“Entendimento, Imaginação e Misticismo” foi extraído da obra Interpretations of Poetry and Religion.
Se considerarmos a situação da mente humana na natureza, sua plasticidade limitada e seus poucos canais de comunicação com o mundo exterior, não precisamos nos maravilhar com o fato de tatearmos em busca de luz ou de encontrarmos incoerência e instabilidade nos sistemas de idéias humanos. O que é de se admirar é que tenhamos nos saído tão bem, que no caos de sensações e paixões que preenche a mente, tenhamos encontrado algum tempo livre para a auto-concentração e a reflexão, e que tenhamos logrado êxito em colher uma leve experiência a partir de nossos distraídos trabalhos. Nossa loucura ocasional é menos extraordinária do que nossa sanidade ocasional. As reincidências em sonhos são de se esperar em um ser cuja breve existência se assemelha tanto a um sonho; mas quem poderia ter certeza dessa perseverança robusta e indomável no trabalho da razão, apesar de todos os obstáculos e desestímulos?
Os recursos da mente não são proporcionais à sua ambição. Dos cinco sentidos, três são de pouca utilidade para a formação de noções permanentes: o quarto, a visão, é de fato vívido e luminoso, mas fornece transcrições de coisas que são tão altamente coloridas e profundamente modificadas pelo medium dos sentidos, que é necessário um longo trabalho de análise e correção antes que concepções satisfatórias possam ser extraídas dele. Para esse trabalho, entretanto, somos dotados do instrumento necessário. Temos memória e certos poderes de síntese, abstração, reprodução, invenção — em suma, temos o entendimento. Contudo, essa faculdade do entendimento mal inicia seu trabalho de decifração dos hieróglifos dos sentidos e de formação de uma idéia da realidade, quando é atravessada por outra faculdade — a imaginação. As percepções não permanecem na mente — como se sugeriria pela símile banal do selo e da cera —, passivas e imutáveis, até que o tempo desgaste suas bordas afiadas e as faça desaparecer. Não, as percepções caem no cérebro mais como sementes em um campo arado ou mesmo como faíscas em um barril de pólvora. Cada imagem gera uma centena de outras, às vezes lenta e subterraneamente, às vezes (quando um trem da paixão se ativa) com uma súbita explosão de fantasia. A mente, exercitada por sua própria fertilidade e inundada por suas luzes internas, tem infinitas dificuldades para manter um registro verdadeiro de suas percepções externas. Ela se volta dos problemas gélidos da observação para suas próprias perspectivas; esquece-se de observar os cursos daquelas que deveriam ser suas “estrelas-guia”. De fato, se não fosse pelo poder da convenção, na qual, por uma espécie de cancelamento mútuo de erros, as concepções mais práticas e normais são consagradas, a imaginação levaria os homens completamente para longe — os melhores homens primeiro e os vulgares após eles. Mesmo assim, indivíduos e épocas que possuem uma imaginação fervorosa geralmente se perdem em sonhos e têm de desaparecer antes que a raça, entristecida e atordoada, talvez, pela lembrança dessas visões, possa retornar aos seus árduos pensamentos.
Cinco sentidos, portanto, permitem reunir uma pequena parte das infinitas influências que vibram na Natureza, com um poder moderado de entendimento para interpretar esses sentidos e uma fantasia irregular e apaixonada para sobrepor-se a essa interpretação – esse é o dom da mente humana. E qual é sua ambição? Nada menos que construir uma imagem de toda a realidade, compreender sua própria origem e a do universo, descobrir as leis de ambos e profetizar seu destino. A desproporção não é enorme? Não é de se esperar que haja confusões e profundas contradições em uma tentativa de construir tanto a partir de tão pouco?
