Sobre Aristóteles como Biólogo — D’arcy Wentworth Thompson

Palestra Herbert Spencer, Sobre Aristóteles como Biólogo foi proferida na universidade de Oxford, em 14 de fevereiro de 1913


Proêmio Sobre Herbert Spencer 

Herbert Spencer nasceu quando o século passado era jovem, e este século estava em seu berço quando ele faleceu. Ipse Epicurus obit, exclamou o poeta1 de uma filosofia que, de todos os sistemas da antiguidade, era a mais parecida com a de Spencer. Um pensamento semelhante passou pelo coração de muitos homens quando Herbert Spencer morreu — homens de todas as nações e idiomas, porque, enquanto Spencer viveu, sua voz alcançou muito longe, até os confins da Terra. Ele era um filósofo que não falava para os filósofos, nem ensinava nas escolas; mas tinha um dom e uma mensagem, tão em sintonia com o temperamento de seu tempo, que o tornaram um orador ex cathedra perante o mundo. Nenhum filósofo dos tempos modernos, exceto o próprio Kant, exerceu em sua vida um domínio tão amplo. Somente aqui e ali, entre homens de uma índole muito diferente, em homens como Byron, Rousseau ou Tolstói, vemos esse estranho poder de cativar a imaginação de uma época, de falar com uma voz que se espalha por todas as terras. A fundação sob cujos auspícios nos reunimos aqui, presente de um acadêmico indiano, nos lembra da influência de Spencer no Oriente: No Japão, ainda mais distante, seu conselho foi procurado quando a nação saiu de sua reclusão para se juntar aos trabalhos e ansiedades do mundo moderno; ele agitou o sangue inquieto de russos e poloneses; nos Estados Unidos, seus livros foram lidos com muito mais assiduidade do que em seu país; e toda essa grande influência foi conquistada sem arte literária ou qualquer encanto de palavras mágicas, sem o fogo de Tolstói, a poesia de Heine ou de Byron, nem a beleza das letras de Rousseau. No entanto, Spencer tinha algo em comum com todos esses homens, pois sua popularidade era proporcional à deles. E esse elo de semelhança residia no fato de que, para homens cansados das velhas amarras e dos velhos fardos, ele parecia apontar, ele tentava oferecer2, uma forma de emancipação, um caminho de libertação dos credos ultrapassados. O mundo ao qual se dirigiu o recebeu e o aclamou, no espírito em que Heine desejava ser lembrado, como um soldado galante, ein tapfrer Krieger, na luta pela liberdade.

Vamos relembrar, com toda a brevidade, algumas circunstâncias da vida de Spencer, para que nossas mentes possam manter a memória dele sempre viva.

Todos nós já lemos ou ouvimos falar daquele lar acanhado, ascético e ferozmente independente de sua infância, com sua atmosfera de luta, de crítica, de discussão científica e política, não amenizada pelo humor, pelas letras ou pela arte. Lembramo-nos de como ele saiu para trabalhar, ainda jovem, em uma idade em que os homens ainda não tinham chegado à Universidade; e como, na condição de assistente de engenheiro, ajudou a planejar pontes e a dirigir grupos de trabalhadores na grande estrada nova para Birmingham e Crewe, e como participou de toda a agitação e pressa daquele grande período de construção. Esses foram os anos dos quais ele falou mais tarde como “a parte fútil de sua vida”, mas é tão claro quanto um livro aberto que foram os anos em que sua mente foi moldada e sua visão mecânica a respeito dos fenômenos foi desenvolvida e confirmada. Com efeito, lembramos de seus anos de jornalismo, durante os quais, após o lançamento de seu primeiro livro, ele logo saiu de uma vida solitária e, com a amizade de George Eliot e Lewes, Huxley, Tyndall e muitos outros, encontrou seu lugar no mundo de Londres. A partir de então, sua vida foi tão tranquila, simples e reservada, que poderíamos dizer sobre ele, tal como Heine disse sobre Kant, “Er hatte weder Leben noch Geschichte3.

Em 1855, nos Principles of Psychology, Spencer afirmou sua crença na “hipótese do desenvolvimento”4, que explicaria a origem das espécies; e que também explicaria a associação sucessiva de idéias e, portanto, ao se tornarem “inatas” e transmissíveis de geração em geração, explicaria o desenvolvimento gradual da mente: essa última investigação, não preciso dizer, tem sido continuada desde então por uma longa linha de psicólogos evolucionistas, em suas várias e divergentes maneiras. É curioso saber, em sua Autobiografia, que por volta dessa época, em suas conversas com Huxley, era ele quem ainda mantinha uma atitude reservada, e Spencer quem insistia com ele, mas com argumentos ainda inadequados e pouco convincentes, na hipótese da evolução orgânica.

Cinco anos depois, um ano após a publicação da Origem das Espécies, Spencer lançou o prospecto de sua Filosofia Sintética, aquele esforço heróico para combinar, em uma Filosofia da Evolução, toda a gama de ciências físicas, mentais e sociais. Descobrir e rastrear o fenômeno idêntico da evolução no progresso da civilização, no desenvolvimento da mente, no curso da natureza, na história do universo, era seu objetivo único e vitalício.

Ele encontrou tais ferramentas de trabalho nas tendências atuais do pensamento político e econômico e nas recentes descobertas ou generalizações da ciência. Dessas últimas, no lado físico, a maior foi o princípio da Conservação da Energia, que é o resultado final da doutrina da correlação das forças físicas, na qual Rumford liderou o caminho; já no lado biológico, ele se inspirou no fato, indicado por Aristóteles, desenvolvido por Wolff e Milne Edwards, e transformado em um aforismo por Von Baer, de que, à medida que o organismo cresce, ele passa continuamente do simples para o complexo, do homogêneo para uma heterogeneidade cada vez maior5.

Contudo, muitos anos antes de Von Baer, um homem maior do que ele havia enunciado a mesma verdade e a havia exposto com palavras ainda mais claras e melhores. Foi Goethe, em seu Zur Morphologie6, que estabeleceu como lei o fato de que “quanto mais imperfeito é um ser, mais suas partes individuais se assemelham umas às outras e mais essas partes se assemelham ao todo. Quanto mais perfeito for o ser, mais desiguais serão suas partes. No primeiro caso, as partes são mais ou menos uma repetição do todo; no segundo caso, elas são totalmente diferentes do todo. Quanto mais as partes se assemelham umas às outras, menor é a subordinação de uma à outra; e a subordinação das partes é a marca de um alto grau de organização”7. Essas palavras são encontradas em Life of Goethe, de Lewes, o amigo mais próximo de Herbert Spencer. Não podemos evitar a inferência de que pode ter sido a percepção do poeta e as palavras do poeta, tanto quanto as de Von Baer, que se cristalizaram em sua famosa fórmula da evolução. E a inferência é confirmada pelo fato de que, embora tenha sido a Von Baer que Spencer teve o hábito de atribuir a lei, ainda assim, na primeira ocasião em que a menciona, ele fala dela como tendo sido estabelecida “pelas investigações de Wolff, Goethe e Von Baer”8.

