Immanuel Kant

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Immanuel Kant (1724-1804) é a figura central da filosofia moderna. Ele sintetizou o racionalismo e o empirismo do início da modernidade, estabeleceu os termos de grande parte da filosofia do século XIX e XX, e continua a exercer uma influência significativa hoje em dia na metafísica, na epistemologia, na ética, na filosofia política, na estética e em outros campos. A idéia fundamental da “filosofia crítica” de Kant – especialmente em suas três críticas: a Crítica da Razão Pura (1781, 1787), a Crítica da Razão Prática (1788) e a Crítica da Faculdade de Julgar (1790) – é a autonomia humana. Ele argumenta que o entendimento humano é a fonte das leis gerais da natureza que estruturam toda nossa experiência; e que a razão humana dá a si mesma a lei moral, que é nossa base para a crença em Deus, na liberdade e na imortalidade. Portanto, o conhecimento científico, a moralidade e a crença religiosa são mutuamente consistentes e seguros, porque todos eles repousam sobre o mesmo fundamento da autonomia humana, que é também o objetivo final da natureza, de acordo com a visão teleológica e a reflexão sobre o mundo que Kant introduz para unificar as partes teóricas e práticas de seu sistema filosófico.

1. Vida e Obra

Immanuel Kant nasceu a 22 de abril de 1724, em Königsberg, perto da costa sudeste do Mar Báltico. Hoje Königsberg foi renomeada Kaliningrado e faz parte da Rússia. Porém, durante a vida de Kant, Königsberg foi a capital da Prússia Oriental, e sua língua dominante era o alemão. Embora geograficamente distante do resto da Prússia e de outras cidades alemãs, Königsberg era então um importante centro comercial, um importante porto militar e uma cidade universitária relativamente cosmopolita.

Kant nasceu em uma família de artesãos de meios modestos. Seu pai era um mestre fazedor de arreios, e sua mãe era filha de um fazedor de arreios, embora ela fosse melhor educada do que a maioria das mulheres de sua classe social. A família de Kant nunca foi indigente, mas o ofício de seu pai estava em declínio durante a juventude de Kant e seus pais, às vezes, tinham que contar com o apoio financeiro de uma grande família.

Os pais de Kant eram pietistas, e ele frequentou uma escola pietista, o Collegium Fridericianum, dos oito aos quinze anos de idade. O pietismo era um movimento evangélico luterano que enfatizava a conversão, a confiança na graça divina, a experiência das emoções religiosas e a devoção pessoal envolvendo estudo bíblico regular, oração e introspecção. Kant reagiu fortemente contra a busca espiritual forçada a que foi submetido no Collegium Fridericianum, em resposta à qual ele procurou refúgio nos clássicos latinos, que eram centrais para o currículo da escola. Mais tarde, a ênfase do Kant maduro na razão e na autonomia, em vez de na emoção e na dependência da autoridade ou da graça, pode em parte refletir sua reação juvenil contra o pietismo. Porém, embora o jovem Kant detestasse sua escolaridade pietista, ele tinha profundo respeito e admiração por seus pais, especialmente por sua mãe, cuja “religiosidade genuína” ele descreveu como “nada entusiástica”. De acordo com seu biógrafo, Manfred Kuehn, os pais de Kant provavelmente o influenciaram muito menos pelo seu pietismo do que pelos valores artesanais de “trabalho duro, honestidade, limpeza e independência”, os quais lhe ensinaram pelo exemplo.

Kant frequentou a faculdade na Universidade de Königsberg, conhecida como Albertina, onde seu interesse inicial pelos clássicos foi rapidamente superado pelo da filosofia, a qual todos os alunos do primeiro ano estudavam e que englobava matemática e física, bem como lógica, metafísica, ética e direito natural. Os professores de filosofia de Kant o expuseram à abordagem de Christian Wolff (1679-1750), cuja síntese crítica da filosofia de G. W. Leibniz (1646-1716) foi então muito influente nas universidades alemãs. No entanto, Kant também foi exposto a uma série de críticos de Wolff, alemães e britânicos, e houve fortes doses de aristotelismo e pietismo representados também na faculdade de filosofia. O professor favorito de Kant era Martin Knutzen (1713-1751), um pietista que foi fortemente influenciado tanto por Wolff quanto pelo filósofo inglês John Locke (1632-1704). Knutzen apresentou Kant ao trabalho de Isaac Newton (1642-1727), e sua influência é visível no primeiro trabalho publicado por Kant, Thoughts on the True Estimation of Living Forces (1747), que foi uma tentativa crítica de mediar uma disputa em filosofia natural entre Leibnizianos e Newtonianos sobre a medição adequada da força.

Depois da faculdade, Kant passou seis anos como professor particular para crianças pequenas fora de Königsberg. Nessa época, ambos os pais haviam morrido e as finanças de Kant ainda não estavam suficientemente seguras para que ele pudesse seguir uma carreira acadêmica. Ele finalmente retornou a Königsberg em 1754 e começou a lecionar na Albertina no ano seguinte. Durante as quatro décadas que se seguiram, Kant ensinou filosofia lá, até sua aposentadoria do ensino em 1796, com a idade de setenta e dois anos.

Kant teve uma explosão de atividade editorial nos anos que se seguiram ao seu retorno do trabalho como professor particular. Em 1754 e 1755 ele publicou três obras científicas – uma das quais, Natural History and Theory of the Heavens (1755), foi um grande livro no qual, entre outras coisas, ele desenvolveu o que mais tarde ficou conhecido como a hipótese nebulosa sobre a formação do sistema solar. Infelizmente, a gráfica foi à falência e o livro teve pouco impacto imediato. Para assegurar as qualificações para o ensino na universidade, Kant também escreveu duas dissertações em latim: a primeira, intitulada Concise Outline of Some Reflections on Fire (1755), lhe valeu o título de Magister; e a segunda, New Elucidation of the First Principles of Metaphysical Cognition (1755), intitulou-o a ensinar como um professor não remunerado. No ano seguinte ele publicou outro trabalho latino, The Employment in Natural Philosophy of Metaphysics Combined with Geometry, of Which Sample I Contain the Physical Monadology (1756), na esperança de suceder Knutzen como professor associado de lógica e metafísica, embora Kant não tenha conseguido assegurar essa posição. Tanto a New Elucidation, que foi o primeiro trabalho de Kant preocupado principalmente com a metafísica, quanto o Physical Monadology desenvolvem ainda mais a posição sobre a interação de substâncias finitas que ele delineou pela primeira vez em Living Forces. Ambos os trabalhos partem das visões Leibniz-Wolffiana, embora não radicalmente. New Elucidation em particular mostra a influência de Christian August Crusius (1715-1775), um crítico alemão de Wolff.

Como um professor não remunerado no Albertina, Kant era pago diretamente pelos estudantes que assistiam a suas palestras, ele precisava ensinar uma quantidade enorme e atrair muitos estudantes para ganhar a vida. Kant ocupou esse cargo de 1755 a 1770, período durante o qual ele lecionava uma média de vinte horas por semana sobre lógica, metafísica e ética, assim como matemática, física e geografia-física. Em suas palestras, Kant usou livros didáticos de autores Wolffianos como Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762) e Georg Friedrich Meier (1718-1777), mas os seguiu vagamente e os usou para estruturar suas próprias reflexões, que se basearam em uma ampla gama de idéias de interesse contemporâneo. Essas idéias muitas vezes surgiram de filósofos sentimentalistas britânicos como David Hume (1711-1776) e Francis Hutcheson (1694-1747), alguns dos quais foram traduzidos para o alemão em meados dos anos 1750; e do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que publicou uma enxurrada de obras no início dos anos 1760. Desde o início de sua carreira, Kant foi um conferencista popular e bem-sucedido. Ele também desenvolveu rapidamente uma reputação local como um jovem intelectual promissor e conseguiu conquistar uma imagem arrojada na sociedade de Königsberg.

Após vários anos de relativa quietude, Kant desencadeou outra explosão de publicações em 1762-1764, incluindo cinco obras filosóficas. The False Subtlety of the Four Syllogistic Figures (1762) ensaia as críticas à lógica aristotélica que foram desenvolvidas por outros filósofos alemães. The Only Possible Argument in Support of a Demonstration of the Existence of God (1762-3) é um grande livro, baseado em sua obra anterior, a Universal History and New Elucidation, para desenvolver um argumento original para a existência de Deus como uma condição da possibilidade interna de todas as coisas, enquanto criticava outros argumentos para a existência de Deus. O livro atraiu várias críticas positivas e algumas negativas. Em 1762 Kant apresentou um ensaio intitulado Inquiry Concerning the Distinctness of the Principles of Natural Theology and Morality a um concurso da Academia Real Prussiana, embora a apresentação de Kant tenha levado o segundo prêmio, ficando atrás do ensaio de Moses Mendelssohn (e foi publicada junto com ele em 1764). O Ensaio Premiado de Kant, como é conhecido, afasta-se mais significativamente da visão Leibniz-Wolffiana do que seu trabalho anterior e também contém sua primeira discussão prolongada da filosofia moral vigente. O Ensaio Premiado recorre a fontes britânicas para criticar o racionalismo alemão em dois aspectos: em primeiro lugar, com base em Newton, Kant distingue entre os métodos da matemática e da filosofia; e em segundo lugar, com base em Hutcheson, ele afirma que “um sentimento inanalisável a respeito do bem” fornece o conteúdo material de nossas obrigações morais, o qual não pode ser demonstrado de forma puramente intelectual a partir apenas do princípio formal da perfeição (2:299). Esses temas reaparecem em Attempt to Introduce the Concept of Negative Magnitudes into Philosophy (1763), cuja tese principal, entretanto, é a de que a oposição real de forças conflitantes, como nas relações causais, não é redutível à relação lógica de contradição, como os Leibnizianos sustentavam. Em Negative Magnitudes, Kant também argumenta que a moralidade de uma ação é uma função das forças internas que motivam a agir, e não das ações externas (físicas) ou de suas consequências. Finalmente, Observations on the Feeling of the Beautiful and the Sublime (1764) trata principalmente de supostas diferenças nos gostos de homens, mulheres e de pessoas de diferentes culturas. Após sua publicação, Kant preencheu seu próprio exemplar impresso desse livro com comentários (muitas vezes não relacionados) manuscritos, grande parte dos quais reflete a profunda influência de Rousseau em seu pensamento sobre filosofia moral em meados da década de 1760.

