As Falhas Fatais do Positivismo – Eric Voegelin

“As Falhas Fatais do Positivismo” foi escrito por Eric Voegelin.


Como consequência [dos pressupostos positivistas], todas as proposições relativas a fatos serão promovidas à dignidade de ciência, independentemente de sua relevância, desde que resultem de um uso correto do método. Como o oceano de fatos é infinito, torna-se possível uma expansão prodigiosa da ciência no sentido sociológico, dando emprego a técnicos cientificistas e levando ao fantástico acúmulo de conhecimento irrelevante por meio de enormes “projetos de pesquisa”, cuja característica mais interessante é a quantificação das despesas que foram investidas em sua produção1. É grande a tentação de olhar mais de perto essas flores de luxo do positivismo tardio e acrescentar algumas reflexões sobre o jardim de Academus em que elas crescem; mas o ascetismo teórico não permitirá tais prazeres hortícolas.

A preocupação aqui é com o princípio de que todos os fatos são iguais — conforme foi formulado em algumas ocasiões — se forem metodicamente apurados. Essa igualdade dos fatos independe do método usado no caso especial. O acúmulo de fatos irrelevantes não requer a aplicação de métodos estatísticos; ele pode muito bem ocorrer sob o pretexto de métodos críticos na história política, na descrição de instituições, na história das idéias ou nos vários ramos da filologia. O acúmulo de fatos teoricamente não digeridos, e talvez não digeríveis, a excrescência para a qual os alemães cunharam o termo Materialhuberei, portanto, é a primeira das manifestações do positivismo; e por causa de sua abrangência, assume uma importância muito maior do que estranhezas atraentes como a “ciência unificada”.

O acúmulo de fatos irrelevantes, entretanto, está inextricavelmente entrelaçado com outros fenômenos. Grandes empreendimentos de pesquisa que contêm apenas materiais irrelevantes são raros, de fato, se é que existem. Até mesmo o pior exemplo conterá uma página aqui e ali de análise relevante, e pode haver grãos de ouro enterrados neles que aguardam a descoberta acidental por um acadêmico que reconheça seu valor. Pois o fenômeno do positivismo ocorre em uma civilização com tradições teóricas; e um caso de irrelevância completa é praticamente impossível porque, sob pressão ambiental, a coleção de materiais mais volumosa e sem valor deve estar pendurada em um fio, por mais fino que seja, que a conecte à tradição.

Até mesmo o positivista mais ferrenho terá dificuldade em escrever um livro completamente sem valor sobre o direito constitucional americano, desde que, com alguma consciência, siga as linhas de raciocínio e os precedentes indicados pelas decisões da Suprema Corte; mesmo que o livro seja uma reportagem árida e não relacione o raciocínio dos juízes (que nem sempre são os melhores teóricos) a uma teoria crítica da política e do direito, o material obrigará a submissão pelo menos ao seu próprio sistema de relevância.

Uso de Princípios Teóricos Defeituosos

Muito mais profundamente do que pelo acúmulo facilmente reconhecível de trivialidades, a ciência foi destruída pela segunda manifestação do positivismo, ou seja, pela operação em materiais relevantes com base em princípios teóricos defeituosos. Estudiosos altamente respeitáveis investiram uma imensa erudição na digestão de materiais históricos, e seu esforço foi em grande parte desperdiçado porque seus princípios de seleção e interpretação não tinham fundamento teórico adequado, mas derivavam do Zeitgeist2, de preferências políticas ou de idiossincrasias pessoais. Nessa classe estão as histórias da filosofia grega que, de suas fontes, extraíram principalmente uma “contribuição” para a fundação da ciência ocidental; os tratados sobre Platão que descobriram nele um precursor da lógica neo-kantiana ou, de acordo com as modas políticas da época, um constitucionalista, um utópico, um socialista ou um fascista.

Há também as histórias das idéias políticas que definiram a política em termos do constitucionalismo ocidental e depois não conseguiram descobrir muita teoria política na Idade Média; ou a outra variante que descobriu na Idade Média uma boa quantidade de “contribuição” para a doutrina constitucional, mas ignorou completamente o bloco de movimentos sectários políticos que culminaram na Reforma; ou um empreendimento gigantesco como o Genossenschaftsrecht de Gierke, que foi gravemente prejudicado pela convicção de seu autor de que a história do pensamento político e jurídico estava providencialmente se movendo em direção ao clímax em sua própria teoria da Pessoa Real.