Todavia, a ambição metafísica de que falamos não pode ser abandonada, pois qualquer que seja a imagem das coisas que tenhamos em nossas cabeças, somos obrigados a considerá-la como um mapa da realidade; embora possamos marcar certas áreas como “país inexplorado”, a própria existência de tais regiões é garantida apenas por nossa representação e acredita-se necessariamente que corresponda à nossa idéia. Tudo o que podemos fazer é, sem abandonar a aspiração ao conhecimento, que é o direito inalienável da razão, controlar da melhor maneira possível a formação de nossas concepções; organizá-las de acordo com sua derivação e medi-las por sua aplicabilidade na vida, vigiando seu crescimento com tanta prudência a ponto de sermos poupados da mais profunda das tristezas — sobreviver à prole de nosso próprio pensamento.
A inadequação de cada uma de nossas faculdades é o que ocasiona a intrusão de alguma outra faculdade em seu campo. O defeito do senso exige imaginação, o defeito da imaginação exige raciocínio, o defeito do raciocínio exige divinação. Se nossos sentidos fossem clarividentes e capazes de observar tudo o que está acontecendo no mundo, se nossos instintos fossem firmes, levando-nos a reações adequadas a essas observações, a imaginação poderia permanecer livre. Não precisaríamos recorrer a ela para eliminar as imperfeições do senso e da reflexão, mas deveríamos empregá-la apenas na poesia declarada, apenas na construção de mundos oníricos ao lado do real, sem interferir com este último ou confundi-lo, mas repetindo seu padrão com tantas variações quanto a fertilidade de nossas mentes pudesse fornecer. Tal como é, a imaginação é colocada a serviço do senso e do instinto, e é levada a fazer o trabalho da inteligência. Essa substituição é muito mais fácil de ser realizada, uma vez que a imaginação e a inteligência não diferem em sua origem, mas apenas em sua validade. O entendimento é uma ficção aplicável, um tipo de sagacidade com uso prático. O senso comum e a ciência vivem em um mundo de mitologia expurgada, tal como Platão desejava que seus poetas o compusessem, um mundo no qual os objetos são imaginativos em sua origem e essência, mas são úteis, abstratos e benéficos em suas sugestões. A esfera do senso comum e da ciência é concêntrica com a esfera da fantasia; ambas se movem em virtude dos mesmos impulsos imaginativos. A eventual distinção entre inteligência e imaginação é uma distinção ideal; ela surge quando discriminamos várias funções em uma vida que é dinamicamente una. Aquelas concepções que, depois de terem surgido espontaneamente, se mostram úteis na prática e capazes de verificação no senso, chamamos de idéias do entendimento. As outras continuam sendo idéias da imaginação. A brevidade da vida, as distrações da paixão e a deturpação a que todo conhecimento transmitido está sujeito tornaram o teste de idéias pela prática extremamente lento na história da humanidade. Daí a impureza de nosso conhecimento, sua confusão com a fantasia e sua dolorosa inadequação para interpretar todo o mundo dos interesses humanos. Essas deficiências são muitos convites para a intervenção de potências estrangeiras, muitas ocasiões para que novas ondas de imaginação varram os marcos de nosso antigo trabalho e inundem toda a mente com sonhos impetuosos.
São, consequentemente, as mentes mais profundas que comumente se entregam à imaginação, porque são essas mentes que são capazes de sentir a grandeza dos problemas da vida e a inadequação do entendimento, com seus recursos presentes, para resolvê-los. Ademais, essas mesmas mentes são frequentemente influenciadas pela emoção, pelo desejo sempre presente de encontrar uma solução nobre para todas as questões, talvez uma solução já consagrada pela autoridade e entrelaçada inextricavelmente, para aqueles que sempre a aceitaram, com as sanções da vida espiritual. Uma conclusão assim tão almejada pode facilmente ser uma conclusão que o entendimento, com sua base no senso e com sua demanda por verificação, pode não ser capaz de alcançar. Portanto, a alma apaixonada deve ir para muito além do entendimento, ou então ficará insatisfeita; e a menos que seja extremamente disciplinada e apaixonada, ela não tolerará a insatisfação. De que lugar, então, ela extrairá as perspectivas mais amplas, as harmonias mais profundas que almeja? Somente da imaginação. Não há outra faculdade a ser invocada. A imaginação, portanto, deve fornecer à religião e à metafísica aquelas grandes idéias tingidas de paixão, aquelas formas supra-sensíveis envoltas em temor, nas quais somente uma mente de grande amplitude e vitalidade pode encontrar seus objetos congêneres. Assim, a pedra que o construtor, o entendimento, rejeitou, torna-se a pedra principal da quina; as intuições que a ciência não pôde usar continuam sendo a inspiração da poesia e da religião.