Assim como nos dias anteriores Descartes, e como Demócrito e Epicuro nos dias de outrora, Spencer encontrou na matéria e no movimento, ou melhor, na matéria e na força, a estrutura de um mundo. Ele desenha um quadro amplo, confessadamente de tipo mecânico, de ritmos cósmicos alternados do Universo, no qual, à medida que o movimento se dissipa, a matéria se fragmenta da dispersão e da homogeneidade em formas mais coerentes e mais segregadas; até que, na virada da grande roda, ocorre uma nova redistribuição da matéria e do movimento, e a evolução é inevitavelmente seguida pela dissolução; assim, toda a ordem atual perece, exitio terras cum dabit una dies. No entanto, o ritmo cósmico é tão vasto que, novamente, a roda gira, e a poeira e as cinzas de um Universo são coordenadas e integradas de novo para formar “outra e outra estrutura de coisas, para sempre!”. 

Durante todo esse tempo, Spencer reconhece que o Espaço, o Tempo, o Movimento e a própria Matéria estão distantes da Realidade Absoluta e têm sua fonte em nosso próprio Empirismo. A ‘Persistência da Força’ é a única verdade que transcende a experiência; e o que, em última análise, queremos dizer com a persistência da força é uma causa que transcende nossa concepção e nosso conhecimento.

Em sua Biologia, Spencer toma como ponto principal sua concepção de vida, que tem como característica principal um ajuste contínuo do organismo ao seu ambiente, de suas relações internas às externas. Assim, a estrutura segue a função e a necessidade funcional, e a transmissão hereditária passa para a próxima geração os avanços que a geração passada fez: a vida produz organização, e não vida de organização. Ademais, em alguns capítulos que não são, de forma alguma, os menos interessantes do livro, ele mostra9, segundo o estilo do engenheiro e com base na experiência do construtor de pontes10, como os princípios de tensão e deformação estão envolvidos no tecido e na fisiologia do organismo; como as relações físicas e mecânicas se alteram no organismo com o aumento do volume11; e como as forças incidentes da gravidade, do crescimento e da pressão controlam ou determinam a forma da folha, do osso e da célula única. Sob a orientação de uma restrição salutar, toda uma escola de morfologistas, a escola de Entwickelungsmechanik de Roux, está agora investigando esses mesmos problemas e, assim, trazendo para a ajuda da morfologia alguns desses conceitos físicos que começaram a ser o estoque de comércio dos fisiologistas quando Majendie escreveu seu Lemons sur les phenomenes physiques de la Vie (1830).

Na Ética, Spencer se compromete a estabelecer “regras de conduta correta” em uma base científica e não minimiza a dificuldade de se livrar da “ética sobrenatural”, nem de formar uma ciência daquilo que “deveria ser”. No entanto, ele faz o possível para conectar a ética absoluta com sua fórmula universal de evolução e equilíbrio cósmico. A ética deve se basear na ciência, e não na metafísica. Segundo ele, não há apenas uma ética para todos os seres racionais, mas um princípio de ética para todos os seres vivos; a vida, e não a razão, é o essencial. Toda conservação implica em evolução, e a individualidade é desenvolvida através das mudanças inevitáveis de um mundo em transformação12. Assim, Spencer se esforça, mas talvez em vão, para tirar o melhor proveito do bellum omnium contra omnes, para encontrar no processo biológico de ajuste uma tendência contínua à felicidade e, na evolução sociológica, uma tendência à harmonia final; na qual um altruísmo um tanto complacente satisfará o egoísta, e o prazer consistirá em ações que são salutares para o indivíduo e para a raça. Tudo muito parecido com as palavras do Sr. Bridges:

“Pois a natureza não gastou ociosamente
O prazer; ela determinou que ele deveria estar presente
Em todo ato que modifica
A condição de nossa vida; portanto, não é o fim do bem-estar
Mas sua fruição.”

Portanto, em todo o círculo das ciências, Spencer tentou satisfazer o anseio inerente à humanidade por um sistema construtivo que, em uma única unidade, enquadre todos os fenômenos do mundo: por uma tal unificação como a de Aristóteles, que  permaneceu inabalada por quase dois mil anos. Trazer o mundo dos fatos e o mundo da Inteligência para a unidade de um sistema é a tarefa que todos os filósofos tentam, à luz do conhecimento e do espírito de seu tempo; mas à medida que o conhecimento cresce e os modos e circunstâncias dos homens mudam, a própria Filosofia, como tudo no mundo, passa por sua própria evolução inevitável e interminável, dando lugar, se não ao melhor, ao novo13.

Porém, não posso deixar de dizer uma palavra sobre a atitude de Spencer em relação ao ‘mistério insolúvel’, de sua confessio ignorantis, de sua participação no agnosticismo para o qual Huxley encontrou um nome. “No limite máximo de suas amarras”, para tomar emprestadas palavras de Locke, “ele se sentou em uma ignorância tranquila em relação àquelas coisas que ele achava que estavam para além do alcance de sua compreensão”.

Por meio de uma abstração ousada, Spencer separa coisas que nosso pensamento insiste que devem ser unidas. E, por meio da relação, da associação e da causalidade, ele levou até o fim as teorias do empirismo e da relatividade do conhecimento, que não eram novidade na filosofia, mas que haviam chegado até ele por meio de Mansel e Hamilton, de Locke, Hume e Kant, de todos aqueles que discutiram a possibilidade do conhecimento em si mesmo; O autor, em sua opinião, foi o primeiro a levá-los ao seu amargo fim e a despi-los das vestes da filosofia antiga, da intuição ou da fé, com as quais costumavam se vestir. E, ao fazer isso, pode parecer a muitos de nós que ele se deteve apenas um pouco ao longo daquela estrada íngreme e estreita, aquele parvus trames, que é o Caminho da Aparência à Realidade.

Ipse Epicurus obit, decurso lumine vitae —’quando a lâmpada da vida se apagou’. E assim também Spencer morreu praticamente ontem, cheio de anos e de honra. E para a multidão de amigos, discípulos e pessoas de luto, reunidos em seu túmulo, um homem sábio e eloquente disse algumas palavras nobres. Ele falou das profundas afeições e amizades duradouras de Spencer, das casas em que ele entrava como hóspede habitual e amigo de honra; da magnitude de sua tarefa, de sua luta incansável e de sua alegria quando seu trabalho estava concluído; de sua “concepção coerente e luminosa da evolução do mundo”; de sua exaltação da liberdade individual do homem, do propósito ético que sustentava sua busca da verdade. E, por fim, Lord Courtney falou do último e corajoso esforço de Spencer, em Riddle of the Universe, para enfrentar e examinar os fatos implacáveis da vida: de como, no final, ele se confessou intimidado pela vastidão do incognoscível, chocado com a grande visão da Lei Eterna e silencioso na contemplação do Infinito e do Eterno.

E agora que tentei pagar, com palavras não ingratas, nosso tributo anual à memória de Spencer, como alguém que foi uma grande influência em nosso mundo, cujas palavras se tornaram parte de nosso discurso familiar e cujo pensamento se interpenetrou e se misturou com o nosso, deixe-me prosseguir pelo tempo que resta em direção a outro tema, porém, espero, relacionado.

