Platão (429? – 347 A.E.C.) é, unanimamente, um dos escritores mais deslumbrantes da tradição literária ocidental e um dos autores mais profundos, abrangentes e influentes da história da filosofia. Cidadão ateniense de boa condição, ele exibe, em suas obras, seu envolvimento nos eventos políticos e nos movimentos intelectuais de seu tempo, mas as questões que ele levanta são tão profundas, e as estratégias que usa para enfrentá-las são tão ricamente sugestivas e provocativas, que leitores instruídos de quase todos os períodos foram de alguma forma influenciados por ele, e em praticamente todas as épocas há filósofos que se consideram platonistas em alguns aspectos importantes. Ele não foi o primeiro pensador ou escritor a quem a palavra “filósofo” deve ser aplicada. Porém Platão se mostrou tão consciente a respeito de como a filosofia deve ser concebida e de quais são propriamente seu escopo e ambições, e ele transformou de tal forma as correntes intelectuais com as quais lidou, que o tema da filosofia, como este é frequentemente concebido — um exame rigoroso e sistemático das questões éticas, políticas, metafísicas e epistemológicas, armado de um método distinto —, pode ser chamado de sua invenção. Poucos outros autores na história da filosofia ocidental se aproximam dele em profundidade e alcance: talvez apenas Aristóteles (que estudou com ele), Aquino e Kant seriam geralmente aceitos como sendo da mesma categoria.
- 1. As doutrinas centrais de Platão
- 2. Os enigmas de Platão
- 3. Diálogo, cenário, personagem
- 4. Sócrates
- 5. A comunicação indireta de Platão
- 6. Podemos conhecer a mente de Platão?
- 7. Sócrates como o orador dominante
- 8. Ligações entre os diálogos
- 9. Platão muda de ideia sobre as formas?
- 10. Platão muda de ideias sobre a política?
- 11. O Sócrates histórico: diálogos iniciais, intermediários e tardios
- 12. Por que diálogos?
- Bibliografia
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1. As doutrinas centrais de Platão
Muitas pessoas associam Platão a algumas doutrinas centrais que são defendidas em seus escritos: o mundo que aparece aos nossos sentidos é de alguma forma defeituoso e cheio de erros, mas existe um reino mais real e perfeito, povoado por entidades (chamadas de “formas” ou “ideias”) que são eternas, imutáveis e, em algum sentido, paradigmáticas para a estrutura e o caráter do mundo apresentado aos nossos sentidos. Entre os mais importantes desses objetos abstratos (como são chamados agora, porque não estão localizados no espaço ou no tempo) estão a bondade, a beleza, a igualdade, a grandeza, a afinidade, a unidade, o ser, a semelhança, a diferença, a mudança e a imutabilidade. (Estes termos — “bondade”, “beleza”, e assim por diante — são muitas vezes capitalizados por aqueles que escrevem sobre Platão, a fim de chamar a atenção para seu elevado status; o mesmo ocorre com “Formas” e “Ideias”). A distinção mais fundamental na filosofia de Platão é entre os muitos objetos observáveis que parecem belos (bons, justos, unificados, iguais, grandes) e o único objeto que é o que é realmente a beleza (bondade, justiça, unidade), do qual essas muitas coisas belas (boas, justas, unificadas, iguais, grandes) recebem seus nomes e suas características correspondentes. Quase todas as grandes obras de Platão são, de alguma forma, dedicadas ou dependentes dessa distinção. Muitas delas exploram as consequências éticas e práticas de conceber a realidade desta maneira, bifurcada. Somos instados a transformar nossos valores, levando a sério a maior realidade das formas e a defectividade do mundo corpóreo. Devemos reconhecer que a alma é um tipo de objeto diferente do corpo — tanto que não depende da existência do corpo para seu funcionamento, e pode, de fato, compreender a natureza das formas muito mais facilmente quando está totalmente desprovida de sua ligação com o corpóreo. Em algumas obras de Platão, nos é dito que a alma sempre conserva a capacidade de lembrar o que uma vez compreendeu das formas, quando foi desencarnada antes do nascimento de seu possuidor (ver especialmente o Mênon), e que as vidas que levamos são em certa medida um castigo ou uma recompensa por escolhas que fizemos em uma existência anterior (ver especialmente as páginas finais da República). Mas, em muitos dos escritos de Platão, é afirmado ou assumido que os verdadeiros filósofos — aqueles que reconhecem como é importante distinguir o um (a coisa una que a bondade é, ou a virtude é, ou a coragem é) dos múltiplos (as muitas coisas que são chamadas boas, virtuosas ou corajosas) — estão em posição de se tornarem eticamente superiores aos seres humanos não iluminados, devido ao maior grau de discernimento que podem adquirir. Para entender quais coisas são boas e por que são boas (e se não estivermos interessados em tais perguntas, como podemos nos tornar bons?), devemos investigar a forma do bem.
2. Os enigmas de Platão
Embora essas proposições sejam frequentemente identificadas pelos leitores de Platão como representantes de uma grande parte do núcleo de sua filosofia, muitos de seus maiores admiradores e estudantes mais cuidadosos apontam que poucos de seus escritos, talvez nenhum, podem ser precisamente descritos como a mera defesa de um grupo esquematizado de proposições. Muitas vezes os trabalhos de Platão exibem um certo grau de insatisfação e perplexidade até mesmo com aquelas doutrinas que estão sendo recomendadas à nossa consideração. Por exemplo, as formas são às vezes descritas como hipóteses (ver, por exemplo, o Fédon). A forma do bem, em particular, é descrita como algo misterioso cuja verdadeira natureza é elusiva e ainda desconhecida para qualquer pessoa (República). Enigmas são levantados — e não são respondidos abertamente — sobre como qualquer uma das formas pode ser conhecida e como devemos falar sobre elas sem cair em contradição (Parmênides), ou sobre o que é saber alguma coisa (Teeteto), ou como se deve nomear alguma coisa (Crátilo). Quando se compara Platão com alguns dos outros filósofos que são frequentemente classificados com ele — Aristóteles, Aquino e Kant, por exemplo — pode-se reconhecer que ele é muito mais exploratório, menos sistemático, mais esquivo e mais brincalhão do que eles. Essa — junto a seus dons de escritor e criador de um personagem vívido e de um cenário dramático — é uma das razões pelas quais ele é frequentemente considerado o autor ideal de quem se deve receber uma introdução à filosofia. Seus leitores não são expostos a um sistema elaborado de doutrinas consideradas tão plenamente trabalhadas que não necessitam de mais exploração ou desenvolvimento; em vez disso, o que muitas vezes recebemos de Platão são algumas ideias-chave acompanhadas de uma série de sugestões e de problemas sobre como essas ideias devem ser interrogadas e implantadas. Os leitores de um diálogo platônico são levados a pensar por si mesmos sobre as questões levantadas, se quiserem aprender o que o diálogo em si pode lhes dizer sobre eles mesmos. Muitas de suas obras, portanto, dão a seus leitores um forte senso da filosofia como um assunto vivo e inacabado (talvez um que nunca possa ser concluído), para o qual eles mesmos terão que contribuir. Todas as obras de Platão são concebidas de forma a deixar mais trabalho a seus leitores, contudo, entre as que mais se enquadram nessa categoria, estão Eutífron, Laques, Cármides, Eutidemo, Teeteto e Parmênides.
3. Diálogo, cenário, personagem
Há outra característica dos escritos de Platão que o torna distinto entre os grandes filósofos e colore nossa experiência dele como autor. Quase tudo o que ele escreveu toma a forma de um diálogo. (Há uma exceção marcante: sua Apologia, que pretende ser o discurso que Sócrates fez em sua própria defesa — a palavra grega apologia significa “defesa” — quando, em 399, ele foi juridicamente acusado e condenado pelo crime de impiedade. No entanto, mesmo ali, Sócrates é apresentado em um determinado ponto abordando questões de caráter filosófico e respondendo-as a seu acusador, Meleto. Além disso, desde a antiguidade, uma coleção de 13 cartas foi incluída entre suas obras reunidas, mas sua autenticidade como composições de Platão não é universalmente aceita entre os estudiosos, e muitas, ou a maioria delas, quase certamente não são suas. Grande parte delas pretende ser o resultado de seu envolvimento na política de Siracusa, uma cidade grega fortemente povoada, localizada na Sicília e governada por tiranos).