A imaginação, quando assim empregada para antecipar ou corrigir as conclusões do entendimento, obviamente não é chamada de imaginação por aqueles que a ela recorrem. Os professores de religião a chamam de profecia ou revelação, os filósofos a chamam de razão superior. Mas esses nomes são apenas sinônimos elogiosos para a imaginação, o que implica (o que é perfeitamente possível) que a imaginação não nos induziu ao erro. Ao contrário, eles implicam que, em determinados casos, a imaginação chegou a uma verdade suprema. Um profeta, a menos que seja o veículo meramente mecânico de verdades que ele não entende, não pode ser concebido como nada além de um homem de imaginação, cujas visões espelham milagrosamente a verdade. Um metafísico que transcende o intelecto por meio de sua razão só pode ser concebido como alguém que usa sua imaginação para um propósito tão bom quanto o de adivinhar por meio dela as leis ideais da realidade ou os objetivos últimos do esforço moral. Sua razão é uma imaginação que tem sucesso, uma intuição que adivinha o princípio da experiência. Porém, se essa intuição fosse de tal natureza que a experiência pudesse verificá-la, então essa razão ou imaginação superior seria rebaixada ao nível do entendimento; pois o entendimento, como o definimos, é em si mesmo um tipo de imaginação, uma imaginação profética da experiência, uma espontaneidade de pensamento pela qual a ciência da percepção é transformada na arte da vida. É a ausência mesma de verificação que distingue a revelação da ciência; pois quando as profecias da fé são verificadas, a função da fé desaparece. A fé e a razão superior dos metafísicos são, portanto, formas de imaginação que se acredita serem caminhos para a verdade, assim como os sonhos ou oráculos podem, às vezes, ser verdadeiros, não porque sua correspondência necessária com a verdade possa ser demonstrada, pois então eles seriam partes da ciência, mas porque um homem que se debruça sobre essas intuições está consciente de uma certa transformação moral, de um certo calor e energia da vida. Essa emoção, que intensifica suas idéias e lhes dá poder sobre sua vontade, ele chama de fé ou alta filosofia e, sob seu domínio, ele é capaz de enfrentar seu destino com entusiasmo ou, pelo menos, com serenidade.
A imaginação, mesmo quando suas premonições não são totalmente justificadas pela experiência subsequente, tem, portanto, um papel nobre a desempenhar na vida do homem. Sem ela, seus pensamentos não seriam apenas muito limitados para representar, ainda que simbolicamente, a grandeza do universo, mas também muito limitados até mesmo para representar o escopo de sua própria vida e as condições de seu bem-estar prático. Sem a poesia e a religião, a história da humanidade teria sido mais sombria do que é. Não apenas a vida emocional teria sido mais pobre, mas a consciência pública, o espírito nacional e familiar, tão útil para a organização e disciplina moral, dificilmente teria se articulado. Com que argumentação complexa e pouco inspirada o puro moralista teria de insistir nos deveres que a imaginação impõe de forma tão poderosa através de juramentos feitos diante dos deuses, de mandamentos escritos pelo dedo de Deus em tábuas de pedra, de visões sobre o inferno e o céu, de amor e lealdade cavalheirescos e do senso de dignidade e honra familiar? Que apelos intrincados e infrutíferos a interesses positivos teriam de ser feitos antes que essas reações rápidas pudessem ser obtidas junto a grandes grupos de pessoas, que podem ser produzidas pela visão de uma bandeira ou pelo som de um nome? A imaginação é o grande unificador da humanidade. As percepções dos homens podem ser variadas, seus poderes de entendimento muito desiguais, mas a imaginação é, por assim dizer, a auto-consciência do instinto, a contribuição que a