O Motivo pelo Qual a Democracia Requer Deus — Eric Voegelin

“O Motivo pelo Qual a Democracia Requer Deus” foi escrito por Eric Voegelin.


[Ao buscar] o divino, o esforço amoroso para ir além de nós mesmos em direção ao divino na experiência filosófica e o encontro amoroso por meio da Palavra na experiência pneumática, o homem participa do divino. Os conceitos são methexis em grego, participatio em latim, ou seja, participação no divino. Na medida em que o homem participa do divino, isto é, na medida em que ele pode experimentá-lo, o homem é “teomórfico”, no termo grego, ou a imagem de Deus, a imago Dei, na esfera pneumática. 

A dignidade específica do homem é baseada nisso, em sua natureza enquanto teomórfica, segundo a forma e a imagem de Deus. Esse é um complexo básico de idéias com o qual devemos começar, a fim de investigar criticamente a deserção em relação a esse complexo. A deserção em sua essência sempre assume a forma de uma perda de dignidade. Essa perda de dignidade ocorre por meio da negação da participação no divino, ou seja, por meio da desdivinização do homem.

Porém, como é precisamente essa participação no divino, esse ser teomórfico, que constitui essencialmente o homem, a desdivinização é sempre seguida por uma desumanização. Não se pode desdivinizar a si próprio sem se desumanizar — com todas as consequências da desumanização com as quais ainda teremos de lidar. Essa desdivinização é a consequência de um fechamento deliberado de si mesmo para o divino, seja para o divino racional ou para o divino pneumático, ou seja, o divino filosófico ou o divino revelacional.

Em ambos os casos, ocorre uma perda da realidade, na medida em que esse ser divino, esse fundamento do ser, também é de fato realidade; e se alguém se fecha para essa realidade, possui em sua gama de experiências menos dessa parte da realidade, essa parte decisiva que constitui o homem. É nesse sentido que falamos de uma perda da realidade.

Por favor, entenda que agora estou dando apenas uma série de conceitos; sua aplicação virá em seguida. Devemos, então, empregá-los para que possamos entender do que realmente estamos falando. Assim, podemos falar da perda da realidade por meio da desdivinização e da desumanização. As manifestações típicas dessa perda de realidade são o fato de a realidade do homem ser colocada no lugar da realidade divina que se perdeu, esta que é a única que fundamenta a realidade do homem, de modo que, no lugar do fundamento do ser enquanto causa do ser, o homem enquanto causa do ser avança até o ponto do exagero na idéia de que o homem deve ser o criador do mundo.

Mais tarde, trataremos deste problema alemão especial que é a rebelião, cujas raízes estão nos românticos. Mas vou citar aqui esta frase de Novalis: “O mundo será como eu quiser!”1 Aí está, em poucas palavras, todo o problema de Hitler, o problema central da desdivinização e desumanização. Entretanto, com isso, a fenomenologia da deserção da plena humanidade não é experimentada. Esse é um problema que sempre ocupou os seres humanos. Como essas deserções devem ser classificadas? Como elas aparecem?

Vamos primeiro adotar a atitude clássica em relação à questão, de que nem todos os homens são plenamente homens nos termos de Aristóteles2. Na Ética a Nicômaco [1095 B10-13], Aristóteles recorre a Hesíodo (ou seja, ao século VIII). Para Hesíodo, essas percepções ainda derivam do que pode ser chamado de experiência do senso comum. Citarei essa passagem de Hesíodo, que Aristóteles desenvolve posteriormente.

Nos Trabalhos e Dias, a partir dos versos 293 e seguintes, Hesíodo classifica os homens em três grupos: Primeiro, aquele homem que é o melhor, pan aristos, que considera ou pensa em todas as coisas, que pode aconselhar a si próprio, noese: O nous desempenha um papel aqui. O segundo tipo também é bom, um esthlos, aquele que dá ouvidos ao melhor, ao pan aristos. Aquele, entretanto, que não pensa (noe) e nem ouve, é um homem inútil.

Assim, aqui você já tem três tipos de homens: o homem que está em plena posse do nous e pode aconselhar a si mesmo, onde, por nous, entende-se a abertura para o fundamento divino do ser; aquele que, em caso de dúvida, tem pelo menos razão suficiente para ouvir aquele que está em plena posse dele; e aquele que não tem capacidade nem de uma coisa nem de outra e, portanto, é um sujeito inútil, e que também pode se tornar um sujeito perigoso.

