O Direito de Ignorar o Estado — Herbert Spencer

O Direito de Ignorar o Estado é um ensaio extraído do capítulo 19 da primeira grande obra de filosofia política de Herbert SpencerSocial Statics: or, The Conditions essential to Happiness specified, and the First of them Developed (1851) — na qual seu primeiro princípio é o da igual liberdade: “que todo homem possa reivindicar a mais plena liberdade para exercer suas faculdades, de forma compatível com a posse da mesma liberdade por todos os outros homens”.


§ 1. Como corolário da proposição de que todas as instituições devem estar subordinadas à lei da igual liberdade, não podemos deixar de admitir o direito do cidadão de adotar uma condição de ilegalidade voluntária. Se todo homem tem liberdade para fazer tudo o que quiser, desde que não infrinja a igual liberdade de qualquer outro homem, então ele é livre para abandonar a conexão com o Estado, renunciar à sua proteção e recusar-se a pagar pelo seu sustento. É evidente que, ao agir dessa maneira, ele não infringe de modo algum a liberdade dos outros, pois sua posição é passiva e, enquanto passivo, ele não pode se tornar um agressor. É igualmente evidente que ele não pode ser obrigado a continuar em uma corporação política sem que haja uma violação da lei moral, visto que a cidadania envolve o pagamento de impostos; e a retirada da propriedade de um homem contra sua vontade é uma violação de seus direitos. Sendo o governo simplesmente um agente empregado em comum por um número de indivíduos para garantir a eles certas vantagens, a própria natureza da conexão implica que cabe a cada um dizer se empregará tal agente ou não. Se qualquer um deles decidir ignorar essa confederação de segurança mútua, nada poderá ser dito, exceto que ele perde todo o direito a seus bons ofícios e se expõe ao perigo de maus-tratos, algo que ele tem toda a liberdade de fazer se o quiser. Ele não pode ser coagido a participar de uma combinação política sem violar a lei da igual liberdade; ele pode se retirar dela sem cometer tal violação; e ele tem, portanto, o direito de se retirar. 

§ 2. “Nenhuma lei humana é válida se for contrária à lei da natureza: e aquelas que são válidas derivam toda a sua força e toda a sua autoridade, mediata ou imediatamente, dessa original.” Assim escreve Blackstone1, a quem deve ser dada toda a honra por ter superado as idéias de seu tempo — e, de fato, podemos dizer que também as de nosso tempo. Esse é um bom antídoto para as superstições políticas que prevalecem de maneira tão ampla. É um bom freio para o sentimento de adoração ao poder que ainda nos engana, ampliando as prerrogativas dos governos constitucionais, como outrora aconteceu com as dos monarcas. Que os homens aprendam que uma legislatura não é “nosso Deus na Terra”, embora, pela autoridade que atribuem a ela e pelas coisas que esperam dela, pareçam pensar que sim. Que aprendam, em vez disso, que ela é uma instituição que serve a um propósito puramente temporário, cujo poder, quando não é roubado, é, na melhor das hipóteses, emprestado.

Aliás, não vimos que o governo é essencialmente imoral? Não é ele a prole do mal, que carrega consigo todas as marcas de sua ascendência? Ele não existe porque o crime existe? Não é forte, ou, como dizemos, despótico, quando o crime é grande? Não há mais liberdade — ou seja, menos governo — quando o crime diminui? E o governo não deve cessar quando o crime cessa, pela própria falta de objetos para desempenhar sua função? O poder magisterial não só existe por causa do mal, mas também existe pelo mal. A violência é empregada para mantê-lo e toda violência envolve criminalidade. Soldados, policiais e carcereiros; espadas, cassetetes e grilhões — são instrumentos para infligir dor; e toda inflição de dor é, em abstrato, errada. O Estado emprega armas malignas para subjugar o mal, e está igualmente contaminado pelos objetos com os quais lida e pelos meios pelos quais trabalha. A moralidade não pode reconhecê-lo, pois a moralidade, sendo simplesmente uma declaração da lei perfeita, não pode dar apoio a nada que resulte de violações dessa lei e que viva em função delas. Portanto, a autoridade legislativa nunca pode ser ética — deve ser sempre meramente convencional.