capacidade interna e a demanda da mente fazem à experiência. Dar vazão à imaginação é expressar o eu universal, o elemento comum e contagioso em todos os indivíduos, aquela potência rudimentar que todos compartilham. Estimular a imaginação é produzir as emoções mais profundas e pertinentes. Reprimi-la é esfriar a alma, de modo que até mesmo a percepção mais clara da verdade permanece sem a alegria e a impetuosidade da convicção. O papel desempenhado pela imaginação é, portanto, indispensável; mas, obviamente, a necessidade e a beneficência dessa contribuição fazem com que os perigos sejam correspondentemente grandes. Exercendo um grande poder, exercendo uma função onipresente, a imaginação pode abusar de uma grande força. Enquanto suas inspirações coincidem com o que seriam os ditames da razão, se a razão fosse audível no mundo, está tudo bem, e o progresso do homem é acelerado por meio de suas visões; mas, sendo um princípio a priori, a imaginação é um princípio irresponsável; sua retidão é uma retidão interior, e tudo no mundo real pode acabar sendo disposto de forma diferente da que ela desejaria. Nossos preconceitos imaginativos são, então, obstáculos à percepção dos fatos e do dever racional; a fé que estimulou nossos esforços e aumentou nosso ímpeto multiplica nossos desvios. A organização muito apressada de nossos pensamentos torna-se a causa de sua desorganização mais prolongada, pois à obscuridade natural das coisas e à dificuldade de fazê-las se encaixar entre si, acrescentamos as luzes cruzadas de nossos preconceitos e a impossibilidade de encaixar a realidade na moldura que criamos para ela em nossa ignorância de sua constituição e extensão. E como amamos nossas esperanças e detestamos a experiência que parece contradizê-las, acrescentamos o fanatismo à nossa confusão. Os hábitos da imaginação, em conflito com os fatos do senso, acabam, assim, encobrindo a ciência com paixão, com ficção, com preconceito sentimental. E esse não é o fim de nossos problemas. Pois a própria imaginação sofre violência nessa luta; ela busca reduzir-se à conformidade com a existência, na esperança de reivindicar sua autoridade nominal ao preço de algumas concessões. Ela começa a fingir que não exigiu nada além do que encontrou. Assim, ela perde sua honestidade e liberdade, torna-se uma bajuladora das coisas em vez do princípio de sua correção ideal e, na tentativa de provar que é profética e literalmente válida (como em um momento de paixão ela imaginou que fosse), ela perde aquela verdade simbólica, aquela propriedade interior que lhe dava valor moral. Assim, os passos em falso da imaginação levam a uma ciência contorcida e a um ideal servil.
Essas complicações não deixam de inspirar desânimo e uma sensação desesperadora de relatividade do pensamento humano. De fato, se houver algum dom especial da mente e do corpo chamado natureza humana, como parece haver, é óbvio que toda a experiência humana deve ser relativa a isso. No entanto, a verdade, a realidade absoluta, envolve e precede essas operações da faculdade finita. Que valor, então, podemos dizer, têm esses vários ideais ou percepções, ou os conflitos entre eles? Nossos sentidos não são tão humanos, tão “subjetivos” quanto nossas vontades? O entendimento não é tão visionário quanto a fantasia? Ele não transforma o Incognoscível em um símbolo tão remoto quanto o sonho mais vão?
A resposta que uma filosofia racional daria a essas perguntas seria dupla. É verdade que toda idéia é igualmente relativa à natureza humana e que nada pode ser representado na mente humana, exceto por meio da operação de faculdades humanas. Contudo, não é verdade que todos esses produtos da ideação humana tenham o mesmo valor, uma vez que não são igualmente conducentes aos propósitos humanos ou satisfatórios às demandas humanas.