As divisões aristotélicas seguem essa classificação de Hesíodo. O homem em plena posse da liberdade é o homem que tem autoridade e se deixa guiar por seu próprio nous, pela razão. Em seguida, há os outros, alguns que ainda estão sendo educados, outros que nunca ultrapassam certos níveis educacionais, mas pelo menos ainda são acessíveis, na medida em que ouvem quando um homem mais sábio lhes diz o que é certo e o que é errado.

E há a terceira classe, que ele chamou de “os escravos por natureza”. Ora, o que pretendemos alcançar com essa classificação? Uma expressão como a aristotélica “escravos por natureza” dificilmente pode ser usada para nossos propósitos, pois não temos mais a escravidão como uma instituição legal formal.

A Elite da Sociedade Pode Consistir em “Ralé”

A expressão de Hesíodo para o homem inútil, o achreios, também não é muito útil. O escravo por natureza de Aristóteles e o homem inútil de Hesíodo pertencem — este último, pelo menos em parte — a um tipo de substrato social, enquanto nosso problema é o de que o homem inútil existe em todos os níveis da sociedade até em seus mais altos escalões, incluindo pastores, prelados, generais, industriais e assim por diante.

Portanto, eu sugeriria a expressão neutra “ralé” para isso. Há homens que são ralé, no sentido de que não têm a autoridade do espírito ou da razão, e tampouco são capazes de atender à razão ou ao espírito, se eles surgirem aconselhando-os ou alertando-os. Aqui nos aproximamos novamente da Síndrome de Buttermelcher [um tipo de personalidade descrito em Hitler e os Alemães-ed]: é extremamente difícil entender que a elite de uma sociedade possa consistir em uma ralé. No entanto, ela de fato [às vezes] se compõe de uma ralé.

É claro que essa é apenas a divisão derivada da política clássica. Devemos agora complementar essa divisão — daqueles que têm autoridade humana, daqueles que podem seguir a autoridade e da ralé — com uma série de outros fenômenos que pertencem especificamente ao período nacional-socialista alemão. Esses fenômenos são:

Primeiro, a estupidez que já mencionamos várias vezes. Estupidez significa aqui que um homem, por causa de sua perda [do senso] da realidade, não está em posição de orientar corretamente sua ação no mundo em que vive. Portanto, quando o órgão central para orientar sua ação, sua natureza teomórfica e a abertura para a razão e o espírito, deixa de funcionar, o homem age estupidamente.

Vocês devem se lembrar que o professor Besson falou de Hitler como se este fosse um idiota, e eu disse que isso não é totalmente injustificado, se entendermos por “idiota” o stultus no sentido técnico. Esse fenômeno sempre foi reconhecido nas civilizações antigas. O tolo, em hebráico o nabal, que por causa de sua loucura, nebala, cria desordem na sociedade, é o homem que não é crente, nos termos israelitas de revelação.

O amathes, o homem irracionalmente ignorante, é para Platão o homem que simplesmente não tem a autoridade da razão ou que não pode se curvar a ela. Para Tomás, o stultus é o tolo, no mesmo sentido que o amathia de Platão e o nebala dos profetas israelitas. Esse stultus agora sofreu a perda [do senso] da realidade e age com base em uma imagem defeituosa da realidade, criando assim a desordem. Por enquanto, isso é tudo sobre a questão da estupidez. Teremos mais a dizer sobre isso mais tarde.

Um segundo ponto está intimamente ligado a essa estupidez: se eu tiver perdido certos setores da realidade da minha gama de experiências, também não terei a linguagem para caracterizá-los adequadamente. Isso significa que, paralelamente à perda [do senso] da realidade e à estupidez, há sempre o fenômeno do analfabetismo. Nas estatísticas, falamos de analfabetos como pessoas que não sabem ler ou escrever. E essa palavra também tem esse significado em outros idiomas.

Entretanto, em inglês, melhor do que em alemão, descobrimos que uma pessoa pode ler e escrever no nível da escola primária, mas ainda assim pode ser um sujeito totalmente estúpido, que não consegue se expressar em relação a uma ampla gama de realidades, especialmente questões da razão e do espírito, e é incapaz de compreendê-las. Esse homem é um analfabeto (illiterate)3.