Aristóteles como Biólogo

Ao passar de Spencer para Aristóteles, passamos do único filósofo de nosso tempo que fez da biologia uma parte intrínseca de sua sociologia e psicologia para o grande biólogo da antiguidade, que é o maestro di color che sanno14, tanto nessa ciência quanto em tantos outros departamentos do conhecimento. E, por analogia de contraste, dificilmente podemos pensar na biologia de Herbert Spencer sem recorrer à de Aristóteles, revertendo assim de um grande professor de causação mecânica para aquele que nos ensinou nossas primeiras e claras lições sobre os fenômenos da vida. No entanto, exceto apenas por repetir o que eu disse, que Spencer chegou ao estudo da biologia no espírito e com o equipamento do engenheiro, e por declarar que Aristóteles me parece ter sido, antes de tudo, um biólogo, por inclinação e por treinamento, não tentarei prosseguir com a comparação. Vamos simplesmente dar uma olhada em algumas partes da História Natural de Aristóteles e tentar mostrar, de forma parcial e elementar, a influência desse estudo em sua mente.

O naturalista nasce naturalista, e podemos ter certeza de que Aristóteles era um amante e um estudante da natureza desde criança; mas seria útil traçar a relação de seus estudos biológicos com seu trabalho filosófico se pudéssemos saber quando seu principal trabalho biológico foi realizado. Tem-se afirmado com frequência que Aristóteles se dedicou à biologia como uma recreação de velho, depois de sua aposentadoria em Eubéia. Essa teoria não é adequada, e não creio que seja verdadeira. Outra lenda, a de que Alexandre enviou a seu aluno espécimes provenientes de suas campanhas, foi aceita por Cuvier e negada por Humboldt; não há evidência direta ou indireta disso nos escritos de Aristóteles, e também acredito que essa tradição não tenha valor. Mas há evidências, de um tipo geográfico, que nos ajudam a responder nossa questão preliminar.

Entre as ilhas da Grécia, há uma certa ilha, insula nobilis et amoena15, que Aristóteles conhecia bem. Ela fica no lado asiático, entre a Tróade e a costa da Mísia, e em seu interior, perto da pequena cidade de Pyrrha, corre uma lagoa ampla e resguardada. Essa é a ilha de Lesbos. Foi para lá que Aristóteles foi e lá passou dois anos de sua vida, na meia-idade, trazendo sua noiva-princesa da corte inferior de um pequeno estado vizinho, onde já havia passado três anos. Isso aconteceu pouco antes de ele ir à Macedônia para educar Alexandre; dez anos depois, ele voltou a Atenas para começar a lecionar no Liceu. Na História Natural, as referências a lugares na Grécia propriamente dita são, de fato, muito poucas; há menções muito mais frequentes a lugares nas costas norte e leste do Egeu, desde a terra natal de Aristóteles até a costa de Carian; e a lugares dentro e ao redor da ilha de Lesbos, ou Mitylene, um grupo inteiro de declarações e descrições de Aristóteles fazem essa referência. Aqui, por exemplo, Aristóteles menciona uma peculiaridade dos cervos em uma ilhota vizinha, das doninhas à beira do caminho perto de outra cidade da ilha. Ele fala das grandes conchas roxas de Murex no Cabo Lectum e dos diferentes tipos de esponjas encontradas no lado terrestre e no lado marítimo do Cabo Malia. Porém, é à lagoa de Pyrrha que Aristóteles mais alude. Aqui havia estrelas-do-mar em tal abundância que eram uma praga para os pescadores; aqui as vieiras haviam sido exterminadas por um período de seca e pelo trabalho contínuo da draga dos pescadores; ali os ouriços-do-mar entram em temporada no inverno, uma circunstância incomum. Ali, entre os chocos, não se encontrava nenhum polvo, nem do tipo comum nem do tipo almiscarado; não havia nenhum peixe-papagaio, nem qualquer tipo de peixe espinhoso, nem lagostins-do-mar, nem o peixe-pintado nem o peixe-cachorro espinhoso; e, além disso, dessa lagoa, todos os peixes, com exceção apenas de um pequeno gudgeon, migraram para o mar para se reproduzir. E, embora não se aplique especialmente à ilha, mas apenas à costa asiática em geral, posso acrescentar que o camaleão, que é objeto de uma das investigações mais perfeitas e minuciosas de Aristóteles, é relativamente comum nesse local, mas não se sabe se ocorre na Grécia.

Considero, então, provável, ou mesmo provado, que uma parte importante do trabalho de Aristóteles em história natural tenha sido realizada na costa asiática, em Mitylene e nas proximidades16. Naturalista de sorte será aquele que, algum dia, passar um verão tranquilo naquela lagoa calma, encontrar ali toda a riqueza natural ὅσσον Λέσβος… ἐντὸς ἐέργει, e tiver ao redor de seus pés as criaturas que Aristóteles amava e conhecia. Ademais, é certo, se tudo isso for verdade, que os estudos biológicos de Aristóteles precederam seu trabalho mais estritamente filosófico; e não é de pouca importância que devamos ter (na medida do possível) certeza disso, quando especulamos sobre a influência de sua biologia em sua filosofia17.

Aristóteles não é um principiante em biologia. Quando ele escreve sobre Mecânica ou Física, nós o lemos com dificuldade: seus métodos não são os nossos; suas explicações parecem trabalhosas; sua ciência tem um aspecto arcaico, como se viesse de outro mundo em relação ao nosso, um mundo anterior a Galileu. Falando com toda a desconfiança, tenho minhas dúvidas quanto à sua matemática. Apesar de uma certa passagem formidável na Ética, em que temos uma espécie de ethica more geometrico demonstrata, apesar de seu uso favorito da igualdade dos ângulos de um triângulo em relação à [soma de] dois ângulos retos como um exemplo de prova indiscutível, apesar até mesmo de seu tratado De Lineis Insecabilibus18, sou tentado a suspeitar que ele às vezes passava timidamente por baixo da inscrição que estava na porta de Platão.

Mas ele foi, e é, um grande naturalista. Quando ele trata de História Natural, sua linguagem é a nossa, e seus métodos e problemas são praticamente idênticos aos nossos. Ele tinha conhecimento familiar de mil formas variadas de vida, de pássaros e animais, plantas e répteis. Tinha o cuidado de observar os mínimos detalhes de sua estrutura externa e a curiosidade de investigar, por meio de dissecação, suas partes internas. Ele estudou as metamorfoses do mosquito e da borboleta, e abriu o ovo do pássaro para descobrir o mistério da vida incipiente no embrião do pintinho.