O impulso que descartaria como igualmente sem valor todo produto da arte humana, porque não é indistinguível de alguma suposta realidade externa, não percebe as sérias auto-contradições sob as quais trabalha. Em primeiro lugar, a noção de uma realidade externa é uma noção humana; nossa razão elabora essa hipótese, e sua verificação em nossa experiência é um dos ideais da ciência, assim como sua validade é um dos pressupostos da vida cotidiana. Ao descartar todas as idéias humanas, porque elas estão infectadas de humanidade, todas as idéias humanas estão sendo sacrificadas a uma delas — a idéia de uma realidade absoluta. Se essa idéia, sendo humana, merecia que tais sacrifícios fossem feitos por ela, será que as outras noções da mente não têm direitos? Além disso, mesmo que concedêssemos, para fins de argumentação, a existência de uma realidade que nossos pensamentos fossem essencialmente incapazes de representar, de onde vem o dever de nossos pensamentos de representá-la? De onde vem o valor dessa verdade inatingível? De um ideal da razão humana. Nós cobiçamos a verdade. Assim, a tentativa de considerar toda a ciência humana como relativa e todos os ideais humanos como triviais baseia-se em uma crença cega em uma idéia humana e em uma rendição absoluta a uma paixão humana.
Apesar dessas contradições, que somente uma lógica desapaixonada poderia desvendar completamente, o entusiasta está apto a seguir em frente. A visão da verdade absoluta e da realidade absoluta o intoxica e, como ele é um pensador por demais sutil, um homem por demais íntimo, para aceitar o conteúdo de seus sentidos ou as convenções de sua inteligência como verdades irrestritas, ele se fortalece contra elas com a consciência de sua relatividade e procura se elevar acima delas em suas meditações. Mas elevar-se a quê? Para alguma idéia mais elaborada? A algum objeto, como um cosmo científico ou um credo religioso, reunido por processos mais longos e indiretos do que os da percepção comum? Certamente que não. Se eu renuncio aos meus sentidos e ao intelecto vulgar porque eles estão infectados com a finitude e com o cheiro de humanidade, como posso admitir uma obra de arte, um produto do raciocínio, ou um ídolo fabricado originalmente com as mãos e que agora está todo incrustado, tal como a estátua de Glauco, com acréscimos tradicionais? A poesia, a ciência e a religião, em suas construções positivas, são mais humanas, mais condicionadas, do que os próprios sentidos e o entendimento comum. O amante da realidade inviolável não deve olhar para eles. Se os dados do conhecimento humano devem ser rejeitados como subjetivos, muito mais devemos rejeitar as inferências feitas a partir desses dados pelo pensamento humano. O caminho da verdadeira sabedoria, portanto, se a verdadeira sabedoria é lidar com o Absoluto, só pode estar na abstenção: nem os sentidos nem o entendimento comum, e muito menos a superestrutura erguida sobre eles pela imaginação, lógica ou tradição, devem nos iludir: devemos manter nossos pensamentos fixos na inanidade de tudo isso em comparação com a verdade impensável, com a realidade indivisa e inimaginável. Tudo, diz o místico, é nada, em comparação com o Um.
Essa confusão, cuja contradição lógica acabamos de ver, pode, por falta de uma palavra mais específica, ser chamada de misticismo. Ela consiste na rendição de uma categoria de pensamento por causa da descoberta de sua relatividade. Se eu visse, raciocinasse ou julgasse com base em tal categoria, eu estaria vendo, raciocinando ou julgando de uma maneira específica, de uma maneira condicionada por minha natureza finita. Mas o específico e o finito, sinto, são odiosos; portanto, que eu aspire a ver, raciocinar e julgar de nenhuma maneira específica ou finita — isto é, não ver, raciocinar ou julgar de modo algum. Assim, serei como o Infinito, ou melhor, me tornarei um com o Infinito e (pensamento maravilhoso!) um com o Um.