Em casos dessa ordem, o dano não se deve a um acúmulo de materiais sem valor; pelo contrário, os tratados desse tipo frequentemente ainda são indispensáveis por causa de suas informações confiáveis sobre os fatos (referências bibliográficas, estabelecimento crítico de textos, etc.). O dano é causado pela interpretação. O conteúdo de uma fonte pode ser relatado corretamente até o ponto em que se encontra e, no entanto, o relatório pode criar uma imagem totalmente falsa porque partes essenciais são omitidas. E elas são omitidas porque os princípios incríticos de interpretação não permitem reconhecê-las como essenciais. A opinião incrítica, privada ou pública (doxa no sentido platônico), não pode substituir a teoria na ciência.

A Mudança da Teoria para o Método

A terceira manifestação do positivismo foi o desenvolvimento da metodologia, especialmente no meio século de 1870 a 1920. O movimento foi nitidamente uma fase do positivismo na medida em que a perversão da relevância, por meio da mudança da teoria para o método, foi o próprio princípio pelo qual ele se pautou. Ao mesmo tempo, porém, isso foi fundamental para superar o positivismo porque generalizou a relevância do método e, assim, recuperou a compreensão da adequação específica de diferentes métodos para diferentes ciências.

Pensadores como Husserl ou Cassirer, por exemplo, ainda eram positivistas de convicção comteana com relação à sua filosofia da história; mas a crítica de Husserl ao psicologismo3 e a filosofia das formas simbólicas de Cassirer foram passos importantes para a restauração da relevância teórica. O movimento como um todo, portanto, é complexo demais para admitir generalizações sem que se faça qualificações cuidadosas e abrangentes.

Julgamentos de Valor e Julgamentos de Fato

Apenas um problema pode, e deve, ser selecionado porque tem uma relação específica com a destruição da ciência, ou seja, a tentativa de tornar a ciência política (e as ciências sociais em geral) “objetiva” por meio de uma exclusão metodologicamente rigorosa de todos os “julgamentos de valor”. Para esclarecer a questão, primeiro é preciso entender que os termos “julgamento de valor” e ciência “livre de valor” não faziam parte do vocabulário filosófico antes da segunda metade do século XIX.

A noção de um julgamento de valor (Werturteil) não tem sentido em si mesma; ela ganha seu significado a partir de uma situação em que se opõe a julgamentos relativos a fatos (Tatsachenurteile).  E essa situação foi criada por meio do conceito positivista de que apenas as proposições relativas aos fatos do mundo fenomenal eram “objetivas”, enquanto os julgamentos relativos à ordem correta da alma e da sociedade eram “subjetivos”.

Somente as proposições do primeiro tipo poderiam ser consideradas “científicas”, enquanto as proposições do segundo tipo expressavam preferências e decisões pessoais, incapazes de verificação crítica e, portanto, desprovidas de validade objetiva. Essa classificação só fazia sentido se o dogma positivista fosse aceito por princípio; e só poderia ser aceito por pensadores que não dominassem a ciência clássica e Cristã acerca do homem.

Pois nem a ética e a política clássicas, nem as cristãs, contêm “julgamentos de valor”, mas elaboram, empírica e criticamente, os problemas de ordem que derivam da antropologia filosófica como parte de uma ontologia geral. Somente quando a ontologia como ciência foi perdida e quando, consequentemente, a ética e a política não puderam mais ser entendidas como ciências da ordem na qual a natureza humana atinge sua máxima realização, que foi possível que esse domínio do conhecimento se tornasse suspeito como um campo de opinião subjetiva e incrítica.

Notas:

  1. Nota do tradutor: sendo o Brasil o país onde o positivismo mais prosperou — o lema “ordem e progresso” na bandeira nacional não se deu por acaso  —, basta pouca pesquisa em sua produção acadêmica para que se constate a verdade desta previsão. ↩︎
  2. N.T.: “O espírito da época”. ↩︎
  3. C.f. Edmund Husserl Contra O Psicologismo, do prof. Olavo de Carvalho. ↩︎

Original disponível em: https://voegelinview.com/the-fatal-flaws-in-positivism/


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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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