Sobre o Estudo do Latim – Arthur Schopenhauer

estudo do latim

Sobre o Estudo do Latim é ensaio extraído de The Essays of Arthur Schopenhauer – The Art of Literature

A abolição do latim como língua universal dos homens cultos, juntamente com a ascensão daquele provincianismo ligado às literaturas nacionais, tem sido uma verdadeira desgraça para a causa do conhecimento na Europa. Foi principalmente por meio da língua latina que existiu na Europa um público erudito – um público ao qual cada livro, tal como foi publicado, recorria diretamente. O número de mentes em toda a Europa que são capazes de pensar e julgar é pequeno, tal como é; mas quando o público é dividido e cortado por diferenças de idioma, o bem que essas mentes podem fazer enfraquece muito. Esta é uma grande desvantagem; mas uma segunda e pior se seguirá, a saber: que as antigas línguas deixarão de ser ensinadas. A negligência com relação a elas está ganhando rapidamente terreno tanto na França quanto na Alemanha.

Se realmente chegar a isso, adeus humanidade! Adeus, nobre gosto e grandes pensamentos! A era da barbárie voltará, apesar das ferrovias, dos telégrafos e dos balões. Assim, no final, perderemos mais uma vantagem possuída por todos os nossos antepassados. Pois o latim não é apenas uma chave para o conhecimento da antiguidade romana; ele também nos abre diretamente a Idade Média de todos os países da Europa, e também os tempos modernos, até aproximadamente o ano de 1750. Erigena, por exemplo, no século IX, João de Salisbury no décimo segundo século, Raymond Lully no décimo terceiro, juntamente com uma centena de outros, falam diretamente conosco na língua que naturalmente adotaram ao pensar nas questões aprendidas. Assim, eles chegam bem perto de nós, e, mesmo a essa distância no tempo, estamos em contato direto com eles e chegamos realmente a conhecê-los. Como teria sido se todos eles falassem na língua que era comum à sua época e ao seu país? Não poderíamos compreender nem mesmo a metade do que disseram. Um verdadeiro contato intelectual com eles seria impossível. Deveríamos vê-los como sombras no horizonte mais distante, ou, talvez, através do telescópio do tradutor.

Foi com a vantagem de escrever em latim que Bacon – como ele próprio afirma expressamente – procedeu à tradução de seus Ensaios para essa língua, sob o título Sermones Fideles; nos quais o trabalho de Hobbes o auxiliou.1

Aqui, deixe-me observar, a título de parênteses, que, quando o patriotismo tenta insistir em suas reivindicações no domínio do conhecimento, comete uma ofensa que não deve ser tolerada. Com efeito, naquelas questões puramente humanas que interessam a todos os homens – onde a verdade, a intuição, a beleza, devem ser as únicas coisas a se considerar – o que pode ser mais impertinente do que deixar a preferência pela nação à qual o eu precioso de um homem pertence afetar o equilíbrio do julgamento e fornecer, desse modo, uma razão para fazer violência à verdade e ser injusto para com as grandes mentes de um país estrangeiro no intuito de destacar as mentes menores do seu próprio!? Ainda assim, há escritores em todas as nações da Europa que dão exemplos deste sentimento vulgar. Foi isto que levou Yriarte a caricaturá-los no trigésimo terceiro capítulo de suas encantadoras Fábulas Literárias.2

Ao aprender uma língua, a principal dificuldade consiste em familiarizar-se com cada idéia que ela expressa, mesmo que ela use palavras para as quais não existe um equivalente exato na língua materna; e isso acontece com frequência. Quando se aprende uma nova língua, um homem tem, por assim dizer, de marcar em sua mente os limites das esferas de idéias completamente novas, o resultado é que surgem esferas de idéias onde antes não havia nenhuma. Assim, ele não apenas aprende palavras, ele também ganha idéias.

Em nenhum outro lugar isso acontece tão bem quanto no aprendizado de línguas antigas, pois as diferenças que elas apresentam em seu modo de expressão em comparação com as línguas modernas são maiores do que as que podem ser encontradas entre as línguas modernas em comparação umas com as outras. Isso é demonstrado pelo fato de que, ao traduzir para o latim, deve-se recorrer a outras expressões que não aquelas que estão em uso no original. O pensamento a ser traduzido deve ser derretido e reformulado; em outras palavras, ele deve ser analisado e depois recomposto. É justamente esse processo que faz com que o estudo das línguas antigas contribua tanto para a educação da mente.

