Que é Tolice Medir a Verdade e o Erro com Base em nossa Própria Capacidade — Michel de Montaigne

Que é Tolice Medir a Verdade e o Erro com Base em nossa Própria Capacidade” foi extraído do volume 25 da coleção Great Books of the Western World, organizada pelo Mortimer Adler.


Não é, talvez, sem razão que atribuímos a facilidade de acreditar e a facilidade de persuasão à simplicidade e à ignorância: pois acho que já ouvi a crença ser comparada à impressão de um selo na alma, a qual, por ser mais macia e menos resistente, é mais fácil de ser impressionada.

Ut necesse est, lancem in Libra, ponderibus impositis, deprimi, sic animum perspicuis cedere.”

[“Assim como a balança deve ceder ao peso que a pressiona para baixo, a mente deve ceder à demonstração.” — Cícero, Acad., II. 12].

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Na medida em que a alma está mais vazia e desprovida de contrapeso, com muito mais facilidade ela cede ao peso da primeira persuasão. E essa é a razão pela qual as crianças, as pessoas comuns, as mulheres e os doentes são mais aptos a serem guiados pelos ouvidos. Por outro lado, porém, desprezar e condenar todas as coisas que não nos parecem prováveis como falsas é uma tola presunção, e esse é o vício comum daqueles que se consideram mais sábios do que seus semelhantes. Eu mesmo já fui um desses; e se ouvisse falar a respeito de pessoas mortas andando, profecias, encantamentos, feitiçarias ou de qualquer outra estória, não tinha a menor intenção de acreditar:

Somnia, terrores magicos, miracula, sagas,
Nocturnos lemures, portentaque Thessala.”

[“Sonhos, terrores mágicos, maravilhas, feitiçarias, 
Fantasmas noturnos e prodígios tessalianos.” — Horácio. Ep. II. 3, 208.]

Logo passei a ter pena das pobres pessoas que eram maltratadas em virtude dessas loucuras. Não que a experiência tenha me ensinado algo que alterasse minhas opiniões anteriores, embora minha curiosidade tenha se esforçado nesse sentido; mas a razão me instruiu que condenar qualquer coisa como falsa e impossível é, de modo arrogante e impiedoso, circunscrever e limitar a vontade de Deus e o poder de nossa mãe natureza dentro dos limites de minha própria capacidade, e nenhuma loucura pode ser maior do que essa. Se dermos o nome de monstro e de milagre a tudo aquilo que nossa razão não consegue compreender, quantos deles se apresentarão continuamente diante de nossos olhos? Se analisarmos como, através de nuvens e como se estivéssemos tateando no escuro, nossos professores nos conduzem ao conhecimento da maioria das coisas que nos cercam, certamente descobriremos que é mais o costume do que o conhecimento que lhes tira a estranheza, — 

Jam nemo, fessus saturusque videndi,
Suspicere in coeli dignatur lucida templa;”

[“Cansados de ver, agora ninguém se digna a olhar para os luminosos templos celestiais.” — Lucrécio, II. 1037. O texto tem ‘statiate videnai‘]

e que, se essas coisas nos fossem apresentadas recentemente, nós as consideraríamos tão incríveis, se não mais, do que quaisquer outras. 

Si nunc primum mortalibus adsint
Ex improviso, si sint objecta repente,
Nil magis his rebus poterat mirabile dici,
Aute minus ante quod auderent fore credere gentes.”

[Lucrécio, II. 1032. Se agora, de repente, eles estivessem aqui, entre os homens mortais, objetando a olhos e ouvidos, nada seria mais maravilhoso do que essas coisas, e nem se poderia pensar que os homens jamais as veriam.]

Aquele que nunca tivesse visto um rio, imaginaria que o primeiro que encontrasse fosse o mar; e quanto às maiores coisas que chegam ao nosso conhecimento, concluímos que se trata dos extremos que a natureza faz do gênero.

Scilicet et fluvius qui non est maximus, ei’st
Qui non ante aliquem majorem vidit; et ingens
Arbor, homoque videtur, et omnia de genere omni
Maxima quae vidit quisque, haec ingentia fingit.

[“Um pequeno rio parece, para aquele que nunca viu um rio maior, uma correnteza poderosa; e assim ocorre com outras coisas — uma árvore, um homem —, qualquer coisa parece ser a maior para aquele que nunca conheceu uma maior.” — Idem, VI. 674.]

Consuetudine oculorum assuescunt animi, neque admirantur, neque requirunt rationes earum rerum, quas semper vident.

[“As coisas se tornam familiares às mentes dos homens por serem vistas com frequência; de modo que eles não admiram nem são curiosos sobre as coisas que vêem diariamente” — Cícero, De Natura Deor, lib. II. 38].

A novidade, mais do que a grandeza das coisas, nos tenta a investigar suas causas. Devemos julgar com mais reverência — e com maior reconhecimento de nossa própria ignorância e enfermidade — o poder infinito da natureza. Quantas coisas improváveis são testemunhadas por pessoas merecedoras de fé, as quais, se não pudermos nos persuadir a acreditar nelas de modo absoluto, devemos pelo menos deixá-las em suspense; pois condená-las como impossíveis é, sob uma temerária presunção, pretender conhecer os limites máximos da possibilidade. Se entendêssemos corretamente a diferença entre o impossível e o incomum, e entre aquilo que é contrário à ordem e ao curso da natureza e contrário à opinião comum dos homens, evitando acreditar precipitadamente e, por outro lado, não sendo demasiadamente incrédulos, observaríamos a regra do “Ne quid nimis1“, sugerida por Chilo.

