No universo literário, há uma forma de descrição da realidade que traz consigo a expressão poética da vida do homem moderno, a saber, a literatura de detetive. A arte proveniente desse estilo de ficção, muitas vezes marginalizado por ser tão pouco compreendido, apreende em sua completude as experiências vivenciadas em uma sociedade urbana que transita entre o caos, resultante dos inimigos da cidade (os criminosos), e o bem público – o fundamento de toda a autoridade social. Dentre os grandes autores de histórias de detetive, G.K. Chesterton se destaca por criar um detetive na pessoa de um pároco (o padre Brown) e por fundir os mistérios dos contos de detetive com os princípios do catolicismo romano.
A estrutura do desenvolvimento narrativo das histórias de detetive apresenta dois personagens que se confrontam entre si. Um deles é o heroi, compatível com a civilização moderna, que combate o crime em nome da justiça. Encontra-se assim no detetive a similitude com os grandes herois dos contos de fada que, sem hesitar, expõe sua própria vida ao perigo para realizar seus intentos; todavia seus intentos não se esgotam apenas na satisfação pessoal, mas concorrem para a defesa da paz social, decorrente do império da justiça, e o ocaso do caos. Neste diapasão, faz-se necessário aludir às sábias palavras de G.K. Chesterton: “O detetive é um agente da justiça.” O outro personagem de destaque é o vilão, que, a princípio, deve ser travestido de alguém insuspeito de cometer o crime a ser solucionado, alguém cujas ações não guardam proximidades, em primeira análise, com os atos executórios do delito repugnável, objeto de investigação criminal. Em síntese, o conto se desenvolve perpassando por dois extremos em torno dos quais gravita o enredo que descreve a essência dos personagens centrais ao mesmo tempo em que expõe o contraste irreconciliável entre a virtude cristã – que é, na visão de mundo do padre Brown, o ajuste necessário à reta procedência do homem – e as infinitas doenças mentais e espirituais que assolam a existência humana ao longo das épocas.
Contrário à harmonia social, o agente da desordem traz esculpida em si a essência do mal que deve ser combatido pelo agente da justiça, o detetive. Não obstante, sendo a justiça um instrumento de paz social, pode-se afirmar que na história de detetive a atividade do heroi testifica também a importância do princípio da autoridade, posto que nas palavras do papa Leão XIII (encíclica Immortale Dei): “É nula a autoridade onde não há justiça.” Sendo assim, o conto de detetive defende e reafirma a autoridade como pedra angular da justiça e da ordem pública em contraposição ao desajuste social oriundo da atividade criminosa que corrompe a alma humana e a paz social. É neste contraste de princípios – protagonizado pelo encontro entre o herói e o vilão – que Chesterton desenvolve o embate intelectual entre o padre Brown e seus opositores no intuito de fazer erigir na pessoa do detetive as virtudes mais caras e indispensáveis à civilização ocidental cristã, ao mesmo tempo em que grava no criminoso os vícios destrutivos que o afastam do bem e da virtude. Ao fim e ao cabo, o padre vence o confronto sobre a mente criminosa nos dois planos – o espiritual e o intelectual. O triunfo do iminente pároco resulta do conhecimento que possui tanto do tesouro de verdades da existência humana, que estão guardadas no seio da igreja católica, quanto dos enigmas mentais mais insondáveis dos quais tomou conhecimento quando de sua atividade no confessionário que o permitiu adentrar no íntimo do fenômeno mais diabólico que assombra a existência humana: a mentalidade criminosa, que é reflexo da decadência moral e espiritual na alma desordenada do peregrino errante.
O universo em que ocorre o confronto entre o padre Brown e os vilões é a cidade, nela tem-se um tesouro infindável de experiências arquetípicas que são capazes de enriquecer poeticamente e psicologicamente o núcleo do enredo, visto que a cidade nada mais é que uma nova configuração da antiga selva em que viviam os primórdios da humanidade. Na história de detetive, o agente da justiça perpassa pela mesma experiência vivenciada por Robson Crusoé que, após um naufrágio, viu-se perdido em um ambiente completamente hostil e perigoso. A similitude da experiência, ensina Chesterton em seus ensaios sobre as histórias de detetive, reside no fato de que a cidade é também um ambiente hostil e perigoso ao detetive que enfrenta os riscos urbanos tal como Robson Crusoé enfrentou os perigos da ilha selvagem ou como um guerreiro enfrenta, nos contos de literatura fantástica, inimagináveis perigos para desbravar a mais inóspita e assombrosa das florestas. Ao realizar grandes prodígios no universo da cidade, o detetive dos contos de mistério assume o caráter de “gente superior”, sendo que nele, assim como no herói dos contos de fada, estão gravadas as virtudes mais elevadas. Cabe ainda apontar que a figura do padre Brown não se esgota no imaginário do homem superior, aos moldes do imitativo elevado, sendo que é também mímesis de “gente inferior” no que se refere tão somente ao cômico grotesco decorrente de hilárias ações inferiores (ações sem importância) que são protagonizadas ao longo dos contos. Nessa perspectiva, as histórias de detetive de Chesterton assumem também as características provenientes da antiga comédia grega. A fusão entre o imitativo elevado e o imitativo inferior (quanto ao cômico grotesco) é um paradoxo que só se harmoniza dentro do cristianismo.
