Um Longo Caminho até o Nirvana — George Santayana

“Um Longo Caminho até o Nirvana” foi escrito por George Santayana.


O fato de que o fim da vida é a morte pode ser considerado um truísmo, uma vez que os vários tipos de imortalidade que talvez pudessem surgir não aboliriam a morte, mas, na melhor das hipóteses, entrelaçariam vida e morte na textura de um destino mais abrangente. O fim de uma vida poderia ser o início de outra, se o Criador tivesse composto sua grande obra como um poeta dramático, atribuindo linhas sucessivas a diferentes personagens. A morte seria então apenas a deixa no final de cada fala, convocando o próximo personagem a entrar e manter a peça em andamento. Ou talvez, como alguns supõem, todos os personagens poderiam ser assumidos sucessivamente por um único Espírito sobrenatural, que, em meio a suas infinitas improvisações, estaria se imaginando vivendo, naquele momento, nesse sistema solar e social específico. A morte em um monólogo universal como esse seria apenas uma mudança de cena ou de métrica, ao passo que na confusão de uma comédia real seria uma mudança de atores. Em ambos os casos, cada voz seria silenciada mais cedo ou mais tarde, e a morte encerraria cada vida em particular, apesar de todas as possíveis sequências.

A recaída das coisas criadas no nada não é uma fatalidade violenta, mas algo que é naturalmente muito suave e adequado. Isso foi exposto recentemente, de maneira inovadora, por um filósofo de quem dificilmente esperávamos tal lição, o professor Sigmund Freud. Ele agora ampliou sua concepção de desejo sexual ou libido para um princípio geral de atração ou concretização na matéria, tal como o Eros dos antigos poetas Hesíodo e Empédocles. As janelas daquela clínica abafada foram abertas; aquele cheiro de desinfetantes acre, aqueles gritos histéricos, escaparam para a noite fria. Os problemas da alma doente, tal como nos foi dado a entender, bem como sua cura, afinal, fluem das estrelas.

Fico feliz que Freud tenha resistido à tendência de representar esse princípio do Amor como sendo o único princípio na natureza. A unidade, de alguma maneira, exerce um feitiço maligno sobre os metafísicos. Admite-se que, na vida real, não é bom para o Um estar sozinho, e acho que a unidade pura não é menos estéril e sem graça na metafísica. É preciso ter uma pluralidade para começar, ou uma trindade, ou pelo menos uma dualidade, se quisermos chegar a algum lugar, mesmo se quisermos entrar efetivamente no seio do Um, abandonando nossa existência separada. Freud, assim como Empédocles, introduziu prudentemente um princípio anterior com o qual o Amor pode brincar; não a Luta, entretanto (que é apenas um incidente no Amor), mas a Inércia, ou a tendência à paz e à morte. Vamos supor que a matéria estivesse originalmente morta e perfeitamente satisfeita em estar assim, e que ainda recaia, quando puder, em seu antigo equilíbrio. Mas o homogêneo (como diria Spencer) quando é finito é instável: e a matéria, presumivelmente não sendo co-extensiva com o espaço, necessariamente forma agregados que têm um interior e um exterior. As partes de tais corpos são, portanto, expostas de modo diferente a influências externas e relacionadas de modo diferente umas com as outras. Essa desigualdade, mesmo naquilo que parece mais tranquilo, é grande, com mudanças destinadas a produzir, com o tempo, uma complexidade maravilhosa. Ela é a fonte de todo desconforto, da vida e do amor.

“Imaginemos [escreve Freud]1 uma vesícula indiferenciada de substância sensível: então sua superfície, exposta como está ao mundo exterior, é, por sua própria posição, diferenciada e serve como um órgão para receber estímulos…. Esse pedaço de substância viva flutua em um mundo externo carregado com as mais potentes energias e seria destruído (…) se não fosse fornecido com a proteção contra estímulos. [Por outro lado,] a camada cortical sensível não tem nenhuma barreira protetora contra as excitações que emanam de dentro…. As fontes mais prolíficas de tais excitações são os chamados instintos do organismo…. A criança nunca se cansa de exigir a repetição de um jogo… ela quer sempre ouvir a mesma história em vez de uma nova, insiste inexoravelmente na repetição exata e corrige cada desvio que o narrador deixa escapar por engano…. De acordo com isso, um instinto seria uma tendência na matéria orgânica viva que a impele a restabelecer uma condição anterior, abandonada sob a influência de forças perturbadoras externas — um tipo de elasticidade orgânica ou, em outras palavras, a manifestação da inércia na vida orgânica.