Daí resulta que o pensamento de um homem varia de acordo com o idioma em que ele fala. Suas idéias passam por uma nova modificação, um sombreado diferente, por assim dizer, no estudo de cada nova língua. Assim, o conhecimento de muitas línguas não é apenas uma vantagem indireta, mas é também um meio direto de cultivo intelectual, na medida em que corrige e amadurece idéias, dando destaque a sua natureza multifacetada e suas diferentes variedades de significado, bem como também aumenta a destreza do pensamento; porque, no processo de aprendizagem de muitas línguas, as idéias se tornam mais independentes das palavras. As antigas línguas produzem isso em um grau incomparavelmente maior do que as modernas, em virtude da diferença à qual aludi.

Pelo que afirmei, é óbvio que imitar o estilo dos antigos em sua própria língua, que é muito superior à nossa em termos de perfeição gramatical, é a melhor maneira de se preparar para uma expressão hábil e acabada do pensamento na língua materna. Não, se um homem quer ser um grande escritor, não deve omitir isso, assim como, no caso da escultura ou pintura, o estudante deve educar-se copiando as grandes obras-primas do passado, antes de prosseguir para a obra original. É somente aprendendo a escrever latim que um homem chega a tratar a dicção como uma arte. O material desta arte é a linguagem, que deve, portanto, ser tratada com o maior cuidado e delicadeza.

O resultado de tal estudo é que um escritor prestará muita atenção ao significado e ao valor das palavras, à sua ordem e conexão, e às suas formas gramaticais. Ele aprenderá a pesá-las com precisão, tornando-se assim um especialista no uso desse precioso instrumento, que não se destina apenas a expressar pensamento, mas também à sua preservação. Além disso, ele aprenderá a sentir respeito pela língua em que escreve, e assim estará a salvo de qualquer tentativa de remodelá-la mediante um tratamento arbitrário e inconsequente. Sem esta formação, a escrita de um homem pode facilmente degenerar em mera tagarelice.

Ser absolutamente desconhecedor da língua latina é como estar em um belo país em um dia nublado. O horizonte é extremamente limitado. Nada pode ser visto claramente exceto aquilo que está bem próximo; alguns passos além, tudo está enterrado na obscuridade. Mas o latinista tem uma visão ampla, abrangendo os tempos modernos, a Idade Média e a Antiguidade; e seu horizonte mental é ainda mais ampliado se ele estudar grego ou mesmo sânscrito.

Se um homem não sabe latim, ele pertence ao vulgar, embora seja um grande virtuoso em relação à máquina elétrica e tenha uma boa base sobre o ácido fluorídrico que está em seu cadinho.

Não há melhor diversão para a mente do que o estudo dos antigos clássicos. Pegue qualquer um deles em suas mãos, seja sequer por apenas meia hora, e você se sentirá renovado, aliviado, purificado, enobrecido, fortalecido; como se saciasse sua sede em uma fonte de água pura. É esse o efeito da linguagem antiga e de sua perfeita expressão, ou é a grandeza das mentes cujos trabalhos permanecem ilesos e não enfraquecidos pelo lapso de mil anos? Talvez as duas coisas juntas. Mas isto eu sei: se a catástrofe que ameaça chegar, e as línguas antigas deixarem de ser ensinadas, surgirá uma nova literatura, uma literatura tão bárbara, rasa e sem valor como nunca foi vista antes.

Notas:

[1] Cf. Thomae Hobbes vita: Carolopoli apud Eleutherium Anglicum, 1681, p. 22.

[2] Tomas de Yriarte (1750-91), poeta espanhol, e guardião de arquivos no Escritório de Guerra de Madri. Suas duas obras mais conhecidas são um poema didático, intitulado La Musica, e as Fábulas aqui citadas, que satirizam as peculiares fraquezas dos homens literários. Foram traduzidas em muitos idiomas; em inglês por Rockliffe (3ª edição, 1866).


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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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