Ele reconheceu grandes problemas de biologia que ainda são nossos hoje, problemas de hereditariedade, de sexo, de nutrição e crescimento, de adaptação, da luta pela existência, da sequência ordenada do plano da natureza. Acima de tudo, ele era um estudante da vida em si. Se ele era um anatomista erudito, um grande estudioso dos mortos, era ainda mais um amante dos vivos. Seu mundo está sempre em movimento. A semente está crescendo, o coração batendo, a estrutura respirando. As formas e os hábitos dos seres vivos devem ser conhecidos: como eles trabalham e se divertem, amam e odeiam, se alimentam e procriam, criam e cuidam de seus filhotes; se vivem solitários ou em companhias e sociedades cada vez mais organizadas. Todas essas coisas atraem sua imaginação e sua diligência. Até mesmo sua anatomia se torna imediatamente uma anatomia animata, tal como Haller, poeta e fisiologista, descreveu a ciência à qual deu o nome de fisiologia. Essa atitude em relação à vida e o conhecimento obtido por meio dela ajudaram posteriormente a moldar a filosofia de Aristóteles.

Não tenho motivos para supor que o estudo da biologia torne um homem sábio, mas tenho certeza de que ele ajudou a conduzir Aristóteles ao caminho da sabedoria. No entanto, ele aproveita a ocasião para explicar ou justificar sua devoção a esse estudo, aparentemente alheio à busca da filosofia. “Sem dúvida”, diz ele19, “a glória dos corpos celestes nos enche de mais prazer do que a contemplação dessas coisas humildes; pois o sol e as estrelas não nascem, nem se deterioram, mas são eternos e divinos. Porém, os céus estão altos e distantes, e o conhecimento das coisas celestiais que nossos sentidos nos dão é escasso e tênue. Por outro lado, as criaturas vivas estão próximas, e de cada uma e de todas elas podemos obter um conhecimento amplo e seguro, se assim o desejarmos. Se uma estátua nos encanta, os seres vivos certamente nos encherão de deleite; ainda mais se, no espírito da filosofia, buscarmos as causas e reconhecermos as evidências de design. Então, o propósito da Natureza e suas leis profundas serão revelados em todos os lugares, todos tendendo, em sua infinidade de obras, a uma forma ou outra do Belo”. Com palavras semelhantes, Bacon20 retraduz um ditado familiar: “Ele fez todas as coisas belas de acordo com suas estações; também submeteu o mundo à investigação do homem”. Por outro lado, um dos mais ilustres filósofos da atualidade está impressionado e aparentemente perplexo com “as formas desajeitadas e grotescas, até mesmo ridículas e hediondas de algumas plantas e animais”21.  Eu o recomendo, com todo o respeito, a Aristóteles ou àquela verdade aristotélica que Rodin nos deu em poucas palavras: “iI n’y a pas de laideur!”22.

Sem dúvida, a noção de beleza de Aristóteles não era a de Rodin. Ele tinha a compreensão filosófica do Belo, assim como tinha o conhecimento e a compreensão da Poesia de um grande crítico; mas, por mais sábio e erudito que fosse, não era artista nem poeta. Seu estilo raramente se eleva, e só em algumas poucas passagens como a que citei, se eleva acima de seu nível didático. Platão viu a filosofia, a astronomia e até mesmo a matemática, como que em uma visão; mas Aristóteles não conhece essa consumação de um sonho. As abelhas têm um rei, com Aristóteles. Se Platão tivesse nos contado sobre o reino das abelhas, acho que teríamos imagens shakespearianas. O rei teria tido seus ‘oficiais de espécie’, seus magistrados e soldados, seus ‘pedreiros cantores construindo telhados de ouro’. Até mesmo Plínio, enciclopedista árido como é, pode, de vez em quando, nos emocionar de uma maneira que Aristóteles não pode fazer, por exemplo, quando ele lança um pouco de poesia e ainda mais de música em sua descrição do canto do rouxinol23.

Porém, vamos agora, finalmente, exemplificar, por meio de algumas citações breves, a natureza e a extensão do conhecimento zoológico de Aristóteles. E, aqui, a brevidade me obriga a escolher entre duas maneiras: lidar com as teorias de Aristóteles ou com seus fatos, sua perspicácia ou sua erudição. As primeiras são do maior interesse possível para nós, e seu tratamento inclui parcialmente os segundos. Contudo, seria necessário mais do que todo o tempo de que disponho para tratar de qualquer uma das teorias de Aristóteles sobre a geração, por exemplo, ou sobre a respiração e o calor vital, ou sobre os temas ainda mais relevantes da variação e da hereditariedade, os problemas centrais da biologia, ou ainda sobre as questões teleológicas da adaptação e do design.

Portanto, vou me limitar, quase que totalmente, a alguns fragmentos de seu acervo de fatos zoológicos e embriológicos.

Entre os animais sem sangue, como Aristóteles chamou o que chamamos de invertebrados, ele distingue quatro grandes gêneros, e um deles é o dos moluscos. Esses são os peixes chocos, que agora abandonaram seu nome aristotélico de “moluscos” e passaram a pertencer a esse grupo maior, que os inclui com os peixes de concha, ou “ostracoderma” de Aristóteles. Esses peixes chocos são criaturas que raramente vemos, mas no Mediterrâneo são um artigo de alimentação, e muitos tipos são conhecidos pelos pescadores. Todos, ou quase todos, esses tipos comuns eram conhecidos por Aristóteles, e seu relato sobre eles chegou até nós com uma completude singular. Ele descreve sua forma e anatomia, seus hábitos, seu desenvolvimento, tudo com uma precisão tão fiel que o que podemos acrescentar hoje parece de importância secundária. Ele começa com uma descrição metódica da forma geral, fala-nos do corpo e das nadadeiras, dos oito braços com suas fileiras de ventosas, da posição anormal da cabeça. Ele destaca os dois longos braços do Sepia e dos Calamaries, e sua ausência no polvo; e nos diz, o que só foi confirmado recentemente, que com esses dois longos braços a criatura se agarra à rocha e balança como um navio ancorado. Ele descreve os grandes olhos, os dois grandes dentes que formam o bico; e disseca toda a estrutura do intestino, com seu longo esôfago, seu papo redondo, seu estômago e o pequeno caecal diverticulum enrolado; dissecando não apenas uma, mas várias espécies, e observando diferenças que não foram observadas novamente até que Cuvier as dissecasse novamente. Ele descreve o canal e sua relação com o saco mantélico, e a bolsa de tinta, que ele mostra ser a maior na Sépia em comparação com todas as outras. E aqui, a propósito, ele parece cometer um daqueles erros aparentes que, por acaso, acabam sendo justificados: Pois ele nos diz que no Octopus o canal está no lado superior; o fato é que quando a criatura está deitada no chão, com todos os braços abertos e achatados, o tubo do canal (em vez de estar achatado sob o corpo prostrado da criatura) é longo o suficiente para se projetar para cima entre os braços e a cabeça, e aparecer de um lado ou de outro, em uma posição aparentemente inversa à natural. Ele descreve o caráter do osso do choco na Sepia e da haste córnea que ocupa seu lugar nos vários Calamaries, e observa a ausência de qualquer estrutura semelhante no Octopus. Ele disseca os órgãos reprodutivos de ambos os sexos, observando, sem exceção, todas as suas partes essenciais e complicadas; e ele as havia figurado em seu volume perdido dos diagramas anatômicos. Ele descreve os vários tipos de ovos e, com um conhecimento ainda mais surpreendente, mostra-nos o pequeno embrião de peixe choco, com seu grande saco vitelino, ligado (em aparente contraste com o do pintinho) à cabeça em desenvolvimento da pequena criatura.