Esses trabalhos ajudaram a garantir a Kant uma reputação mais ampla na Alemanha, mas na maioria das vezes não foram surpreendentemente originais. Assim como outros filósofos alemães da época, as primeiras obras de Kant estão geralmente preocupadas em utilizar as idéias de autores empiristas britânicos para reformar ou ampliar a tradição racionalista alemã sem minar radicalmente seus fundamentos. Enquanto algumas de suas primeiras obras tendem a enfatizar as idéias racionalistas, outras têm uma ênfase mais empírica. Durante esse período, Kant estava se esforçando para elaborar uma posição independente, contudo, antes da década de 1770, sua visão permaneceu flexível.

Em 1766 Kant publicou seu primeiro trabalho sobre a possibilidade da metafísica, que mais tarde se tornou um tema central de sua filosofia madura. Dreams of a Spirit-Seer Elucidated by Dreams of Metaphysics – que ele escreveu logo após publicar o breve Essay on Maladies of the Mind (1764) – foi ocasionado pelo fascínio de Kant pelo visionário sueco Emanuel Swedenborg (1688-1772), que alegou ter tido uma visão de um mundo espiritual que lhe permitiu fazer uma série de previsões aparentemente milagrosas. Nesse curioso trabalho, Kant compara satíricamente as visões espirituais de Swedenborg à crença de metafísicos racionalistas em uma alma imaterial que sobrevive à morte, e ele conclui que o conhecimento filosófico de qualquer uma delas é impossível porque a razão humana está limitada à experiência. O tom cético de Dreams é temperado, entretanto, pela sugestão de Kant de que a “fé moral”, não obstante, apóia a crença em uma alma imaterial e imortal, mesmo que não seja possível atingir o conhecimento metafísico nesse domínio (2:373).

Em 1770, aos quarenta e seis anos de idade, Kant foi nomeado para a cadeira de lógica e metafísica no Albertina, depois de lecionar durante quinze anos como conferencista não remunerado e trabalhar desde 1766 como sub-bibliotecário para complementar sua renda. Kant foi recusado para o mesmo cargo em 1758. Todavia, mais tarde, à medida que sua reputação cresceu, ele declinou cadeiras de filosofia em Erlangen (1769) e Jena (1770) na esperança de obter uma em Königsberg. Depois que Kant foi finalmente promovido, ele gradualmente ampliou seu repertório de palestras para incluir antropologia (o de Kant foi o primeiro curso desse tipo na Alemanha e tornou-se muito popular), teologia racional, pedagogia, direito natural, e até mesmo mineralogia e fortificações militares. A fim de inaugurar seu novo cargo, Kant também escreveu mais uma dissertação em latim: Concerning the Form and Principles of the Sensible and Intelligible World (1770), que é conhecida como Inaugural Dissertation.

Inaugural Dissertation afasta-se de forma mais radical tanto do racionalismo wolffiano quanto do sentimentalismo britânico em relação ao trabalho anterior de Kant. Inspirado por Crusius e pelo filósofo natural suíço Johann Heinrich Lambert (1728-1777), Kant distingue entre dois poderes fundamentais da cognição, sensibilidade e entendimento (inteligência), enquanto que os leibniz-wolffianos consideravam o entendimento (intelecto) como o único poder fundamental. Kant, portanto, rejeita a visão racionalista de que a sensibilidade é apenas uma espécie confusa de cognição intelectual, e ele a substitui por sua própria visão de que a sensibilidade é distinta do entendimento e traz à percepção suas próprias formas subjetivas de espaço e tempo – uma visão que se desenvolveu a partir da crítica anterior de Kant à visão relacional de Leibniz sobre o espaço em Concerning the Ultimate Ground of the Differentiation of Directions in Space (1768). Ademais, como o título da Inaugural Dissertation indica, Kant argumenta que a sensibilidade e o entendimento são dirigidas a dois mundos diferentes: a sensibilidade nos dá acesso ao mundo sensível, enquanto que o entendimento nos permite captar um mundo inteligível distinto. Esses dois mundos estão relacionados na medida em que o que o entendimento capta no mundo inteligível é o “paradigma” da “PERFEIÇÃO NOUMENAL”, que é “uma medida comum para todas as outras coisas, uma vez que elas são realidades”. Considerado teoricamente, esse paradigma inteligível de perfeição é Deus; considerado na prática, é “PERFEIÇÃO MORAL” (2:396). A Inaugural Dissertation desenvolve assim uma forma de platonismo; e rejeita a visão dos sentimentalistas britânicos de que os julgamentos morais são baseados em sentimentos de prazer ou dor, uma vez que Kant sustenta agora que os julgamentos morais são baseados apenas na compreensão pura.

A partir de 1770, Kant jamais renunciou à visão de que a sensibilidade e a compreensão são poderes distintos de cognição, que o espaço e o tempo são formas subjetivas da sensibilidade humana, e que os julgamentos morais se baseiam apenas no puro entendimento (ou razão). Porém, seu abraço ao platonismo na Inaugural Dissertation foi de curta duração. Ele logo negou que nosso entendimento é capaz de discernir um mundo inteligível, o que abriu o caminho para sua posição madura na Crítica da Razão Pura (1781), segundo a qual o entendimento (como a sensibilidade) fornece formas que estruturam nossa experiência do mundo sensível, às quais o conhecimento humano é limitado, enquanto que o mundo inteligível (ou noumenal) é estritamente desconhecido para nós. Kant passou uma década trabalhando na Crítica da Razão Pura e não publicou mais nada de significativo entre 1770 e 1781. Entretanto, sua publicação marcou o início de mais uma explosão de atividade que produziu as obras mais importantes e duradouras da Kant. Uma vez que as primeiras revisões da Crítica da Razão Pura foram poucas e (na opinião de Kant) pouco compreensíveis, ele tentou esclarecer seus pontos principais através do abreviado Prolegomena to Any Future Metaphysics That Will Be Able to Come Forward as a Science (1783). Entre os principais livros que se seguiram rapidamente estão o Groundwork of the Metaphysics of Morals (1785), o principal trabalho de Kant sobre o princípio fundamental da moralidade; o Metaphysical Foundations of Natural Science (1786), seu principal trabalho sobre filosofia natural naquele que os estudiosos chamam de seu período crítico (1781-1798); a segunda edição, substancialmente revisada, da Crítica da Razão Pura (1787); a Crítica da Razão Prática (1788), uma discussão mais completa dos tópicos da filosofia moral que se baseia (e de certa forma revisa) no Groundwork; e a Crítica da Faculdade de Julgar (1790), que trata da estética e da teleologia. Kant também publicou vários ensaios importantes nesse período, incluindo o Idea for a Universal History With a Cosmopolitan Aim (1784) e o Conjectural Beginning of Human History (1786), suas principais contribuições para a filosofia da história; An Answer to the Question: What is Enlightenment? (1784), que aborda algumas das idéias-chave de seus últimos ensaios políticos; e What Does it Mean to Orient Oneself in Thinking? (1786), a intervenção de Kant na controvérsia do panteísmo que assolou os círculos intelectuais alemães após F. H. Jacobi (1743-1819) ter acusado o recém falecido G. E. Lessing (1729-1781) de espinozismo.

Com essas obras Kant conquistou fama internacional e chegou a dominar a filosofia alemã no final da década de 1780. Porém, em 1790 ele anunciou que a Crítica da Faculdade de Julgar pôs um fim a sua obra crítica (5:170). Até então, K. L. Reinhold (1758-1823), que com Letters on the Kantian Philosophy (1786)(1786) popularizou as idéias morais e religiosas de Kant, ocupara (em 1787) uma cadeira dedicada à filosofia Kantiana em Jena, que estava mais centralizada do que Königsberg e rapidamente se transformou no ponto focal da próxima fase da história intelectual alemã. Reinhold logo começou a criticar e a se afastar dos pontos de vista de Kant. Em 1794 sua cadeira em Jena passou para J. G. Fichte, que havia visitado o mestre em Königsberg e cujo primeiro livro, Attempt at a Critique of All Revelation (1792), foi publicado anonimamente e inicialmente confundido com uma obra do próprio Kant. Essa obra catapultou Fichte para a fama, mas logo ele também se afastou de Kant e desenvolveu uma posição original bastante contrária a dele, a qual Kant, por fim, repudiou publicamente em 1799 (12:370-371). No entanto, enquanto a filosofia alemã passou a avaliar e responder ao legado de Kant, o próprio Kant continuou a publicar obras importantes nos anos 1790. Entre elas estão Religion Within the Boundaries of Mere Reason (1793), a qual foi censurada pelo rei prussiano com a publicação do livro por Kant logo após seu segundo ensaio ter sido rejeitado pelo censor; The Conflict of the Faculties (1798), uma coleção de ensaios inspirados nos problemas de Kant com o censor e que tratam da relação entre as faculdades filosóficas e teológicas da universidade; On the Common Saying: That May be Correct in Theory, But it is of No Use in Practice (1793), Toward Perpetual Peace (1795), a Doctrine of Right e a primeira parte de The Metaphysics of Morals (1797), que são os principais trabalhos de Kant sobre a filosofia política; a Doctrine of Virtue, a segunda parte de The Metaphysics of Morals (1797), o trabalho mais maduro de Kant sobre a filosofia moral, que ele vinha planejando há mais de trinta anos; e Anthropology From a Pragmatic Point of View (1798), baseado nas palestras de antropologia de Kant. Várias outras compilações das notas das palestras de Kant de outros cursos foram publicadas posteriormente, mas tais notas não foram preparadas pelo próprio Kant.

Kant se aposentou do magistério em 1796. Durante quase duas décadas ele viveu uma vida altamente disciplinada, focada principalmente em completar seu sistema filosófico, que começou a tomar forma definitiva em sua mente somente na meia-idade. Depois de se aposentar, ele passou a acreditar que havia uma lacuna que separava os fundamentos metafísicos da ciência natural da própria física nesse sistema, e ele se propôs a fechar essa lacuna em uma série de notas que postulam a existência de um éter ou matéria calórica. Essas notas, conhecidas como Opus Postumum, permaneceram inacabadas e inéditas durante a vida de Kant, e os estudiosos discordam sobre seu significado e relação com seu trabalho anterior. É claro, entretanto, que algumas dessas notas tardias mostram sinais inequívocos do declínio mental de Kant, que se tornou tragicamente precipitado por volta de 1800. Kant morreu em 12 de fevereiro de 1804, pouco depois de seu octogésimo aniversário.

