O Governo e os Direitos do Homem — Gilbert Keith Chesterton

“O Governo e os Direitos do Homem” foi escrito por Chesterton para o Illustrated London News em 30 de julho de 1921.

Nunca consegui entender por que um homem que não é livre para abrir a boca para beber deveria ser livre para abri-la para falar. Falar causa muito mais danos diretos a outras pessoas. A aldeia sofre menos diretamente com o bêbado da aldeia do que com o fofoquiro da aldeia, ou com o demagogo da aldeia, ou com o vilão que seduz a donzela da aldeia. Esses e outros vinte tipos de males são causados simplesmente pela fala; é certo que uma grande quantidade de males seria evitada se todos nós usássemos mordaças. E a resposta não é negar que a calúnia é um veneno social, ou que a sedução é um assassinato espiritual. A resposta é que, a menos que um homem seja autorizado a falar, ele bem poderia ser considerado apenas um chimpanzé capaz de tagarelar. Em outras palavras, se um homem perde a responsabilidade por essas funções rudimentares e formas de liberdade, ele perde não apenas sua cidadania, mas sua humanidade.

Contudo, há outras liberdades pessoais que ainda nos são permitidas, mais elaboradas e civilizadas do que a simples fala humana, que ainda se parece muito com a tagarelice dos chimpanzés. Por algum descuido oficial, que sou incapaz de explicar, ainda temos permissão para escrever cartas particulares se as colocarmos em caixas de correio públicas. O Postmaster-General não escreve todas as nossas cartas para nós; até mesmo o carteiro local ainda não tem esses poderes específicos. Não consigo entender como os reformadores não notaram a necessidade de unir, reorganizar, coordenar, codificar e conectar todo esse sistema complexo, caótico e perdulário, ou essa falta de sistema. Deve haver uma grande quantidade de coincidências, com cerca de seis jovens senhores escrevendo cartas para uma jovem senhora. Deve haver um padrão educacional terrivelmente baixo, com todos os tipos de pessoas pobres autorizadas a colocar em uma carta particular qualquer ortografia ou gramática que desejarem. Deve haver uma série de maus hábitos psicológicos sendo formados por pessoas tolas que escrevem para seus filhos nas colônias ou para suas mães nos asilos. E toda essa anarquia e deterioração poderiam ser interrompidas pelo simples processo de padronização de toda a correspondência. Sei que se eu usar a palavra “padronização”, o Sr. H.G. Wells a receberá de bom grado e começará a pensar seriamente no assunto; [de fato, abre-se diante de mim uma perspectiva de vasta reforma social].

A princípio, o primeiro e mais óbvio método seria o governo enviar formulários oficiais para nossa correspondência amigável, a serem preenchidos como os formulários sobre seguro ou imposto de renda. Aqui e ali, até mesmo na comunicação mais exemplar, haveria palavras deixadas em branco, que o próprio indivíduo poderia preencher. Tenho uma ideia meio formada para uma carta de amor oficial, impressa na forma de “Eu __________você”, para que o cidadão possa inserir “amo”, “gosto” ou “adoro”, com vistas ao novo casamento civil; ou “renuncio”, “repudio” ou “execro”, com vistas ao novo e mais civil divórcio. Porém, mesmo esses espaços em branco para a variação verbal devem ser admitidos com cautela, pois o objetivo de toda a reforma é elevar o nível geral de toda a correspondência a uma altura ainda inatingível pela maioria das pessoas.

Pode-se dizer que defendo essa reforma com a paixão do interesse próprio, pois ela me permitiria negligenciar minha correspondência na teoria, assim como já a negligencio na prática. Raramente escrevo para alguém, e nunca escrevo para as pessoas de quem mais gosto. Não me preocupo com elas, porque elas entendem. Mas há cartas não respondidas de estranhos, pelas quais sinto remorso. Algum dia farei uma lista das pessoas que eu gostaria de ter respondido, ou as anunciarei com os detalhes de que me lembro. Se eu tivesse algum dinheiro, gostaria de deixar milhões para eles quando eu morrer. Pode-se dizer que eu me daria bem, se o governo enviasse a todas essas pessoas um cartão oficial em meu nome [em vez disso].

Mas não estou realmente convertido ao meu próprio projeto, mesmo com meu próprio fracasso. Não estou realmente convencido da necessidade de uma correspondência padronizada, seja pela existência de cartas criminosas ou por minha própria negligência criminosa em relação às cartas. Se ou quando, em algum momento estranho e em alguma data distante, eu realmente responder a uma carta, ainda assim preferiria respondê-la eu mesmo. Mesmo que eu não tivesse nada a escrever, exceto um pedido de desculpas por não ter escrito, preferiria que minha autodepreciação tivesse o caráter de autodeterminação.

É um fato extraordinário que toda a conversa moderna sobre autodeterminação seja aplicada a tudo, exceto ao eu. Ela é aplicada ao Estado, mas não é aplicada àquilo a que sua fórmula verbal professa se aplicar. Eu, por exemplo, acredito na doutrina mística da democracia, que pressupõe que a Inglaterra tem uma alma ou que a França tem um eu. Todavia, certamente é um fato muito mais óbvio e comum que Jones tenha um eu e Robinson tenha um eu. E a questão que discuti aqui na parábola dos Correios não é se há abusos na bebida ou na dieta, como há calúnia e chantagem em qualquer caixa de correio ou bolsa de carteiro. É a questão de saber se, nos dias de hoje, as reivindicações do governo devem preservar quaisquer direitos do homem.


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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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