A Característica Geral da Filosofia Alemã – George Santayana

“A Característica Geral da Filosofia Alemã” foi extraído do livro “O Egotismo na Filosofia Alemã” de George Santayana.


O que proponho nestas páginas chamar de filosofia alemã não é idêntico à filosofia existente na Alemanha. A religião dos alemães é estranha a eles; e a filosofia associada à religião que existia antes da Reforma, e nos círculos católicos desde então, é um sistema nativo do Império Romano tardio. Sua irreligião também é estrangeira; as escolas céticas e científicas que se destacaram em outros países também criaram raízes na Alemanha. Assim, se contássemos os católicos e os protestantes à moda antiga, de um lado, e os materialistas (que se auto-intitulam monistas), de outro, muito provavelmente descobriríamos que a maioria dos alemães inteligentes defendia pontos de vista que a filosofia alemã propriamente dita desprezava inteiramente, e que essa filosofia parecia tão estranha para eles quanto para as outras pessoas.

Com efeito, uma filosofia original e profunda surgiu na Alemanha, tão distinta em gênio e método da filosofia grega e católica quanto esta é diferente dos sistemas indianos. A grande característica da filosofia alemã é o fato de ser deliberadamente subjetiva e se limitar à articulação da auto-consciência. O mundo inteiro aparece ali, mas a uma certa distância; ele é visto e aceito meramente como uma idéia enquadrada na consciência, de acordo com princípios obtidos das partes mais pessoais e subjetivas da mente, como o dever, a vontade ou a gramática do pensamento. A direção na qual a filosofia alemã é profunda é a direção da interioridade. Independentemente do que possamos pensar sobre sua competência em outros assuntos, ela investiga o eu — tal como uma introspecção independente pode fazer — com extraordinária intenção e sinceridade. Ao inventar o método transcendental, o estudo das projeções e perspectivas subjetivas, ela acrescentou uma nova dimensão à especulação humana.

A religião estrangeira e a irreligião estrangeira da Alemanha são incompatíveis com a filosofia alemã. Essa filosofia não pode aceitar nenhum dogma, pois sua convicção fundamental é a de que não há coisas existentes, exceto as imaginadas: Deus, assim como a matéria, é exaurido pelo pensamento sobre ele e reside inteiramente nesse pensamento. A noção de que o conhecimento pode descobrir qualquer coisa, ou que qualquer coisa previamente existente pode ser revelada, é totalmente descartada, pois não há nada a ser descoberto e, mesmo que houvesse, a mente não poderia alcançá-lo; ela só poderia acessar a idéia que pudesse evocar a partir de suas próprias profundezas. Essa idéia pode ser talvez justificada e necessária em virtude de suas raízes subjetivas na vontade ou no dever, mas nunca justificada por seu suposto objeto externo, um objeto com o qual ninguém jamais poderia compará-la. A filosofia alemã não é mais capaz de acreditar em Deus do que de acreditar na matéria, embora precise falar continuamente de ambos.

Ao mesmo tempo, esse subjetivismo não é irreligioso. É místico, fiel, entusiasmado: tem todas as qualidades que deram ao protestantismo primitivo sua força religiosa. É rebelde à autoridade externa, consciente da luz interior e dos deveres absolutos. É cheio de fé, se por fé entendermos não crenças definitivas fundamentadas em evidências inadequadas, mas uma profunda confiança no instinto e no destino.

Em vez de religiosa, entretanto, essa filosofia é romântica. Ela aceita com paixão os objetivos que lhe são sugeridos pelo sentimento ou pelo impulso. Ela despreza a prudência e desdenha o entendimento. Em Fausto e em Pier Gynt, temos um eco poético de sua inspiração fundamental, livre de acomodações teológicas ou de chavões acadêmicos. É a aventura de uma mente selvagem, sensível e juvenil, que ora representa o príncipe das fadas, ora o egoísta maltrapilho e perverso; é um rebelde e um entusiasta, mas muitas vezes sensualista, a propósito de experimentos; um homem ávido por experiências, mas cego para suas lições, vago em relação à natureza e desorientado em relação ao dever, mas confiante de que pode, de alguma forma, fazer o papel de mágico e fazer com que o mundo se volte para atender à sua vontade e às suas necessidades espirituais.