2. O Projeto de Kant com a Crítica da Razão Pura

O tema principal da Crítica da Razão Pura é a possibilidade da metafísica, entendida de uma forma específica. Kant define a metafísica em termos de “as cognições após as quais a razão pode se esforçar independentemente de toda experiência”, e seu objetivo no livro é chegar a uma “decisão sobre a possibilidade ou impossibilidade de uma metafísica em geral, e a determinação de suas fontes, bem como sua extensão e limites, tudo, entretanto, a partir de princípios” (AXII. Ver também BXIV; e 4:255-257). Assim, a metafísica para Kant diz respeito ao conhecimento a priori, ou conhecimento cuja justificação não depende da experiência; e ele associa o conhecimento a priori à razão. O projeto da Crítica é examinar se, como e em que medida a razão humana é capaz de um conhecimento a priori.

2.1 A Crise do Iluminismo

Para entender melhor o projeto da Crítica, consideremos o contexto histórico e intelectual em que foi escrita. Kant a redigiu próximo ao final do Iluminismo, que então se encontrava em estado de crise. A retrospectiva nos permite ver que a década de 1780 foi uma década de transição na qual o equilíbrio cultural se afastou decisivamente do Iluminismo em direção ao Romantismo, mas Kant não teve o benefício de semelhante retrospectiva.

O Iluminismo foi uma reação à ascensão e ao sucesso da ciência moderna nos séculos XVI e XVII. As espetaculares realizações de Newton, em particular, geraram confiança e otimismo generalizados a respeito do poder da razão humana para controlar a natureza e para melhorar a vida humana. Um efeito dessa nova confiança na razão foi que as autoridades tradicionais foram cada vez mais questionadas. Por que deveríamos precisar de autoridades políticas ou religiosas para nos dizer como viver ou no que acreditar, se cada um de nós tem a capacidade de descobrir tais coisas por si próprio? Kant expressa esse compromisso Iluminista com a soberania da razão na Crítica:

Nossa era é a era da crítica, à qual tudo deve se submeter. A religião, através de sua santidade, e a legislação, através de sua majestade, geralmente procuram se isentar dela. Porém, dessa forma, elas despertam uma suspeita justa contra si mesmas e não podem reivindicar esse respeito sincero que a razão concede apenas ao que foi capaz de resistir a seu livre e público exame. (AXI)

Iluminismo é pensar por si próprio em vez de deixar que os outros pensem por você, de acordo com O que é Iluminismo? (8:35). Nesse ensaio, Kant também expressa a fé Iluminista na inevitabilidade do progresso. Alguns poucos pensadores independentes inspirarão gradualmente um movimento cultural mais amplo, que em última instância levará a uma maior liberdade de ação e a uma reforma governamental. Uma cultura do iluminismo é “quase inevitável” se apenas houver a “liberdade para se fazer o uso público da razão em todos os assuntos” (8:36).

O problema é que, para alguns, não parecia claro se de fato o progresso ocorreria se a razão gozasse de plena soberania sobre as autoridades tradicionais; ou se o raciocínio sem ajuda levaria diretamente ao materialismo, ao fatalismo, ao ateísmo, ao ceticismo (Bxxxiv), ou mesmo ao libertinismo e ao autoritarismo (8:146). O compromisso Iluminista com a soberania da razão estava ligado à expectativa de que ele não levaria a nenhuma dessas consequências, mas, em vez disso, apoiaria certas crenças-chave que a tradição sempre sancionou. Crucialmente, elas incluíam a crença em Deus, na alma, na liberdade e na compatibilidade da ciência com a moralidade e a religião. Embora alguns intelectuais tenham rejeitado algumas ou todas essas crenças, o espírito geral do Iluminismo não era tão radical. O Iluminismo tratava de substituir autoridades tradicionais pela autoridade da razão humana individual, mas não se tratava de derrubar as crenças morais e religiosas tradicionais.

No entanto, a inspiração original para o Iluminismo foi a nova Física, que era mecanicista. Se a natureza é inteiramente governada por leis mecanicistas, causais, então pode parecer que não há espaço para a liberdade, para uma alma, ou para qualquer outra coisa que não seja matéria em movimento. Isso ameaçava a visão tradicional de que a moralidade requer liberdade. Devemos ser livres para escolher o que é certo ao invés do que é errado, pois, caso contrário, não podemos ser responsabilizados. Isso também ameaçou a crença religiosa tradicional em uma alma que pode sobreviver à morte ou ser ressuscitada em uma vida após a morte. Assim, a ciência moderna, o orgulho do Iluminismo, a fonte de seu otimismo sobre os poderes da razão humana, ameaçou minar as crenças morais e religiosas tradicionais, as quais se esperava que o livre pensamento racional apoiasse. Essa foi a principal crise intelectual do Século das Luzes.

Crítica da Razão Pura é a resposta de Kant a essa crise. Seu tema principal é a metafísica porque, para Kant, a metafísica é o domínio da razão – é “o inventário de tudo o que possuímos através da razão pura, ordenada sistematicamente” (Axx) – e a autoridade da razão estava em questão. O principal objetivo de Kant é mostrar que uma crítica da razão pela própria razão, sem a ajuda e sem as restrições das autoridades tradicionais, estabelece uma base segura e consistente tanto para a ciência newtoniana quanto para a moralidade e a religião tradicionais. Em outras palavras, a livre investigação racional apóia adequadamente todos esses interesses humanos essenciais e mostra que eles são coerentes entre si. Portanto, a razão merece a soberania que lhe foi atribuída pelo Iluminismo.

2.2 A Revolução Copernicana de Kant na Filosofia

Para ver como Kant tenta alcançar tal objetivo na Crítica, convém refletir sobre suas razões para rejeitar o platonismo na Inaugural Dissertation. A Inaugural Dissertation também tenta de certa forma conciliar a ciência newtoniana com a moral e a religião tradicional, mas sua estratégia é diferente daquela da Crítica. De acordo com ela, a ciência newtoniana é fiel ao mundo sensível, ao qual a sensibilidade nos dá acesso; e a compreensão capta princípios da perfeição divina e moral em um mundo inteligível distinto, que são paradigmas para medir tudo no mundo sensível. Portanto, sob esse ponto de vista, nosso conhecimento do mundo inteligível é a priori porque não depende da sensibilidade, e esse conhecimento a priori fornece princípios para julgar o mundo sensível porque, de alguma forma, o próprio mundo sensível se conforma ou imita o mundo inteligível.

Logo após escrever a Inaugural Dissertation, com efeito, Kant expressou dúvidas sobre esse ponto de vista. Como ele explicou em uma carta de 21 de fevereiro de 1772 a seu amigo e ex-aluno, Marcus Herz:

Em minha dissertação eu me contentei em explicar a natureza das representações intelectuais de forma meramente negativa, ou seja, em afirmar que elas não eram modificações da alma provocadas pelo objeto. Entretanto, passei em silêncio a questão de como uma representação que se refere a um objeto sem ser afetada de nenhuma forma por ele pode ser possível… [Por] quais meios essas [representações intelectuais] nos são dadas, se não pela forma como nos afetam? E, se tais representações intelectuais dependem de nossa atividade interior, de onde vem o acordo que elas supostamente têm com os objetos – objetos que, no entanto, não são possíveis de serem produzidos por elas?.. Quanto a como meu entendimento pode formar para si próprio conceitos de coisas completamente a priori, conceitos com os quais as coisas devem necessariamente concordar, e quanto a como meu entendimento pode formular princípios reais a respeito da possibilidade de tais conceitos, com os quais a experiência de princípios deve estar em exato acordo e que, no entanto, são independentes da experiência – tal questão, de como a faculdade de entendimento atinge essa conformidade com as coisas em si, ainda é deixada em um estado de obscuridade. (10:130–131)

Aqui, Kant apresenta dúvidas sobre como o conhecimento a priori de um mundo inteligível seria possível. A posição da Inaugural Dissertation,é que o mundo inteligível é independente do entendimento humano e do mundo sensível, ambos (de diferentes maneiras) se conformam com o mundo inteligível. Contudo, deixando de lado questões sobre o que significa o mundo sensível conformar-se a um mundo inteligível, como é possível para o entendimento humano conformar-se ou captar um mundo inteligível? Se o mundo inteligível é independente de nosso entendimento, então parece que só poderemos captá-lo se formos passivamente afetados por ele de alguma forma. Porém, para Kant, a sensibilidade é nossa capacidade passiva ou receptiva de sermos afetados por objetos que são independentes de nós (2:392, A51/B75). Assim, a única maneira de podermos captar um mundo inteligível que seja independente de nós é através da sensibilidade, o que significa que nosso conhecimento sobre ele não poderia ser a priori. Somente o entendimento puro poderia, na melhor das hipóteses, nos capacitar a formar representações de um mundo inteligível. Todavia, uma vez que essas representações intelectuais dependeriam inteiramente “de nossa atividade interior”, como Kant diz a Herz, não temos boas razões para acreditar que elas se conformariam a um mundo independente e inteligível. Tais representações intelectuais a priori poderiam muito bem ser invenções do cérebro que não correspondem a nada que seja independente da mente humana. De qualquer modo, a maneira como pode haver uma correspondência entre representações puramente intelectuais e um mundo independente e inteligível é completamente misteriosa.

A estratégia de Kant na Crítica é semelhante à da Inaugural Dissertation, pois ambas as obras tentam conciliar a ciência moderna com a moral e a religião tradicionais, relegando-as a mundos distintos, sensíveis e inteligíveis, respectivamente. Mas a Crítica dá um relato muito mais modesto e ao mesmo tempo revolucionário do conhecimento a priori. Como sugere a carta de Kant a Herz, o principal problema com sua visão na Inaugural Dissertation é que ela tenta explicar a possibilidade de um conhecimento a priori sobre um mundo que é inteiramente independente da mente humana. Isso acabou sendo um beco sem saída, e Kant nunca mais afirmou que podemos ter um conhecimento a priori sobre um mundo inteligível precisamente porque um mundo assim seria totalmente independente de nós. Entretanto, a posição revolucionária de Kant na Crítica é que podemos ter um conhecimento a priori sobre a estrutura geral do mundo sensível, porque ela não é totalmente independente da mente humana. O mundo sensível, ou o mundo das aparências, é construído pela mente humana a partir de uma combinação de matéria sensorial que recebemos passivamente e formas a priori que são fornecidas por nossas faculdades cognitivas. Podemos ter um conhecimento a priori apenas sobre aspectos do mundo sensível que refletem as formas a priori fornecidas por nossas faculdades cognitivas. Nas palavras de Kant, “podemos conhecer das coisas a priori apenas o que nós mesmos colocamos nelas” (BXVIII). Portanto, de acordo com a Crítica, o conhecimento a priori só é possível se e na medida em que o próprio mundo sensível depende da forma como a mente humana estrutura sua experiência.

