“Verdade e Perspectiva” é um texto extraído da obra El Espectador I.
O prospecto d’O Espectador me rendeu inúmeras cartas cheias de carinho, interesse e curiosidade. Uma delas conclui: “Mas lamento que você se dedique exclusivamente a ser um espectador”.
Preciso urgentemente tranquilizar esse amigo distante, e para isso tenho que indicar um pouco do que estou pensando com o título de O Espectador. A integridade dos pensamentos por trás dessa expressão enganadora só pode ser desvendada no decorrer da vida da própria obra.
Que esse amigo distante que me escreve, e para quem — a ele sejam dadas graças! — não é totalmente indiferente o que eu faço ou não faço, possa reencontrar a paz e o sossego: a vida espanhola nos obriga, quer queiramos quer não, à ação política. O futuro imediato, um tempo de fermento social, nos forjará rumo a ela com uma violência ainda maior. Precisamente por isso, preciso delimitar uma parte de mim mesmo à contemplação. E o que acontece comigo acontece com todos. Durante meio século, na Espanha e fora da Espanha, a política — ou seja, a subordinação da teoria à utilidade — tem invadido completamente o espírito. A expressão extrema disso pode ser encontrada naquela filosofia pragmatista que descobre a essência da verdade, do teórico por excelência, no prático, no útil. Assim, o pensamento se reduz à operação de buscar bons meios para os fins, sem se preocupar com eles. Isto é política: pensamento utilitarista.
O século passado preocupou-se exclusivamente com o fornecimento de instrumentos: foi uma cultura de meios. A guerra surpreendeu os europeus que não tinham noções claras sobre as questões últimas, aquelas que só podem ser esclarecidas por um pensamento puro e inútil. Nada mais natural que, reagindo contra esse exclusivismo, postularmos de agora em diante uma cultura de conseqüências ao invés de uma cultura de meios.
Colocada em seu posto de atividade espiritual secundária, a política ou o pensamento útil é uma força salutar, da qual não podemos prescindir. Se me convidam a escolher entre o comerciante e o boêmio, não fico com nenhum deles. Porém, quando a política é entronizada na consciência e preside toda a nossa vida mental, ela torna-se numa morbidez gravíssima. A razão é clara. Enquanto considerarmos o útil como útil, não há nada que se possa objetar. Mas se tal preocupação com o útil se torna o hábito central de nossa personalidade, quando se trata de buscar o verdadeiro, temos a tendência de confundi-lo com o que é útil. E isso, fazer da utilidade a verdade, é a definição da mentira. O império da política é, portanto, o império da mentira.
De todas as lições que a vida me ensinou, a mais amarga, a mais inquietante, a que mais me irritou foi a de convencer-me de que a espécie menos frequente na Terra é a dos homens verdadeiros. Olhei em volta, com os olhos suplicantes de um náufrago, procurando encontrar homens para quem a verdade — a pura verdade, o que as coisas são em si mesmas — fosse importante, e quase não encontrei nenhum. Tenho procurado por eles perto e longe, entre artistas e entre agricultores, entre os ingênuos e os “sábios”. Como Ibn-Batuta, peguei o bastão do peregrino e fiz meu caminho pelo mundo em busca, como ele, dos santos da Terra, dos homens de alma especular e serena que recebem o puro reflexo do ser das coisas. E encontrei tão poucos, tão poucos, que me afogo!
Sim, eu sinto a angústia da asfixia, porque uma alma precisa respirar as almas afins, e aquele que ama a verdade acima de tudo precisa respirar o ar das almas verdadeiras. Não encontrei nada ao meu redor a não ser políticos, pessoas que não estão interessadas em ver o mundo como ele é, prontas apenas para usar as coisas como lhes convém. A política se faz nas academias e nas escolas, no livro de versos e no livro de história, no gesto rígido do homem moral e no gesto frívolo do libertino, no salão das damas e na cela do monge. É especialmente nos laboratórios que se faz política: o químico e o histologista trazem para suas experiências um interesse secreto e eleitoral. Por fim, um dia, diante de um dos livros mais abstratos e ilustres que surgiram na Europa nos últimos trinta anos, ouvi o autor dizer em sua própria língua: “Eu sou antes de tudo um político.” O homem tinha composto um trabalho sobre o método infinitesimal em oposição ao partido militarista que triunfou em sua pátria.