A felicidade e o desespero são igualmente impossíveis em um temperamento como esse. Seu empirismo é perene. Ele não pode perder a fé no impulso vital que expressa; toda a sua fantasia, engenhosidade e ousada filosofia são bordados que ele confecciona a partir de uma experiência sombria.

Não pode levar os fatos externos muito a sério; eles são apenas símbolos de seus próprios impulsos insondáveis. Assim, animais pensativos podem raciocinar. O lado justo e humilde da filosofia alemã — se é que podemos emprestar a ela virtudes às quais ela é profundamente indiferente — é o fato de que ela aceita a total relatividade da mente humana e se deleita com ela, da mesma forma que poderíamos esperar que aranhas ou botos se deleitassem com sua sensibilidade especial, sem fazer nenhum esforço em vão para espiar através das grades de sua prisão psicológica.

Esse tipo de agnosticismo em tom menor é evidente na Crítica da Razão Pura. Em tom maior, ele reaparece em Nietzsche, quando este proclama a preferência pela ilusão em detrimento da verdade. Sua expressão mais mística permeia os pensadores intermediários. Quanto mais profundos eles são, mais satisfeitos e até mesmo encantados ficam em não considerar nada além de suas próprias criações. Sua teoria do conhecimento proclama que o conhecimento é impossível. Você conhece apenas o seu assim chamado conhecimento, que por si só não conhece nada; e você fica limitado à auto-biografia de suas ilusões.

Os alemães expressam essa limitação de sua filosofia chamando-a de idealismo. Em vários sentidos, ela merece plenamente esse nome. É idealista psicologicamente, pois considera a vida mental como desprovida de fundamento e todo-inclusiva, e nega a existência de um mundo material, exceto como uma idéia necessariamente criada na mente. É idealista também no sentido de que coloca por trás da experiência um pano de fundo de conceitos, e não de matéria; uma estrutura fantasmagórica de leis, categorias, princípios morais ou lógicos para servir de reforço e esqueleto da experiência sensível, e para lhe dar alguma substância e significado. Também é idealista em termos morais, pois aprova a busca dos objetos diretos da vontade, sem olhar para trás e por cima do ombro, ou calcular as consequências. Esses objetos diretos são ideais, enquanto a felicidade ou qualquer satisfação baseada em renúncia e compromisso parece, para esses filósofos espirituosos, o objetivo de uma mente degradada e calculista. A palavra idealismo, usada nesse sentido, não deve nos enganar; ela indica simpatia pela vida e suas paixões, especialmente as eruditas e políticas; não indica qualquer aversão a bens materiais ou organismos materiais. A imaginação moral alemã está em seu primeiro ou dogmático estágio, não no segundo ou crítico. Ela está mais apaixonada pela vida do que pela sabedoria.

Há, portanto, um sentido do termo idealismo — o original — sobre o qual essa filosofia nada sabe, o sentido platônico e poético segundo o qual o ideal é algo melhor do que o fato. O idealista platônico é o homem que por natureza está tão ligado à perfeição que vê, em tudo, não a realidade, mas o ideal sem falhas que a realidade deixa escapar e sugere. Hegel, com efeito, desenhou um esboço do retrato das coisas, de acordo com o que ele pensava ser a essência ideal delas; mas esse retrato era mais feio e sombrio do que as próprias coisas. O idealismo platônico requer um dom de contemplação apaixonada, uma fantasia incandescente que salta das coisas do senso para os objetivos da beleza e do desejo. Ele rejeita a terra e acredita no céu, que é uma forma de religião extremamente odiosa para os alemães. Eles consideram esse tipo de idealismo não apenas como algo visionário, mas também um tanto ímpio, pois sua própria religião assume a forma de piedade e afeição por tudo aquilo que é caseiro, imperfeito, instável e progressivo. Eles anseiam por buscar o inatingível e encontrar o imprevisto. Essa ânsia romântica está associada ao seu gosto pelo pitoresco e pelo enfático nas artes plásticas, e pelas flutuantes e evanescentes emoções da música. No entanto, seu idealismo é uma religião do atual. Ele não rejeita nada da experiência cotidiana da vida e não busca nada que seja essencialmente diferente para além dela. Ele busca apenas mais da mesma coisa, acreditando no crescimento perpétuo, que é uma noção ambígua. Sob o nome da moda de progresso, o que esses idealistas sinceramente prezam é a alegria vital da transição; e, geralmente, a alegria dessa transição está muito mais em se livrar de seu estado presente do que em alcançar um estado melhor. Porque eles sofrem e lutam continuamente e, por um instinto curioso e profundamente animal, abraçam e santificam essa luta interminável ainda mais quando ela os dilacera e confunde, declarando-a corajosamente como absoluta, infinita e divina.