Kant caracteriza essa nova visão construtivista da experiência na Crítica mediante uma analogia com a revolução feita por Copérnico na astronomia:

Até agora, presumiu-se que toda nossa cognição deve estar em conformidade com os objetos; mas todas as tentativas de descobrir algo sobre eles a priori através de conceitos que ampliariam nossa cognição, a partir desse pressuposto, não deram em nada. Por isso, vamos uma vez tentar saber se não avançamos mais com os problemas da metafísica, assumindo que os objetos devem estar em conformidade com nossa cognição, o que concorda melhor com a possibilidade requerida de uma cognição a priori deles, e isso significa estabelecer algo sobre os objetos antes de que eles nos sejam dados. Tal seria exatamente como os primeiros pensamentos de Copérnico, o qual, quando não conseguiu progredir mais na explicação dos movimentos celestes enquanto assumia que todos os corpos giravam em torno do observador, tentou descobrir se não teria maior sucesso se considerasse que é o observador quem gira e que são as estrelas que estão em repouso. Ora, na metafísica, podemos tentar algo semelhante em relação à intuição dos objetos. Se a intuição tem que se conformar com a constituição dos objetos, então não vejo como podemos saber nada deles a priori; mas, se o objeto (como objeto dos sentidos) se conforma com a constituição de nossa faculdade de intuição, então posso muito bem representar essa possibilidade para mim mesmo. Contudo, como não posso parar com essas intuições – se elas estão por tornar-se em cognições –, mas devo referi-las como sendo representações de algo, como seu objeto, e determinar esse objeto através delas, posso assumir que: ou os conceitos através dos quais eu faço essa determinação também se conformam com os objetos, e então estou mais uma vez na mesma dificuldade sobre como poderia saber algo a priori sobre eles, ou então assumo que os objetos ou – o que é a mesma coisa – a experiência na qual só eles podem ser cognizados (como objetos dados) se conforma a esses conceitos, caso em que vejo imediatamente uma saída mais fácil para a dificuldade, já que a experiência em si é uma espécie de cognição que requer o entendimento, cuja regra tenho que pressupor em mim mesmo antes que qualquer objeto me seja dado, sendo assim a priori, essa regra é expressa em conceitos a priori aos quais todos os objetos de experiência devem, portanto, necessariamente se conformar, e com os quais devem concordar. (BXVI-XVIII)

Como sugere essa passagem, o que Kant mudou na Crítica foi principalmente sua visão sobre o papel e os poderes do entendimento, uma vez que ele já defendia na Inaugural Dissertation que a sensibilidade contribui com as formas do espaço e do tempo – o que ele chama de intuições puras (ou a priori) (2:397) – para nosso conhecimento do mundo sensível. Entretanto, a Crítica afirma que a compreensão pura também, em vez de nos dar uma visão de um mundo inteligível, limita-se a fornecer formas – que ele chama de conceitos puros ou a priori – que estruturam nosso conhecimento do mundo sensível. Assim, agora tanto a sensibilidade quanto a compreensão trabalham em conjunto para construir o conhecimento do mundo sensível, que, portanto, está em conformidade com as formas a priori que são fornecidas por nossas faculdades cognitivas: as intuições a priori da sensibilidade e os conceitos a priori do entendimento. Tal relato é análogo à revolução heliocêntrica de Copérnico em astronomia, pois ambos exigem que as contribuições do observador sejam levadas em conta na explicação dos fenômenos, embora nenhum deles reduza os fenômenos apenas às contribuições dos observadores. A forma como os fenômenos celestes nos parecem da Terra, segundo Copérnico, é afetada tanto pelos movimentos dos corpos celestes quanto pelo movimento da Terra, que não é um corpo estacionário em torno do qual tudo o mais gira. Para Kant, analogamente, os fenômenos da experiência humana dependem tanto dos dados sensoriais que recebemos passivamente através da sensibilidade como da maneira como nossa mente processa ativamente esses dados de acordo com suas próprias regras a priori. Essas regras fornecem o quadro geral no qual o mundo sensível e todos os objetos (ou fenômenos) contidos nele nos parecem. Portanto, o mundo sensível e seus fenômenos não são totalmente independentes da mente humana, que contribui com sua estrutura básica.

Como a revolução copernicana de Kant na filosofia melhora a estratégia da Inaugural Dissertation para conciliar a ciência moderna com a moral e a religião tradicional? Primeiro, ela dá a Kant uma nova e engenhosa forma de colocar a ciência moderna em uma base a priori. Ele está agora em posição de argumentar que podemos ter um conhecimento a priori sobre as leis básicas da ciência moderna porque essas leis refletem a contribuição da mente humana para estruturar nossa experiência. Em outras palavras, o mundo sensível está necessariamente em conformidade com certas leis fundamentais – assim como o fato de que cada evento tem uma causa – porque a mente humana o constrói de acordo com essas leis. Além disso, podemos identificar essas leis refletindo sobre as condições da experiência possível, o que revela que seria impossível para nós experimentar um mundo no qual, por exemplo, um determinado evento não tenha uma causa. A partir disso, Kant conclui que a metafísica é realmente possível no sentido de que podemos ter conhecimento a priori de que todo o mundo sensível – não apenas nossa experiência real, mas qualquer experiência humana possível – está necessariamente em conformidade com certas leis. Kant chama a isso de metafísica imanente ou metafísica da experiência, porque ela lida com os princípios essenciais que são imanentes à experiência humana.

Ademais, se “podemos conhecer das coisas a priori apenas o que nós mesmos colocamos nelas”, então não podemos ter conhecimento a priori das coisas cuja existência e natureza são inteiramente independentes da mente humana, o que Kant chama de coisas em si mesmas (BXVIIIi). Em suas palavras: “[A partir dessa] dedução de nossa faculdade de cognição a priori […] emerge um resultado muito estranho […], ou seja, que com essa faculdade nunca podemos ultrapassar os limites da experiência possível, […] [e] que tal cognição atinge apenas as aparências, deixando a coisa em si mesma como algo real para si própria, mas incognoscível para nós” (BXIX-XX). Ou seja, a base construtivista do conhecimento científico de Kant restringe a ciência ao reino das aparências e implica que a metafísica transcendente – ou seja, o conhecimento a priori das coisas em si mesmas que transcendem a possível experiência humana – é impossível. Assim, na Crítica, Kant rejeita a visão de um mundo inteligível que ele defendeu na Inaugural Dissertation, e agora ele afirma que rejeitar o conhecimento sobre as coisas em si é necessário para conciliar a ciência com a moralidade e a religião tradicionais. Isso porque ele afirma que a crença em Deus, na liberdade e na imortalidade tem uma base estritamente moral, e, apesar disso, adotar essas crenças por razões morais seria injustificado se pudéssemos ter certeza de que elas são falsas. “Assim”, diz Kant, “tive que negar o conhecimento para dar lugar à fé” (Bxxx). Restringir o conhecimento às aparências e relegar Deus e a alma ao reino incognoscível das coisas em si garante que é impossível refutar as alegações sobre Deus e a liberdade ou imortalidade da alma, os quais, portanto, os argumentos morais podem nos justificar no acreditar. Além disso, o determinismo da ciência moderna não ameaça mais a liberdade exigida pela moralidade tradicional, porque a ciência e, portanto, o determinismo se aplicam apenas às aparências, e há espaço para a liberdade no reino das coisas em si mesmas, onde o eu ou a alma se encontra. Não podemos saber (teoricamente) que somos livres, porque não podemos saber nada sobre as coisas em si mesmas. Porém, existem fundamentos morais especialmente fortes para a crença na liberdade humana, que atua como “a pedra angular” apoiando outras crenças moralmente fundamentadas (5:3-4). Dessa forma, Kant substitui a metafísica transcendente por uma nova ciência prática que ele chama de metafísica da moral. Acontece assim que dois tipos de metafísica são possíveis: a metafísica da experiência (ou natureza) e a metafísica da moral, ambas dependentes da revolução copernicana de Kant na filosofia.

3. Idealismo transcendental

A tese central e mais controversa da Crítica da Razão Pura é, talvez, que os seres humanos experimentam apenas aparências, não coisas em si mesmas; e que o espaço e o tempo são apenas formas subjetivas de intuição humana que não subsistiriam em si mesmas se se abstraísse de todas as condições subjetivas da intuição humana. Kant chama essa tese de idealismo transcendental. Um de seus melhores resumos é sem dúvida o seguinte:

Queremos, portanto, dizer que toda nossa intuição não é mais que a representação da aparência; que as coisas que intuímos não são em si mesmas o que as intuímos ser, nem suas relações são tão constituídas em si mesmas quanto nos parecem; e que, se removermos nosso próprio sujeito, ou até mesmo removessemos apenas a constituição subjetiva dos sentidos em geral, então toda constituição, todas as relações dos objetos no espaço e no tempo – de fato, o espaço e o tempo em si – desapareceriam, e, como aparências, elas não podem existir em si mesmas, mas apenas em nós. O que pode ser o caso dos objetos em si – abstraídos de toda essa receptividade de nossa sensibilidade –, que permanecem totalmente desconhecidos para nós. Não conhecemos nada, exceto nossa maneira de percebê-los, que nos é peculiar e que, portanto, não pertence necessariamente a cada ser, embora seja certo que tal maneira de perceber pertence a cada ser humano. Estamos preocupados apenas com isto. O espaço e o tempo são as formas puras desse modo de perceber, a sensação em geral é sua matéria. Podemos conhecer essas primeiras formas apenas a priori, ou seja, antes de toda percepção real, e por isso elas são chamadas de intuição pura; a sensação, porém, é aquela em nossa cognição que é responsabilizada por ser chamada de cognição a posteriori, ou seja, a intuição empírica. A primeira adere à nossa sensibilidade de modo absolutamente necessário, qualquer que seja o tipo de sensação que possamos ter; a segunda pode ser muito diferente. (A42/B59-60).

Kant introduz o idealismo transcendental na parte da Crítica chamada Estética Transcendental, e os estudiosos geralmente concordam que para Kant o idealismo transcendental abrange pelo menos as seguintes afirmações:

  • Em certo sentido, os seres humanos experimentam apenas as aparências, não as coisas em si mesmas.
  • Espaço e tempo não são coisas em si, ou determinações de coisas em si que permaneceriam se alguém as abstraísse de todas as condições subjetivas da intuição humana. [Kant ratifica essa conclusão a) em A26/B42 e novamente em A32-33/B49. É pelo menos uma parte crucial do que ele quer dizer ao chamar espaço e tempo de transcendentalmente ideais (A28/B44, A35-36/B52)].
  • O espaço e o tempo nada mais são do que as formas subjetivas da intuição sensível do ser humano. [Kant ratifica esta conclusão b) em A26/B42 e novamente em A33/B49-50.]
  • Espaço e tempo são empiricamente reais, o que significa que “tudo o que pode chegar até nós externamente como um objeto” está tanto no espaço quanto no tempo, e que nossas intuições internas de nós mesmos estão no tempo (A28/B44, A34-35/B51-51).

