Verdades Primárias (Primae Veritates) — Gottfried Wilhelm von Leibniz

Verdades Primárias (Primae Veritates) é um opúsculo do grande filósofo alemão, G.W. Leibniz, publicado postumamente em 1903 por Louis Couturat.

Obs: Esta tradução é parte de um estudo acerca da Identidades dos Indiscerníveis e da filosofia de Leibniz, que publicarei com as devidas notas e comentários no futuro.


As verdades primárias são aquelas que predicam alguma coisa de si mesmas ou que negam o seu oposto. Por exemplo, 

  • “A é A”, 
  • “A não é A”, ou 
  • “se é verdade que A é B, então é falso que A não é B ou que A não é B”. E também 
  • “tudo é como é”, 
  • “tudo é semelhante ou igual a si mesmo”, 
  • “nada é maior ou menor que si próprio”, 

e outras coisas desse tipo. Embora elas mesmas possam ter seus graus de prioridade, no entanto, todas elas podem ser incluídas sob o nome de “identidades“.

Ademais, todas as verdades restantes são reduzidas a verdades primárias com a ajuda das definições, ou seja, através da análise dos conceitos; é nisso que consiste uma prova a priori, uma prova que independe da experiência. Como exemplo, citarei esta proposição dentre os axiomas aceitos igualmente pelos matemáticos e por todos os demais: “o todo é maior que sua parte”, ou “a parte é menor que o todo”, algo facilmente demonstrado a partir da definição de “menor” ou “maior”, com a adição do axioma primitivo — ou seja, do axioma da identidade. Pois o menor é aquele que é igual a uma parte do outro (do maior), sendo essa definição fácil de se entender e de acordo com a prática comum da raça humana, uma vez que as pessoas comparam as coisas umas com as outras e, retirando do maior algo igual ao menor, encontram algo que permanece. Por isso surge um argumento deste tipo: a parte é igual a uma parte do todo (é, naturalmente, igual a si mesma através do axioma da identidade, segundo o qual cada coisa é igual a si mesma), e o que é igual a uma parte de um todo é menor que o todo (segundo a definição de “menor”). Logo, a parte é menor do que o todo.

O predicado, ou o consequente, é sempre dado pelo sujeito, ou pelo antecedente, e é precisamente nisso que a natureza da verdade, ou seja, a conexão entre os termos do enunciado, consiste universalmente, tal como notou Aristóteles. A conexão e inclusão do predicado no sujeito é explícita nas identidades, mas em todas as outras proposições ela está implícita e deve ser mostrada através da análise dos conceitos; é nisso que baseia-se a demonstração a priori.

Tal é verdadeiro, ademais, para toda verdade afirmativa, quer seja universal ou particular, necessária ou contingente, e tanto em uma denominação intrínseca quanto extrínseca. E aqui se esconde um segredo maravilhoso, um segredo que contém a natureza da contingência, ou seja, a diferença essencial entre verdades necessárias e contingentes, um segredo que elimina a dificuldade em relação à necessidade fatal até mesmo daquelas coisas que são livres.

Muitas coisas de grande importância decorrem dessas considerações, considerações que não foram suficientemente tratadas devido à sua obviedade. Porque o axioma assumido — de que nada ocorre sem razão, ou de que não há efeito sem causa — decorre diretamente dessas considerações; caso contrário, haveria uma verdade que não poderia ser provada a priori, ou seja, uma verdade que não poderia ser resolvida em identidades — o que é contrário à natureza da verdade, a qual é sempre uma identidade explícita ou implícita. Segue-se também que, quando, dentre as coisas dadas, tudo de um lado [de seu equaçionamento] é igual ao que há no outro, então ,tudo também será o mesmo nas incógnitas, ou seja, nos consequentes. Isso porque não pode ser dada nenhuma razão para que haja qualquer diferença, uma razão que certamente deve derivar daquilo que é dado. E um corolário disso, ou melhor, um exemplo, é o postulado de Arquimedes apresentado no início do livro sobre estática, de que, dado pesos iguais em ambos os lados de um equilíbrio dotado de braços iguais, tudo está em equilíbrio. E, portanto, há até mesmo uma razão para as coisas eternas. Se imaginarmos que o mundo existe desde a eternidade, e se imaginarmos que nele existem apenas pequenas bolas, então teremos que explicar a razão de existem pequenas bolas em vez de cubos.

