-28. ↩︎
  37. De Sensu, 1, 436 a1-b6. ↩︎
  38. Ver Zeller, op. cit., p. 92 e p. 93, nota 1. ↩︎
  39. Ver Emil Heitz, Die verlorenen Schriften des Aristoteles, Leipzig, 1865. a seção: Physische Schriften, p. 56-80.
    ↩︎
  40. Meteorologia, I, 1, 338 a20; ↩︎
  41. Olympiodorus, πρᾶξις β, p. 7, 1-21, explica que περὶ τῶν πρώτων αὶτίων τῆς φύσεως é destinado aos livros I e II, e que περὶ πάσης κινήσεως φυσικῆς aos livros V a VIII; ele então se vê embaraçado com os livros III e IV, que não foram mencionados, e termina dizendo que o assunto que eles tratam está de alguma maneira incluído na menção do movimento. Para Philoponus (págs. 4, 24-33), as primeiras causas são matéria e forma (alusão aos Livros I e II); Aristóteles volta a falar no mesmo tratado sobre a συναίτια, ou seja, do tempo, do lugar e do movimento (o tema dos Livros III e IV); a menção a π. πάσης κινήσεως φυσικῆς refere-se aos últimos quatro livros da Física. Alexandre de Aphrodisias não especifica quais partes do trabalho são indicadas no início da Meteorologia. O hábito de limitar a designação περὶ κινήσεως aos livros V a VIII da Física pode vir da forma como Aristóteles formula suas referências a estes últimos três ou quatro livros, que ele designa como ὲν τοῖς περὶ κινήσεως  (De Caelo, I, 5, 272 a30 ; 7, 275 b21), enquanto no Livro VIII da Física ele se refere a passagens na primeira metade da obra pela expressão: ὲν τοῖς φυσικοῖς πρότερον (I, 251 a8; 3, 253 b8; 10, 267 b20). Isso é pelo menos o que se pode inferir das considerações feitas por Simplicius em sua introdução ao livro VI da Física (págs. 923-924). Cf. Philoponus, [Comentário à] Física, 3, 1-10. ↩︎
  42. S. Tomás, Em 1 I. Meteorologia., lição I, n.3. Cf. em 1 I. Física, lição 2, II, n.1. ↩︎
  43. Física II, 4, 200 b15-24. ↩︎
  44. Ibid, início, 200 b12; ↩︎
  45. Ver o início de Física, I, 1, 184 a10-16. ↩︎
  46. Física I. 1, 184 a23; Cf. III, 1, 200 b24-25; Partes dos Animais I, 1, 639 a23-24 ; 4, 644 a23-98. ↩︎

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Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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