Mas os estudiosos discordam amplamente sobre como interpretar essas afirmações, e não existe tal coisa como a interpretação padrão do idealismo transcendental de Kant. No entanto, dois tipos gerais de interpretação têm sido especialmente influentes. Esta seção fornece uma visão geral dessas duas interpretações, embora deva ser enfatizado que grande parte das importantes pesquisas sobre o idealismo transcendental não se encaixa perfeitamente em nenhum desses dois campos.

3.1 A interpretação dos dois-objetos

A interpretação dos dois-objetos é a interpretação tradicional do idealismo transcendental de Kant. Ela remonta à primeira revisão da Crítica – a chamada revisão de Göttingen por Christian Garve (1742-1798) e J. G. Feder (1740-1821) – e foi a forma dominante de interpretar o idealismo transcendental de Kant durante sua própria vida. Tem sido uma opção interpretativa viva desde então e permanece assim até hoje, embora não desfrute mais da dominância que um dia desfrutou.

De acordo com a interpretação dos dois-objetos, o idealismo transcendental é essencialmente uma tese metafísica que distingue duas classes de objetos: as aparências e as coisas em si mesmas. Outro nome para essa concepção é interpretação dos dois-mundos, pois também pode ser expressa afirmando que o idealismo transcendental distingue essencialmente entre um mundo das aparências e um outro mundo, o das coisas em si mesmas.

As coisas em si mesmas, segundo essa interpretação, são absolutamente reais no sentido de que elas existiriam e teriam quaisquer propriedades que tivessem, mesmo que nenhum ser humano estivesse por perto para percebê-las. As aparências, por outro lado, não são absolutamente reais em tal acepção, porque sua existência e suas propriedades dependem dos percebedores humanos. Além disso, sempre que as aparências existem, em algum sentido elas existem na mente dos percebedores humanos. Portanto, as aparências são entidades mentais ou representações mentais. Isso, junto com a afirmação de que experimentamos apenas as aparências, faz do idealismo transcendental uma forma de fenomenalismo, para essa interpretação, pois reduz os objetos da experiência a representações mentais. Todas as nossas experiências – todas as nossas percepções de objetos e eventos no espaço, mesmo aqueles objetos e eventos em si, e todos os pensamentos e sentimentos não-espaciais mas ainda temporais – caem na classe de aparências que existem na mente dos perceptores humanos. Essas aparências nos separam inteiramente da realidade das coisas em si mesmas, que são não-espaciais e não-temporais. No entanto, a teoria de Kant, com base nessa interpretação, exige que as coisas existam em si mesmas, porque elas devem nos transmitir os dados sensoriais a partir dos quais construímos as aparências. Em princípio, não podemos saber como as coisas em si mesmas afetam nossos sentidos, porque nossa experiência e conhecimento estão limitados ao mundo das aparências construídas por e na mente. As coisas em si mesmas são, portanto, uma espécie de postulado teórico, cuja existência e papel são exigidos pela teoria, mas não são diretamente verificáveis.

Os principais problemas com a interpretação dos dois-objetos são filosóficos. A maioria dos leitores de Kant que interpretaram seu idealismo transcendental dessa forma têm sido – muitas vezes bastante – críticos, devido a razões como as seguintes:

Primeiro, na melhor das hipóteses, Kant está caminhando em uma linha tênue ao afirmar, por um lado, que não podemos ter conhecimento das coisas em si, mas, por outro lado, que sabemos que as coisas em si existem, que afetam nossos sentidos e que são não-espaciais e não-temporais. Na pior das hipóteses, sua teoria depende de afirmações contraditórias sobre o que podemos e não podemos saber sobre as coisas em si mesmas. Essa objeção foi influentemente articulada por Jacobi, quando reclamou que “sem esse pressuposto [das coisas em si] eu não poderia entrar no sistema, mas com ele não poderia ficar dentro do sistema” (Jacobi 1787, 336).

Em segundo lugar, mesmo que esse problema seja superado, pareceu a muitos que a teoria de Kant, interpretada dessa forma, implica uma forma radical de ceticismo que prende cada um de nós dentro do conteúdo de nossa própria mente e nos afasta da realidade. Algumas versões dessa objeção procedem de premissas que Kant rejeita. Uma versão sustenta que as coisas em si mesmas são reais enquanto as aparências não o são e, portanto, na visão de Kant, não podemos ter experiência ou conhecimento da realidade. Porém, Kant nega que as aparências são irreais: elas são tão reais quanto as coisas em si mesmas, mas estão em uma classe metafísica diferente. Outra versão afirma que a verdade sempre envolve uma correspondência entre as representações mentais e as coisas em si mesmas, da qual se seguiria que, do ponto de vista de Kant, é impossível para nós termos crenças verdadeiras sobre o mundo. No entanto, assim como Kant nega que as coisas em si mesmas são a única (ou privilegiada) realidade, ele também nega que a correspondência com as coisas em si mesmas seja o único tipo de verdade. Os julgamentos empíricos são verdadeiros apenas no caso de corresponderem com seus objetos empíricos de acordo com os princípios a priori que estruturam toda a experiência humana possível. Todavia, o fato de Kant poder apelar dessa forma para um critério objetivo de verdade empírica que é interno à nossa experiência não foi suficiente para convencer alguns críticos de que Kant é inocente da acusação de uma forma inaceitável de ceticismo, principalmente por causa de sua insistência em nossa ignorância irreparável sobre as coisas em si mesmas.

Em terceiro e último lugar, a afirmação de Kant segundo a qual as coisas em si mesmas não são espaciais ou temporais pareceu incoerente a muitos de seus leitores. O papel das coisas em si mesmas, na interpretação dos dois-objetos, é afetar nossos sentidos e, assim, fornecer os dados sensoriais a partir dos quais nossas faculdades cognitivas constroem aparências dentro da estrutura de nossas intuições a priori de espaço, tempo e conceitos a priori, assim como a causalidade. Porém, se não há espaço, tempo, mudança ou causalidade no reino das coisas em si mesmas, então como as coisas em si mesmas podem nos afetar? A afectividade transcendental parece envolver uma relação causal entre as coisas em si mesmas e nossa sensibilidade. Se essa é simplesmente a maneira que inevitavelmente pensamos sobre a afectividade transcendental – porque podemos dar conteúdo positivo a esse pensamento apenas empregando o conceito de uma causa, embora seja estritamente falso que as coisas em si mesmas nos afetem causalmente – então não só parece que ignoramos como as coisas em si mesmas realmente nos afetam. Parece, ao invés disso, ser incoerente que as coisas em si mesmas poderiam nos afetar se elas não estivessem no espaço ou no tempo.

3.2 A interpretação de dois-aspectos

A interpretação dos dois-aspectos tenta interpretar o idealismo transcendental de Kant de uma forma que lhe permita defendê-lo contra pelo menos algumas dessas objeções. Nessa perspectiva, o idealismo transcendental não faz distinção entre duas classes de objetos, mas sim entre dois aspectos diferentes de uma e da mesma classe de objetos. Por essa razão, também é chamada de interpretação do mundo-único, pois sustenta que existe apenas um mundo na ontologia de Kant, e que pelo menos alguns objetos nesse mundo têm dois aspectos diferentes: um aspecto que nos aparece, e um outro aspecto que não nos aparece. Ou seja, as aparências são aspectos dos mesmos objetos que também existem em si mesmos. Portanto, nessa interpretação, as aparências não são representações mentais, e o idealismo transcendental não é uma forma de fenomenalismo.

Há pelo menos duas versões principais da teoria dos dois-aspectos. Uma versão trata o idealismo transcendental como uma teoria metafísica segundo a qual os objetos têm dois aspectos no sentido de que têm dois conjuntos de propriedades: um conjunto de propriedades relacionais que aparecem para nós e são espaciais e temporais, e outro conjunto de propriedades intrínsecas que não aparecem para nós e não são espaciais ou temporais (Langton 1998). Essa interpretação da propriedade-dualista enfrenta objeções epistemológicas semelhantes àquelas enfrentadas pela interpretação dos dois objetos, pois não estamos em melhor posição para adquirir conhecimento sobre propriedades que não aparecem para nós do que para adquirir conhecimento sobre objetos que não aparecem para nós. Ademais, essa interpretação também parece implicar que as coisas em si são espaciais e temporais, já que as aparências têm propriedades espaciais e temporais, e, sob essa ótica, as aparências são os mesmos objetos que as coisas em si mesmas. Porém, Kant nega explicitamente que espaço e tempo são propriedades das coisas em si mesmas.

Uma segunda versão da teoria dos dois-aspectos afasta-se mais radicalmente da interpretação tradicional dos dois-objetos, negando que o idealismo transcendental é, no fundo, uma teoria metafísica. Em vez disso, ela interpreta o idealismo transcendental como uma teoria fundamentalmente epistemológica que distingue dois pontos de vista sobre os objetos da experiência: o ponto de vista humano, a partir do qual os objetos são vistos em relação às condições epistêmicas peculiares às faculdades cognitivas humanas (a saber, as formas a priori de nossa intuição sensível); e o ponto de vista de um intelecto intuitivo, a partir do qual os mesmos objetos poderiam ser conhecidos em si mesmos e independentemente de qualquer condição epistêmica (Allison 2004). Os seres humanos não podem realmente assumir esse último ponto de vista, mas podem formar apenas um conceito vazio das coisas como elas existem em si mesmas, abstraindo de todo o conteúdo de nossa experiência e deixando apenas o pensamento puramente formal de um objeto em geral. Portanto, o idealismo transcendental, de acordo com essa interpretação, é essencialmente a tese de que estamos limitados ao ponto de vista humano, e o conceito de uma coisa em si desempenha o papel de nos permitir traçar os limites do ponto de vista humano, ultrapassando-os em pensamento abstrato (porém vazio).

Uma crítica a essa versão epistemológica da teoria dos dois-aspectos é que ela evita as objeções a outras interpretações, atribuindo a Kant um projeto mais limitado do que o texto da Crítica garante. Há passagens que apóiam essa leitura. Mas há também muitas passagens em ambas as edições da Crítica nas quais Kant descreve as aparências como representações na mente e nas quais sua distinção entre as aparências e as coisas em si mesmas recebe não apenas significado epistemológico, mas metafísico. Não está claro se todos esses textos admitem uma interpretação única e consistente.