“Se, então, todos os instintos orgânicos são conservadores, adquiridos historicamente e direcionados para a regressão, para o restabelecimento de algo anterior, somos obrigados a colocar todos os resultados do desenvolvimento orgânico a crédito de influências externas, perturbadoras e distrativas. A criatura rudimentar, desde seu início, não teria desejado mudar, teria, se as circunstâncias tivessem permanecido as mesmas, simplesmente repetido sempre o mesmo curso de existência…. Seria contrário à natureza conservadora do instinto se a meta da vida fosse um estado nunca alcançado até então. Deve ser, antes, um antigo ponto de partida, que o ser vivo deixou há muito tempo e para o qual ele volta novamente por todos os caminhos tortuosos do desenvolvimento…. O objetivo de toda vida é a morte.

“Durante um longo período de tempo, a substância viva pode ter (…) tido a morte ao seu alcance (…) até que influências externas decisivas se alteraram de tal forma que a compeliram a desvios cada vez maiores do caminho original da vida e a rotas cada vez mais complicadas e sinuosas para atingir a meta da morte. Esses caminhos tortuosos para a morte, fielmente retidos pelos instintos conservadores, não seriam nem mais nem menos do que os fenômenos da vida como a conhecemos.”

Freud apresenta essas interessantes sugestões com muita modéstia, admitindo que elas são vagas e incertas e (o que é ainda mais importante notar) míticas em seus termos; mas me parece que, apesar de tudo isso, elas são um admirável contraponto às loucuras que predominam. Quando ouvimos dizer que existe, animando todo o universo, um Élan vital ou um impulso geral em direção a algum ideal desconhecido, mas único, os termos usados não são menos incertos, míticos e vagos, mas a sugestão transmitida é falsa — falsa, quero dizer, em relação à  fonte orgânica da vida e da aspiração, à simples naturalidade da natureza; enquanto a sugestão transmitida pelas especulações de Freud é verdadeira. Em que sentido os mitos e as metáforas podem ser verdadeiros ou falsos? No sentido de que, em termos extraídos de dilemas morais ou da psicologia literária, eles podem relatar o movimento geral e a questão pertinente acerca dos fatos materiais, e de que podem nos inspirar com um sentimento sábio em sua presença. Nesse sentido, eu diria que a mitologia grega era verdadeira e que a teologia calvinista era falsa. Os principais termos empregados na psicanálise sempre foram metafóricos: “desejos inconscientes”, “o princípio do prazer”, “o complexo de Édipo”, “narcisismo”, “o censor”; no entanto, perspectivas interessantes e profundas podem ser abertas, em tais termos, no emaranhado de eventos na vida de um homem, e um novo começo pode ser feito com menos ônus e menos inibição mórbida. “As deficiências de nossa descrição”, diz Freud, “provavelmente desapareceriam se pudéssemos substituir os termos psicológicos por termos fisiológicos ou químicos. Esses também constituem apenas uma linguagem metafórica, mas uma linguagem que nos é familiar há muito mais tempo e talvez também mais simples.” Todo discurso humano é metafórico, no sentido de que nossas percepções e pensamentos são sinais adventícios para seus objetos, assim como são os nomes, e de modo algum cópias do que está acontecendo materialmente nas profundezas da natureza; Mas, assim como o olho do esportista, que produz apenas uma imagem gráfica resumida, pode traçar o voo de um pássaro pelo ar muito bem para atirar nele e derrubá-lo, os mitos de um filósofo sábio sobre a origem da vida ou dos sonhos, embora expressos simbolicamente, podem revelar o movimento pertinente da natureza para nós e podem despertar em nós sentimentos justos e expectativas verdadeiras em relação ao nosso destino — pois sua própria alma é o pássaro no qual esse esportista está atirando.