Os contos policiais se desenvolvem, grosso modo, em duas etapas. Na primeira o autor oculta o mistério desviando, temporariamente, o foco de atenção do leitor para que não o desvende facilmente. Na segunda, o autor traz ao leitor pequenas pistas em detalhes sucessivos que vão elucidar, aos poucos, o mistério ocultado. Nessa última etapa, o mistério, quando de sua elucidação, provoca surpresa admirável no leitor; não é apenas qualquer surpresa, contudo uma que valha muito a pena esperar. Para tanto, o autor desenvolve suspeitas óbvias demais, porém falsas, e o faz propositadamente com um único intuito: ocultar o mistério que será solucionado apenas no momento adequado, ou seja, depois de dirimidas todas as obviedades elementares que desviavam a atenção do leitor das evidências mais relevantes sobre a atividade criminosa executada. Nas histórias do padre Brown há ainda uma característica particular, a saber, o detetive – por ser um padre – tem como função precípua não apenas a elucidação do mistério, mas avançar irresistivelmente sobre a consciência do criminoso com o intuito de, além de convencê-lo do crime, levá-lo à absolvição de seus pecados mediante o recurso sacramental da confissão. Disso se depreende que a atuação do sábio pároco não tem como escopo final levar o criminoso à condenação civil, mas livrá-lo da condenação eterna. Seguindo o exemplo de Cristo – que não lançou fora Dimas, o ladrão que reconhecera o Filho de Deus como Salvador no último ato de sua vida –, o pároco-heroi se compadece do pecador com o mesmo senso de caridade: não se exime de trazer à alma febril o necessário refrigério que acalma o coração humano e o conduz à bem-aventurança eterna, ainda que o coração aflito pertença ao mais terrível dos ladrões.
Por fim, a excelência da surpresa se manifesta quando o crime é desvendado e todas as primeiras impressões, às quais o leitor se ateve desde o início no afã de sustentar suas convicções, são desfeitas tão facilmente como uma cortina de fumaça. Nesse contexto, há o alerta para o fato de que é comum o homem se deparar com situações em que as obviedades trazem consigo um verniz de verdade inquestionável que posteriormente se revela falsa após a averiguação profunda dos fatos. Desta última assertiva extrai-se um retrato único – a civilização moderna. A mente do homem moderno perde-se em aparentes verdades, que são insustentáveis à luz da reta razão e irresistíveis ao teste do tempo, e perambula por caminhos aparentemente seguros; mas que no final se revelam desesperadores. Na lição de Chesterton: “Todos os caminhos levam a Roma.” Ou, de forma mais clara e precisa, todos os caminhos seguros levam a Roma. Esta expressão refere-se ao fato de que só a Igreja Católica tem o mapa fiel de todas as vias seguras – pelas quais o homem pode transitar sem se perder no labirinto tenebroso e ilusório que se chama mundo – e as lentes precisas que o fazem enxergar além de suas próprias perspectivas e superar a tentação de se deixar seduzir por falsas verdades tal como os néscios cujos princípios acompanham o sabor das modas. O homem prudente, ao contrário do néscio, foge das modas porque compreende que a sabedoria das épocas é mais inteligente que a sabedoria da época, e sabe também que é preciso amar a verdade com a pureza da pomba e defendê-la com a perspicácia da serpente para avançar na apreensão do mistério da vida eterna, que só pode ser desmistificado dentro das verdades do catolicismo romano. Como tudo que impede o homem de conhecer a verdade é maligno, é imperioso recordar as seguintes palavras de São Francisco de Assis: “Onde há erro que eu leve verdade.”
Referências bibliográficas:
- A Defence of Detective Stories (1901), Chesterton;
- Errors about Detective Stories (1920), Chesterton;
- How to Write a Detective Story (1925) Chesterton;
- The Ideal Detective Story (1930), Chesterton;
- A Inocência do Padre Brown, Chesterton;
- Todos os Caminhos levam a Roma, Chesterton;
- Carta encíclica Immortale Dei, Papa Leão XIII.
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