É necessário, portanto, reafirmar a obrigação para com a verdade, o direito à verdade.
No El libro de los Estados, Don Juan Manuel disse: “Todos os Estados do mundo estão incluídos em três: aquele que chamam de defensores, os oradores, e os agricultores”. Perdão, Infante; assim o mundo estaria incompleto! Eu peço uma margem para o estado que chamam de espectadores. Esse nome tem uma famosa genealogia: Platão a encontrou. Em sua República, ele concede uma missão especial ao que ele chama de φιλοθεαμόνες; — os amigos do olhar. Eles são os especuladores, e à frente deles estão os filósofos, os teóricos — o que significa os contemplativos.
O Espectador tem, portanto, uma primeira intenção: erguer para mim e para aqueles que compartilham minha vontade de uma pura visão, de teoria, um reduto contra a política.
O escritor, a fim de condensar seu esforço, precisa de um público, tal como o licor precisa do copo em que é derramado. É por isso que O Espectador é o apelo comovente a um público de amigos do olhar, de leitores que estão interessados nas coisas para além de suas consequências, sejam elas quais forem, incluindo as morais. Leitores atenciosos, que têm prazer em buscar a fisionomia dos objetos em toda sua delicada e complexa estrutura. Leitores sem pressa, conscientes de que toda opinião justa leva muito tempo para ser expressa. Leitores que, ao ler, repensam por si mesmos os assuntos sobre os quais leram. Leitores que não exigem ser convencidos, mas que, ao mesmo tempo, estão sempre prontos para renascer a qualquer momento a partir de um credo habitual rumo a um credo incomum. Leitores que, como o autor, conservaram um pedaço de alma anti-política. Em resumo: leitores que são incapazes de dar ouvidos a um discurso, de se apaixonar por um comício e de discursar sobre pessoas e coisas em um intervalo para o café.
O Espectador, livro escrito em baixa voz, é dirigido a homens e mulheres de tão raro tipo.
Em Goethe, a teoria do cinza1 é muitas vezes oposta à vida, ao arco-íris pulsante da existência. Não vou agora discutir o verdadeiro significado dessa oposição2. Mas devo advertir contra mal-entendidos. Quando leio que Aristóteles faz a bem-aventurança, isto é, a vida perfeita, consistir no exercício teórico, no pensar, sinto que dentro de mim a irritação transpassa o respeito pelo Estagirita. Parece-me excessivamente casual que Deus, símbolo de todo movimento cósmico, seja um ser ocupado em pensar sobre o pensar3. Essa ânsia de divinizar o ofício e a necessidade que cumprimos na Terra, essa coceira de não se contentar com o que cada um é, se isso que é não me parece o melhor e o superior, me parece um resquício de política que perdura até na dialética superior. Aristóteles quer fazer de Deus um professor de filosofia no superlativo.
Eu estou longe de reivindicar tal coisa. Não pretendo que a atitude teórica seja suprema; que devemos primeiro filosofar, e depois, se for o caso, viver. Pelo contrário, acredito no oposto. A única coisa que eu digo é que de vez em quando a teoria deve abrir sua clara pupila sobre a vida espontânea, e que então, no fazer da teoria, ela deve ser feita com toda a pureza, com toda a tragédia. O mal, disse Platão, vem às repúblicas porque cada um não faz o que lhe compete. Este é o ponto decisivo: τά έαυτοῦ πράττειν. Parece-me admirável, por exemplo, que Don Juan deixe seu coração deslizar sobre múltiplas feminilidades. O que me enoja é que Don Juan teorize o amor. Não: deixe-o fazer o que lhe compete! Uma mulher o espera: ele pode renovar sua perpétua aventura, doce e amarga, na qual a flor é semeada e o espinho nasce. Mas que não tente conquistar a verdade com sua postura de galã: seria inútil e ademais indecente.
Salientar essa diferença entre contemplação e vida — a vida, com sua articulação política de interesses, desejos e conveniências — era necessário. Porque O Espectador possui uma segunda intenção: ele especula, ele olha — mas o que ele quer ver é a vida tal como ela flui diante dele.