Mas há uma outra estrutura notável que ele conhecia, séculos antes de ser redescoberta quase em nossa época. Em certos peixes chocos machos, na época da reprodução, um dos braços se desenvolve de maneira curiosa em um longo chicote enrolado e, no ato da reprodução, pode ser transferido para a cavidade mantélica da fêmea. O próprio Cuvier não sabia nada sobre a natureza ou a função desse braço separado e, de fato, se não me engano, foi ele quem o confundiu com um verme parasita. Mas Aristóteles nos fala de seu uso e de seu desenvolvimento temporário, e de sua estrutura em detalhes, e sua descrição está de acordo com os relatos dos autores mais recentes.

Entre as espécies mais raras do grupo, ele conhecia bem o pequeno Argonauta, com sua bela concha de berbigão, e conta como ele levanta seus dois braços largos para navegar, uma história que foi rejeitada por muitos, mas que, no fim das contas, talvez seja verdadeira.

Ora, em tudo isso há muito mais do que uma massa de informações fragmentárias colhidas dos pescadores. Trata-se de um tratado simples e ordenado sobre as formas e os hábitos, as variedades e a estrutura anatômica de um grupo inteiro. Até Cuvier escrever, não havia ninguém tão bom, e Cuvier não tinha o conhecimento que Aristóteles possuía.

Não menos exato e não menos copioso é o capítulo em que Aristóteles trata do caranguejo e da lagosta, e de todos os peixes crustáceos com concha, ou aquele em que ele trata dos insetos, segundo sua espécie. O mais maravilhoso de tudo, talvez, sejam as partes de seus livros em que ele fala dos peixes, suas diversidades, sua estrutura, suas andanças e sua alimentação. Aqui podemos ler sobre peixes que só recentemente foram re-descobertos24, de estruturas só recentemente re-investigadas, de hábitos só recentemente conhecidos25. E muitas dessas antecipações de nosso conhecimento e muitas alusões a coisas das quais talvez ainda sejamos ignorantes ainda podem ser trazidas à luz; pois ainda estamos longe de ter interpretado e elucidado toda a massa da erudição registrada por Aristóteles: essa massa registrada é apenas, afinal, tanquam tabula naufragii.

Talvez não haja um capítulo na Historia Animalium mais atraente para o anatomista do que aquele que trata da anatomia e do modo de reprodução dos peixes cartilaginosos, dos tubarões e das raias, um capítulo que causou admiração ao príncipe dos anatomistas, Johannes Müller26.  Este último escreveu um volume sobre o texto de uma página de Aristóteles, uma página repleta de uma infinidade de fatos, nos quais Johannes Müller não encontrou nenhuma falha. O assunto é técnico, mas a essência da questão é a seguinte: entre esses seláquios (como, seguindo Aristóteles, às vezes ainda os chamamos) há muitas diversidades na estrutura das partes em questão e vários modos distintos pelos quais os filhotes são gerados ou amadurecidos, pois em muitos tipos um ovo é posto, ovos esses que, a propósito, Aristóteles descreve com grande minúcia. Outros tipos não põem ovos, mas trazem seus filhotes à luz vivos, e isso inclui o Torpedo e vários tubarões ou peixes-cachorro. Nesses casos, a casca do ovo é muito fina e se rompe antes do nascimento dos filhotes. Entre eles, porém, há alguns tubarões, dos quais uma espécie estava ao alcance de Aristóteles, onde ocorre um fato muito curioso. Através da delicada membrana, que é tudo o que resta da casca do ovo, o grande saco vitelino do embrião se conecta com os tecidos dos pais, que se dobram e se entrelaçam com ele; e por meio dessa união temporária, o sangue dos pais se torna o meio de nutrição para os filhotes. E todo esse arranjo é fisiologicamente idêntico ao que ocorre nos animais superiores, nos mamíferos ou nos vivíparos de sangue quente. É verdade que o saco vitelino não é idêntico àquela outra membrana embrionária que, nos mamíferos, desempenha a função da qual estou falando; mas Aristóteles estava ciente da diferença e distingue as duas membranas com verdade e precisão.

Acontece que, no gênero particular de tubarões ao qual esse pertence, há duas espécies que diferem por características quase imperceptíveis; mas é em apenas uma das duas, o γαλεὸς λεῖος de Aristóteles, que esse fenômeno singular da placenta vitellina é encontrado. Ela é encontrada no grande tubarão-azul do Atlântico e do Mediterrâneo; mas essa criatura atinge um tamanho muito grande antes de se reproduzir, e não é provável que espécimes tão grandes tenham passado pelas mãos de Aristóteles. Cuvier detectou o fenômeno no tubarão azul, mas deu pouca atenção a ele e, apesar de todo o seu conhecimento de Aristóteles, não percebeu que estava lidando com um fato importante que o filósofo havia estudado e explicado. No século XVII, Steno, o anatomista, efetivamente redescobriu o fenômeno, no γαλεὸς λεῖος, o próprio Mustelus laevis, mas ele não conhecia Aristóteles. E o fato foi novamente esquecido até que Johannes Müller o trouxe à luz e mostrou não apenas quão completo era o relato de Aristóteles, mas quão ampla deve ter sido sua pesquisa sobre essa classe de peixes para permitir que ele registrasse essa peculiaridade em relação às suas muitas diferenças de estrutura e hábito reprodutivo. Eu costumava pensar nesse fenômeno como algo que Aristóteles poderia ter aprendido com os pescadores, mas, após um estudo mais cuidadoso do livro de Johannes Müller, estou convencido de que esse não é o caso. Foi uma descoberta que só poderia ter sido feita por um anatomista habilidoso e instruído.