Acho que esses novos mitos de Freud sobre a vida, assim como os antigos sobre os sonhos, são calculados para nos esclarecer e nos repreender enormemente a respeito de nós mesmos. O espírito humano, quando acorda, se encontra em apuros; está sobrecarregado, sem nenhuma razão que possa atribuir, com todos os tipos de ansiedades sobre comida, pressões, picadas, ruídos e dores. Ele nasce, como diz outro mito sábio, no pecado original. E as paixões e ambições da vida, à medida que vão surgindo, apenas complicam esse fardo e o tornam mais pesado, sem torná-lo menos incessante ou gratuito. De onde vem essa fatalidade e para onde ela leva? Ela vem da hereditariedade e leva à propagação. Quando perguntamos como a hereditariedade pode ser iniciada ou transmitida, nossa ignorância sobre a natureza e o passado nos reduz ao silêncio ou a conjecturas malucas. Alguma coisa — vamos chamá-la de matéria — deve ter existido sempre, e algumas de suas partes, sob a pressão das outras, devem ter se amarrado formando nós, como a mola mestra de um relógio, de uma maneira tão violenta e infeliz que, quando a pressão é relaxada, eles se abrem o mais rápido possível e se desvendam com uma grande sensação de alívio. Daí o desejo de satisfazer as paixões latentes, com o prazer fugaz em fazê-lo. No entanto, as agências externas que originalmente deram corda a essa mola mestra nunca deixam de operar; cada novo estímulo lhe dá outra volta, até que ela se rompa, fique flácida ou se solte. Ademais, de tempos em tempos, quando as circunstâncias mudam, essas agências externas podem incrustar esse órgão primário com órgãos menores ligados a ele. Cada impressão, cada aventura, deixa um rastro, ou melhor, uma semente atrás de si. Isso produz uma complicação adicional na estrutura do corpo, uma nova carga, que tende a repetir o movimento que foi impresso em uma estação e fora dela. Daí a perpétua docilidade ou ductilidade da substância viva, que a capacita a aprender truques, lembrar fatos e (quando as sementes de experiências passadas se casam e se cruzam no cérebro) imaginar novas experiências, agradáveis ou horríveis. Todo ato dá início a um novo hábito e pode implantar um novo instinto. Vemos pessoas, mesmo tarde na vida, serem levadas por contágios políticos ou religiosos ou desenvolverem vícios estranhos; não haveria paz na velhice, mas sim uma obsessão cada vez maior por todos os tipos de preocupações, se não fosse o fato de que o tempo, ao nos expor a muitas influências adventícias, enfraquece ou desativa nossas paixões primitivas; somos menos gananciosos, menos luxuriosos, menos esperançosos, menos generosos. Mas esses impulsos primitivos e enfraquecidos são naturalmente, de longe, os que estão mais fortes e mais profundamente enraizados no organismo, de modo que, embora um homem idoso possa se converter ou adotar algum hobby, geralmente há algo de fraco em seu zelo idoso, em comparação com o entusiasmo da juventude; tampouco é edificante ver uma alma na qual as paixões humanas mais simples estão extintas se tornar um viveiro de ilusões casuais.

De qualquer modo, cada novo hábito que se enraíza no organismo forma uma pequena mola principal ou instinto próprio, como um parasita, de modo que um mecanismo elaborado é gradualmente desenvolvido, em que cada alavanca e mola segura a outra, e todas seguram a mola principal juntas, permitindo que ela se desenrole apenas muito gradualmente e, enquanto isso, mantendo todo o relógio funcionando e girando, e fazendo com que a face externa lisa que ele mostra ao mundo, tão limpa e inocente, marque a hora do dia de modo amável para quem passa. Entretanto, há um trabalho terrivelmente complicado acontecendo embaixo, impulsionado com dificuldade e equilibrado precariamente, com muito atrito secreto e falhas. Não é de se admirar que o motor muitas vezes fique visivelmente fora de ordem ou pare de funcionar: a maravilha é que ele consiga funcionar. Tampouco se satisfaz em simplesmente girar e, quando finalmente desmontado, começar de novo na pessoa de alguma semente que deixou cair, uma porção de sua substância na qual todos os seus instintos concentrados estão firmemente envoltos e ansiosos para repetir o experimento ancestral; todo esse crescimento não é meramente material e vão. Cada relógio, ao girar, bate a hora, até mesmo os quartos, e muitas vezes com um som encantador. É por estarmos inteiramente ocupados com essa música mental, e talvez por pensarmos que ela soa por si mesma e não precisa de uma caixa de música para ser feita, que temos tanta dificuldade em conceber a natureza de nossos próprios relógios e somos obrigados a descrevê-los apenas musicalmente, ou seja, em mitos. Mas a inépcia de nossas mentes estéticas para desvendar a natureza do mecanismo não priva essas mentes de sua própria clareza e eufonia. Além de soar suas várias notas musicais, elas têm a função cognitiva de indicar a hora e captar os ecos de eventos distantes ou de amadurecer disposições internas. Essas informações e emoções, somadas aos prazeres incidentais da satisfação de nossas várias paixões, constituem a vida de um espírito encarnado. Elas o reconciliam com a fatalidade externa que concluiu o organismo e o está destruindo; e resgatam esse organismo e todas as suas obras da indignidade de ser uma complicação vã e um desperdício de movimento.