O ideal do misticismo é, portanto, exatamente contrário ao ideal da razão; em vez de aperfeiçoar a natureza humana, ele busca aboli-la; em vez de construir um mundo melhor, ele solaparia os alicerces até mesmo do mundo que já construímos; em vez de desenvolver nossa mente para um escopo e uma precisão maiores, ele retornaria à condição de protoplasma — à abençoada consciência de uma Realidade Inalterável. Nos estágios primários, é claro, o misticismo não se aventura a abolir todas as nossas idéias ou a renunciar a todas as nossas categorias de pensamento. Assim, muitos místicos cristãos ainda se apegaram, por respeito à autoridade, à teologia tradicional, e muitos místicos filosóficos abriram algum espaço para a vida e a ciência nos pós-escritos que eles, tal como Parmênides, anexaram ao monismo vazio de seus sistemas. Porém, tais concessões ou hesitações são inconsistentes com o espírito místico, que nunca se satisfará, se for plenamente desenvolvido e destemido, com nada menos que o Nada Absoluto.
Pela mesma razão, entretanto, de que o misticismo é uma tendência a obliterar as distinções, um misticismo parcial muitas vezes serve para trazer à tona, com maravilhosa intensidade, os estratos subjacentes da experiência que ainda não foram decompostos. A destruição do edifício da razão pode, às vezes, revelar seus fundamentos. Ou o desaparecimento de um departamento de atividade pode lançar a mente com maior energia em outro. Assim, Espinosa, que combinou o misticismo na moral com o racionalismo na ciência, pode trazer à tona o naturalismo irrestrito de seu sistema com uma pureza e uma imponência que são impossíveis para os homens que ainda retêm um mundo ideal e buscam dirigi-lo, bem como descrevê-lo. Tendo renunciado a todas as categorias ideais, Espinosa tem apenas as categorias materiais para cobrir o terreno. Assim, ele adquire toda a intensidade concentrada, toda a esplêndida estreiteza que pertencia a Lucrécio, enquanto seu tratamento místico das esferas que Lucrécio simplesmente ignorou lhe dá a aparência de uma profundidade maior. Assim, um cristão comum que seja místico, digamos, em relação ao tempo e ao espaço, pode usar seu transcendentalismo nessa esfera para intensificar seu positivismo na teologia e enfatizar sua entrega de alma inteira a uma vida devota.
O que é impossível é ser um transcendentalista “por inteiro”. Nesse caso, não haveria mais nada para transcender; a guerra civil da mente teria terminado com o extermínio de todas as partes. A arte do misticismo é ser místico em alguns pontos e apontar as armas pesadas de sua filosofia transcendental contra aquelas realidades ou idéias que você considera particularmente irritantes. Plantado em seu dogma mais querido, em seu postulado mais precioso, você pode, então, transcender todo o resto para o contentamento de seu coração. Você pode dizer, com um ar de profundidade iluminada, que nada é “realmente” certo ou errado, porque na Natureza todas as coisas são regulares e necessárias, e Deus não pode agir com propósitos como se sua vontade já não estivesse cumprida; seu misticismo na religião e na moral é mantido de pé, por assim dizer, pelo suporte rígido fornecido por sua cosmologia materialista. Ou você pode dizer com um tom de êxtase devoto que todas as imagens e sons são mensagens diretas da Divina Providência para a alma, sem que nenhum objeto “realmente” exista no espaço; seu misticismo sobre o mundo da percepção e da inferência científica é sustentado pelos dogmas teológicos ingênuos que você substitui pelas concepções do senso comum. No entanto, entre essas parcialidades e negações cegas, o insight positivo de um homem parece prosperar, e ele se fortalece e se concentra em seu terreno escolhido por meio de suas exclusões arbitrárias. A arte paciente de racionalizar os vários lados da vida, tanto o observacional quanto o moral, sem confundi-los, é uma arte que, aparentemente, raramente é dada à pressa e à pugnacidade dos filósofos.