Em um longo e belo relato, Aristóteles descreve o desenvolvimento do pintinho. É no terceiro dia que o embrião se torna suficientemente formado para que o estudante moderno inicie seu estudo, e foi depois de apenas três dias (um pouco mais cedo, como observa Aristóteles, nas aves pequenas, um pouco mais tarde nas maiores) que Aristóteles viu a primeira indicação clara do embrião. Como um pingo de sangue, ele viu o coração batendo e seus dois vasos sangüíneos umbilicais surgindo na gema. Um pouco mais tarde, ele viu toda a forma do corpo, notando o tamanho desproporcional da cabeça e dos olhos, e encontrou os dois conjuntos de vasos sanguíneos que conduziam, um para o saco vitelino e o outro para o alantoide recém-formado. No minúsculo pintinho do décimo dia, ele viu o estômago e outras vísceras; notou a posição alterada do coração e dos grandes vasos sanguíneos; ele delineou clara e completamente as membranas circundantes; ele abriu o pequeno olho para procurar, mas não o encontrou, o cristalino. E, por fim, ele descreve detalhadamente a aparência e a atitude do pintinho, a absorção da gema, o enrugamento das membranas, exatamente no momento em que o pequeno pássaro começa a quebrar a casca e antes de sair para o mundo. Embora esse epítome contenha apenas uma parte do que Aristóteles viu (e, sem uma lente, seria difícil ver mais do que ele), ele inclui o fato notável do aparecimento precoce do coração, o punctum saliens dos escritores posteriores, cuja primazia sobre todos os outros órgãos foi a principal razão para Aristóteles atribuir a ele um sentido comum, central ou primário, e assim localizar nele a sede central da alma. E assim foi considerado até a época de Harvey, que, observando a aparência contemporânea do coração e do sangue, afirmou que o que estava contido era mais nobre do que o que o continha, e que era o sangue que era “a fonte da vida, o primeiro a viver, o último a morrer, a sede primária da alma, o elemento no qual, como em uma fonte, o calor é o primeiro e mais abunda e floresce”; assim, remontando a uma fisiologia mais antiga do que a de Aristóteles — “pois o sangue é a própria vida”. Todos os estudantes do Timeu sabem que aqui Aristóteles se separou de Platão, que, seguindo Hipócrates, Demócrito e outros, colocou a sede da sensação, a parte soberana da alma, no cérebro. Certo ou errado, foi na observação e em seu uso mais raro do experimento27 que Aristóteles se baseou. A vespa ou a centopéia ainda vive quando a cabeça ou a cauda são amputadas, o coração da tartaruga bate quando removido do corpo, e o coração é o centro de onde brotam os vasos sanguíneos. A esses argumentos, Aristóteles acrescentou a crença mais idealista de que a sede da alma, a força governante do corpo, deve estar apropriadamente no centro: e ele encontrou mais uma confirmação dessa opinião em um estudo do embrião da planta, onde no centro, entre as folhas da semente, está o ponto a partir do qual o caule e a raiz crescem. E Ogle nos lembra como, até cem anos atrás, os botânicos ainda mantinham uma consideração afetuosa e supersticiosa por essa parte da planta, chamando-a ora de cor, ora de cerebrum, o coração ou cérebro da planta.

E agora seria possível rastrear diretamente a influência do treinamento científico e do aprendizado biológico de Aristóteles sobre sua sociologia, sua psicologia ou, em geral, sobre sua filosofia? O fato de que essa influência deve ter estado em ação é, prima facie, óbvio. O médico que se torna filósofo continuará sendo médico até o fim; o engenheiro continuará sendo engenheiro; e as idéias da matemática pura, o “alfabeto da filosofia” de Roger Bacon, encontrarão origem e expressão na filosofia de matemáticos como Platão, Leibniz, Espinosa ou Descartes. Ademais, não é apenas o treinamento especial ou a vocação anterior do filósofo que afeta sua mente. Em diversos períodos históricos, o rápido progresso ou o estudo difundido de uma ciência específica moldou a filosofia da época. Da mesma maneira, em grande escala, nos dias de hoje, acontece com a biologia; da mesma maneira, uma fase anterior da biologia evolucionária afetou Hegel; e, da mesma maneira, nos grandes dias após Lavoisier, os dias de Dalton, Davy e Berzelius, a química ajudou, de acordo com John Stuart Mill, a sugerir uma “química da mente” para a “associação” de psicólogos. Um certo filósofo28, ao tratar desse tema, começa dizendo que “a matemática era a única ciência que havia superado sua simples infância entre os gregos”. Hoje, meu objetivo específico é mostrar, com base em Aristóteles, que esse não é o caso. Não importa se os precursores biológicos de Aristóteles foram muitos ou poucos, se os hipocráticos (por exemplo) não conseguiram elevar a fisiologia e a anatomia à dignidade de uma ciência ou se, tendo feito isso, apenas as reservaram, como um culto secreto, para sua própria guilda; Em suma, se o conhecimento de Aristóteles é, em sua maior parte, o resultado de seus trabalhos solitários, ou se, como Leibniz disse sobre Descartes, praeclare in rem suam vertit aliorum cogitata29, é pelo menos certo que a biologia era, em suas mãos, uma ciência verdadeira e abrangente, perdendo apenas para a matemática de sua época.

A influência, portanto, do estudo científico e, em particular, da biologia, não está longe de ser percebida no caso de Aristóteles. Desde então, tem sido comum comparar o Estado, o corpo político, com um organismo, mas foi Aristóteles quem primeiro empregou a metáfora. Ademais, em sua exaustiva acumulação e tratamento de fatos políticos, seu método é o do observador, do estudante científico, e é principalmente indutivo. Assim como, para entender os peixes, ele reuniu todos os tipos, registrando suas formas, sua estrutura e seus hábitos, o mesmo fez com as Constituições das cidades e dos estados. Aqueles duzentos e tantos πολιτεῖαι que Aristóteles laboriosamente compilou, segundo um método com o qual Platão jamais teria sonhado, formariam uma História Natural das Constituições e Governos. E se vemos em seu tratamento concreto e objetivo do tema um parentesco com a Sociologia Descritiva de Spencer, uma vez mais, penso eu, uma diferença logo se torna aparente entre o frio catálogo de fatos de Spencer e a visão mais amorosa de Aristóteles sobre os acontecimentos e os corações, os motivos e as ambições dos homens.

Todavia, seja o que for que Aristóteles seja, ele é o grande Vitalista, o estudioso do Corpo com sua Vida, o historiador da Alma.

Já vimos como e onde Aristóteles fixou a sede e a habitação local da alma. Porém, além disso, a alma deve ser estudada de acordo com seus atributos, ou analisada em suas “partes”. Seus atributos podem ser analisados de várias maneiras, como mostra Aristóteles em sua Ética. No entanto, é somente à luz da Biologia que se torna possível aquilo que equivale a uma análise científica, como a que é desenvolvida no De Anima; e nesse tratado é somente após uma longa discussão fisiológica preliminar que Aristóteles formula longamente sua distinta psicologia. Há um princípio de continuidade, um συνέχεια, que percorre a escala de estrutura dos seres vivos, e assim, pouco a pouco, por meio de passos imperceptíveis, a natureza faz a transição da planta para o animal e para o homem. É com todo esse conhecimento, resumido em uma grande passagem da História Natural e incorporado a essa ampla generalização, que Aristóteles posteriormente passa a indicar a mesma gradação na psicologia e a extrair dela uma classificação semelhante sobre a Alma.

Há uma alma que preside o requisito fisiológico primário da nutrição, uma alma que já é inerente à planta e inseparável da própria vida; ela é ἡ πρώτη ψυχή30. Comum também a todos os seres vivos são as funções fisiológicas de crescimento e reprodução, e as agências psíquicas que as dirigem são concomitantes e, de fato, idênticas à alma nutritiva. A sensação ou sensibilidade, pela qual o animal difere essencialmente da planta, distingue a αἰσθητικὴ ψυχή da alma senciente; e a alma do movimento, que não se manifesta nos animais mais inferiores, acompanha a alma da sensibilidade. Por fim, a alma racional, a διανοητικὴ ψυχή ou νοῦς, surge no homem como a fonte de seu conhecimento e de sua sabedoria31. Em uma passagem breve, mas muito importante32, com um toque do idealismo platônico nunca esquecido por ele (e que é muito capaz de trazer Wordsworth à nossa mente), Aristóteles nos diz que essa alma ‘que vem de fora’ – ‘μόνον θύραθεν ἐπεισιέναι, καὶ θεῖον εἶναι μόνον’. Sim, em uma prosa grega muito simples, isso é nada menos do que afirmar que ‘arrastando nuvens de glória’, ‘ela vem de fora’.