Estamos naturalmente familiarizados com a forma de diálogo graças ao nosso conhecimento do gênero literário do drama. Todavia os diálogos de Platão não tentam criar um mundo fictício com o propósito de contar uma história, como fazem muitos dramas literários; nem invocam um reino mítico anterior, como as criações dos grandes poetas trágicos gregos, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Ademais, nem todos eles são apresentados sob a forma de um drama: em muitos deles, um único orador narra eventos nos quais participou. São discussões filosóficas — “debates” seria, em alguns casos, também uma palavra apropriada — entre um pequeno número de interlocutores, muitos dos quais podem ser identificados como figuras históricas reais; e muitas vezes começam com uma descrição do cenário da discussão — uma visita a uma prisão, a casa de um homem rico, uma celebração com bebidas, uma festa religiosa, uma visita ao ginásio, um passeio fora do muro da cidade, uma longa caminhada em um dia quente. Agrupados, eles formam retratos vívidos de um mundo social, e não são puramente trocas intelectuais entre falantes sem caráter e sem marca social. (Em todo caso, isso é verdade para um grande número dos interlocutores em Platão. Entretanto, deve-se acrescentar que em algumas de suas obras os oradores apresentam pouco ou nenhum caráter. Veja, por exemplo, Sofista e Político, nos quais um visitante da cidade de Elea, no sul da Itália, lidera a discussão; e Leis, uma discussão entre um ateniense sem nome e dois personagens fictícios nomeados, um de Creta e outro de Esparta). Em muitos de seus diálogos (embora não em todos), Platão não só está tentando atrair seus leitores para uma discussão, mas também está comentando sobre o meio social que ele está retratando, e criticando o caráter e os modos de vida de seus interlocutores. Alguns dos diálogos que mais evidentemente se enquadram nessa categoria são Protágoras, Górgias, Hípias Maior, Eutidemo e Banquete.
4. Sócrates
Há um interlocutor que fala em quase todos os diálogos de Platão, estando completamente ausente apenas em Leis, essa que testemunhos antigos nos dizem ser uma de suas últimas obras: esse personagem é Sócrates. Como quase todos os que aparecem nas obras de Platão, Sócrates não é uma invenção de Platão: havia realmente um Sócrates como havia realmente um Críton, um Górgias, um Trasímaco e um Laques. Platão não foi o único autor cuja experiência pessoal de Sócrates levou à representação deste como personagem em uma ou mais obras dramáticas. Sócrates é um dos personagens principais da comédia de Aristófanes, Nuvens; e Xenofonte, o historiador e líder militar, escreveu, como Platão, tanto uma Apologia de Sócrates (um relato do julgamento de Sócrates) quanto outras obras nas quais Sócrates aparece como orador principal. Além disso, temos alguns restos fragmentários de diálogos escritos por outros contemporâneos de Sócrates, além de Platão e Xenofonte (Ésquines, Antístenes, Euclides, Fédon), e estes têm o propósito de descrever conversas que ele teve com outros. Assim, quando Platão escreveu os diálogos que caracterizam Sócrates como orador principal, ele estava tanto contribuindo para um gênero inspirado na vida de Sócrates quanto participando de um animado debate literário sobre o tipo de pessoa que Sócrates era e sobre o valor das conversas intelectuais nas quais ele estava envolvido. O retrato cômico do Sócrates de Aristófanes é, ao mesmo tempo, uma crítica amarga a ele e a outras figuras intelectuais importantes da época (as de 420 a.C.). No entanto, de Platão, Xenofonte e outros compositores (nos anos 390 e posteriores) dos “discursos socráticos” (como Aristóteles chama esse corpo de escritos) recebemos uma impressão muito mais favorável.
Evidentemente, o Sócrates histórico foi o tipo de pessoa que provocou naqueles que o conheciam, ou que sabiam algo dele, uma resposta profunda, e inspirou muitos daqueles que estavam sob sua influência a escrever sobre ele. Porém, os retratos compostos por Aristófanes, Xenofonte e Platão são os que sobreviveram intactos e, portanto, são os que devem desempenhar o maior papel na formação de nossa concepção de como Sócrates era. Destes, Nuvens tem o menor valor como indicação do que era distintivo na forma de filosofar de Sócrates: afinal, não pretende ser uma obra filosófica, e, embora possa conter algumas linhas que são caracterizações de características exclusivas de Sócrates, na maioria das vezes é mais um ataque a um tipo filosófico — o cabeludo sujo, amoral, e investigador de fenômenos obscuros — do que uma representação do próprio Sócrates. A representação de Sócrates por Xenofonte, qualquer que seja seu valor como testemunho histórico (que pode ser significativo), é geralmente considerada como carente da sutileza filosófica e da profundidade de Platão. De qualquer forma, ninguém (certamente nem o próprio Xenofonte) considera Xenofonte como um grande filósofo de direito próprio; quando lemos suas obras socráticas, não encontramos uma grande mente filosófica. Mas é isso que experimentamos quando lemos Platão. Podemos ler os diálogos socráticos de Platão porque estamos (como Platão evidentemente queria que estivéssemos) interessados em quem era Sócrates e no que ele representava, mas mesmo que tenhamos pouco ou nenhum desejo de aprender algo sobre o Sócrates histórico, vamos querer ler Platão porque, ao fazê-lo, estamos encontrando um autor da maior importância filosófica. Sem dúvida, ele de alguma forma tomou emprestado importantes ensinamentos de Sócrates, embora não seja fácil dizer onde traçar a linha entre ele e seu professor (mais sobre isso abaixo, na seção 12). Porém, é amplamente consenso entre os estudiosos que Platão não é uma mera transcrição das palavras de Sócrates (não mais do que Xenofonte ou os outros autores de discursos socráticos). Seu uso de uma figura chamada “Sócrates” em tantos de seus diálogos não deve ser tomado como significando que Platão está meramente preservando para um público leitor as lições que ele aprendeu de seu professor.
5. A comunicação indireta de Platão
Convém ter em mente que Sócrates não aparece em todos os trabalhos de Platão. Ele não aparece nas Leis, e há vários diálogos (Sofista, Político, Timeu) nos quais seu papel é pequeno e periférico, enquanto alguma outra figura domina a conversa ou mesmo, como no Timeu e no Crítias, apresenta um discurso longo e elaborado, contínuo e próprio. Os diálogos de Platão não são uma forma literária estática; não apenas seus temas variam, não apenas seus oradores variam, mas o papel desempenhado pelas perguntas e respostas nunca é o mesmo de um diálogo para o outro. (O Banquete, por exemplo, é uma série de discursos, e há também longos discursos na Apologia, Menexêno, Protágoras, Críton, Fédon, Timeu e Crítias; de fato, pode-se razoavelmente questionar se essas obras são apropriadamente chamadas de diálogos). Contudo, embora Platão tenha constantemente adaptado “a forma de diálogo” para se adequar a seus propósitos (um termo comumente usado, e conveniente o suficiente, desde que não pensemos nele como uma unidade invariável), é impressionante que ao longo de sua carreira como escritor ele nunca tenha se dedicado a uma forma de composição que era amplamente utilizada em seu tempo e que logo se tornaria o modo padrão de discurso filosófico: Platão nunca se tornou um escritor de tratados filosóficos, embora a escrita de tratados (por exemplo, sobre retórica, medicina e geometria) fosse uma prática comum entre seus predecessores e contemporâneos. (O mais próximo de uma exceção a essa generalização é a sétima carta, que contém uma breve seção na qual o autor, Platão ou alguém fingindo ser ele, se compromete com vários pontos filosóficos — insistindo, ao mesmo tempo, que nenhum filósofo escreverá sobre os assuntos mais profundos, mas comunicará seus pensamentos apenas em discussão privada com indivíduos selecionados. Como observado acima, a autenticidade das cartas de Platão é um assunto de grande controvérsia; e, em todo caso, o autor da sétima carta declara sua oposição à escrita de livros filosóficos. Quer Platão a tenha escrito ou não, ela não pode ser considerada como um tratado filosófico, e seu autor não desejava que ela fosse considerada assim). Em todos os seus escritos — exceto nas cartas, se alguma delas for genuína — Platão nunca fala diretamente ao seu público e em sua própria voz. A rigor, ele mesmo não afirma nada em seus diálogos; ao contrário, são os interlocutores em seus diálogos que são levados por Platão a fazer todas as afirmações, dúvidas, questionamentos, discussões, e assim por diante. O que quer que ele queira nos comunicar é transmitido indiretamente.