(A questão agora é: pode-se simplesmente introduzir a palavra “analfabetismo [illiterate]” no alemão como Illiteratentum? Eu hesitaria em fazer isso e preferiria usar a palavra alemã consagrada Analphabetentum, estendendo essa expressão Analphabet à estupidez e ao domínio deficiente da linguagem por meio da perda da realidade, em termos do significado inglês de “illiteracy“.

Portanto, há analfabetismo entre as pessoas que sabem ler e escrever muito bem, mas que, quando se trata de entender um problema da razão ou do espírito, ou questões sobre a ação correta, sobre a justiça, elas não conseguem compreender, porque “não o captam”. Nesse caso, pode-se notar a perda [de senso] da realidade, que também se expressa no domínio deficiente da linguagem.

Há também o caso muito interessante de Aldous Huxley, que fala expressamente das pessoas que sabem ler e escrever como “Alfas” e “Betas”4. Elas conhecem o alfabeto, mas isso é tudo. Na Alemanha, em contraste com outras sociedades ocidentais, o analfabetismo — nesse sentido, o domínio deficiente da linguagem para os campos de importância central para a ação — é comum na elite. Não no sentido de que toda a elite seja analfabeta — há também na Alemanha pessoas muito cultas que dominam o idioma alemão; mas a literatura popular socialmente dominante que aparece em público, inclusive a de certos professores, é escrita por analfabetos (illiterates).

A Revolta contra o Espírito

Em contraste com a estupidez [simples], devemos agora distinguir a estupidez superior, ou inteligente. Ainda estou resumindo Robert Musil. A estupidez mais elevada, diz ele, “presume realizações às quais não tem direito”5. Portanto, aqui entra o elemento da presunção, da hybris, da arrogância espiritual. A estupidez superior, ou inteligente, é um distúrbio no equilíbrio do espírito.

O espírito agora se torna o adversário, não a mente. Não se trata de um defeito da mente, como acontece com as pessoas simples, mas de um defeito do espírito, uma revolta contra o espírito, que dá origem ao fato de se dizer ou se fazer coisas contra o espírito. Portanto, essa condição de estupidez superior não é uma doença espiritual no sentido da psicopatologia, mas algo bem diferente.

Precisamos aqui de uma expressão que não foi usada por Musil, mas que está disponível nas análises alemãs do assunto desde Schelling. Schelling já usava a expressão “pneumopatologia” para distúrbios espirituais desse tipo6. Isso significa que o espírito está doente, não a alma no sentido de psicopatologia: portanto, doenças espirituais, doenças do espírito, condições pneumopáticas em oposição a condições psicopáticas. Usaremos essa palavra com mais frequência, uma vez que [Percy E.] Schramm, por exemplo, sobre quem terei de falar mais tarde, tenta continuamente classificar certos problemas como psicopatologia.

Isso se deve ao fato de ele não ter dominado ou compreendido que não se trata de problemas de psicopatologia, mas de problemas de pneumopatologia, que são muito bem conhecidos e foram tratados em detalhes desde Platão até Schelling e até hoje por Musil e Doderer. Porém, Schramm não sabe disso.

Ora, para caracterizar essa estupidez superior, vejamos uma citação de Musil:

“Essa estupidez superior é a verdadeira doença da cultura (mas para evitar mal-entendidos: ela é um sinal de não-cultura, de má cultura, de cultura que surgiu da maneira errada, de desproporção entre o material e a energia da cultura) [Portanto, há todas essas negações da educação genuína] e descrevê-las é uma tarefa quase infinita. Isso atinge a mais alta esfera intelectual. . . .”

“Anos atrás, escrevi sobre essa forma de estupidez que ‘não há absolutamente nenhuma idéia significativa que a estupidez não saiba como aplicar; a estupidez é ativa em todas as direções e pode se vestir com todas as roupas da verdade. A verdade, por outro lado, tem para cada ocasião apenas um vestido e um caminho, e está sempre em desvantagem’ [em oposição a essa estupidez intelectual, da qual as ideologias são os exemplos mais flagrantes].”