A teoria foi corretamente rotulada como cinza, pois tratava apenas de problemas vagos, remotos e esquemáticos. A história da ciência do conhecimento nos mostra que a lógica, oscilando entre o ceticismo e o dogmatismo, sempre teve a tendência de partir desta crença errônea: o ponto de vista do indivíduo é falso. Daí a origem das duas visões opostas: não há outro ponto de vista que não o do indivíduo, portanto, não há verdade — o ceticismo; há verdade, portanto, deve-se considerar um ponto de vista supra-individual — o racionalismo.
O Espectador também tentará se separar de ambas as soluções, pois discorda da opinião da qual elas se originam. O ponto de vista individual me parece ser o único ponto de vista a partir do qual o mundo pode ser visto em sua verdade. Qualquer outra coisa é um artifício.
Leibniz disse4: “E assim como a mesma cidade, vista de vários lados, parece bastante diferente e torna-se como se fosse numerosa em aspectos [perspectivement]; assim mesmo, como resultado do número infinito de substâncias simples, parece que existem tantos universos diferentes, que, no entanto, nada mais são do que aspectos [perspectives] de um único universo, de acordo com o ponto de vista especial de cada Mônada.”5.
A realidade, precisamente por ser realidade e estar fora de nossas mentes individuais, só pode alcançar nossas mentes multiplicando-se em mil caras ou faces.
A partir de Escorial, império rigoroso da pedra e da geometria, onde eu fixei minha alma, eu vejo em primeiro plano o braço ciclópico curvo que se estende em direção a Madrid, a Serra de Guadarrama. O homem de Segóvia, de sua terra vermelha, vê a inclinação oposta. Faria sentido para nós dois disputarmos sobre qual das duas visões é a verdadeira? Ambas o são certamente porque são distintas. Se a serra materna fosse uma ficção ou uma abstração, ou uma alucinação, a pupila do espectador Segoviano e a minha poderiam coincidir. Porém, a realidade só pode ser vista a partir do ponto de vista que cada um de nós ocupa, fatalmente, no universo. O primeiro e o segundo são correlativos, e uma vez que a realidade não pode ser inventada, tampouco o ponto de vista pode ser falsificado.
A verdade, o real, o universo, a vida — como queira chamar —, divide-se em inúmeras facetas, em inúmeras vertentes, cada uma das quais leva a um indivíduo. Se ele foi fiel a seu ponto de vista, se resistiu à eterna sedução de trocar sua retina por uma imaginária, o que ele vê será um aspecto real do mundo.
E vice versa: todo homem tem uma missão na verdade. Onde está minha pupila, não há outra: o que minha pupila vê da realidade, nenhuma outra pupila vê. Somos insubstituíveis, somos necessários. “Somente entre todos os homens o Humano chega a ser vivenciado” — disse Goethe. Dentro da humanidade cada raça, dentro de cada raça cada indivíduo, é um órgão de percepção distinto de todos os outros e é como um tentáculo que chega a partes do universo que para outros não são acessíveis.
A realidade é, portanto, oferecida em perspectivas individuais. O que está em segundo plano para um está em primeiro plano para outro. A paisagem organiza seus tamanhos e distâncias de acordo com nossa retina, e nosso coração distribui os realces. As perspectivas visual e intelectual são complicadas pela perspectiva da valoração. Em vez de disputar, integremos nossas visões em generosa colaboração espiritual, e tal como as margens independentes se unem na espessa veia do rio, componhamos a torrente do real.
O fluxo luminoso da existência se precipita: interceptemo-lo com o prisma sensível de nossa personalidade e, do outro lado, sobre o papel, sobre o livro, será projetado um arco-íris. Somente assim a teoria se liberta de seu tom cinza secundário.
O Espectador olhará o panorama da vida a partir de seu coração, como se fosse a partir de um promontório. Gostaria de fazer uma tentativa de reproduzir sua perspectiva particular sem distorção. O que quer que haja de noção clara irá como tal; mas o que quer que haja de devaneio também irá como devaneio. Porque, por um lado, uma forma do real é o imaginário, e em cada perspectiva completa há um plano no qual as coisas desejadas ganham vida.
Descreverei, portanto, o lado que a realidade me envia. Se não for o mais pitoresco, eu sou o culpado? Situado em El Escorial, é claro, o mundo assume para mim uma semblante carpetovetónico6.
Tal é a intenção que me impulsiona. Como você pode ver, isso exclui formalmente o desejo de impor minhas opiniões a qualquer pessoa. Muito pelo contrário: eu aspiro a contagiar os outros para que cada um deles seja fiel a sua própria perspectiva.