6. Podemos conhecer a mente de Platão?
Essa característica dos trabalhos de Platão levanta questões importantes sobre como eles devem ser lidos, e tem gerado considerável controvérsia entre aqueles que estudam seus escritos. Como ele mesmo não afirma nada em nenhum de seus diálogos, será que alguma vez poderemos estar em terreno seguro para atribuir-lhe uma doutrina filosófica (em oposição a um de seus personagens)? Será que ele mesmo tinha convicções filosóficas, e podemos descobrir quais eram? Será que temos razão em falar da “filosofia de Platão”? Ou, se atribuirmos alguma visão ao próprio Platão, estaremos sendo infiéis ao espírito com que ele pretendia que os diálogos fossem lidos? Será que seu objetivo, ao se abster de escrever tratados, é desencorajar os leitores de suas obras de perguntar o que seu autor acredita e encorajá-los, em vez disso, simplesmente a considerar a plausibilidade ou a implausibilidade do que seus personagens estão dizendo? É por isso que Platão escreveu os diálogos? Se não é por essa razão, então qual foi seu propósito ao não se dirigir ao seu público de uma forma mais direta? Há outras questões importantes sobre a forma particular que seus diálogos tomam: por exemplo, por que Sócrates desempenha um papel tão proeminente em tantos deles, e por que, em alguns destes trabalhos, Sócrates desempenha um papel menor, ou papel nenhum?
Uma vez levantadas tais questões e reconhecidas suas dificuldades, é tentador, ao ler as obras de Platão e refletir sobre elas, adotar uma estratégia de extrema cautela. Ao invés de se comprometer com qualquer hipótese sobre o que ele está tentando comunicar a seus leitores, pode-se adotar uma postura de neutralidade sobre suas intenções e limitar-se a falar apenas sobre o que é dito por sua dramatis personae. Não se pode errar, por exemplo, observando-se que, na República de Platão, Sócrates argumenta que a justiça, na alma, consiste em cada parte da alma fazer o que lhe é próprio. É igualmente correto ressaltar que outros oradores principais nesse trabalho, Glauco e Adimanto, aceitam os argumentos que Sócrates dá para essa definição de justiça. Talvez não haja necessidade de dizermos mais — de dizer, por exemplo, que o próprio Platão concorda que é assim que a justiça deve ser definida, ou que o próprio Platão aceita os argumentos que Sócrates dá em apoio a essa definição. E poderíamos adotar essa mesma abordagem “minimalista” em todas as obras de Platão. Afinal, será de alguma importância descobrir o que se passou dentro de sua cabeça enquanto escrevia — descobrir se ele mesmo endossou as ideias que colocou na boca de seus personagens, se elas constituem “a filosofia de Platão”? Não deveríamos ler suas obras por seu valor filosófico intrínseco, e não como ferramentas a serem utilizadas para entrar na mente de seu autor? Sabemos o que dizem os personagens de Platão — e não é tudo o que precisamos, com o propósito de nos envolvermos com suas obras de forma filosófica?
Mas o fato de sabermos o que dizem os personagens de Platão não significa que, ao nos recusarmos a formular hipóteses sobre o que o autor dessas obras está tentando comunicar a seus leitores, podemos entender o que esses personagens querem dizer. Não devemos perder de vista este fato óbvio: é Platão, não qualquer de suas dramatis personae, que está se aproximando de um público leitor e tentando influenciar suas crenças e ações através de suas ações literárias. Quando perguntamos se um argumento apresentado por um personagem nas obras de Platão deve ser interpretado como um esforço para nos persuadir de sua conclusão, ou se é melhor lido como uma revelação de quão tolo aquele orador é, estamos perguntando sobre o que Platão como autor (não aquele personagem) está tentando nos levar a acreditar, através da escrita que ele está apresentando à nossa atenção. Precisamos interpretar a obra em si para descobrir o que ela, ou Platão como autor, está dizendo. Da mesma forma, quando perguntamos como uma palavra que tem vários sentidos diferentes é melhor compreendida, estamos perguntando o que Platão significa ao nos comunicar através do orador que usa essa palavra. Não devemos supor que podemos retirar muito valor filosófico dos escritos de Platão se nos recusarmos a pensar no uso que ele pretende que façamos das coisas que seus oradores dizem. Penetrar a mente de Platão e compreender o que seus interlocutores querem dizer não são duas tarefas separadas, são apenas uma, e se não perguntarmos a que seus interlocutores se referem com o que eles dizem, e o que o diálogo em si indica que devemos pensar sobre o que eles dizem, não lucraremos com a leitura de seus diálogos.
Além disso, os diálogos têm certas características que são mais facilmente explicadas ao supor que Platão está utilizando-os como veículos para induzir seus leitores a se convencerem (ou se convencerem mais do que já estão) de certas proposições — por exemplo, que existem formas, que a alma não é corpórea, que o conhecimento só pode ser adquirido por meio de um estudo das formas, e assim por diante. Afinal, por que Platão escreveu tantas obras (por exemplo: Fédon, Banquete, República, Fedro, Teeteto, Sofista, Político, Timeu, Filebo e Leis) em que um personagem domina a conversa (muitas vezes, mas nem sempre, Sócrates) e convence os outros oradores (às vezes, após encontrar resistência inicial) de que devem aceitar ou rejeitar certas conclusões, com base nos argumentos apresentados? A única maneira plausível de responder a essa pergunta é dizer que esses diálogos foram pensados por Platão para serem dispositivos pelos quais ele poderia induzir o público a refletir e a aceitar os argumentos e as conclusões oferecidas por seu principal interlocutor. (É notável que nas Leis, o principal orador — um visitante não nomeado de Atenas — propõe que as leis devem ser acompanhadas por “prelúdios” nos quais suas bases filosóficas são dadas por uma explicação tão completa quanto possível. O valor educativo dos textos escritos é assim explicitamente reconhecido pelo orador dominante em Platão. Se os prelúdios podem educar integralmente um cidadão que está preparado para aprender com eles, então certamente Platão pensa que outros tipos de textos escritos — por exemplo, seus próprios diálogos — também podem servir a uma função educativa).
Isso não significa que Platão pense que seus leitores podem se tornar sábios simplesmente lendo e estudando suas obras. Pelo contrário, é altamente provável que ele quisesse que todos os seus escritos fossem auxílios complementares à conversa filosófica: em uma de suas obras, Sócrates advertiu seus leitores para o risco de confiar somente em livros, ou considerá-los confiáveis. Eles são, diz Sócrates, mais bem utilizados como dispositivos que estimulam a memória dos leitores sobre as discussões que eles tiveram (Fedro, 274e-276d). Nessas conversas presenciais com um líder conhecedor, posições são tomadas, argumentos são apresentados e conclusões tiradas. Os escritos de Platão, ele sugere nessa passagem do Fedro, funcionarão melhor quando as sementes das conversas já tiverem sido semeadas pelos argumentos contidos nelas.