Por isso, o misticismo, embora seja um princípio de dissolução, traz consigo a salvaguarda de que nunca pode ser aplicado de maneira consistente. Nós o alcançamos apenas em momentos excepcionais de intuição, dos quais descemos às nossas panelas e frigideiras com os hábitos e instintos praticamente intactos. A vida continua; as virtudes e os afetos perduram, não sendo pior, sente o místico, por causa daquela leve película de irrealidade que os envolve em uma mente que não está desacostumada com o êxtase. E, embora o misticismo, deixado livre para se expressar, não possa ter outro objetivo senão o Nirvana, ainda assim, moderadamente tolerado e devidamente inibido por um resíduo de sanidade convencional, ele serve para dar um toque de estranheza e elevação ao caráter e para sugerir dons sobre-humanos. No entanto, isso não é nem um pouco sobre-humano. Quase não é anormal, sendo apenas um exagero de um interesse racional nas mais altas abstrações. O divino, o universal, o absoluto, até mesmo o Um, são concepções legítimas. São termos do pensamento humano que, como tais, têm um significado na linguagem e um lugar na especulação. Aqueles que vivem na mente, cujas paixões são apenas audíveis nos tons agudos da dialética, são sem dúvida naturezas exaltadas e privilegiadas, escolhendo uma parte melhor que não deve ser tirada deles. Assim, o poeta e o matemático têm suas esferas de trabalho abstrato e delicado, nas quais um legislador liberal não os perturbaria. O problema só surge quando o dialético representa seus sonhos racionais como conhecimento das existências, e o místico representa seus desvarios justificáveis como o único modo de vida. Os poetas e matemáticos não imaginam que suas buscas os elevam acima das limitações humanas e que não fazem parte da vida humana, mas sim que são seu único objetivo e justificativa. Tal pretensão seria considerada uma loucura no matemático ou no poeta; e o místico não é um homem tão miserável quanto eles? Ele não está incorporando, em sua melhor forma, o poder analítico de um lógico ou a imaginação de um entusiasta e, em sua pior forma, as paixões mais baixas e obscuras da natureza humana?
Sim, a despeito de si próprio, o místico continua sendo humano. Nada é mais normal do que a abstração. Uma mente contemplativa abandona facilmente suas preocupações práticas e se eleva facilmente a uma simpatia ideal com as coisas impessoais. As rodas do universo têm um magnetismo maravilhoso para a vontade humana. Nossa consciência gosta de se perder na música das esferas, uma música que os ouvidos mais aguçados às vezes têm o privilégio de captar. O melhor lado do misticismo é um interesse estético em grandes unidades e leis cósmicas. A atitude estética não é moral, mas nem por isso é ilegítima. Ela nos refresca e nos dá um vislumbre daquela perfeita adaptação das coisas às nossas faculdades e de nossas faculdades às coisas que, se pudesse se estender a todas as partes da experiência, constituiria a vida ideal. Essa felicidade nos é negada no concreto, mas um indício e um exemplo dela podem ser obtidos por um elemento abstrato de nossa natureza enquanto ela viaja por um mundo abstrato. Essa indulgência acrescenta ao valor da realidade apenas o valor que ela mesma pode ter em uma experiência momentânea; pode ter um efeito moral duvidoso sobre o próprio feliz sonhador. Mas ela serve para manter viva a convicção, que uma experiência confusa poderia obscurecer, de que a perfeição é essencialmente possível; ela nos lembra, como a música, que há mundos distantes do atual que ainda são vivos e muito próximos do coração. Esse é o fruto da abstração, quando a abstração dá algum fruto. Se a imaginação simplesmente nos afasta da realidade, sem nos dar um modelo para sua correção ou um vislumbre de sua estrutura, ela se torna o refúgio do egoísmo poético. Esse egoísmo é estéril, e a fantasia, alimentando-se apenas de si mesma, fica mais magra a cada dia. O misticismo é geralmente uma doença incurável. Os fatos não podem despertá-lo, pois ele nunca os negou. A razão não pode convencê-lo, pois a razão é uma faculdade humana, assumindo uma validade que não pode provar. A única coisa que pode matar o misticismo é seu próprio progresso ininterrupto, pelo qual ele gradualmente devora cada função da alma e, por fim, destruindo sua própria base natural, imola-se ao seu ideal inexorável.