“A estupidez discutida aqui não é uma doença mental [ele diz mais uma vez], mas é muito letal; uma doença perigosa da mente que põe em risco a própria vida. “

Essa é a conclusão de Musil. Porém, ainda precisamos de mais concretizações, portanto, para esse fim, estou escolhendo algumas passagens que, provavelmente sem intenção, continuam diretamente a discussão de Musil. Estou extraindo essas passagens do livro de Carl Amery Die Kapitulation oder deutscher Katholizismus heute, 19637. Ele não trata imediatamente dos problemas do catolicismo, pois para caracterizar os problemas do catolicismo alemão é preciso caracterizar os do espírito alemão. E o que foi dito agora sobre esse contexto se refere a esses problemas.

Esse contexto é um problema geral alemão, não um problema católico alemão. Amery diz:

“A palavra-chave para o sistema de virtudes da classe média baixa na Alemanha é Anstand. Ela é intraduzível, assim como ‘decência’ ou honnêteté, e é (pelo menos hoje) ainda mais ambígua e mais difícil de definir do que essas palavras-chave de sistemas de virtude estrangeiros ou do passado. O que é o Anstand alemão?”

Vamos primeiro tentar dizer o que era: Era a soma total das virtudes adequadas ao modo de vida da classe média urbana ou rural. Incluía coisas como [Agora vem a enumeração, que coincide com a de Musil, como você verá. Incluía coisas como] honestidade, diligência, limpeza, pontualidade, confiabilidade no serviço; desconfiança de todo excesso e toda iridescência, ambiguidade, ambivalência; obediência à autoridade”.

Portanto, o cidadão bem-comportado e íntegro, que em Musil era o homem simples, em parte também o homem simples e estúpido, que é em si uma figura bastante simpática. Amery continua aqui, em parte coincidindo com Musil: “Não é difícil ver que esse sistema realmente não enfatiza nenhuma das virtudes cristãs primárias: nem a fé, nem a humildade, nem a caridade, nem o ascetismo, estão bem presentes nesse sistema de Anstand. “38

Aqui Amery está voltado para a perspectiva cristã. Você também poderia dizer que nenhuma das virtudes noéticas está presente aqui, a abertura para o mundo, a abertura filosófica, a proporção e assim por diante. Nenhuma delas pode ser encontrada na “propriedade”[Anstand] do burguês. Ele continua:

“Observemos novamente as virtudes implícitas na noção de Anstand: honestidade, pontualidade, limpeza, confiabilidade do serviço, diligência. Não é difícil ver que todo o lote pode ser chamado de “virtudes secundárias”: virtudes, portanto, que não implicam quaisquer fins em si mesmas [pois o estabelecimento de metas é extraído da esfera da razão e do espírito], mas devem ser atribuídas a determinadas metas, a fim de serem positivas.”8

Porque quando não são determinados por tais objetivos, podem também ser muito negativas. E ele dá exemplos:

“Posso comparecer pontualmente ao serviço na casa do padre ou no porão da Gestapo; posso ser meticuloso ao escrever sobre a ‘liquidação final dos judeus’ ou no trabalho de assistência social; posso lavar as mãos após um dia de trabalho honesto no milharal ou após minhas atividades no crematório do campo de concentração.”

Assim, Himmler [trata-se de uma passagem famosa de Himmler, que será citada com frequência] pôde se vangloriar de seus comandos de assassinato [eram os esquadrões de assassinato enviados para exterminar a população civil polonesa], que permaneceram ‘decentes’ em meio a suas difíceis tarefas. Himmler, é claro, não é exatamente uma testemunha de honra para assuntos morais ou éticos, mas essa pequena e maluca observação lança luz sobre uma reviravolta no método.”9

Quando Pessoas Espiritualmente Estúpidas Assumem o Controle

Para esclarecer ainda mais a questão, talvez eu possa chamar sua atenção para o fato de que todas essas coisas são óbvias no nível do senso comum. É somente nessa peculiar esfera pequeno-burguesa da “propriedade” que elas nunca serão compreendidas. É óbvio que, se uma grande empresa estivesse procurando um diretor, poderíamos recomendar alguém que fosse diligente, pontual, que chegasse no horário todas as manhãs e permanecesse durante todo o dia de trabalho, que fosse diligente, em quem se pudesse confiar, que cumprisse suas promessas e assim por diante.