7. Sócrates como o orador dominante
Se considerarmos que Platão tenta nos convencer, em muitas de suas obras, a aceitar as conclusões a que chegaram seus principais interlocutores (ou a nos convencer das refutações de seus oponentes), podemos facilmente explicar por que ele tantas vezes escolhe Sócrates como o orador dominante em seus diálogos. Presumivelmente, o público contemporâneo para quem Platão estava escrevendo incluía muitos dos admiradores de Sócrates. Eles estariam predispostos a pensar que um personagem chamado “Sócrates” teria todo o brilhantismo intelectual e a paixão moral da pessoa histórica que lhe deu o nome (especialmente porque Platão com frequência faz esforços especiais para dar a seu “Sócrates” uma vida parecida com a da realidade, e o faz se referir a seu julgamento ou às características pelas quais ele era mais conhecido); e a aura em torno do personagem chamado “Sócrates” daria às palavras que ele fala no diálogo um poder persuasivo considerável. Além disso, se Platão se sentisse fortemente endividado com Sócrates por muitas de suas técnicas e ideias filosóficas, isso lhe daria mais razões para atribuir-lhe um papel dominante em muitas de suas obras. (Mais sobre isso na seção 12).
É claro que existem outras maneiras possíveis e mais especulativas de explicar por que Platão faz de Sócrates seu principal orador. Por exemplo, poderíamos dizer que Platão estava tentando minar a reputação do Sócrates histórico ao escrever uma série de obras nas quais uma figura chamada “Sócrates” consegue persuadir um grupo de interlocutores ingênuos e bajuladores a aceitar conclusões absurdas com base em sofismas. Mas qualquer um que tenha lido algumas das obras de Platão rapidamente reconhecerá a total implausibilidade dessa forma alternativa de lê-las. Platão poderia ter escrito em suas obras sinais claros para o leitor de que os argumentos de Sócrates não funcionam e que seus interlocutores são tolos em aceitá-los. Mas há muitos sinais em obras como Mênon, Fédon, República e Fedro que apontam na direção oposta. (E a grande admiração que Platão sente por Sócrates é também evidente em sua Apologia). O leitor é encorajado a acreditar que a razão pela qual Sócrates consegue persuadir seus interlocutores (nas ocasiões em que ele consegue) é que seus argumentos são poderosos. O leitor, em outras palavras, está sendo encorajado pelo autor a aceitar esses argumentos, se não como definitivos, então pelo menos como altamente cativantes e merecedores de cuidadosa e plena consideração positiva. Quando interpretamos os diálogos dessa maneira, não podemos escapar do fato de que estamos entrando na mente de Platão e atribuindo a ele, seu autor, uma avaliação positiva dos argumentos que seus oradores apresentam uns aos outros.
8. Ligações entre os diálogos
Há uma outra razão para formular hipóteses sobre o que Platão pretendia e acreditava, e não apenas nos limitarmos a observações sobre o tipo de pessoas que são seus personagens e o que eles dizem uns aos outros. Quando empreendemos um estudo sério de Platão, e vamos além de ler apenas uma de suas obras, somos inevitavelmente confrontados com a questão de como devemos ligar o trabalho que estamos lendo atualmente com os muitos outros que Platão compôs. É certo que muitos de seus diálogos começam do zero, em seu ambiente e com seus interlocutores: habitualmente, Sócrates encontra um grupo de pessoas, muitas das quais não aparecem em nenhuma outra obra de Platão, e assim, como autor, ele precisa dar a seus leitores alguma indicação sobre o caráter e as circunstâncias sociais deles. Mas muitas vezes os personagens de Platão fazem declarações que seriam difíceis para os leitores entenderem a menos que já tivessem lido uma ou mais de suas outras obras. Por exemplo, no Fédon (73a-b), Sócrates diz que um argumento para a imortalidade da alma deriva do fato de que, quando se faz às pessoas certos tipos de perguntas, e elas são auxiliadas por diagramas, elas respondem de uma forma que mostra que não estão aprendendo de novo com os diagramas ou com as informações fornecidas nas perguntas, mas que estão tirando seu conhecimento sobre as respostas de dentro de si mesmas. Essa observação seria de pouco valor para um público que ainda não tivesse lido Mênon. Várias páginas depois, Sócrates diz a seus interlocutores que seu argumento sobre nosso conhecimento prévio da igualdade em si (a forma de igualdade) se aplica não menos às outras formas — à beleza, à bondade, à justiça, à piedade e a todas as outras coisas que estão envolvidas em suas perguntas e respostas (75d). Esta referência a fazer e responder perguntas não seria bem compreendida por um leitor que ainda não tivesse encontrado uma série de diálogos nos quais Sócrates faz a seus interlocutores perguntas da forma: “O que é X?” (Eutífron: o que é piedade? Laques: o que é coragem? Cármides: O que é a moderação? Hípias Maior: o que é beleza?). Evidentemente, Platão está assumindo que os leitores de Fédon já leram várias de suas outras obras, e trarão à tona no argumento atual todas as lições que aprenderam com eles. Em alguns de seus escritos, os personagens de Platão se referem à continuação de suas conversas em outro dia, ou se referem a conversas que tiveram recentemente: assim Platão nos sinaliza que devemos ler Teeteto, Sofista e Político sequencialmente; e, da mesma forma, uma vez que a abertura do Timeu nos remete de volta à República, Platão está indicando a seus leitores que eles devem buscar alguma conexão entre estas duas obras.
Essas características dos diálogos mostram a consciência de Platão de que ele não pode começar inteiramente do zero em cada trabalho que escreve. Ele apresentará novas ideias e levantará novas dificuldades, mas também esperará que seus leitores já tenham se familiarizado com as conversas mantidas pelos interlocutores de outros diálogos — mesmo quando houver alguma alteração entre esses interlocutores. (Mênon não reaparece em Fédon; Timeu não estava entre os interlocutores da República). Por que Platão faz com que seus personagens dominantes (Sócrates, o visitante Eleático) reafirmem alguns dos mesmos pontos de um diálogo em outro, e se baseiem em ideias que foram dadas em trabalhos anteriores? Se os diálogos fossem meramente uma provocação a meros exercícios de pensamento para a mente — não haveria necessidade de Platão identificar seus personagens principais com uma doutrina consistente e sempre em desenvolvimento. Por exemplo, Sócrates continua a defender, ao longo de um grande número de diálogos, que existem coisas como as formas — e não há melhor explicação para tal continuidade do que supor que Platão está recomendando essa doutrina a seus leitores. Além disso, quando Sócrates é substituído como o principal investigador pelo visitante de Eleia (em Sofista e Político), a existência de formas continua a ser tida como certa, e o visitante critica qualquer concepção da realidade que exclui objetos incorpóreos como almas e formas. O visitante Eleático, em outras palavras, sustenta uma metafísica que é, em muitos aspectos, como a que Sócrates defende. Mais uma vez, a melhor explicação para tal continuidade é que Platão está usando tanto os personagens — Sócrates e o visitante Eleático — como dispositivos para a apresentação e defesa de uma doutrina que ele abraça e quer que seus leitores também abracem.