No entanto, por mais glorificada que seja a alma racional, essas partes, essas subdivisões da alma, não estão separadas em exclusividade mútua, mas, assim como podemos discernir um triângulo dentro de um quadrado, cada grau inferior de ψυχή está implícito no superior. E assim como os organismos superiores retêm as principais faculdades fisiológicas dos inferiores, assim também eles retêm as qualidades psicológicas que eles possuem: e gradualmente (mais e mais à medida que subimos a escada) encontramos indícios das qualidades psíquicas que serão aperfeiçoadas nas formas superiores. Entre os animais superiores, pelo menos, uma psicologia comparativa pode ser desenvolvida; pois assim como seus órgãos corporais são semelhantes uns aos outros e aos do homem, também temos nos animais uma inteligência embrionária, na qual podemos estudar, em um ou outro, a psicologia de coisas como medo, raiva, coragem e, por fim, de algo que podemos chamar de sagacidade, que não está longe da razão. E, por último, temos uma psicologia da infância, em que estudamos na criança, a princípio pouco diferente do animal, as sementes em crescimento da mente do homem.

Contudo, antes de sairmos desse assunto, observe que, embora Aristóteles siga o método comparativo e termine rastreando nas formas inferiores os fenômenos precursores das formas superiores, ele não adota o método que nos é tão familiar, e no qual Spencer insistiu, ou seja, lidar primeiro com as formas inferiores e estudar em ordem cronológica sucessiva a sucessão das formas superiores. O método histórico, o método realista do século XIX, o método ao qual nos apegamos com tanta insistência, não é o único. De fato, mesmo na biologia moderna, se compararmos (por exemplo) a embriologia de hoje com a de trinta anos atrás, veremos que o método histórico puro está perdendo um pouco de seu fascínio e de sua força. Em vez disso, Aristóteles tem sempre em mente o mais elevado dos organismos, à luz de cujos fenômenos integrais e constituintes os menos perfeitos devem ser compreendidos. Assim foi também com aquele que o Lorde Chanceler da Inglaterra chamou de “o maior mestre do pensamento abstrato desde a morte de Aristóteles”. Para Hegel33, tal como certamente para Aristóteles, Entwicklung não era um “processo temporal, mas um processo mental”. Para Hegel, uma evolução histórica atual, realista e externa parecia apenas uma filosofia desajeitada e materialista da natureza. Em certo sentido, a “diferença de tempo não interessa ao pensamento”. E se os animais inferiores nos ajudam a entender a nós mesmos, é sob uma luz refletida pelo estudo do homem.

Assim cresce, sobre uma ampla base de História Natural, toda a psicologia de Aristóteles e, em particular, a grande doutrina da alma tripartida, segundo a qual as coisas criadas, “por meio de mudanças graduais sublimadas, aspiram a espíritos vitais, a animais, a intelectuais! 

Nessa ψυχή de Aristóteles havia (apesar da passagem que citei) um traço do concreto e do quase material, que o pensamento grego e cristão posterior não demorou a discernir e modificar. Porém, conforme nos lembra um filósofo de nossos dias, foi em relação a um Corpo um tanto idealizado que Aristóteles descreveu essa Alma quase não-espiritual. Tal como ela é, ela permaneceu nas raízes de nossa psicologia, até os dias de hoje.

Bergson só se livra parcialmente dela quando reformula a psicologia aristotélica nos moldes daquela árvore ramificada que a biologia evolucionária moderna coloca no lugar da scala Naturae de Aristóteles: e quando vê, por exemplo, na evolução psicológica, não os graus sucessivos de desenvolvimento contínuo, passando pela sensibilidade e pelo instinto até chegar à inteligência, mas sim a divisão de uma atividade original, da qual o instinto e a inteligência não são sucessivos, mas sim crescimentos separados e divergentes.

Em nossa ciência recente, a doutrina aristotélica não está morta. Porque, embora pouco modificada, embora vestida com novas roupas, essa enteléquia aristotélica34, que tanto fascinou Leibniz35, está presente no Vitalismo de Hans Driesch; e daqueles que acreditam com ele que, por mais longe que as leis físicas possam nos levar, elas não nos levam até o fim: que as limitações da indução nos proíbem de passar, em pensamento e argumento, da química para a consciência, ou (como Spencer bem sabia) da Matéria para a Mente36; que a Vida não é meramente ‘uma dificuldade notável, mas uma verdadeira exceção à aplicabilidade universal das leis mecânicas’; que o fato de não ser compreendida sob a categoria de causa física, mas ser considerada à parte, é a concepção fundamental subjacente à Vida e sua Teleologia37

É fácil esboçar em palavras simples a influência dos estudos biológicos de Aristóteles sobre seu método de trabalho, ou ver em sua Psicologia e em sua Ética os resultados de sua análise biológica da alma. Mas sua ciência natural parece exercer uma influência ainda mais profunda em toda a sua filosofia, para o bem ou para o mal, influência essa que não tenho o conhecimento necessário para sondar e descrever. Só posso ver vagamente, e não posso me aventurar a explicar, como seu estudo que durou toda a vida sobre as coisas vivas o levou a rejeitar a ontologia idealista de Platão e afetou todo o seu método de classificação, sua noção de essências e acidentes, sua concepção de “Natureza” que “não faz nada em vão”, toda a sua análise da causalidade, sua crença e sua definição38 de “Necessidade”, sua fé no design, sua forma particular de teleologia, sua concepção e apreensão de Deus.

E agora, vou encerrar minha exposição. Não é em detrimento da honra comemorativa de Spencer que falei dele junto com um filósofo maior e um dos maiores homens. Assim, usei minha hora em Oxford para falar e saudar o nome de Aristóteles, aqui onde seu espírito habita há seiscentos anos, e eu o amo humildemente desde o início de meus dias.

Sabemos que a história da biologia remonta a Aristóteles por um caminho reto e claro, mas que, para além dele, o caminho é irregular e as luzes são fracas. E vimos que a biologia não era uma mera brincadeira do lazer erudito de Aristóteles, mas uma grande parte intrínseca do vasto aparato de sua mente.

Essa nossa ciência não é um artesanato insignificante, nem uma disciplina estreita. Ela era grande, e grandiosa, nas mãos de Aristóteles, e cresceu de forma gigantesca desde sua época.

Ela começa com a admiração do trabalho artístico da natureza, quando ela o espalha ao longo do caminho. Ela nos convida a procurar na terra e a pesquisar as profundezas do mar. Ela trabalha para a saúde e a riqueza dos homens. Ela fala de coisas humildes; sussurra sobre coisas elevadas. Ela fala (se me atrevo a usar a palavra do velho teólogo39) de Leis, “cuja voz é a harmonia do mundo e cujo assento é o seio de Deus”.