Ainda assim, todas essas qualidades totalmente agradáveis naturalmente não qualificam o homem para ser o diretor de uma grande empresa, mas são as qualidades que alguém valorizaria, talvez, em um funcionário de banco e cargos semelhantes. O perigo agora é sempre este: quando uma sociedade está em tal desordem, como estava a sociedade alemã, o tipo ‘funcionário de banco’, que é em si mesmo um tipo totalmente honrado e decente, chega ao topo e causa estragos como fizeram os nacional-socialistas, tal como um Himmler, por exemplo.

Portanto, a problemática está sempre na estrutura da sociedade — [em saber] de que modo uma sociedade pode ser organizada a ponto de esses tipos peculiares de simplicidade e estupidez não se tornarem politicamente eficazes, muito menos se tornarem socialmente dominantes e determinarem a sociedade. A rebelião também pertence às qualidades negativas, nas quais Amery está particularmente interessado. O cidadão é contra a desordem. Você certamente sabe como os irmãos Scholl chegaram ao fim, pois, quando jogaram aqueles panfletos no chão, um porteiro da universidade os perseguiu e os pegou, não porque ele fosse um nacional-socialista, mas porque se sentiu incomodado com o fato de seu limpo salão de reuniões estar bagunçado com pedaços de papel. Portanto, as pessoas são contra a desordem.

Amery diz que:

“A rebelião pode assumir uma forma material ou intelectual — ambas são altamente suspeitas para o burguês. A revolta intelectual, ele sente, está fadada a levar à zombaria e ao desmascaramento do que lhe é próximo e querido. [Isto é, à perda dos valores sociais de seu contexto; pois, nesse nível de virtudes secundárias, nenhuma grande conquista pode ser realizada em uma sociedade. Portanto, se em algum lugar houver uma revolta intelectual contra elas, ele sente que está em perigo, porque, como resultado, será ridicularizado]”.

A revolta material, entretanto, pode levar não apenas a arranhões nas laterais, mas à perda da própria coisa. O rebelde é o inimigo em termos absolutos e qualquer medida tomada contra ele é justificada eo ipso:

“A [efêmera] República Soviética em Munique, em 1919, fuzilou cerca de uma dúzia de vítimas; já os libertadores brancos fuzilaram várias centenas, culpados e inocentes. Ainda estou para descobrir um livro de história para jovens no qual essa proporção seja objetivamente estimada. [Um problema muito interessante é como o pequeno burguês reage quando é perturbado em seu conforto por uma idéia, por exemplo.]

“As pessoas pensam da mesma maneira sobre a Revolução Francesa, e até mesmo sobre qualquer rixa em Schwabing ou em qualquer outro lugar. O ressentimento é dirigido primeiramente contra a idéia de revolta como uma iniciativa voluntária (um ato de violência sem ordens claras de superiores) [Esse é um ponto muito importante. Em geral, quando a iniciativa é tomada, seja do tipo intelectual ou ativo, o pequeno burguês fica louco] e, em segundo lugar, contra o ataque às virtudes que os especialistas descrevem como ‘qualidade'”.10

Portanto, se alguém disser sobre qualquer uma dessas oleografias românticas de baixa qualidade que é isso mesmo, ele ficará muito irritado, pois a posse de tais imagens agora faz parte do mobiliário da casa e da cultura. Assim, aqui também você concretizou o caso alemão mais específico. Esse é o problema do homem simples, que é um homem decente enquanto a sociedade como um todo estiver em ordem, mas que se torna louco, sem saber o que está fazendo, quando a desordem surge em algum lugar e a sociedade não está mais se mantendo unida.

Nada é tão característico quanto uma das cenas que se desenrolaram durante o julgamento de Auschwitz em Frankfurt, quando um dos acusados que tinha um assassinato em massa em sua consciência disse, com raiva e indignação genuínas, que isso certamente foi há muito tempo e que era realmente ruim que a noite de sua vida fosse agora amarga. Esse é o cidadão par excellence. Um homem correto, pai de família, funcionário pontual e assim por diante, mas, se não for mantido sob controle, uma fera assassina.