A partir de tais considerações, conclui-se também que, por natureza, não pode haver duas coisas individuais que difiram apenas em número. Pois certamente deve ser possível explicar a razão de elas serem diferentes, e essa explicação deve derivar de alguma diferença que elas contêm. E, assim, o que São Tomás reconheceu a respeito das inteligências separadas, as quais, disse ele, nunca diferem apenas em número, também deve ser dito de outras coisas, pois nunca encontramos dois ovos ou duas folhas ou duas lêminas de grama em um jardim que são perfeitamente iguais. E assim, a semelhança perfeita é encontrada apenas em noções incompletas e abstratas, onde as coisas são consideradas somente em um certo aspecto, mas não em todos os sentidos, como, por exemplo, quando consideramos somente as formas, e negligenciamos a matéria que tem a forma. E, portanto, é justificável considerar dois triângulos semelhantes em geometria, mesmo que dois triângulos de matéria perfeitamente semelhantes não sejam encontrados em lugar algum. E embora o ouro e outros metais, e também os sais e muitos líquidos possam ser considerados homogêneos, isso só pode ser admitido com relação aos sentidos, e não é verdade que assim sejam, rigorosamente.

Segue-se também que não existem denominações puramente extrínsecas,  [que são as] denominações que não têm absolutamente nenhum fundamento na própria coisa denominada. Pois é necessário que a noção do sujeito denominado contenha a noção do predicado. E consequentemente, sempre que a denominação de uma coisa é alterada, deve haver uma variação na própria coisa.

A noção completa ou perfeita de uma substância individual contém todos os seus predicados, passado, presente e futuro. Pois certamente é verdade agora que um predicado futuro será, e assim ele está contido na noção de uma coisa. E, portanto, tudo o que acontecerá com Pedro ou Judas, tanto o que é necessário quanto o que é livre, está contido na perfeita noção individual de Pedro ou Judas — considerada no reino das possibilidades ao abstrairmos do decreto divino para criá-lo — e é visto ali por Deus. E por isso é óbvio que Deus escolheu entre um número infinito de possíveis indivíduos aqueles que ele mais considerava estarem de acordo com os fins supremos e ocultos de sua sabedoria. Falando adequadamente, Ele não determinou que Pedro pecasse ou que Judas fosse condenado, mas apenas que Pedro (que com certeza pecaria, embora não necessariamente, mas livremente)  e Judas (que sofreria a condenação) alcançariam a existência em vez de outros indivíduos possíveis; isto é, ele decretou que a noção possível se tornasse atual. E, embora a salvação futura de Pedro também esteja contida em sua eterna noção possível, ela não está, entretanto, sem a concomitância da graça, pois, na mesma noção perfeita daquele possível Pedro, até mesmo a ajuda da graça divina a ser dada a ele é encontrada sob a noção da possibilidade.

Cada substância individual contém em sua noção perfeita o universo inteiro e tudo o que nele existe, passado, presente e futuro. Pois não há nada sobre o qual não se possa impor alguma denominação verdadeira a partir de outra coisa, pelo menos uma denominação de comparação e relação. Além disso, não existe uma denominação puramente extrínseca. Demonstrei a mesma coisa de muitas outras maneiras, todas em harmonia umas com as outras.

De fato, todas as substâncias criadas individualmente são expressões diferentes do mesmo universo e expressões diferentes da mesma causa universal, a saber, Deus. Mas as expressões variam em perfeição, tal como o fazem diferentes representações ou desenhos de uma mesma cidade a partir de diferentes pontos de vista.

Cada substância criada individualmente exerce ação física e paixão sobre todas as outras. A partir de uma mudança feita em uma, algumas mudanças correspondentes se seguem em todas as outras, uma vez que a sua denominação é alterada. E isso está de acordo com nossa experiência da natureza. Pois em um recipiente cheio de um líquido (e todo o universo é exatamente um recipiente assim) o movimento feito no meio é propagado até as bordas, embora se torne cada vez mais insensível quanto mais ele recue em relação à sua origem.

Pode-se dizer, falando a rigor, que nenhuma substância criada exerce uma ação metafísica ou influência (influxo, influxus) sobre qualquer outra coisa. Porque, sem mencionar o fato de que não se pode explicar como algo poderia passar de uma coisa para a substância de uma outra, já demostramos que a partir da noção de cada coisa se seguem todos os seus estados futuros. O que chamamos de causas são apenas requisitos simultâneos, em rigor metafísico. Isso também é ilustrado por nossa experiência da natureza. Pois os corpos realmente se recuperam [da ação] dos outros através da força de sua própria elasticidade, e não através da força de outras coisas, mesmo que outro corpo seja necessário para que a elasticidade (que surge de algo intrínseco ao próprio corpo) seja capaz de agir.