Em resumo, assim é a filosofia alemã, pelo menos, assim poderia ser dita se qualquer relato claro dela não a falsificasse necessariamente; todavia, uma de suas principais características, sem a qual ela se derreteria, é a ambiguidade. Não se pode afirmar que o mundo natural é produto da mente humana sem mudar o significado da palavra ‘mente’ e da palavra ‘humana’. Não se pode negar a existência de uma substância sem transformar em substância o que quer que se queira colocar no lugar dela. Não é possível identificar-se a si mesmo com Deus sem ao mesmo tempo afirmar e negar a existência de Deus e de si próprio. Quando você fala de algo como a consciência da sociedade, nunca deve decidir se quer dizer a consciência que os indivíduos têm da sociedade ou uma consciência lendária que a sociedade deve ter de si própria: o primeiro significado estragaria sua eloquência, e o segundo trairia sua mitologia.

O que está envolvido em todos esses equívocos não é meramente uma mudança de vocabulário, aquela mudança no uso da linguagem que o tempo traz consigo. Não, a persistência dos significados antigos por si só dá sentido às afirmações que os alteram e os identificam com seus opostos. Em todos os lugares, portanto, nessas especulações, é preciso permanecer em suspense quanto ao que exatamente se está falando. Um pensamento vago, sufocado e duvidoso deve te levar como em uma correnteza. Seu ceticismo não deve afetar seu bom senso; sua conduta não deve expressar suas opiniões radicais; um certo afluxo deve levá-lo nobremente adiante por meio de uma incoerência perpétua. Você deve estar sempre pensando não no que está pensando, mas em si mesmo ou em “algo mais elevado”, caso contrário, não poderá viver essa filosofia nem entendê-la a partir de dentro.

A mera existência desse sistema, como a de qualquer outro, prova que uma provocação para estruturá-lo às vezes é encontrada na experiência, ou na linguagem, ou nos quebra-cabeças da reflexão. Não que haja necessidade de qualquer solidez nele por causa disso. A filosofia alemã é uma espécie de religião e, como em outras religiões, pode ser capaz de incorporar uma grande quantidade de sabedoria, embora seu fundamento primeiro seja a loucura. Essa loucura primeira, por si só, não carece de fundamentos plausíveis; há motivo suficiente em uma única visita a um hospício para que se afirme que a mente não pode conhecer nada além das idéias que cria; no entanto, essa afirmação é falsa, e esse ceticismo fácil perde de vista a essência do conhecimento. As mentes mais díspares, desde que não se considerem a si próprias, podem facilmente considerar o mesmo objeto. Somente o maníaco fixa o olhar em suas próprias idéias; ele se confunde em suas percepções; ele as projeta em lugares errados e considera os objetos ao redor como diferentes do que são. Mas as percepções originalmente têm objetos externos; elas expressam uma reação corporal ou alguma preparação interna para tal reação. Elas são relatos. O boto e a aranha não estão fechados em sua auto-consciência; por mais estranha que seja para nós a linguagem de seus sentidos, eles conhecem o mar e o ar que nós conhecemos, e têm de enfrentar as mesmas mudanças e acidentes que nós enfrentamos — e às vezes até têm de nos enfrentar, para sua tristeza. Seu conhecimento não termina na familiaridade com essa linguagem sensorial, seja ela qual for, mas segue em frente graças à importância dessa linguagem e saúda as forças que as confrontam em ação e que também nos confrontam. Ao focalizar essas forças por meio das lentes e dos véus do conhecimento sensorial, surge o conhecimento; e prender nossa atenção nesses véus e lentes, dizer que eles são tudo o que sabemos, desmente os fatos do caso e dificilmente é uma atitude honesta. Se pudéssemos realmente fazer isso, estaríamos retirando o ato primordial da inteligência e nos tornando idiotas artificiais. No entanto, essa sofisticação é o princípio primeiro da filosofia alemã (emprestada, de fato, de não-alemães) e é a tese que se supõe ser provada na Crítica da Razão Pura de Kant.


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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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