Logo, há uma certa inconsistência na tentativa de determinar a posição, a estrutura e a conduta corretas de um governo por meio do apelo aos primeiros princípios da retidão. Pois, como acabamos de apontar, os atos de uma instituição que é, tanto em sua natureza quanto em sua origem, imperfeita, não podem ser ajustados à lei perfeita. Tudo o que podemos fazer é determinar, em primeiro lugar, em que atitude uma legislatura deve se posicionar em relação à comunidade para evitar ser, por sua mera existência, um erro incorporado; em segundo lugar, de que maneira ela deve ser constituída de modo a exibir a menor incongruência com a lei moral; e, em terceiro lugar, a que esfera suas ações devem ser limitadas para evitar que multiplique as violações da equidade que foi criada para impedir.

A primeira condição a ser cumprida antes que uma legislatura possa ser estabelecida sem violar a lei da igual liberdade é o reconhecimento do direito que está sendo discutido agora — o direito de ignorar o Estado.

§ 3. Os defensores do despotismo puro podem acreditar que o controle do Estado é ilimitado e incondicional. Aqueles que afirmam que os homens são feitos para os governos, e não os governos para os homens, podem sustentar consistentemente que ninguém pode se retirar do âmbito da organização política. Mas aqueles que defendem que o povo é a única fonte legítima de poder — que a autoridade legislativa não é original, mas delegada — não podem negar o direito de ignorar o Estado sem se envolverem em um absurdo.

Porque, se a autoridade legislativa é delegada, segue-se que aqueles de quem ela procede são os senhores daqueles a quem ela é conferida; segue-se ainda que, como senhores, eles conferem a dita autoridade voluntariamente: e isso implica que eles podem dá-la ou retirá-la como quiserem. Chamar de delegado aquilo que é arrancado dos homens, quer eles queiram ou não, é um absurdo. No entanto, o que é verdadeiro para todos coletivamente é igualmente verdadeiro para cada um separadamente. Da mesma maneira que um governo só pode agir corretamente em nome do povo quando autorizado por ele, também só pode agir corretamente em nome do indivíduo quando autorizado por ele. Se A, B e C discutem se devem empregar um agente para realizar um determinado serviço para eles e se, embora A e B concordem em fazê-lo, C discorda, C não pode ser considerado parte do acordo a despeito de si próprio. E isso deve ser igualmente verdadeiro tanto para trinta quanto para três: e, se para trinta, por que não para trezentos, ou três mil, ou três milhões?

§ 4. Das superstições políticas mencionadas há pouco, nenhuma é tão universalmente difundida quanto a noção de que as maiorias são onipotentes. Sob a impressão de que a preservação da ordem sempre exigirá que o poder seja exercido por algum partido, o senso moral de nosso tempo sente que esse poder não pode ser conferido corretamente a ninguém, exceto à maior parte da sociedade. Esse senso interpreta literalmente o ditado que diz que “a voz do povo é a voz de Deus” e, transferindo para um o caráter sagrado atribuído ao outro, conclui que não se pode apelar contra a vontade do povo, ou seja, da maioria. No entanto, essa crença é totalmente errônea.

Suponhamos, para fins de argumentação, que, atingida por algum pânico malthusiano, uma legislatura que representasse devidamente a opinião pública decretasse que todas as crianças nascidas nos próximos dez anos deveriam ser afogadas. Alguém acha que tal decreto seria justificável? Em caso negativo, é evidente que há um limite para o poder da maioria. Suponhamos, novamente, que de duas raças que vivem juntas — celtas e saxões, por exemplo — a mais numerosa decidiu tornar as outras suas escravas. Em tal caso, a autoridade do maior número seria válida? Em caso negativo, há algo a que sua autoridade deve estar subordinada. Suponhamos, mais uma vez, que todos os homens com renda inferior a 50 libras por ano resolvessem reduzir toda renda acima desse valor para seu próprio padrão e destinar o excesso para fins públicos. Essa decisão poderia ser justificada? Em caso negativo, é preciso confessar pela terceira vez que existe uma lei à qual a voz popular deve se submeter. Qual é, então, essa lei, senão a lei da equidade pura — a lei da igual liberdade? Essas restrições, que todos colocariam sobre a vontade da maioria, são exatamente as restrições estabelecidas por essa lei. Negamos o direito de uma maioria de assassinar, escravizar ou roubar, simplesmente porque assassinato, escravidão e roubo são violações dessa lei — violações grosseiras demais para serem ignoradas. Entretanto, se as grandes violações dessa lei são erradas, as menores também o são. Se a vontade de muitos não pode substituir o primeiro princípio da moralidade nesses casos, tampouco o pode em qualquer outro. Portanto, por mais insignificante que seja a minoria e por mais insignificante que seja a proposta de violação de seus direitos, tal violação não é permitida.