A Estupidez Criminal em uma Sociedade Desordenada

A essas caracterizações da estupidez feitas por Musil e Amery, devo acrescentar mais uma, que não é tratada por nenhum deles, que são as consequências da estupidez quando elas vêm à tona em uma sociedade perturbada e se tornam socialmente relevantes. Porque, nessas circunstâncias, a estupidez pode ter as consequências desorganizadoras que já conhecemos por meio do nacional-socialismo. Esse é o ponto em que a estupidez — porque prejudica não apenas aquele que é estúpido, mas também outros seres humanos (nesse caso, milhões de seres humanos, que foram levados à miséria e assassinados por causa dela) — deve, nessa circunstância social específica, ser chamada de estupidez criminosa.

Ou seja, a estupidez não é criminosa em si mesma, mas pode se tornar criminosa por meio de circunstâncias sociais. Por isso, quem, sendo um homem estúpido, estiver em um lugar da sociedade onde não deveria estar, e assim der ordens ou tentar instruir os outros, é criminalmente estúpido e, por causa disso, torna-se um criminoso, mesmo que ele próprio não entenda isso. Atualmente, há toda uma série de estudos sobre essa estupidez criminosa, e você realmente deveria conhecê-los em detalhes. Todo estudante de ciência política deveria lê-los.

Um dos estudos clássicos mais antigos sobre estupidez criminosa é Rei Lear, de Shakespeare. Esse é um excelente estudo. Depois, nos anos 20, há o Des deutschen Spießers Wunderhorn [A Trompa Encantada do Burguês Alemão], de Meyrink. Nele, há um estudo intitulado “Tschitrakarna, the Refined Camel” (Tschitrakarna, o Camelo Refinado)11, em que o camelo refinado se envolve em procedimentos legais ordenados com os gangsters animais em um devido processo legal. Por causa disso, ele é destruído e depois despedaçado; então o corvo, que é um desses animais gângsteres, grita: “Yoohoo, estúpido!”12

Você deve se lembrar desse “yoohoo, estúpido” toda vez que pensar nos cidadãos íntegros que concordaram com a Lei de Habilitação13 a favor de Hitler. Esse foi Meyrink. Um estudo mais recente é o que já mencionei de Frisch, Biedermann und die Brandstifter.

Portanto, temos toda uma série de estudos sobre esse fenômeno da estupidez criminosa, que surge do fato de que o homem criminalmente estúpido traz infortúnio não apenas para si mesmo, mas também para milhões de outras pessoas. Por essas consequências funcionais de sua estupidez, determinadas por sua posição social, ele é obviamente totalmente responsável.

Há uma frase para a qual sempre chamarei a atenção de vocês, como já fiz em muitas palestras: Não existe o direito de ser estúpido. Esse não é um dos direitos e liberdades básicos garantidos pela Constituição. Especialmente, é claro, nos tempos modernos, em que as consequências podem ser terríveis.

O Apetite pelo Poder Substitui a Razão e o Espírito

E agora eu gostaria de tratar o assunto de maneira sistemática, particularmente o problema da estupidez superior. Então, como estamos nos apoderando dos conceitos que devemos empregar para compreender um fenômeno como o de Schramm, por exemplo? Começamos com a perda [do senso] da realidade por meio da desumanização. Ali, um setor da realidade — isto é, da relação do homem com Deus, Sua presença no Ser Divino — é perdido e substituído, deliberadamente (o que é sempre um tipo de revolta), pela Sua vontade.

Aqui nos deparamos com um problema que, mais uma vez, simplesmente não temos no alemão moderno — em outros idiomas, temos — as expressões para diferenciar entre o que é “vontade” no sentido clássico e cristão e o que é “vontade” em revolta contra Deus. No sentido clássico e cristão, a vontade, a voluntas, é sempre e somente a vontade racionalmente ordenada.

Isso significa que sempre que o poder da existência (Existenzmacht) une forças com a razão e o espírito, existe a “vontade”. Onde o poder da existência se separa da razão e do espírito, não falamos de vontade, no vocabulário cristão clássico, mas de concupiscentia ou libido.

A expressão “libido” se tornou muito popular por meio da psicanálise. Mas ela é a expressão geral para o desejo poderoso da existência que não é ordenado pela razão ou pelo espírito. Uma grande parte da chamada filosofia idealista alemã, desde Fichte até o presente, deve ser sempre entendida de tal forma que, quando o autor em questão fala de vontade, é preciso colocar no lugar da palavra “vontade” a expressão “libido”.