O Espectador será de alguma utilidade para alguém? Não posso ter certeza; mas interpreto como um bom presságio o fato de que seu projeto nasceu em uma explosão de alegria impessoal, de confiança no futuro dos homens. Antes e depois do chamado clarividente das batalhas transitórias, aqueles de nós que chegaram ao meio da jornada da vida haviam percebido o tema da alvorada que o Destino modula em sua trompa de caça. Passaremos por horas de amargura individual e coletiva; mas no fundo de nossa consciência descobrimos como que a garantia de que, em suma, estamos na expectativa de uma época melhor.
Prevemos uma era mais rica, mais completa, mais saudável, mais nobre, mais calma, com mais ciência, mais religião e mais prazer — onde as diferenças pessoais possam se desenvolver melhor e as infinitas possibilidades de emoções se abram como as avenidas para o trânsito.
No entanto, a esperança saudável é tão parte da vontade quanto o é a flecha para o arco. Essa melhor época depende de nós, de nossa geração. Temos o dever de sentir o novo; tenhamos também a coragem de afirmá-lo. Nada requer tanta pureza e energia quanto essa missão. Pois dentro de nós está entranhado o velho com todos os seus privilégios de hábito, autoridade e finalidade. Nossas almas, tal como as virgens prudentes7, precisam ficar atentas com suas lâmpadas acesas e em atitude de iminência. O velho pode ser encontrado em todos os lugares: nos livros, nos hábitos, nas palavras e nos rostos dos outros. Mas o novo, o novo que está vindo à vida, só podemos examiná-lo inclinando nosso ouvido pura e fielmente para os sussurros do nosso coração. Os ouvintes destacados, em nosso posto, se reúnem diante do perigo e da glória. Estamos entregues a nós mesmos: ninguém nos protege ou nos orienta. Se não tivermos confiança em nós mesmos, tudo estará perdido. Se a tivermos demasiado, não encontraremos nada de útil. Confiar, pois, sem confiança. Isso é possível? Não sei se isso é possível, mas vejo que é necessário.
Hegel encontrou uma idéia que reflete muito bem nossa situação, um imperativo que propõe misturar modéstia e orgulho da maneira correta: tenha — diz ele — a coragem de estar errado.
Afinal, é o mesmo princípio que, segundo biólogos recentes, rege os movimentos da infusória na gota d’água: Trial and error — Tentativa e erro.
1916.
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Notas:
[1] Na Doutrina das Cores de Goethe, as cores não são meras “partes da luz” como em Newton, mas se manfestam pela dialética luz/trevas. O cinza, por sua vez, surge quando há meia luz (branco) e meias trevas (preto). Observando através de um prisma, Goethe notou que esta cor, por sua própria natureza intermediária, quando oposta com as trevas (o preto) assume o mesmo papel que a luz no surgimento do espectro de cores; e quando oposta com a luz (o branco) assume o papel de trevas (preto) no surgimendo do espectro inverso de cores. Para saber mais, assista à série disponível em nosso canal do Youtube: A Teoria das Cores de Goethe. N.T.
[2] Em uma edição posterior, aparecerá o ensaio Ação e Contemplação, no qual desenvolvo o tema da relação entre teoria e vida. A nova biologia oferece material abundante para renovar esse problema.
[3] “Se, pois, a Inteligência Divina é o que há de mais excelente, ela pensa a si mesma, e o seu pensamento é pensamento de pensamento.” Aristóteles, Metafísica 1074b. N.T.
[4] Na sua Monadologia, 57. N.T.
[5] Como se deve falar com frequência do perspectivismo nestes volumes, é importante para mim salientar que tal doutrina nada tem em comum com o que Nietzsche pensa sobre o mesmo nome em sua obra póstuma A Vontade de Poder, nem com o que, seguindo-o, Vaihinger argumentou em seu recente livro La Filosofia del Como si. Além disso, a partir do parágrafo transcrito de Leibniz, desconsideremos todas as referências feitas nele a um idealismo monadológico.
[6] Termo refere-se a carpetanos e vetones, povos pré-romanos que habitavam setores da península ibérica, Isto é, “autênticos espanhóis”. N.T.
[7] Referência bíblica à parábola das dez virgens, Mateus, 25. N.T.