Quando descobrirmos em Froissart que o Comte de Foix soube em Bearn da derrota de João, rei de Castela, em Jubera, no dia seguinte à sua ocorrência2, e os meios pelos quais ele nos diz que chegou a fazê-lo, podemos achar isso um pouco engraçado, coisa que também podemos achar em relação àquilo que os nossos anais relatam, segundo os quais o papa Honório, no mesmo dia3 em que o rei Filipe Augusto morreu em Mantes, realizou as suas exéquias públicas em Roma e ordenou que se fizesse o mesmo em toda a Itália, sem que o testemunho destes autores tenha, porventura, autoridade suficiente para nos dissuadir. Porém, se Plutarco, afora os vários exemplos que produziu desde a antiguidade, nos diz que sabe com certeza que, na época de Domiciano, a notícia da batalha que Antônio perdeu na Alemanha foi publicada em Roma, a muitos dias de viagem dali, e se espalhou por todo o mundo no mesmo dia em que foi travada; e se César era da opinião de que muitas vezes aconteceu de a notícia preceder o incidente, não deveríamos dizer que essas pessoas simples se deixaram enganar juntamente com os vulgares, por não terem sido tão perspicazes quanto nós? Existe alguma coisa mais delicada, mais clara, mais brilhante do que o julgamento de Plínio, quando ele tem o prazer de colocá-lo em ação? Há algo que seja mais distante da vaidade que seu juízo? Deixando de lado seu conhecimento, do qual eu não faço aqui a mínima consideração, em qual dessas excelências algum de nós o supera? E, no entanto, é raro encontrar um jovem estudante que não o condene por falsidade e que não pretenda instruí-lo quanto ao progresso das obras da natureza. Quando lemos em Bouchet sobre os milagres das relíquias de Santo Hilário, prontamente os descartamos: sua autoridade não é suficiente para nos privar da liberdade de contradizê-lo; mas condenar todas as histórias semelhantes, de modo geral e de improviso, parece-me uma singular impudência. O grande Santo Agostinho testemunha ter visto uma criança cega recuperar a visão diante das relíquias de São Gervásio e São Protásio em Milão; uma mulher em Cartago curada de um câncer, pelo sinal da cruz feito sobre ela por uma mulher recém-batizada; Hesperius, um amigo seu, que afastou os espíritos que assombravam sua casa, por meio de um pouco de terra do sepulcro de nosso Senhor; terra essa que, sendo também transportada para a igreja, curou repentinamente um paralítico; uma mulher em uma procissão, ao tocar o santuário de Santo Estêvão com um ramalhete e esfregar os olhos com ele, recuperou a visão que havia perdido muitos anos antes; e vários outros milagres dos quais ele mesmo diz ter sido testemunha ocular: de que o desculparemos, a ele e aos dois santos bispos, Aurelius e Maximinus, ambos os quais confirmam a veracidade dessas coisas? Será por ignorância, simplicidade e comodidade; ou por malícia e impostura? Algum dos homens que vivem atualmente é tão impudente a ponto de se considerar comparável a eles em virtude, piedade, erudição, discernimento ou qualquer tipo de perfeição?

Qui, ut rationem nullam afferrent,
ipsa auctoritate me frangerent.

[“Que, embora não apresentassem nenhuma razão, me convenceriam apenas com sua autoridade.” — Cícero, Tusc. Quaes, I. 21].

Condenar aquilo que não compreendemos é uma presunção extremamente perigosa e de grandes consequências, sem contar a absurda temeridade que isso acarreta. Porque, depois que, de acordo com seu bom entendimento, você estabeleceu os limites da verdade e do erro, e que, posteriormente, surge a necessidade de acreditar em coisas mais estranhas do que aquelas que você contradisse, você já se vê obrigado a renunciar a seus limites. Ora, o que me parece perturbar tanto nossas consciências nos tumultos em que estamos agora com relação à religião é o fato de os católicos renunciarem tanto à sua crença. Eles acham que parecem moderados e sábios, quando cedem a seus oponentes em alguns dos artigos em questão; mas, ademais, não discernem a vantagem que existe para aqueles com quem contendemos, quando começamos a ceder terreno e a nos retirar, e o quanto isso anima nosso inimigo a seguir com seu golpe: esses artigos que eles selecionam como coisas indiferentes, às vezes são de grande importância. Ou devemos nos submeter total e absolutamente à autoridade de nossa política eclesiástica, ou rejeitar totalmente qualquer obediência a ela: não cabe a nós determinar qual e quanta obediência devemos a ela. E isso eu posso dizer, como se eu mesmo o tivesse experimentado, pois, tendo anteriormente tomado a liberdade de minha própria vontade e fantasia, e omitido ou negligenciado certas regras da disciplina de nossa Igreja, as quais me pareciam vãs e estranhas, ao discorrer posteriormente sobre elas com homens eruditos, descobri que essas mesmas coisas foram construídas sobre um terreno muito bom e sólido e em uma fundação forte; e que nada além de estupidez e ignorância nos faz recebê-las com menos reverência do que o resto. Por que não consideramos aquelas contradições que encontramos em nossos próprios julgamentos; e quantas coisas que ontem eram artigos de nossa fé mas que hoje não passam de fábulas? A glória e a curiosidade são os fustigadores da alma; a última nos leva a meter o nariz em tudo, a outra nos proíbe de manter a dúvida e a indecisão em relação a qualquer coisa.

Notas:

  1. “Nada em demasia”. ↩︎
  2. Algo que seria praticamente impossível na época devido à lentidão das comunicações. ↩︎
  3. Como se tivesse conhecimento imediato do evento. ↩︎

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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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