O fato de o fim da vida ser a morte pode parecer triste, mas que outro fim pode haver? O fim de uma festa noturna é ir para a cama; mas sua utilidade é reunir pessoas agradáveis para que possam passar o tempo agradavelmente. Um convite para o baile não se torna irônico porque a dança não pode durar para sempre; o mais jovem de nós e o mais vigoroso, depois de algumas horas, já está farto de passos sinuosos e de dança. A transitoriedade das coisas é essencial ao seu ser físico e não é de forma alguma triste em si mesma; ela se torna triste em virtude de uma ilusão sentimental, que nos faz imaginar que elas desejam durar e que seu fim é sempre inoportuno; mas em uma natureza saudável não é assim. O que é realmente triste é ter algum impulso frustrado no meio de sua carreira e roubado de seu objeto escolhido; e o que é doloroso é ter um órgão dilacerado ou destruído quando ainda está vigoroso e não está pronto para seu sono natural e sua dissolução. Não devemos confundir a coceira que nossos instintos insatisfeitos continuam a causar com o prazer de satisfazer e descartar cada um deles. Se todos eles pudessem ser satisfeitos harmoniosamente, estaríamos satisfeitos de uma vez por todas e completamente. Então, fazer e morrer coincidiriam e seriam um prazer perfeito.

Essa mesma percepção está contida em outro mito sábio que tem inspirado a moralidade e a religião na Índia desde tempos imemoriais: Refiro-me à doutrina do carma. Segundo ela, nascemos com uma herança, um caráter imposto e uma longa tarefa designada, tudo devido à ignorância que, em nossas vidas passadas, nos levou a todos os tipos de compromissos. Essas obrigações devem ser pagas, aliviando o espírito puro que há em nós de seus fardos acumulados, de dívidas e ativos igualmente opressivos. Não podemos nos desvencilhar por mera frivolidade, nem por suicídio: a frivolidade apenas nos envolveria mais profundamente nas labutas do destino, e o suicídio apenas truncaria nossa miséria e nos deixaria para sempre como um fracasso confessado. Quando a vida é entendida como um processo de redenção, suas várias fases são abordadas sucessivamente, sem pressa e sem apego indevido; seu ir e vir tem toda a agudeza do prazer, a santidade do sacrifício e a beleza da arte. A questão é ter expressado e liberado tudo o que estava latente em nós; e a esse alívio perfeito, vários temperamentos e várias tradições atribuem nomes diferentes, chamando-o de “ter seu dia”, “cumprir seu dever”, “realizar seu ideal” ou “salvar sua alma”. A tarefa, em qualquer caso, é definida e imposta a nós pela natureza, quer reconheçamos isso ou não; portanto, podemos fazer um verdadeiro progresso moral ou cair em erros reais. A sabedoria e a genialidade estão em discernir essa tarefa prescrita e em realizá-la prontamente, de forma limpa e sem distração. A insensatez, ao contrário, imagina que vale a pena seguir qualquer aroma, que temos uma natureza infinita, ou nenhuma natureza em particular, que a vida começa sem obrigações e que podemos fazer negócios destituídos de capital, e que a vontade é vagamente livre, em vez de ser um fardo específico e um nó hereditário apertado a ser desfeito. Alguns filósofos, sem auto-conhecimento, pensam que as variações e os emaranhados adicionais que o futuro pode trazer são a manifestação do espírito; mas eles são, como Freud indicou, impostos aos seres vivos por pressão externa e tomam forma no reino da matéria. Somente depois que os órgãos do espírito são formados mecanicamente é que o espírito pode existir e pode distinguir o melhor do pior no destino desses órgãos e, portanto, em seu próprio destino. O espírito não tem nada a ver com a existência infinita. A existência infinita é algo físico e ambíguo; não há escala nem centro nela. As profundezas do coração humano são finitas e são escuras apenas para a ignorância. Por mais profunda e escura que uma alma possa ser quando se olha para ela de fora, trata-se de algo perfeitamente natural; e a mesma compreensão que pode desenterrar nossas jovens paixões reprimidas e dissipar nossos maus hábitos teimosos, pode nos mostrar onde está nosso verdadeiro bem. A natureza traçou o caminho para nós de antemão; há armadilhas nele, mas também há prímulas, e ele conduz à paz.

Notas:

  1. As citações a seguir foram extraídas de Beyond the Pleasure Principle, de Sigmund Freud; tradução autorizada de C.J.M. Hubback. The International Psycho-Analytic Press, 1922, pp. 29-48. Os itálicos estão no original. ↩︎

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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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