4. A dedução transcendental

A dedução transcendental é o argumento central da Crítica da Razão Pura e um dos textos mais complexos e difíceis da história da filosofia. Dada sua complexidade, existem naturalmente muitas maneiras diferentes de interpretar a dedução. Esta breve visão geral fornece uma perspectiva sobre algumas de suas principais idéias.

A dedução transcendental ocorre na parte da Crítica chamada Analítica dos Conceitos, que trata dos conceitos a priori que, na opinião de Kant, nosso entendimento usa para construir experiência junto com as formas a priori de nossa intuição sensível (espaço e tempo), que ele discutiu na Estética Transcendental. Kant chama esses conceitos a priori de “categorias”, e argumenta em outro lugar (na chamada dedução metafísica) que eles incluem tais conceitos como substância e causa. O objetivo da dedução transcendental é mostrar que temos conceitos ou categorias a priori que são objetivamente válidos, ou que se aplicam necessariamente a todos os objetos do mundo que experimentamos. Para mostrar isso, Kant argumenta que as categorias são condições necessárias da experiência, ou que não poderíamos ter experiência sem as categorias. Nas palavras de Kant:

A validade objetiva das categorias, como conceitos a priori, repousa no fato de que só através delas é possível a experiência (no que diz respeito à forma de pensar). Pois então elas estão relacionadas necessariamente e a priori a objetos da experiência, uma vez que somente por meio delas é possível pensar em qualquer objeto da experiência.
A dedução transcendental de todos os conceitos a priori tem, portanto, um princípio para o qual toda a investigação deve ser dirigida, a saber: que eles devem ser reconhecidos como condições a priori da possibilidade das experiências (seja da intuição que se encontra neles, seja do pensamento). Os conceitos que fornecem o terreno objetivo da possibilidade de experiência são necessários apenas por esse motivo. (A93-94/B126)

A estratégia que Kant emprega para argumentar que as categorias são condições da experiência é a principal fonte tanto da obscuridade como da engenhosidade da dedução transcendental. Sua estratégia é argumentar que as categorias são necessárias especificamente para a autoconsciência, para a qual Kant frequentemente usa o termo Leibniziano “apercepção” (apperception).

4.1 A Autoconsciência

Uma maneira de abordar o argumento de Kant é contrastar sua visão de autoconsciência com duas visões alternativas que ele rejeita. Cada uma dessas visões, tanto a de Kant quanto as que ele rejeita, pode ser vista como oferecendo respostas concorrentes à pergunta: qual é a fonte de nosso senso de um eu contínuo e invariável que persiste ao longo de todas as mudanças em nossa experiência?

A primeira resposta a essa questão, a que Kant rejeita, é que a autoconsciência surge da presença de algum conteúdo particular em cada uma das representações de uma pessoa. Essa concepção material de autoconsciência, como podemos chamá-la, é sugerida pelo relato da identidade pessoal de Locke. De acordo com Locke, “sendo a mesma consciência que faz um Homem ser ele mesmo para si mesmo, a Identidade pessoal depende apenas disso, quer seja anexada apenas a uma Substância individual, quer possa ser continuada em uma sucessão de várias Substâncias” (Ensaio 2.27.10). O que Locke chama de “a mesma consciência” pode ser compreendido como algum conteúdo representativo que está sempre presente em minha experiência e que tanto identifica qualquer experiência como minha e me dá uma sensação de um eu contínuo em virtude de sua presença contínua em minha experiência. Um problema com essa visão, acredita Kant, é que não existe tal conteúdo representativo que esteja invariavelmente presente na experiência, de modo que a sensação de um “eu” contínuo não pode surgir daquele conteúdo inexistente (o que Locke chama de “consciência”) estando presente em cada uma das representações de uma pessoa. Nas palavras de Kant, a autoconsciência “não surge ainda pelo fato de eu acompanhar cada representação com consciência, mas sim pelo fato de eu acrescentar uma representação à outra e estar consciente de sua síntese. Portanto, é somente porque posso combinar uma série de representações em uma consciência que me é possível representar a identidade da consciência nestas representações” (B133). Aqui Kant afirma, contra a visão lockeana, que a autoconsciência surge da combinação (ou síntese) de representações umas com as outras, independentemente de seu conteúdo. Em suma, Kant tem uma concepção formal da autoconsciência em vez de uma concepção material. Uma vez que nenhum conteúdo particular de minha experiência é invariável, a autoconsciência deve derivar do fato de minha experiência ter uma forma ou estrutura invariável, e a consciência da identidade de mim mesmo através de todas as minhas experiências de mudança deve consistir na consciência da unidade formal e da regularidade governada pela lei da minha experiência. A forma contínua de minha experiência é o correlato necessário para o meu senso de um eu contínuo.

Há pelo menos duas versões possíveis da concepção formal da autoconsciência: uma versão realista e uma idealista. Na versão realista, a própria natureza é governada pela lei e nos tornamos autoconscientes ao atender às suas regularidades governadas pela lei, o que também torna essa uma visão empírica da autoconsciência. A idéia de um eu idêntico que persiste em toda a nossa experiência, com base nesse ponto de vista, surge a partir da regularidade da natureza, e nossas representações exibem ordem e regularidade porque a própria realidade é ordenada e regular. Kant rejeita essa visão realista e abraça uma concepção de autoconsciência que é tanto formal quanto idealista. De acordo com Kant, a estrutura formal de nossa experiência, sua unidade e regularidade governada pela lei, é uma conquista de nossas faculdades cognitivas e não uma propriedade da realidade em si mesma. Nossa experiência tem uma forma constante, pois nossa mente constrói a experiência de uma forma governada pela lei. Portanto, a autoconsciência, para Kant, consiste na consciência da atividade da mente, governada pela lei, de sintetizar ou combinar dados sensíveis para construir uma experiência unificada. Como ele o expressa: “essa unidade de consciência seria impossível se na cognição do coletor a mente não pudesse tornar-se consciente da identidade da função por meio da qual esse coletor é sinteticamente combinado em uma única cognição” (A108).

Kant defende essa concepção formal idealista de autoconsciência, e opõe-se à visão formal realista, argumentando que “não podemos representar nada como combinado no objeto sem que nós mesmos o tenhamos previamente combinado” (B130). Em outras palavras, mesmo que a realidade em si fosse governada por leis, suas leis não poderiam simplesmente migrar para nossa mente ou imprimir-se em nós enquanto nossa mente é inteiramente passiva. Devemos exercer uma capacidade ativa de representar o mundo como combinado ou ordenado de forma legal, porque de outra forma não poderíamos representar o mundo como governado por leis, mesmo que ele fosse governado por leis em si mesmo. Além disso, essa capacidade de representar o mundo como governado por leis deve ser a priori porque é uma condição da autoconsciência, e já teríamos que ser conscientes de nós mesmos para aprender com nossa experiência que existem regularidades governadas por leis no mundo. Portanto, é necessário para a autoconsciência que exerçamos uma capacidade a priori de representar o mundo como governado por leis. Porém, isso também seria suficiente para a autoconsciência, se pudéssemos exercer nossa capacidade a priori de representar o mundo como governado por leis, mesmo que a realidade em si mesma não fosse governada por leis. Nesse caso, a concepção realista e empirista da autoconsciência seria falsa, e a visão idealista formal seria verdadeira.

A confiança de Kant de que nenhum relato empírico poderia explicar a autoconsciência pode estar baseada em sua suposição de que o sentido de si mesmo que cada um de nós tem, o pensamento de si mesmo como idêntico em todas as experiências de mudança, envolve necessidade e universalidade, o que, em sua opinião, são as marcas registradas do a priori. Essa suposição é refletida no que podemos chamar de princípio da apercepção de Kant: “O que eu penso deve ser capaz de acompanhar todas as minhas representações; caso contrário, algo seria representado em mim que não poderia ser pensado de forma alguma, o que é o mesmo que dizer que a representação ou seria impossível ou pelo menos não seria nada para mim” (B131-132). Note as reivindicações sobre necessidade e universalidade incorporadas nas palavras “deve” e “todas” aqui. Kant está dizendo que, para uma representação contar como minha, ela deve necessariamente ser acessível à consciência de alguma forma (talvez indireta): Eu devo ser capaz de acompanhá-la com “Eu penso….”. Todas as minhas representações devem ser acessíveis à consciência dessa forma (mas elas não precisam estar realmente conscientes), porque, mais uma vez, é simplesmente isso que faz uma representação contar como minha. A autoconsciência para Kant envolve, portanto, o conhecimento a priori da verdade necessária e universal expressa nesse princípio da apercepção, e o conhecimento a priori não pode ser baseado na experiência.

Kant pode ter desenvolvido essa linha de sua argumentação na dedução transcendental depois de ler Johann Nicolaus Tetens (1736-1807) e não através de um encontro direto com os textos de Locke (Tetens 1777, Kitcher 2011). Sobre o tema da autoconsciência, Tetens foi um seguidor de Locke e também engajou-se com os argumentos de Hume para rejeitar um eu contínuo. Assim, os verdadeiros oponentes de Kant na dedução podem ter sido as posições lockeanas e humeanas representadas por Tetens, bem como as visões racionalistas que Kant teria encontrado diretamente nos textos de Leibniz, Wolff, e alguns de seus seguidores.

4.2 Objetividade e julgamento

Com base nessa concepção formal idealista da autoconsciência, o argumento de Kant (pelo menos um fio central dele) passa por mais duas condições da autoconsciência, a fim de estabelecer a validade objetiva das categorias. A condição seguinte é que a autoconsciência exige que eu represente um mundo objetivo distinto de minhas representações subjetivas – ou seja, distinto de meus pensamentos e sensações sobre esse mundo objetivo.

Para ser consciente de mim mesmo, não posso ser totalmente absorvido pelo conteúdo de minhas percepções, mas devo me distinguir do resto do mundo. Mas se a autoconsciência é uma conquista da mente, então como a mente consegue essa sensação de que existe uma distinção entre o eu que percebe e o conteúdo de suas percepções? De acordo com Kant, a mente alcança esse sentido ao distinguir as representações que necessariamente permanecem juntas das representações que não estão necessariamente ligadas, mas que estão meramente associadas de forma contingente. Considere o exemplo de Kant da percepção de uma casa (B162). Imagine uma casa que seja grande demais para caber em seu campo visual partindo do ponto de vista próximo a sua porta principal. Agora imagine que você passeia pela casa, percebendo sucessivamente cada um de seus lados. Eventualmente você percebe a casa inteira, mas não de uma só vez, e julga que cada uma de suas representações dos lados da casa necessariamente estão juntos (como lados de uma casa) e que qualquer um que negasse isso estaria enganado. Porém, agora imagine que você cresceu nessa casa e associe a ela um sentimento de nostalgia. Você não julgaria que as representações da casa estão necessariamente ligadas a sentimentos de nostalgia. Ou seja, você não pensaria que outras pessoas vendo a casa pela primeira vez estariam enganadas se negassem que ela está ligada à nostalgia, porque você reconhece que a casa está ligada à nostalgia por você, mas não necessariamente por todos. No entanto, você distingue essa conexão meramente subjetiva da conexão objetiva em relação aos lados da casa, que é objetiva porque os lados da casa necessariamente pertencem juntos “ao objeto”, pois essa conexão se mantém para todos universalmente, e porque é possível estar equivocado a respeito dela. A questão aqui não é a de que devemos identificar com sucesso quais representações necessariamente pertencem juntas e quais são meramente associadas de forma contingente, mas sim que, para sermos autoconscientes, devemos ao menos fazer essa distinção geral entre conexões de representações objetivas e conexões meramente subjetivas.