Às vezes, tal como hoje, ela nos leva, por um caminho secundário, ao estudo da história do pensamento e do conhecimento humano e nos apresenta a um grupo de grandes homens, que habitavam no “ar puro” de Atenas.

O pouco de grego que sei, aprendido com meu pai, é apenas um brinquedo de criança em comparação com o de muitos estudiosos daqui. No entanto, vez por outra, ouço as boas-vindas, na antiga linguagem helênica, aos homens que visitam a Casa do Intérprete, onde Platão e Aristóteles nos mostram “coisas excelentes, que nos ajudarão em nossa jornada”.


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Notas:

[1] Lucrécio, em De Rerum Natura. N.T.

[2] Compare a passagem inicial de Social Studies (1864): “‘Dê-nos um guia’, gritam os homens para o filósofo. ‘Gostaríamos de escapar dessas misérias em que estamos enredados’”.

[3] “Ele não tinha vida nem história.”

[4] Assim como já havia feito, em 1852, em seu ensaio sobre a Hipótese do Desenvolvimento.

[5] A “lei da diferenciação”, ou do “progresso orgânico”, foi proposta pela primeira vez por Spencer em seu ensaio On Progress, its Law and Cause (1857), no qual ele argumentou que essa era também a lei de todo o progresso.

[6] 1807 (escrito em 1795). Republicado em Goethe’s Werke, XXXVI, p. 7.

[7] Lewes, Life of Goethe (1855), 3ª ed. 1875, p. 358

[8] O próprio Von Baer não reivindicou nenhuma prioridade. “Dieses Gesetz ist wohl nie verkannt worden,” Zur Entwicklungsgesch. (I), p. 153

[9] Como em um ensaio anterior intitulado The Law of Organic Symmetry, de 1859.

[10] Até mesmo em sua Sociologia, onde discute o lugar dos pontífices em um sacerdócio arcaico, ele parece ter uma afeição peculiar por esses antigos construtores de pontes.

[11] Um curioso corolário, ou caso em questão, é encontrado no fato de que limites definidos são estabelecidos para o tamanho de um animal terrestre, e ainda mais para o tamanho de um pássaro voador, enquanto o animal aquático, comparativamente imune à gravidade, aumenta a velocidade de locomoção, como um navio, quanto maior ele se torna (Princ. of Biology (2ª ed.), I. 156).

[12]  ‘C’est la l’idee capitale qu’il ajoute aux doctrines de Zenon, de Spinoza et de Volney : ‘ Guyau, La Morale anglaise contemporaine, 1885, p. 268.

[13] As últimas palavras são citadas de Alden, A Study of Death (1895), p. 176; cf. North Amer. Review, janeiro de 1913.

[14] “O mestre de quem sabe.” N.T.

[15] “Uma ilha nobre e agradável” N.T;

[16] Talvez tenha sido aqui também que Aristóteles encontrou sua “régua lesbiana”

“Pois o que é em si mesmo indefinido só pode ser medido por um padrão indefinido, como a régua da pedra usada pelos construtores lésbicos; assim como essa régua não é rígida, mas pode ser dobrada de acordo com a forma da pedra, assim também uma ordenação especial é feita para se adequar às circunstâncias do caso” Ética a Nicômaco, Livro V, cap. 10..

[17] Prosseguindo minhas investigações geográficas um pouco mais, descobri que, do grande número de nomes de lugares mencionados nos Problemas, de longe o maior número está situado no sul da Itália, ou seja, na Magna Grécia ou na Sicília; e tenho esperanças de ver essa obra, ou uma grande parte dela, eliminada, por essa e outras razões mais importantes, dos escritos canônicos de Aristóteles. No tratado De Plantis, que já foi reconhecido como espúrio, ocorrem apenas três ou quatro nomes geográficos, creio eu; mas todos eles também estão situados dentro dos limites da Magna Grécia.

[18]Sobre as Linhas Indivisíveis”. N.T.

[19] De Partibus Animalium. I. 5.

[20] De Sapientia Veterum (Eccles. III. II).

[21] Ward, op. cit., p. 85

[22] “Não existe coisa feia!” N.T.

[23] H. N. X. 43 (29).

[24] Por exemplo, Parasilurus Aristotelis, um peixe siluróide do [rio] Achelous.

[25] Por exemplo, a reprodução dos peixes-tubo (Syngnathi), a natureza hermafrodita dos Serrani, a construção de ninhos dos Wrasses, etc., etc.

[26] Cf. Cavolini, in his classical Mem. sulla Generazione dei Pesci, Naples, 1787 : “E quando leio a História dos Animais de Aristóteles, não posso deixar de me surpreender ao analisá-la e ver os fatos que só poderiam se manifestar para nós com dificuldade, e que são então claramente revelados e colocados em paralelo com os fatos já reconhecidos no embrião do galo.”

[27]  Os experimentos de Aristóteles eram semelhantes aos de Voltaire, que, em seu jardim em Ferney, se dedicava a cortar os chifres e as cabeças dos caracóis para ver se eles cresciam novamente ou até que ponto.

[28] Ritchie, Darwin and Hegel, p. 39.

[29] ”Ele brilhantemente transforma os pensamentos dos outros em seus próprios”.N.T.

[30] “A primeira alma.” N.T.

[31] Aqui peguei emprestadas algumas palavras de um discurso anterior e de minhas anotações sobre a Historia Animalium.

[32] De Gen. An. II. 3, 736 b 27. Cf. Brentano, Aristoteles’ Lehre vom Ursprung des menschlichen 

[33] Ritchie, op. cit. Cf. Höffding, em Darwin and Modern Science. Cambridge, 1909, p. 449.

[34]  ψυχή ἐστιν ἐντελέχεια ἡ πρώτη σώματος φυσικοῦ δυνάμει ζωὴν ἔχοντος

[35] Cf. Jacoby, De Leibnitii studiis Aristotelicis, Berlim, 1867.

[36]  Cf. Spencer, Princ. of Psychology (par. 63): “Embora pareça mais fácil traduzir a chamada Matéria pelo chamado Espírito, do que traduzir o chamado Espírito pela chamada Matéria (o que, de fato, é totalmente impossível), nenhuma tradução pode nos levar para além de nossos símbolos. As concepções vagas que surgem diante de nós são ilusões criadas pelas conotações erradas de nossas palavras”.

[37]  Compare as opiniões de Kant na Crítica do Juízo e em outros lugares, sobre o aspecto teleológico dos organismos vivos, com (por exemplo) Schleiden no Prefácio de seu Grundziige der Botanik (1860): “Durch ein einfaches klares Wort des Engländers Darwin ist auch endlich die Teleologie aus der Naturwissenschaft vollständig heraus und in die  erbauliche oder poetische Rede, wohin sie gehört, verwiesen worden.” Cf. também as observações do professor Sidgwick sobre o fato de Spencer “evitar a explicação teleológica”, em Ethics of T. H. Green, &c., p. 141.

[38] τὸ μὴ ἐνὃδεχόμενον ἄλλως ἔχειν

[39] Hooker.

Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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