Quando tivermos tornado nossa constituição puramente democrática, pensa o reformador sincero, teremos colocado o governo em harmonia com a justiça absoluta. Tal crença, embora talvez necessária para a época, é muito errônea. Por nenhum processo a coerção pode se tornar justa. A forma mais livre de governo é simplesmente a forma menos questionável. O governo de muitos por poucos é chamado de tirania: o governo de poucos por muitos também é tirania, só que de um tipo menos intenso. “Vocês farão o que nós quisermos, e não o que vocês quiserem”, eis a declaração em ambos os casos; e, se um grupo de cem decidir contra noventa e nove, em vez de noventa e nove contra cem, isso será apenas uma fração menos imoral. De dois desses partidos, aquele que cumprir essa declaração necessariamente quebrará a lei da igual liberdade: a única diferença é que, em um deles, ela é quebrada na pessoa dos noventa e nove, enquanto no outro ela é quebrada na pessoa dos cem. E o mérito da forma democrática de governo consiste apenas nisto, no fato de que ela atenta contra o menor número.

A própria existência de maiorias e minorias é indicativa de um estado imoral. Descobrimos que o homem cujo caráter se harmoniza com a lei moral é aquele que pode obter felicidade completa sem diminuir a felicidade de seus semelhantes. Porém, a promulgação de acordos públicos por votação implica uma sociedade composta por homens constituídos de outra maneira — implica que os desejos de alguns não podem ser satisfeitos sem sacrificar os desejos de outros —, implica que, na busca de sua felicidade, a maioria inflige certa quantidade de infelicidade à minoria — implica, portanto, imoralidade orgânica. Assim, de outro ponto de vista, percebemos novamente que, mesmo em sua forma mais justa, é impossível para o governo se dissociar do mal; e, ademais, que, a menos que o direito de ignorar o Estado seja reconhecido, seus atos devem ser essencialmente criminosos.

§ 5. Que um homem é livre para abandonar os benefícios e se livrar dos fardos da cidadania é algo que pode, de fato, ser inferido a partir das admissões das autoridades existentes e da opinião corrente. Por mais despreparados que provavelmente estejam para uma doutrina tão extrema como a aqui defendida, os radicais de nossos dias ainda professam inconscientemente sua crença em uma máxima que obviamente engloba essa doutrina. Não os ouvimos continuamente citar a afirmação de Blackstone de que “nenhum súdito da Inglaterra pode ser constrangido a pagar quaisquer auxílios ou impostos, mesmo para a defesa do reino ou para o sustento do governo, a não ser aqueles que são impostos por seu próprio consentimento ou por seu representante no Parlamento”? E o que isso significa? Significa, dizem eles, que todo homem deve ter um voto. É verdade, mas significa muito mais. Se há algum sentido nas palavras, trata-se de uma enunciação distinta do próprio direito que agora se defende. Ao afirmar que um homem não pode ser tributado a menos que tenha dado seu consentimento, direta ou indiretamente, afirma-se que ele pode se recusar a ser tributado; e recusar-se a ser tributado é cortar toda e qualquer conexão com o Estado. Talvez se diga que esse consentimento não é específico, mas geral, e que se entende que o cidadão concordou com tudo o que seu representante pode fazer quando votou nele. Mas suponha que ele não tenha votado nele e, ao contrário, tenha feito tudo o que estava ao seu alcance para eleger alguém que tivesse opiniões opostas — o que aconteceria então? A resposta provavelmente será que, ao participar de tal eleição, concordou tacitamente em acatar a decisão da maioria. E se ele não votasse de modo algum? Ora, então não pode reclamar com justiça de nenhum imposto, já que não fez nenhum protesto contra sua imposição. Portanto, curiosamente, parece que ele deu seu consentimento independentemente da maneira como agiu — se disse “Sim”, se disse “Não” ou se permaneceu neutro! Essa é uma doutrina um tanto incômoda. Aqui está um cidadão desafortunado que é perguntado se pagará em dinheiro por uma determinada vantagem oferecida; e, quer ele use o único meio de expressar sua recusa ou não o use, somos informados de que ele praticamente concorda, se apenas o número de outros que concordam for maior do que o número daqueles que discordam. E assim somos apresentados ao novo princípio de que o consentimento de A em uma coisa não é determinado pelo que A diz, mas pelo que B pode vir a dizer!

Cabe àqueles que citam Blackstone escolher entre esse absurdo e a doutrina acima exposta. Ou sua máxima implica o direito de ignorar o Estado, ou é pura tolice.