Quando Nietzsche fala da vontade de poder, ele quer dizer a libido; ele ainda está ciente disso. “Libido” é a expressão pascaliana em direção à qual ele orienta a si próprio. Isso é relevante para entender o problema de Schramm quando ele tenta caracterizar Hitler como um homem de vontade particularmente forte. Não há força de vontade alguma em Hitler. Ele não tinha absolutamente nenhuma vontade de qualquer tipo reconhecível, ou seja, uma existência que fosse ordenada pela razão ou pelo espírito. No entanto, ele tinha uma libido extraordinariamente intensiva em termos de existência, e manteve isso até o fim.

Aparentemente, ele foi capaz de fazer isso simplesmente porque qualquer ordem razoável e espiritual estava radicalmente ausente nele, e não havia, por assim dizer, nenhuma outra possibilidade de fuga para ele. Então, em Hitler, havia uma libido radical, que havia se separado totalmente da razão e do espírito. Ora, isso é o suficiente sobre a questão da libido e a perda [do senso] da realidade por meio da desumanização; mas a questão vai bem além disso.

O homem continua sendo homem em sua realidade plena, mesmo quando perde a razão e o espírito como aquelas partes da realidade que o ajudam a ordenar sua existência; ele não deixa de ser homem. E não faz sentido, como ainda é feito com tanta frequência, acusar Hitler de desumanidade; tratava-se de humanidade absoluta em forma humana, apenas de uma humanidade notavelmente desordenada e doente, uma humanidade pneumopatológica.

A imagem que esse homem tem da realidade, portanto, embora defeituosa, não perdeu a forma da realidade; isto é, ele ainda é um homem, com a plena pretensão de fazer declarações de ordem, mesmo quando a força ordenadora da orientação para o ser divino tenha se perdido — mesmo assim —, exceto pelo fato de que ele coloca uma pseudo-ordem no lugar da ordem real.

Logo, a realidade e a experiência da realidade são substituídas por uma falsa imagem da realidade. O homem, portanto, não vive mais na realidade, mas em uma falsa imagem da realidade, que afirma, no entanto, ser a realidade genuína. Se essa condição pneumopática ocorreu, existem duas realidades: a primeira realidade, onde vive o homem normalmente ordenado, e a segunda realidade, na qual o homem pneumaticamente perturbado vive agora e que, portanto, entra em constante conflito com a primeira realidade.

As expressões “primeira realidade” e “segunda realidade” foram cunhadas e elaboradas por Doderer e podem ser encontradas em todos os seus escritos. Elas já haviam sido usadas por Musil em seu Man without Qualities (Homem sem Qualidades), um homem que também vive na segunda realidade e, portanto, entra em conflito com a primeira. A consequência de viver na segunda realidade é, exatamente, o conflito com a primeira realidade, que, na verdade, não é cancelado pelo fato de eu criar para mim uma falsa idéia dela e viver de acordo com ela. As consequências desse conflito podem ser classificadas de acordo com as duas categorias principais, contemplação e prática.

Na contemplação, a manifestação mais importante do conflito entre a segunda e a primeira realidade é a construção de um sistema. Uma vez que a realidade não tem o caráter de um sistema, um sistema é sempre falso; e se ele afirma retratar a realidade, só pode ser sustentado por meio de truques de uma fraude intelectual. Já falei sobre esse assunto com relação aos casos específicos de Marx e Nietzsche14, mas ele é encontrado onde quer que haja um sistema.

Uma vez que essa fraude intelectual é inerente ao conflito entre a segunda e a primeira realidade e à construção do sistema, a vontade de fraudar se origina naturalmente aqui. O homem é de fato pneumopata, está doente do espírito, e a questão pode agora se complicar pelo fato de ele estar ciente dessa fraude, como fica muito claro, por exemplo, em Nietzsche, que fala explicitamente sobre esse problema. Ele sofria constantemente com o fato de que fraudava, porque sabia qual era a realidade no caso de Pascal.

O debate constante entre Nietzsche e Pascal é estimulado precisamente por seu reconhecimento da realidade genuína em Pascal e seu conhecimento de si próprio como tendo uma idéia falsa da realidade, e que ele viveu constantemente nessa tensão entre a imagem da fraude que ele está perseguindo e a realidade que ele admira em Pascal.