9. Platão muda de ideia sobre as formas?
Essa maneira de ler os diálogos de Platão não pressupõe que ele nunca mude de opinião sobre nada — que o que quer que qualquer um de seus principais interlocutores sustente em um diálogo continuará a ser pressuposto ou afirmado em outro lugar, sem alteração. Este é, de fato, um assunto difícil e delicado de determinar com base em nossa leitura dos diálogos: se Platão pretende modificar ou rejeitar em um diálogo o que ele tem seu principal interlocutor afirmando em outro. Uma das questões mais intrigantes e controversas sobre seu tratamento das formas, por exemplo, é se ele admite que sua concepção dessas entidades abstratas é vulnerável à crítica; e, se assim for, se ele revisa algumas das suposições que vinha fazendo sobre elas, ou se desenvolve uma imagem mais elaborada destas que lhe permita responder a essa crítica. Em Parmênides, o principal interlocutor (não Sócrates — ele é aqui retratado como um jovem filósofo promissor e necessitado de treinamento — mas sim o pré-socrático de Eleia, que dá seu nome ao diálogo: Parmênides) submete as formas a severas críticas, e então consente em conduzir um inquérito sobre a natureza da unicidade, que não tem nenhuma conexão explícita com sua crítica das formas. A discussão sobre a unicidade (uma série desconcertante de contradições — ou, de qualquer modo, proposições que parecem, à primeira vista, ser contradições) de alguma maneira ajuda a resolver os problemas levantados sobre as formas? Esse é um modo de ler o diálogo. E se o lermos dessa maneira, isso mostra que Platão mudou seu pensamento a respeito de algumas ideias sobre as formas que ele inseriu em diálogos anteriores? Podemos encontrar diálogos nos quais encontramos uma “nova teoria das formas”? Isto é, uma maneira de pensar as formas que se desvia cuidadosamente das suposições sobre as formas que levaram à crítica de Parmênides? Não é fácil de dizer. Mas não podemos sequer levantar essa questão como uma questão que valha a pena ponderar, a menos que pressuponhamos que por trás dos diálogos haja uma única mente que esteja usando esses escritos como uma forma de chegar à verdade, e de trazer essa verdade à atenção de outros. Se encontrarmos Timeu (o principal interlocutor do diálogo com o seu nome) e o visitante Eleático do Sofista e do Político falando sobre formas de maneira inteiramente consistente com a maneira como Sócrates fala sobre formas no Fédon e na República, então existe apenas uma explicação razoável para essa consistência: Platão acredita que sua maneira de falar sobre formas é correta, ou pelo menos é fortemente apoiada por considerações poderosas. Se, por outro lado, descobrirmos que Timeu ou o visitante Eleático fala sobre formas de uma maneira que não se harmoniza com a maneira como Sócrates concebe esses objetos abstratos, nos diálogos que lhe atribuem um papel central como diretor da conversa, então a explicação mais plausível para essas discrepâncias é que Platão mudou de ideia sobre a natureza dessas entidades. Seria pouco plausível supor que o próprio Platão não tenha convicções sobre as formas, e apenas queira dar a seus leitores um exercício mental, compondo diálogos nos quais diferentes personagens principais falam sobre esses objetos de maneira discordante.
10. Platão muda de ideia sobre a política?
A mesma coisa — que precisamos ver os diálogos como o produto de uma única mente, de um único filósofo, embora talvez um que mude de ideia — pode ser dita com relação à política das obras de Platão.
É digno de nota, para começar, que Platão é, entre outras coisas, um filósofo político. Pois ele dá expressão, em vários de seus escritos (em particular no Fédon), a um anseio de fugir da vulgaridade das relações humanas comuns. (Da mesma forma, ele evoca uma sensação de fealdade do mundo sensível, cuja beleza é pálida em comparação com a das formas). Por causa disso, teria sido muito fácil para Platão virar as costas à realidade prática e limitar suas especulações a questões teóricas. Algumas de suas obras — Parmênides é um exemplo brilhante — limitam-se a explorar questões que parecem não ter qualquer relação com a vida prática. Mas é notável como poucas de suas obras se enquadram nessa categoria. Mesmo as questões altamente abstratas levantadas no Sofista sobre a natureza do ser e do não-ser estão, afinal, embutidas em uma busca pela definição de sofisma; e, portanto, eles perguntam se Sócrates deve ser classificado como um sofista — se, em outras palavras, os sofistas devem ser desprezados e evitados. Em todo caso, apesar da grande simpatia que Platão expressa pelo desejo de abandonar o corpo e viver em um mundo incorpóreo, ele dedica uma enorme quantidade de energia à tarefa de compreender o mundo em que vivemos, apreciando sua beleza limitada, e a melhorá-lo.
Sua homenagem à beleza mista do mundo sensível, no Timeu, consiste em sua representação dela como resultado dos esforços divinos para moldar a realidade como imagem das formas, usando padrões geométricos simples e relações aritméticas harmoniosas, como blocos de construção. O desejo de transformar as relações humanas é expresso em um número muito maior de obras. Sócrates se apresenta, na Apologia de Platão, como um homem que não tem sua cabeça nas nuvens (o que faz parte da acusação de Aristófanes contra ele em Nuvens). Ele não quer fugir do mundo cotidiano, mas torná-lo melhor. Ele se apresenta, em Górgias, como o único ateniense que experimentou a verdadeira arte da política.
Da mesma maneira, o Sócrates da República dedica uma parte considerável de sua discussão à crítica das instituições sociais comuns — a família, a propriedade privada e o governo por parte de muitos. A motivação que está por trás da escrita desse diálogo é o desejo de transformar (ou, de qualquer forma, de melhorar) a vida política, de não fugir dela (embora se reconheça que o desejo de fugir é honroso: o melhor tipo de governante gosta muito mais da contemplação da realidade divina à governança da cidade). E se tivermos mais dúvidas de que Platão se interessa pelo domínio prático, basta recorrer às Leis. Um trabalho de tão grande detalhe e duração sobre procedimentos de votação, punições, educação, legislação e supervisão de funcionários públicos só pode ter sido produzido por alguém que queira contribuir com algo para a melhoria da vida que levamos neste reino sensível e imperfeito. Outras evidências do interesse de Platão em assuntos práticos podem ser extraídas de suas cartas, se elas forem genuínas. Na maioria delas, ele se apresenta como tendo um profundo interesse em educar (com a ajuda de seu amigo, Dion) o governante de Siracusa, Dionísio II, e assim reformar a política daquela cidade.
Assim como qualquer tentativa de entender a visão de Platão sobre as formas deve lidar com a questão de saber se seus pensamentos sobre elas se desenvolveram ou mudaram com o tempo, assim também nossa leitura dele como filósofo político deve ser moldada pela vontade de considerar a possibilidade de que ele tenha mudado de ideia. Por exemplo, em qualquer leitura plausível da República, Platão evoca uma profunda antipatia ao governo por parte de muitos. Sócrates diz a seus interlocutores que a única política que deve envolvê-los é a do regime antidemocrático, que ele retrata como o paradigma de uma boa constituição. No entanto, nas Leis, o visitante ateniense propõe uma estrutura legislativa detalhada para uma cidade na qual os não-filósofos (pessoas que nunca ouviram falar das formas, e não foram treinadas para entendê-las) recebam poderes significativos como governantes. Platão não teria investido tanto tempo na elaboração desse trabalho abrangente e demorado se não tivesse acreditado que a criação de uma comunidade política governada por aqueles que são filosoficamente pouco iluminados fosse um projeto que merecesse o respaldo de seus leitores. Será que Platão mudou de ideia, então? Será que ele reavaliou a opinião altamente negativa que um dia teve sobre aqueles que ignoram a filosofia? A princípio ele pensou que a reforma das cidades gregas existentes, com todas as suas imperfeições, era uma perda de tempo — mas então decidiu que seria um esforço de grande valor? (E, se sim, o que o levou a mudar de ideia?) As respostas a essas perguntas só podem ser justificadas por uma atenção cuidadosa ao que ele tem a dizer através de seus interlocutores. Mas seria totalmente implausível supor que essas questões de desenvolvimento não precisam ser levantadas, com o argumento de que a República e as Leis têm, cada uma, seu próprio elenco de personagens, e que as duas obras não podem, portanto, entrar em contradição umas com as outras. De acordo com essa hipótese (que deve ser rejeitada), porque é Sócrates (não Platão) quem critica a democracia na República, e porque é o visitante ateniense (não Platão) quem reconhece os méritos do governo pelos muitos em Leis, não há possibilidade de que os dois diálogos estejam em tensão um com o outro. Contra essa hipótese, devemos dizer: como tanto a República quanto as Leis são obras nas quais Platão está tentando levar seus leitores a certas conclusões, fazendo-os refletir sobre certos argumentos — esses diálogos não são impossibilitados de ter essa característica pelo uso de interlocutores —, seria uma fuga à nossa responsabilidade como leitores e estudantes de Platão não perguntar se o que um deles advoga é compatível com o que o outro advoga. Se respondermos negativamente a essa pergunta, temos algumas explicações a dar: o que levou a essa mudança? Alternativamente, se concluirmos que as duas obras são compatíveis, devemos dizer por que a aparência de conflito é ilusória.