Será que precisamos perguntar, depois de todas essas reflexões, onde devemos procurar a expansão e a elevação da mente que o místico busca de maneira tão apaixonada e tão pouco inteligente? Podemos encontrar essa expansão, em primeiro lugar, na própria imaginação. Esse é o verdadeiro reino da infinitude do homem, onde a novidade pode existir sem falsidade e a diversidade perpétua sem contradição. No entanto, esse exercício de imaginação deixa o mundo do conhecimento intocado. Será que não há escapatória da prisão, conforme pensa o místico, da ciência e da história, que ainda assim não nos levará para além da realidade? Não há verdade para além da verdade convencional, não há vida por detrás da existência humana?
Certamente que sim. Por trás do que foi descoberto há aquilo que pode ser descoberto, para além do que é atual, há aquilo que é possível. A ciência e a história não estão esgotadas. Em suas direções determinadas, elas são tão infinitas quanto a fantasia em sua indeterminação. O espetáculo que a ciência e a história agora apresentam diante de nós está tão para além da experiência de um inseto efêmero quanto qualquer Absoluto pode estar para além da nossa; no entanto, montamos esse espetáculo a partir de sensações como as que o inseto pode ter — a partir dessa luz solar, desse zumbido e dessas pulsações momentâneas da existência. O entendimento de fato se sobrepôs, mas não para negar a validade dessas sensações, mas para combinar suas mensagens. Ainda podemos continuar no mesmo caminho, pela extensão indefinida da ciência sobre um mundo de experiência e de verdade inteligível. Essa perspectiva é insuficiente para nossa ambição? Tendo diante de si um mundo tão repleto de coisas, dificilmente posso conceber por qual instinto mórbido um homem pode ser tentado a buscar vistas mais amplas em outro lugar, a não ser que seja a falta de vontade de suportar a tristeza e a disciplina da verdade.
Mas será que nossa situação pode ser melhorada se nos recusarmos a entendê-la? Se renunciássemos totalmente ao misticismo e mantivéssemos a imaginação em seu lugar, não viveríamos em um mundo mais claro e seguro, além de mais verdadeiro? Não, temos certeza de que esse mundo que se revela gradualmente, que é inteligível e real, não se tornaria mais agradável e belo do que qualquer ficção intencional, uma vez que seria o produto de um trabalho humano universal e o cenário dos sofrimentos e triunfos acumulados da humanidade? Quando comparamos o templo que chamamos de Natureza, construído de imagens e sons pela memória e pelo entendimento, com todos os mundos maravilhosos evocáveis pela varinha de condão, não podemos preferir o edifício mais humilde e mais duradouro, não apenas como moradia, mas até mesmo como casa de oração? Nem sempre é a arquitetura mais elevada que expressa a alma mais profunda; a religião mais íntima do pagão assombrava sua lareira, assim como a do cristão assombrava suas catacumbas ou seu eremitério. Por isso, a filosofia é mais espiritual em sua humildade e abstinência do que em suas audácias efêmeras, e ela faria bem em inscrever sobre seus portões o que, em uma antiga igreja espanhola, pode ser visto escrito perto da entrada íngreme de uma pequena cripta subterrânea: —
“Wouldst thou pass this lowly door?
Go, and angels greet thee there;
For by this their sacred stair
To descend is still to soar.
Bid a measured silence keep
What thy thoughts be telling o’er;
Sink, to rise with wider sweep
To the heaven of thy rest,
For he climbs the heavens best
Who would touch the deepest deep.“1
Nota:
- “Deseja passar por esta humilde porta?
Vá, e os anjos lá te receberão;
Pois por esta escada sagrada
Descer ainda é subir.
Mantenha em um silêncio medido
Aquilo que seus pensamentos estão dizendo;
Afunde-se, para se elevar com maior amplitude
Até o céu de seu descanso,
Pois quem melhor sobe aos céus
É quem quer tocar as profundezas mais profundas.” ↩︎
Se esta tradução foi útil para você, apoie nosso projeto através de um Pix de qualquer valor para que possamos continuar trazendo mais conteúdos como esse. Agradecemos imensamente pelo seu apoio! Chave Pix: diariointelectualcontato@gmail.com