§ 6. Há uma estranha heterogeneidade em nossas crenças políticas. Os sistemas que já tiveram seu tempo e estão começando aqui e ali a deixar a luz do dia passar, são remendados com noções modernas totalmente diferentes em qualidade e cor; e os homens exibem esses sistemas com seriedade, vestem-nos e andam com eles, totalmente inconscientes de sua grotesca aparência. Esse nosso estado de transição, que participa igualmente do passado e do futuro, gera teorias híbridas que exibem a mais estranha união de despotismo passado e liberdade futura. Aqui estão os tipos da antiga organização curiosamente disfarçados pelos germes da nova — peculiaridades que mostram a adaptação a um estado anterior modificado por rudimentos que profetizam algo que está por vir — formando uma mistura tão caótica de relações que não há como dizer a que classe esses nascimentos da era devem ser encaminhados.

Como as idéias devem necessariamente ter a marca da época, é inútil lamentar o contentamento com que essas crenças incongruentes são mantidas. Por outro lado, seria lamentável que os homens não seguissem até o fim as linhas de raciocínio que levaram a essas modificações parciais. No presente caso, por exemplo, a consistência os forçaria a admitir que, em outros pontos além do que acabamos de notar, eles têm opiniões e usam argumentos nos quais o direito de ignorar o Estado está envolvido.

Qual é o significado de Dissidência? Houve um tempo em que a fé de um homem e seu modo de adoração eram tão determináveis por lei quanto seus atos seculares; e, de acordo com as disposições existentes em nosso livro de estatutos, ainda o são. Graças ao crescimento de um espírito protestante, entretanto, ignoramos o Estado nessa questão — totalmente na teoria e parcialmente na prática. Mas como fizemos isso? Assumindo uma atitude que, se mantida de forma consistente, implica o direito de ignorar totalmente o Estado. Observe as posições dos dois partidos. “Este é o seu credo”, diz o legislador; “você deve acreditar e professar abertamente o que está aqui estabelecido para você”. “Não farei nada disso”, responde o não-conformista; “prefiro ir para a prisão”. “Suas ordenanças religiosas”, prossegue o legislador, “devem ser as que prescrevemos. Você deve frequentar as igrejas que nós financiamos e adotar as cerimônias usadas nelas.” “Nada me induzirá a fazer isso”, foi a resposta; “Nego totalmente seu poder de me ditar tais assuntos e pretendo resistir até o fim.” “Por fim”, acrescenta o legislador, “exigiremos que o senhor pague as somas de dinheiro para o sustento dessas instituições religiosas que acharmos conveniente pedir”. “Nem um centavo vocês receberão de mim”, exclama nosso robusto Independente; “mesmo que eu acreditasse nas doutrinas de sua igreja (o que não acredito), eu ainda me rebelaria contra sua interferência; e, se vocês tomarem minha propriedade, será à força e sob protesto”.

O que significa esse procedimento quando considerado em abstrato? Trata-se de uma afirmação pelo indivíduo do direito de exercer uma de suas faculdades — o sentimento religioso — sem permissão ou impedimento, e sem nenhum limite, exceto aquele estabelecido pelas iguais reivindicações dos outros. E o que significa ignorar o Estado? Simplesmente uma afirmação do direito de exercer todas as faculdades de forma semelhante. Um é apenas uma expansão do outro — está no mesmo patamar do outro — deve se sustentar ou cair com o outro. De fato, os homens falam de liberdade civil e religiosa como coisas diferentes, mas a distinção é bastante arbitrária. Elas são partes do mesmo todo e não podem ser filosoficamente separadas.

“Sim, elas podem”, interpõe um opositor; “a afirmação de uma é imperativa como sendo um dever religioso. A liberdade de adorar a Deus da maneira que lhe parece correta é uma liberdade sem a qual um homem não pode cumprir o que ele acredita serem comandos divinos e, portanto, a consciência exige que ele a mantenha.” É verdade; mas o que dizer se o mesmo pode ser afirmado sobre todas as outras liberdades? O que dizer se a manutenção dessas também for uma questão de consciência? Não vimos que a felicidade humana é uma vontade divina — que somente pelo exercício de nossas faculdades essa felicidade pode ser obtida — e que é impossível exercê-la sem liberdade? E, se essa liberdade para o exercício das faculdades é uma condição sem a qual a vontade divina não pode ser cumprida, a preservação dela é, segundo a própria demonstração de nosso opositor, um dever. Ou, em outras palavras, parece não apenas que a manutenção da liberdade de ação pode ser um ponto de consciência, mas que deve ser um. E, assim, fica claramente demonstrado que as reivindicações para ignorar o Estado em questões religiosas e seculares são, em essência, idênticas.