Aqui (pelo menos no texto da segunda edição) Kant introduz a reivindicação chave de que o julgamento é o que nos permite distinguir conexões objetivas de representações que necessariamente pertencem juntas, daquelas associações meramente subjetivas e contingentes: “Um julgamento nada mais é do que a maneira de trazer os conhecimentos dados à unidade objetiva da apercepção. Este é o objetivo da cópula que está neles: distinguir a unidade objetiva de determinadas representações do que é subjetivo. Porque essa palavra designa a relação das representações com a apercepção original e com sua necessária unidade” (B141-142). Kant está falando aqui do ato mental de julgar que resulta na formação de um juízo. Julgar é um ato do que Kant chama de síntese, que ele define como “a ação de juntar diferentes representações e compreender sua manifestação em uma só cognição” (A77/B103). Em outras palavras, sintetizar é, em geral, combinar várias representações em uma única (e mais) complexa representação, e julgar é especificamente combinar conceitos em um julgamento – ou seja, unir um conceito sujeito a um conceito predicado por meio da cópula, como em “o corpo é pesado” ou “a casa é de quatro lados”. Os julgamentos não precisam ser verdadeiros, é claro, mas sempre têm um valor de verdade (verdadeiro ou falso) porque reivindicam uma validade objetiva. Quando digo, em contraste, que “se eu carrego um corpo, sinto uma pressão exercida pelo peso”, ou que “se eu vejo esta casa, sinto nostalgia”, não estou fazendo um julgamento sobre o objeto (o corpo ou a casa), mas estou expressando uma associação subjetiva que pode se aplicar somente a mim (B142).

A referência de Kant à unidade necessária de apercepção ou autoconsciência na citação acima significa (pelo menos) que a ação de julgar é o modo como nossa mente alcança a autoconsciência. Devemos representar um mundo objetivo a fim de nos distinguirmos dele, e representamos um mundo objetivo ao julgar que algumas representações necessariamente estão juntas. Ademais, recordemos de 4.1 que, para Kant, devemos ter uma capacidade a priori de representar o mundo como sendo governado por leis, porque “não podemos representar nada como combinado (ou conectado) ao objeto sem que nós mesmos o tenhamos previamente combinado” (B130). Segue-se que as conexões objetivas no mundo não podem simplesmente imprimir-se em nossa mente. Ao contrário, a experiência de um mundo objetivo deve ser construída exercendo uma capacidade a priori de julgar, a qual Kant chama de faculdade do entendimento (A80-81/B106). O entendimento constrói a experiência fornecendo as regras a priori, ou a estrutura das leis necessárias, de acordo com as quais julgamos que as representações são objetivas. Essas regras são os conceitos puros do entendimento ou as categorias, que são, portanto, condições de autoconsciência, pois são regras para julgar um mundo objetivo, e a autoconsciência exige que nos diferenciemos de um mundo objetivo.

Kant identifica as categorias no que ele chama de dedução metafísica, que precede a dedução transcendental. Muito brevemente, uma vez que as categorias são regras a priori para julgamento, Kant argumenta que uma tabela exaustiva de categorias pode ser derivada de uma tabela das formas lógicas básicas de julgamento. Por exemplo, de acordo com Kant, a forma lógica do julgamento de que “o corpo é pesado” seria singular, afirmativa, categórica e assertiva. No entanto, como as categorias não são meras funções lógicas, mas são regras para fazer julgamentos sobre objetos ou um mundo objetivo, Kant chega à sua tabela de categorias considerando como cada função lógica estruturaria julgamentos sobre objetos (dentro de nossas formas espaço-temporais de intuição). Por exemplo, ele afirma que julgamentos categóricos expressam uma relação lógica entre sujeito e predicado que corresponde à relação ontológica entre substância e acidente; e a forma lógica de um julgamento hipotético expressa uma relação que corresponde a causa e efeito. Tomada em conjunto com essa argumentação, então, a dedução transcendental argumenta que nos tornamos autoconscientes ao representar um mundo objetivo de substâncias que interagem de acordo com as leis causais.

4.3 O legislador da natureza

A condição final de autoconsciência que Kant acrescenta às condições precedentes é que nosso entendimento deve cooperar com a sensibilidade para construir um espaço-tempo unificado, sem fronteiras, com o qual todas as nossas representações possam estar relacionadas.

Para ver por que essa condição adicional é necessária, considere que até agora vimos a razão pela qual Kant defende que devemos representar um mundo objetivo para sermos autoconscientes, mas poderíamos representar um mundo objetivo mesmo que não fosse possível relacionar todas as nossas representações a esse mundo objetivo. Por tudo o que foi dito até agora, ainda podemos ter representações indisciplinadas que não podemos relacionar de forma alguma com a estrutura objetiva de nossa experiência. Na opinião de Kant, isso seria um problema porque, como vimos, ele sustenta que a autoconsciência envolve universalidade e necessidade: de acordo com seu princípio de apercepção, “o eu penso deve ser capaz de acompanhar todas as minhas representações” (B131). Porém, se por um lado eu tivesse representações que não pudesse relacionar de alguma forma com um mundo objetivo, então eu não poderia acompanhar essas representações com o “eu penso” ou reconhecê-las como minhas representações, porque posso dizer “eu penso…” sobre qualquer dada representação apenas relacionando-a com um mundo objetivo, de acordo com o argumento que acabamos de discutir. Portanto, devo ser capaz de relacionar qualquer representação a um mundo objetivo para que ela possa contar como minha. Por outro lado, a autoconsciência também seria impossível se eu representasse múltiplos mundos objetivos, mesmo se eu pudesse relacionar todas as minhas representações a um ou outro mundo objetivo. Nesse caso, eu não poderia ter consciência de um eu idêntico que tenha, digamos, uma representação 1 no espaço-tempo A e uma representação 2 no espaço-tempo B. Pode ser possível imaginar espaços e tempos desajustados, mas não é possível representá-los como objetivamente reais. Portanto, a autoconsciência requer que eu possa relacionar todas as minhas representações a um único mundo objetivo.

A razão pela qual devo representar esse mundo objetivo único por meio de um espaço-tempo unificado e sem fronteiras é que, como Kant argumentou na Estética Transcendental, espaço e tempo são as formas puras da intuição humana. Se tivéssemos diferentes formas de intuição, então nossa experiência ainda teria que constituir um todo unificado para que pudéssemos ser autoconscientes, mas este não seria um todo espaço-temporal. Dado que espaço e tempo são nossas formas de intuição, contudo, nossa compreensão ainda deve cooperar com a sensibilidade para construir um todo de experiência espaço-temporal, porque, mais uma vez, “não podemos representar nada do modo combinado no objeto sem termos previamente o combinado nós mesmos”, e “toda combinação […] é uma ação da compreensão” (B130). Assim, Kant distingue entre espaço e tempo como formas puras de intuição, que pertencem unicamente à sensibilidade; e as intuições formais de espaço e tempo (ou de espaço-tempo), que são unificadas pelo entendimento (B160-161). Essas intuições formais são o conjunto espaço-temporal dentro do qual nossa compreensão constrói a experiência de acordo com as categorias.

A implicação mais importante da alegação de Kant de que o entendimento constrói um único conjunto de experiências com o qual todas as nossas representações podem estar relacionadas é que – uma vez que ele define a natureza “considerada materialmente” como “a soma total de todas as aparências” e que ele argumentou que as categorias são objetivamente válidas em todas as aparências possíveis –, a seu ver, segue-se que nossas categorias são a fonte das leis fundamentais da natureza “consideradas formalmente” (B163, 165). Portanto, Kant conclui com base nisso que o entendimento é o verdadeiro legislador da natureza. Em suas palavras: “todas as aparências na natureza, no que diz respeito à sua combinação, estão sob as categorias das quais depende a natureza (considerada meramente como a natureza em geral), como o fundamento original de sua necessária legalidade (tal como a natureza é considerada formalmente)” (B165). Ou mais acentuadamente: “nós mesmos trazemos para as aparências aquela ordem e regularidade que chamamos natureza e, além disso, não poderíamos encontrá-la lá se nós, ou a natureza de nossa mente, não a tivéssemos originalmente colocado lá. […] Assim, o entendimento não é apenas a faculdade de estabelecer regras através da comparação das aparências: ele próprio é a legislação para a natureza, ou seja, sem o entendimento não haveria natureza alguma” (A125-126).

5. Moralidade e liberdade

Tendo examinado duas partes centrais do projeto positivo de Kant na filosofia teórica da Crítica da Razão Pura, o idealismo transcendental e a dedução transcendental, passemos agora à sua filosofia prática na Crítica da Razão Prática. Como a filosofia de Kant é profundamente sistemática, esta seção começa com um olhar preliminar sobre como sua filosofia teórica e prática se encaixam (ver também a seção 7).

5.1 Autonomia teórica e prática

A idéia fundamental da filosofia de Kant é a autonomia humana. Até agora, vimos isso na visão construtivista da experiência de Kant, segundo a qual nosso entendimento é a fonte das leis gerais da natureza. “Autonomia” significa literalmente dar a lei a si próprio, e na visão de Kant nossa compreensão fornece leis que constituem a estrutura a priori de nossa experiência. Nosso entendimento não fornece a matéria ou o conteúdo de nossa experiência, mas fornece a estrutura formal básica dentro da qual experimentamos qualquer matéria recebida através de nossos sentidos. O argumento central de Kant para essa concepção é a dedução transcendental, segundo a qual constitui uma condição da auto-consciência o fato de nossa compreensão construir a experiência dessa maneira. Portanto, podemos chamar de autoconsciência o princípio mais elevado da filosofia teórica de Kant, uma vez que ela é (pelo menos) a base de todo o nosso conhecimento a priori sobre a estrutura da natureza.