11. O Sócrates histórico: diálogos iniciais, intermediários e tardios
Muitos estudiosos contemporâneos consideram verossímil que, quando Platão iniciou sua carreira como escritor filosófico, ele compôs, além de sua Apologia de Sócrates, uma série de diálogos éticos curtos que contêm pouco ou nada, no sentido de uma doutrina filosófica positiva, mas que se dedicam principalmente a retratar a forma como Sócrates perfurou as pretensões de seus interlocutores e os forçou a perceber que são incapazes de oferecer definições satisfatórias dos termos éticos que usaram, ou argumentos satisfatórios para suas crenças morais. De acordo com essa forma de classificar os diálogos em uma ordem cronológica aproximada — associada especialmente ao nome de Gregory Vlastos (ver especialmente seu Socrates Ironist and Moral Philosopher, capítulos 2 e 3) — Platão, neste ponto de sua carreira, contentou-se em usar seus escritos principalmente com o propósito de preservar a memória de Sócrates e deixar clara a superioridade de seu herói, em habilidade intelectual e seriedade moral, para todos os seus contemporâneos — especialmente àqueles entre eles que afirmavam ser especialistas em assuntos religiosos, políticos ou morais. Nessa categoria de diálogos iniciais (também são às vezes chamados de diálogos “socráticos”, possivelmente sem qualquer conotação cronológica intencional) são colocados: Cármides, Críton, Eutidemo, Eutífron, Górgias, Hípias Maior, Hípias Menor, Ion, Laques, Lísis e Protágoras, (Alguns estudiosos sustentam que podemos dizer qual deles ocorre posteriormente durante o período inicial de Platão. Por exemplo, às vezes se diz que Protágoras e Górgias são mais tardios, por causa de sua maior duração e complexidade filosófica. Outros diálogos — por exemplo, Cármides e Lísis — não estão entre os mais antigos de Platão dentro desse grupo inicial, porque neles Sócrates parece estar desempenhando um papel mais ativo na formação do progresso do diálogo: ou seja, ele tem mais ideias próprias). Em comparação com muitos dos outros diálogos de Platão, esses trabalhos “socráticos” contêm pouco em termos de metafísica, epistemologia ou de especulação metodológica e, portanto, se encaixam bem na forma como Sócrates se caracteriza na Apologia de Platão: como um homem que deixa as investigações das questões superiores (que se encontram “no céu e debaixo da terra”) para cabeças mais sábias, e confina todas as suas investigações à questão de como se deve viver a própria vida. Aristóteles descreve Sócrates como alguém cujos interesses eram restritos a apenas um ramo da filosofia — o reino da ética; e ele também diz que tinha o hábito de fazer perguntas definitivas às quais ele mesmo não tinha respostas (Metafísica 987b1, Refutações Sofísticas 183b7). Esse testemunho dá mais peso à hipótese amplamente aceita de que existe um grupo de diálogos — aqueles mencionados acima como seus primeiros trabalhos, tenham ou não sido todos escritos no início da carreira de Platão — em que Platão utilizou a forma de diálogo como uma forma de retratar as atividades filosóficas do Sócrates histórico (embora, é claro, ele pudesse também tê-los utilizado de outras maneiras — por exemplo, para sugerir e começar a explorar as dificuldades filosóficas levantadas por eles).
Mas a um certo ponto — assim diz essa hipótese sobre a cronologia dos diálogos — Platão começou a usar suas obras para promover ideias que eram suas próprias criações e não as de Sócrates, embora ele tenha continuado a usar o nome “Sócrates” para o interlocutor que apresentava e defendia essas novas ideias. O orador chamado “Sócrates” agora começa a ir além e se afastar da história do Sócrates: ele tem visões sobre a metodologia que deveria ser usada pelos filósofos (uma metodologia emprestada da matemática), e defende a imortalidade da alma, a existência e importância das formas da beleza, da justiça, bondade e afins (ao contrário, na Apologia, Sócrates diz que ninguém sabe o que será de nós após a nossa morte). Fédon é frequentemente considerado como o diálogo no qual Platão entra pela primeira vez como um filósofo que está indo muito além das ideias de seu professor (embora também seja comumente dito que vemos uma nova sofisticação metodológica e um maior interesse pelo conhecimento matemático no Mênon). Tendo completado todos os diálogos que, segundo essa hipótese, caracterizamos como iniciais, Platão ampliou a gama de tópicos a serem explorados em seus escritos (não mais se limitando à ética), e colocou a teoria das formas (e ideias relacionadas a linguagem, conhecimento e amor) no centro de seu pensamento. Nestes trabalhos de seu período “intermediário” — por exemplo, no Fédon, Crátilo, Banquete, República e Fedro — há tanto uma mudança de ênfase quanto de doutrina. O foco não está mais em nos livrarmos de falsas ideias e do auto-engano; ao contrário, nos é pedido que aceitemos (ainda que provisoriamente) uma nova concepção radical sobre nós mesmos (agora dividida em três partes), nosso mundo — ou melhor, nossos dois mundos — e nossa necessidade de negociar entre eles. As definições dos termos de virtude mais importantes são finalmente propostas na República (a busca por eles em alguns dos primeiros diálogos não foi bem sucedida): O livro I desse diálogo é um retrato de como o Sócrates histórico poderia ter lidado com a busca de uma definição de justiça, e o resto do diálogo mostra como as novas ideias e ferramentas descobertas por Platão podem completar o projeto que seu professor não foi capaz de concluir. Platão continua usando uma figura chamada “Sócrates” como seu principal interlocutor, e desse modo ele cria um senso de continuidade entre os métodos, insights e ideais do Sócrates histórico e do novo Sócrates, que agora se tornou um veículo para a articulação de sua própria visão filosófica, que é nova. Ao fazer isso, ele reconhece sua dívida intelectual com seu professor e se apropria, para seus próprios fins, do extraordinário prestígio do homem que foi o mais sábio de seu tempo.
Essa hipótese sobre a cronologia dos escritos de Platão tem um terceiro componente: ela não coloca as obras em duas categorias — os diálogos iniciais ou “socráticos”, e todo o resto — mas funciona com uma divisão tripla entre iniciais, intermediários e tardios. Isso porque, após um antigo testemunho, tornou-se uma suposição amplamente aceita de que Leis é uma das últimas obras de Platão, e que esse diálogo compartilha uma grande quantidade de afinidades estilísticas com um pequeno grupo de outros: Sofista, Político, Timeu, Crítias e Filebo. Esses cinco diálogos, junto com Leis, são geralmente aceitos como suas últimas obras, porque eles têm muito mais em comum uns com os outros — quando se contam certas características estilísticas aparentes apenas para os leitores do grego de Platão — do que com qualquer outra obra de Platão. (A contagem por computador ajudou nesses estudos estilísticos, mas o isolamento de um grupo de seis diálogos por meio de seus pontos estilísticos comuns foi reconhecido no século XIX).
Não está claro se há uma ou mais afinidades filosóficas entre esse grupo de seis diálogos — isto é, se a filosofia que eles contêm é muito diferente da de todos os outros diálogos. Platão nada faz para incentivar o leitor a vê-los como um componente distintivo e separado de seu pensamento. Pelo contrário, ele liga Sofista com Teeteto (as conversas que eles apresentam têm um elenco de personagens muito sobreposto, e ocorrem em dias sucessivos) e não é diferente com Sofista e Político. O Sofista contém, em suas páginas de abertura, uma referência à conversa do Parmênides — e talvez Platão esteja sinalizando assim a seus leitores que eles devem colocar em prática as lições tiradas do Parmênides. Da mesma forma, Timeu abre com um lembrete de algumas das principais doutrinas éticas e políticas da República. Poderia ser argumentado, é claro, que, quando se olha além desses dispositivos que definem as etapas, encontram-se mudanças filosóficas significativas nos seis diálogos tardios, afastando esse grupo de tudo o que os precedeu. Mas não há consenso de que eles devam ser lidos dessa maneira. A resolução dessa questão requer um estudo intensivo do conteúdo dos trabalhos de Platão. Assim, embora seja amplamente aceito que os seis diálogos mencionados acima pertencem ao último período de Platão, ainda não há nenhum acordo entre os estudantes de Platão de que esses seis formam uma etapa distinta em seu desenvolvimento filosófico.