A outra razão comumente atribuída ao inconformismo admite tratamento semelhante. Além de resistir ao ditado do Estado em abstrato, o dissidente resiste a ele por desaprovação das doutrinas ensinadas. Nenhuma injunção legislativa o fará adotar o que ele considera uma crença errônea; e, tendo em mente seu dever para com seus semelhantes, ele se recusa a ajudar, por meio de seu dinheiro, a disseminar essa crença errônea. Essa posição é perfeitamente inteligível. Mas é uma posição que ou compromete também seus adeptos com a inconformidade civil, ou os deixa em um dilema. Por que eles se recusam a ser instrumento de disseminação do erro? Porque o erro é adverso à felicidade humana. E em que base qualquer peça de legislação secular é desaprovada? Pela mesma razão — porque é considerado adverso à felicidade humana. Como, então, é possível demonstrar que o Estado deve ser combatido em um caso e não no outro? Alguém afirmará deliberadamente que, se um governo exigir dinheiro de nós para ajudar a ensinar o que achamos que produzirá o mal, devemos recusá-lo, mas que, se o dinheiro for para o propósito de fazer o que achamos que produzirá o mal, não devemos recusá-lo? No entanto, essa é a proposição esperançosa que aqueles que reconhecem o direito de ignorar o Estado em questões religiosas, mas o negam em questões civis, têm que sustentar.

§ 7. O conteúdo deste capítulo mais uma vez nos lembra da incongruência entre uma lei perfeita e um Estado imperfeito. A praticabilidade do princípio aqui estabelecido varia diretamente de acordo com a moralidade social. Em uma comunidade completamente viciosa, sua admissão produziria anarquia2. Em uma comunidade completamente virtuosa, sua admissão seria inócua e inevitável. O progresso em direção a uma condição de saúde social — uma condição em que as medidas corretivas da legislação não serão mais necessárias — é um progresso em direção a uma condição em que essas medidas corretivas serão deixadas de lado e a autoridade que as prescreve será desconsiderada. As duas mudanças são necessariamente coordenadas. O senso moral cuja supremacia tornará a sociedade harmoniosa e o governo desnecessário é o mesmo senso moral que fará com que cada homem afirme sua liberdade até o ponto de ignorar o Estado — é o mesmo senso moral que, ao impedir a maioria de coagir a minoria, acabará por tornar o governo impossível. E, como aquelas que são apenas manifestações diferentes do mesmo sentimento devem ter uma proporção constante entre si, a tendência de repudiar os governos aumentará apenas na mesma proporção em que os governos se tornarem desnecessários.

Que ninguém se assuste, portanto, com a promulgação da doutrina supracitada. Ainda há muitas mudanças a serem passadas antes que ela possa começar a exercer muita influência. Provavelmente passará muito tempo antes que o direito de ignorar o Estado seja admitido de modo geral, mesmo em teoria. Levará ainda mais tempo até que ele receba reconhecimento legislativo. E, mesmo assim, haverá muitos controles sobre o seu exercício prematuro. Uma experiência aguda instruirá suficientemente aqueles que podem abandonar a proteção legal demasiadamente cedo. Enquanto que, na maioria dos homens, há um amor tão grande pelos arranjos testados e um medo tão grande de experimentos, que eles provavelmente não agirão de acordo com esse direito até muito tempo depois de ser seguro fazê-lo.

Notas:

  1. Sir William Blackstone (1723–1780) foi um eminente jurista, acadêmico e político britânico, mais conhecido por sua obra seminal “Commentaries on the Laws of England“. Nascido em Cheapside, Londres, Blackstone estudou em Oxford, destacando-se como estudioso do direito. ↩︎
  2. Spencer usa aqui a palavra “anarquia” no sentido de desordem. ↩︎

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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

One thought on “O Direito de Ignorar o Estado — Herbert Spencer

  1. Não me é muito claro como o direito de ignorar o Estado seria exercido na vida real. Tipo, não ser atendido pela policia ou outros serviços públicos parece concebível, mas como evitar de se beneficiar de coisas como obras públicas, homogeneidade linguística e cultural, homogeneidade em coisas como negócio e outras coisas que são benefícios do Estado?

    Spencer não parece invocar no texto a tese libertária de que todo serviço público é inferior ao privado, então parece que nesse cenário de alguém que ignora o Estado não teria como o rapaz deixar de receber benefícios estatais.

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