Na prática, a consequência do conflito entre a segunda e a primeira realidade não é a fraude intelectual, mas a mentira. A mentira se torna o método indispensável porque a segunda realidade afirma ser verdadeira e, como ela entra constantemente em conflito com a primeira realidade, é necessário mentir constantemente: por exemplo, sustenta-se que a primeira realidade é bem diferente do que de fato é, ou que a segunda realidade é terrivelmente mal compreendida.

O resultado desse conflito da mentira na esfera prática é o fenômeno da honestidade compacta em um nível intelectualmente menos diferenciado. Embora existissem em um nível de contemplação intelectualmente superior e altamente diferenciado, Marx ou Nietzsche ainda estavam cientes de que estavam trapaceando, não se fala mais em trapaça no nível do petit bourgeois trapaceiro.

Em vez disso, ele simplesmente mente e, na verdade, com uma consciência tão boa que provoca o fenômeno da honestidade compacta e outros fenômenos que vimos da última vez nas passagens sobre Karl Kraus. Portanto, a honestidade compacta é o resultado que tanto desconcertou Kraus — quando esses conflitos entre a segunda e a primeira realidade ocorrem em um nível intelectual relativamente baixo.

Original disponível em: https://voegelinview.com/why-democracy-requires-god-pt-1/

Notas:

  1. Logologische Fragmente“, Fragmento 124, em Novalis [Friedrich von Hardenberg], Schiiften, ed. Richard Samuel, Hans-Joachim Mahl e Gerhard Schulz, vol. 2, Dasphilosophische Werk I (Darmstadt: WissenschaftlicheBuchgessellschaft, 1965), 554. ↩︎
  2. Voegelin discute esses textos em O Mundo da Polis, vol. 2 de Ordem e História (1957; Columbia: University of Missouri Press, 1999), p. 140, e em Platão e Aristóteles, p. 301-2. ↩︎
  3. Nota do tradutor: é o que chamamos hoje de ‘analfabeto funcional’. ↩︎
  4. Veja Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo (Londres: Granada, 1983), passim, sobre “Alfas” e “Betas”, os mais inteligentes dos agentes ainda totalmente controlados no romance anti-utópico de Huxley, em contraste com os “Épsilons”, o proletariado criado seletivamente, adequado apenas para o trabalho manual. ↩︎
  5. Musil, “On Stupidity“, p. 283 (traduzindo schlichte de Musil como “simples” em vez de “direta” como em Pike e Luft). ↩︎
  6. Sobre essa atribuição, consulte Eric Voegelin, Carta a Theo Broersen, 24 de fevereiro de 1976 (Eric Voegelin Papers, Hoover Institution Archives, caixa 8, arquivo 44), na qual ele se lembra de ter encontrado o termo durante seus estudos intensivos sobre Schelling trinta anos antes e escreve que agora não consegue localizar a passagem: “Eu me refiro a isso apenas porque não quero ser acusado por algum estudioso de Schelling de ter pegado o termo sem reconhecer sua autoria.” ↩︎
  7. Carl Amery, Die Kapitulation oder deutscher Katholizismus heute (Hamburgo: Rowohlt, 1963). A tradução de Edward Quinn, Capitulation: The Lesson of German Catholicism (A Lição do Catolicismo Alemão) (Nova York: Herder and Herder, 1967), é usada aqui. ↩︎
  8. Ibid., 29-30. ↩︎
  9. Ibid., 31. ↩︎
  10. Ibid., 36-37. ↩︎
  11.  Gustav Meyrinck, “Tschitrakarna, das vornehme Kamel“, em Des deutschen Spießers Wunderhorn (Munique: Albert Langen,1913), 2:26-33. ↩︎
  12. Ibid., 33. ↩︎
  13. Projeto de lei aprovado em 23 de março de 1933 pelo Reichstag alemão que permitia ao governo alemão, por um período de quatro anos, promulgar leis sem o consentimento do parlamento. ↩︎
  14. Consulte Eric Voegelin, Ciência, Política e Gnosticismo (Chicago: Regnery, 1968), pp. 22-40. Publicado originalmente como Wissenschaft, Politik und Gnosis (Munique: Kösel, 1959). ↩︎

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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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