Na verdade, permanece em disputa se a divisão dos trabalhos de Platão em três períodos — o inicial, o intermediário e o tardio — indica corretamente a ordem de composição, e se é uma ferramenta útil para a compreensão de seu pensamento (Ver Cooper 1997, vii-xxvii). Naturalmente, seria extremamente implausível supor que a carreira de Platão começou com obras tão complexas como Leis, Parmênides, Fedro ou República. À luz de suposições amplamente aceitas sobre como a maioria das mentes filosóficas se desenvolve, é provável que, quando Platão começou a escrever obras filosóficas, alguns dos diálogos mais curtos e simples foram os que ele compôs: Laques, ou Críton, ou Íon, por exemplo. (Da mesma forma, Apologia não avança uma agenda filosófica complexa nem pressupõe um corpo de trabalho anterior; de modo que também é provável que tenha sido composta perto do início da carreira de escritor de Platão). Mesmo assim, não há uma boa razão para eliminar a hipótese de que, durante grande parte de sua vida, Platão se dedicou a escrever dois tipos de diálogos ao mesmo tempo, andando para frente e para trás, à medida que envelhecia: por um lado, obras introdutórias cujo objetivo principal é mostrar aos leitores a dificuldade de problemas filosóficos aparentemente simples, e assim livrá-los de suas pretensões e falsas crenças; e, por outro lado, obras repletas de teorias filosóficas mais substantivas suportadas por uma argumentação elaborada. Além disso, pode-se apontar características de muitos dos diálogos “socráticos” que justificariam colocá-los nesta última categoria, mesmo que a argumentação não diga respeito à metafísica ou à metodologia, nem invoque a matemática — Górgias, Protágoras, Lísis, Eutidemo e Hípias Maior entre eles.
Platão deixa claro que ambos os processos, um anterior ao outro, devem fazer parte da educação filosófica de cada um. Uma de suas mais profundas convicções metodológicas (afirmadas em Mênon, Teeteto e Sofista) é que, para progredirmos intelectualmente, devemos reconhecer que o conhecimento não pode ser adquirido recebendo-o passivamente de outros: ao invés disso, devemos trabalhar nosso caminho através dos problemas e avaliar os méritos das teorias concorrentes com uma mente independente. Assim, alguns de seus diálogos são sobretudo mecanismos para quebrar a comodidade do leitor, e por isso é essencial que eles não cheguem a conclusões positivas; outros são contribuições para a construção da teoria e, portanto, são melhor absorvidos por aqueles que já passaram pelo primeiro estágio de desenvolvimento filosófico. Não devemos supor que Platão poderia ter escrito os diálogos preparatórios somente na fase inicial de sua carreira. Embora ele possa ter começado sua carreira de escritor assumindo esse tipo de projeto, ele pode ter continuado a escrever esses trabalhos “negativos” em etapas posteriores, ao mesmo tempo em que estava compondo seus diálogos teórico-construtivos. Por exemplo, embora tanto Eutidemo como Cármides sejam amplamente assumidos como diálogos iniciais, eles podem ter sido escritos na mesma época do Banquete e da República, que geralmente são assumidos como composições de seu período intermediário — ou mesmo mais tardio.
Sem dúvida, algumas das obras amplamente consideradas como precoces são realmente tais. Mas é uma questão em aberto quais e quantas delas o são. De qualquer forma, é claro que Platão continuou a escrever de forma “socrática” e “negativa”, mesmo depois de ter passado muito além das primeiras etapas de sua carreira: Teeteto apresenta um Sócrates que é ainda mais insistente em sua ignorância do que as representações dramáticas de Sócrates em obras mais breves e filosoficamente menos complexas, que são razoavelmente assumidas como precoces; e, como muitas dessas primeiras obras, Teeteto procura mas não encontra a resposta para a pergunta “o que é?” que incessantemente busca “o que é conhecimento?”. Da mesma maneira, Parmênides, embora certamente não seja um diálogo precoce, é uma obra cujo objetivo principal é confundir o leitor através da apresentação de argumentos para conclusões aparentemente contraditórias; como não nos diz como é possível aceitar todas essas conclusões, seu efeito principal sobre o leitor é semelhante ao dos diálogos (muitos deles sem dúvida precoces) que chegam apenas a conclusões negativas. Platão usa este dispositivo educativo — provocando o leitor através da apresentação de argumentos contrários, e deixando a contradição por resolver — também em Protágoras (muitas vezes considerado um diálogo precoce). Assim, fica claro que, mesmo depois de estar bem além das primeiras etapas de seu pensamento, ele continuou a se dedicar ao projeto de escrever obras cujo objetivo principal é a apresentação de dificuldades não resolvidas. (E, assim como devemos reconhecer que confundir o leitor continua sendo seu objetivo, mesmo em obras posteriores, também não devemos ignorar o fato de que existe alguma construção teórica substancial nas obras éticas que são suficientemente simples para terem sido composições iniciais: Íon, por exemplo, afirma uma teoria de inspiração poética; e Críton estabelece as condições sob as quais um cidadão adquire a obrigação de obedecer aos comandos cívicos. Nenhum dos dois termina em fracasso).
Se nos justificamos ao tomarmos o discurso de Sócrates na Apologia de Platão para constituir uma evidência confiável sobre como foi a história de Sócrates, então, o que quer que encontremos nas outras obras de Platão que corresponda àquele discurso também pode ser seguramente atribuído a Sócrates. Assim entendido, Sócrates era um moralista, mas (ao contrário de Platão) não um metafísico, ou epistemólogo ou cosmólogo. Isso se encaixa no testemunho de Aristóteles, e a forma de Platão escolher o orador dominante de seus diálogos dá mais apoio a esse modo de distinção entre ele e Sócrates. O número de diálogos que são dominados por um Sócrates que está tecendo elaboradas doutrinas filosóficas é notavelmente pequeno: Fédon, República, Fedro e Filebo. Todos eles são dominados por questões éticas: a morte, a justiça, o amor, o prazer. Evidentemente, Platão pensa que é apropriado fazer de Sócrates o principal orador em um diálogo cheio de conteúdo positivo somente quando os tópicos explorados nesse trabalho têm a ver principalmente com a vida ética do indivíduo. (Diz-se explicitamente que os aspectos políticos da República servem à grande questão de saber se qualquer indivíduo, não importa quais sejam suas circunstâncias, deve ser justo.) Quando as doutrinas que ele deseja apresentar sistematicamente se tornam principalmente metafísicas, ele se volta para um visitante de Eleia (Sofista, Político); quando elas se tornam cosmológicas, ele se volta para Timeu; quando elas se tornam constitucionais, ele se volta, nas Leis, para um visitante de Atenas (e ele então elimina Sócrates completamente). Com efeito, Platão está nos mostrando que, embora ele deva muito aos insights éticos de Sócrates, bem como ao seu método de furar as pretensões intelectuais de seus interlocutores levando-os à contradição, ele acha que não deve colocar na boca de seu professor uma exploração demasiado elaborada de temas ontológicos, ou cosmológicos, ou políticos, porque Sócrates se absteve de entrar nestes domínios. Isso pode ser parte da explicação da razão pela qual Sócrates coloca na boca da Leis personificadas de Atenas a teoria apresentada no Críton, a qual chega à conclusão de que, para Sócrates, seria injusto fugir da prisão. Talvez Platão esteja indicando, no ponto em que esses oradores entram no diálogo, que nada do que é dito aqui deriva ou se inspira na conversa de Sócrates.