Também, assumindo a distinção entre alma e corpo, a partir daí podemos explicar sua união sem a hipótese comum de um influxo, a qual é ininteligível, e sem a hipótese de uma causa ocasional, que apela para um Deus ex machina. Porque Deus desde o princípio constituiu tanto a alma quanto o corpo com tal sabedoria e tal obra que tudo o que acontece em um corresponde perfeitamente ao que acontece no outro, tal como se algo tivesse passado de um para o outro. Eu chamo isto de hipótese de concomitância. Isto é verdade para todas as substâncias em todo o universo, mas não é perceptível em tudo da mesma maneira que é perceptível na alma e no corpo.

Não há vácuo. Pois[, se houvesse,] as diferentes partes do espaço vazio seriam então perfeitamente similares e mutuamente congruentes e não poderiam ser distinguidas uma da outra. E assim elas difeririam apenas em número, o que é um absurdo. Prova-se, da mesma maneira que para o espaço, que o tempo não é uma coisa. 

Não existem átomos, e não existe de fato um corpo que não seja atualmente subdivisível. Portanto, no exato momento em que [um corpo] sofre uma ação por parte de todos os outros no universo, ele também recebe algum efeito, que deve produzir uma variação no corpo; de fato, ele possui preservadas todas as impressões passadas e contém as impressões futuras de antemão. Se se disser que esse efeito está contido nos movimentos comunicados ao átomo, e que se distribui o efeito pelo todo [doátomo] sem dividi-lo, pode-se replicar que não só o efeito deve resultar no átomo que contém todas as impressões do universo, mas também que, inversamente, o estado de todo o universo deve ser inferido a partir do átomo, ou seja, a causa a partir do efeito; Porém, por outro lado, não é possível inferir regressivamente a partir da figura e do movimento do átomo apenas pelas impressões que ele recebeu, porque o mesmo movimento pode resultar de impressões diferentes; isso sem dizer nada sobre a impossibilidade de dar qualquer razão pela qual corpos de um determinado tamanho não possam mais ser subdivididos.

Disso se conclui que cada partícula do universo contém um mundo de uma infinidade de criaturas., Entretanto, o continuum não é divisível em pontos, nem é divisível de todas as maneiras possíveis; não o é em pontos, já que os pontos não são partes, mas fronteiras; e não o é de todas as maneiras possíveis, uma vez que o mesmo continuum não contém todas as criaturas,  mas há apenas uma certa progressão delas ad infinitum. Por exemplo, o fato de se traçar uma linha reta e obter todas as partes por dicotomia é fazer aparecer outras divisões distintas daquelas feitas por trissecção 

Não há uma figura atual definitiva nas coisas: pois nenhuma pode responder à infinidade de impressões. É por isso que não há círculo, elipse ou qualquer outra linha que possamos definir, exceto pelo entendimento; tal como não há linhas antes de serem desenhadas, nem partes antes de elas serem separadas. 

A extensão, o movimento e os próprios corpos, na medida em que são reduzidos apenas a essas noções, não são substâncias, mas verdadeiros fenômenos, como o arco-íris e o parêlia. Pois não há figura a parte rei, e os corpos, se considerarmos apenas a mesma extensão, não são uma substância, mas várias. 

A substância dos corpos requer algo sem extensão, caso contrário não haveria princípio da realidade dos fenômenos ou de sua verdadeira unidade: eles seriam sempre considerados como vários corpos e nunca como um só, e, por conseguinte, na realidade não seriam sequer considerados como vários. Cordemoy provou os átomos por um argumento semelhante. Mas como os átomos acabaram por ser descartados, permanece algo privado de extensão, análogo à alma, e que antes era chamado de forma ou espécie.

A substância corpórea não pode vir à existência a não ser através da criação, ou sair da existência a não ser através da aniquilação: porque uma vez que uma substância corpórea exista, ela durará para sempre, já que não há razão para que assim não o faça. Qualquer corpo pode se separar — suas partes podem vir a se dispersar —mas isso não tem nada em comum com sua saída da existência. Portanto, as coisas animadas não entram ou saem da existência, mas são apenas transformadas.

G. W. Leibniz


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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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