Assim como devemos rejeitar a ideia de que Platão deve ter tomado a decisão, em um momento bastante inicial de sua carreira, de não mais escrever um tipo de diálogo (negativo, destrutivo, preparatório) e de escrever apenas obras de elaboração teórico-construtiva; assim também devemos questionar se ele passou por uma fase inicial durante a qual ele se absteve de introduzir em suas obras qualquer uma de suas próprias ideias (se tinha alguma), limitando-se a desempenhar o papel de um retratista fiel, representando para seus leitores a vida e o pensamento de Sócrates. É irrealista supor que alguém tão original e criativo como Platão, que provavelmente começou a escrever diálogos por volta dos trinta anos (ele tinha cerca de 28 quando Sócrates foi morto), tenha iniciado suas composições sem ideias próprias, ou, tendo tais ideias, que tivesse decidido suprimi-las, por algum período de tempo, permitindo-se pensar por si próprio apenas mais tarde. (O que o teria levado a tal decisão?) Em vez disso, devemos tratar os desenvolvimentos feitos nos diálogos, mesmo aqueles que provavelmente serão antecipados, como invenções platônicas — derivadas, sem dúvida, das reflexões e das transformações de Platão sobre os temas-chave de Sócrates que ele atribui a Sócrates na Apologia. Esse discurso indica, por exemplo, que o tipo de religiosidade exibida por Sócrates era pouco ortodoxo e podia ser facilmente ofensivo ou incompreendido. Seria implausível supor que Platão simplesmente tenha inventado a ideia de que Sócrates seguia um sinal divino, especialmente porque Xenofonte também atribui isso a seu Sócrates. Mas o que dizer dos vários movimentos filosóficos ensaiados em Eutífron — o diálogo no qual Sócrates busca, sem sucesso, uma compreensão do que é piedade? Não temos nenhuma boa razão para pensar que, ao escrever essa obra, Platão adotou o papel de um mero aparelho de gravação, ou algo próximo disso (mudando uma palavra aqui e ali, mas na maioria das vezes simplesmente lembrando o que ele ouviu Sócrates dizer, enquanto se dirigia ao tribunal). É mais provável que Platão, tendo sido inspirado pela falta de ortodoxia da concepção de Sócrates sobre a piedade, tenha desenvolvido, por conta própria, uma série de perguntas e respostas destinadas a mostrar a seus leitores como é difícil chegar a uma compreensão do conceito central em que os concidadãos de Sócrates se basearam quando o condenaram à morte. A ideia de que é importante buscar definições pode ter sido de origem socrática. (Afinal, Aristóteles atribui isso a Sócrates.) Mas as reviravoltas dos argumentos em Eutífron e em outros diálogos que buscam definições são mais prováveis de serem os produtos da mente de Platão do que apenas o conteúdo de quaisquer conversas que realmente aconteceram.
12. Por que diálogos?
É igualmente irrealista supor que, quando Platão iniciou sua carreira como escritor, ele tomou a decisão consciente de colocar todas as composições que doravante comporia a serviço de um público leitor em geral (com exceção do Apologia) sob a forma de um diálogo. Se a pergunta “por que Platão escreveu diálogos?”, que muitos de seus leitores são tentados a fazer, pressupõe que deve ter havido alguma decisão única, então ela é mal colocada. Faz mais sentido dividir essa pergunta em muitas pequenas. É melhor perguntar: “Por que Platão escreveu este trabalho em particular (por exemplo: Protágoras, ou República, ou Banquete, ou Leis) na forma de um diálogo — e aquele (Timeu, digamos) em grande parte na forma de um longo e retórico discurso único e elaborado?” do que perguntar por que ele decidiu adotar a forma de diálogo.
A melhor maneira de formar uma conjectura razoável sobre a razão pela qual Platão escreveu um determinado trabalho em forma de diálogo é perguntar: o que se perderia se se tentasse reescrever essa obra de uma forma que eliminasse o intercâmbio, despojasse os personagens de suas personalidades e de seus identificadores sociais, e se se transformasse o resultado em algo que saísse diretamente da boca de seu autor? Essa é frequentemente uma pergunta que será fácil de responder, mas a resposta pode variar muito de um diálogo para o outro. Ao seguir essa estratégia, não devemos descartar a possibilidade de que algumas das razões de Platão para escrever este ou aquele trabalho na forma de um diálogo também sejam sua razão para fazê-lo em outros casos — talvez algumas de suas razões, até onde podemos adivinhar, estejam presentes em todos os outros casos. Por exemplo, o uso do caráter e da conversa permite a um autor animar sua obra, despertar o interesse de seu público leitor e, portanto, alcançar um público mais amplo. O enorme apelo dos escritos de Platão é, em parte, resultado de sua composição dramática. Mesmo as composições como — Timeu e Leis, por exemplo — melhoram a legibilidade por causa de sua estrutura de conversação. Além disso, a forma de diálogo permite que o evidente interesse de Platão pelas questões pedagógicas (como é possível aprender? Qual é a melhor maneira de aprender? Com que tipo de pessoa podemos aprender? Que tipo de pessoa está em condições de aprender?) seja perseguido não apenas no conteúdo de suas composições, mas também em sua forma. Mesmo nas Leis tais questões não estão longe da mente de Platão, pois ele demonstra, através da forma de diálogo, como é possível para os cidadãos de Atenas, Esparta e Creta aprenderem uns com os outros, adaptando-se e melhorando as instituições sociais e políticas uns dos outros.
Em alguns de seus trabalhos, é evidente que um dos objetivos de Platão é criar um senso de perplexidade entre seus leitores, e que a forma de diálogo está sendo usada para esse fim. O Parmênides é, talvez, o exemplo mais claro de tal trabalho, pois aqui Platão esfrega incessantemente o rosto de seus leitores em uma série desconcertante de enigmas não resolvidos e aparentes contradições. Mas várias de suas outras obras também têm esse caráter, embora em menor grau: por exemplo, Protágoras (pode-se ensinar virtude?), Hípias Menor (é melhor fazer mal voluntariamente do que fazer mal involuntariamente?), e porções do Mênon (algumas pessoas são virtuosas por causa da inspiração divina?). Assim como alguém que encontra Sócrates na conversa deve às vezes ficar intrigado se ele quer dizer o que diz (ou se está falando ironicamente), também Platão às vezes usa a forma de diálogo para criar em seus leitores uma sensação semelhante de desconforto sobre o que ele quer dizer e o que devemos inferir a partir dos argumentos que nos foram apresentados. Mas Sócrates nem sempre fala ironicamente e, da mesma maneira, os diálogos de Platão nem sempre visam criar uma sensação de desconcerto a respeito do que devemos pensar sobre o assunto em discussão. Não há nenhuma regra mecânica para descobrir a melhor maneira de ler um diálogo, nenhuma estratégia interpretativa que se aplique igualmente bem a todas as suas obras. Compreenderemos melhor as obras de Platão e lucraremos mais com nossa leitura delas se reconhecermos sua grande diversidade de estilos e adaptarmos nossa maneira de ler em conformidade a isso. Em vez de impor à nossa leitura de Platão uma expectativa uniforme sobre o que ele deve estar fazendo (porque ele fez tal coisa em outro lugar), devemos trazer para cada diálogo uma receptividade àquilo que lhe é único. Essa seria a reação mais adequada à arte presente em sua filosofia.
Bibliografia
A bibliografia abaixo pretende ser um guia altamente seletivo e limitado para leitores que desejam aprender mais sobre os assuntos abordados acima. Uma discussão mais aprofundada dessas e de outras questões relativas à filosofia de Platão, e muito mais informações bibliográficas, está disponível em outras sites sobre Platão.
Translations into English
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Other Internet Resources
- Links to Original texts of Plato’s Dialogues (maintained by Bernard Suzanne)
- In Dialogue: the Life and Works of Plato, a short podcast by Peter Adamson (Philosophy, Kings College London).
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Este artigo foi publicado originalmente no site Plato Stanford: https://plato.stanford.edu/entries/plato/