A filosofia moral de Kant também baseia-se na idéia de autonomia. Ele afirma que existe um único princípio fundamental da moralidade, no qual todos os deveres morais específicos se baseiam. Ele chama essa lei moral (como ela se manifesta para nós) de imperativo categórico (ver 5.4). A lei moral é um produto da razão, para Kant, enquanto as leis básicas da natureza são produtos de nosso entendimento. Há diferenças importantes entre os sentidos nos quais somos autônomos na construção de nossa experiência e na moralidade. Por exemplo, Kant considera a compreensão e a razão como diferentes faculdades cognitivas, embora às vezes utilize a “razão” em um sentido amplo para cobrir ambos. As categorias e, portanto, as leis da natureza dependem de nossas formas especificamente humanas de intuição, enquanto que a razão não depende. A lei moral não depende de nenhuma qualidade peculiar à natureza humana, mas apenas da natureza da razão como tal, embora sua manifestação para nós como um imperativo categórico (como uma lei do dever) reflita o fato de que a vontade humana não é necessariamente determinada pela razão pura, mas também é influenciada por outros incentivos enraizados em nossas necessidades e inclinações; e nossos deveres específicos derivados do imperativo categórico refletem a natureza humana e as contingências da vida humana. Apesar dessas diferenças, no entanto, Kant sustenta que nós damos a lei moral a nós mesmos, como também damos as leis gerais da natureza a nós mesmos, embora em um sentido diferente. Além disso, cada um de nós dá necessariamente a mesma lei moral a si próprio, da mesma forma que cada um constrói sua experiência de acordo com as mesmas categorias. Para resumir:

  • A filosofia teórica é sobre como o mundo é (A633/B661). Seu princípio mais elevado é a autoconsciência, sobre a qual se baseia o nosso conhecimento das leis básicas da natureza. Considerando os dados sensoriais, nosso entendimento constrói a experiência de acordo com essas leis a priori.
  • A filosofia prática é sobre como o mundo deve ser (ibid., A800-801/B828-829). Seu princípio mais elevado é a lei moral, da qual derivam deveres que comandam a forma como devemos agir em situações específicas. Kant também afirma que a reflexão sobre nossos deveres morais e nossa necessidade de felicidade leva-nos a pensar em um mundo ideal, que ele chama de o bem maior (ver seção 6). Dado como o mundo é (filosofia teórica) e como deve ser (filosofia prática), nosso objetivo é tornar o mundo melhor, construindo ou realizando o bem mais elevado.

Portanto, ambas as partes da filosofia de Kant são sobre a construção autônoma de um mundo, mas em sentidos diferentes. Na filosofia teórica, usamos nossas categorias e formas de intuição para construir um mundo da experiência ou da natureza. Na filosofia prática, usamos a lei moral para construir a idéia de um mundo moral ou um reino de fins que guia nossa conduta (4:433) e, em última instância, para transformar o mundo natural no bem mais elevado. Finalmente, o idealismo transcendental é a estrutura dentro da qual essas duas partes da filosofia de Kant se encaixam (20:311). A filosofia teórica trata das aparências, às quais nosso conhecimento é estritamente limitado; e a filosofia prática trata das coisas em si mesmas, embora ela não nos dê conhecimento sobre as coisas em si mesmas, mas apenas forneça justificação racional para certas crenças sobre elas para fins práticos.

Para entender os argumentos de Kant de que a filosofia prática justifica certas crenças sobre as coisas em si, é necessário vê-las no contexto de suas críticas à metafísica racionalista alemã. Os três tópicos tradicionais da metafísica especial de Leibniz-Wolff eram a psicologia racional, a cosmologia racional e a teologia racional, que tratavam, respectivamente, da alma humana, do mundo inteiro e de Deus. Na parte da Crítica da Razão Pura chamada Dialética Transcendental, Kant argumenta contra a visão de Leibniz-Wolff de que os seres humanos são capazes de conhecimento a priori em cada um desses domínios, e ele afirma que os erros da metafísica de Leibniz-Wolff são devidos a uma ilusão que tem seu lugar na natureza da própria razão humana. Segundo Kant, a razão humana produz necessariamente idéias sobre a alma, sobre o mundo inteiro e sobre Deus; e essas idéias inevitavelmente produzem a ilusão de que temos um conhecimento a priori sobre os objetos transcendentes correspondentes a elas. Isso é uma ilusão, no entanto, porque, de fato, não somos capazes de ter conhecimento a priori sobre nenhum desses objetos transcendentes. No entanto, Kant tenta mostrar que tais idéias ilusórias têm um uso positivo e prático. Assim, ele reescreve a metafísica especial de Leibniz-Wolff como uma ciência prática que ele chama de metafísica da moral. Na visão de Kant, nossas idéias de alma, do mundo inteiro e de Deus fornecem o conteúdo de crenças moralmente justificadas sobre a imortalidade humana, a liberdade humana e a existência de Deus, respectivamente; mas elas não são objetos apropriados do conhecimento especulativo.

5.2 Liberdade

A crença mais importante sobre as coisas em si, as quais Kant pensa que somente a filosofia prática pode justificar, diz respeito à liberdade humana. A liberdade é importante porque, na opinião de Kant, a avaliação moral pressupõe que somos livres no sentido de que temos a capacidade de fazer o contrário. Para entender o motivo, considere o exemplo de Kant de um homem que comete um roubo (5:95 ss.). Kant defende o argumento de que, para que a ação desse homem fosse moralmente errada, é preciso que estivesse dentro de seu controle – no sentido de que naquele momento estivesse dentro de seu poder – o não cometer o roubo. Se isso não estivesse dentro de seu controle na época, então, embora possa ser útil puni-lo a fim de moldar seu comportamento ou influenciar outros, não seria correto dizer que sua ação foi moralmente errada. A retidão moral e a injustiça se aplicam somente aos agentes livres que controlam suas ações e têm em seu poder, no momento de suas ações, agir corretamente ou não. De acordo com Kant, trata-se apenas de senso comum.

Com base nisso, Kant rejeita um tipo de compatibilismo que ele chama de “conceito comparativo de liberdade” e se associa a Leibniz (5:96-97). (Note que Kant tem em mente um tipo específico de compatibilismo, ao qual me referirei simplesmente como “compatibilismo”, embora possa haver outros tipos de compatibilismo que não se encaixam na caracterização que Kant faz dessa perspectiva). Na visão compatibilista, tal como Kant a entende, sou livre sempre que a causa de minha ação estiver dentro de mim. Portanto, não sou livre somente quando algo externo me empurra ou me move, mas sou livre sempre que a causa próxima do movimento do meu corpo é interna a mim como um “ser atuante” (5:96). Se distinguirmos entre convulsões involuntárias e movimentos corporais voluntários, então, sob esse ponto de vista, ações livres são apenas movimentos corporais voluntários. Kant ridiculariza essa opinião como um “miserável subterfúgio” que tenta resolver um antigo problema filosófico “com um pouco de sutileza de palavras” (ibid.). Ele diz que essa opinião equipara a liberdade humana à “liberdade de uma cuspida”, ou a de um projétil em voo, ou a do movimento dos ponteiros de um relógio (5:96-97). As causas imediatas desses movimentos são interiores à cuspida, ao projétil e ao relógio no momento do movimento. Isso não pode ser suficiente para assegurar a responsabilidade moral.

Por que não? A razão, diz Kant, é que as causas desses movimentos ocorrem, em última análise, no tempo. Voltemos ao exemplo do roubo. Um compatibilista diria que a ação do ladrão é livre porque sua causa próxima está dentro dele, e porque o roubo não foi uma convulsão involuntária, mas uma ação voluntária. O ladrão decidiu cometer o roubo, e sua ação decorreu dessa decisão. Segundo Kant, porém, se a decisão do ladrão é um fenômeno natural que ocorre no tempo, então deve ser o efeito de alguma causa que tenha ocorrido em um tempo anterior. Essa é uma parte essencial da concepção newtoniana do mundo de Kant e está fundamentada nas leis a priori (especificamente, a categoria de causa e efeito) de acordo com a qual nosso entendimento constrói a experiência: todo evento tem uma causa que começa em um tempo anterior. Se essa causa também foi um evento que ocorreu no tempo, então também deve ter uma causa que começa em um tempo ainda anterior, etc. Todos os eventos naturais ocorrem no tempo e são completamente determinados por cadeias causais que se estendem para trás, para um passado distante. Portanto, não há espaço para a liberdade na natureza, que é determinista em um sentido forte.

A raiz do problema, para Kant, é o tempo. Novamente, se a escolha do ladrão de cometer o roubo é um evento natural no tempo, então é o efeito de uma cadeia causal que se estende para um passado distante. Contudo, o passado está fora de seu controle agora, no presente. Uma vez que o passado é passado, ele não pode mudá-lo. Na opinião de Kant, é por isso que suas ações não estariam sob seu controle no presente se fossem determinadas por eventos do passado. Mesmo se ele pudesse controlar esses eventos passados no passado, ele não pode controlá-los agora. Mas, na verdade, eventos passados também não estavam sob seu controle no passado, se eles também fossem determinados por eventos no passado mais distante, porque eventualmente os antecedentes causais de sua ação remontam antes de seu nascimento, e obviamente os eventos que ocorreram antes de seu nascimento nunca estiveram sob seu controle. Portanto, se a escolha do ladrão de cometer o roubo é um evento natural no tempo, então não o é agora e nunca esteve sob seu controle, e ele não poderia ter feito de outra forma a não ser cometer o roubo. Nesse caso, seria um erro considerá-lo moralmente responsável por isso.

O compatibilismo, como Kant o entende, portanto, localiza a questão no lugar errado. Mesmo que a causa de minha ação seja interna a mim, se ela está no passado – por exemplo, se minha ação hoje é determinada por uma decisão que tomei ontem, ou pelo caráter que desenvolvi na infância – então ela não está sob meu controle agora. O verdadeiro problema não é se a causa de minha ação é interna ou externa a mim, mas se ela está sob meu controle agora. Para Kant, entretanto, a causa de minha ação só pode estar dentro do meu controle agora se ela não estiver no tempo. É por isso que Kant pensa que o idealismo transcendental é a única maneira de dar sentido ao tipo de liberdade que a moralidade exige. O idealismo transcendental permite que a causa de minha ação possa ser uma coisa em si mesma fora do tempo: ou seja, meu “eu” transcendental, que é livre porque não é parte da natureza. Não importa que tipo de caráter eu tenha desenvolvido ou que influências externas atuem sobre mim, na opinião de Kant, todas as minhas ações intencionais e voluntárias são efeitos imediatos do meu eu noumenal, que é causalmente indeterminado (5:97-98). Meu eu noumenal é uma causa não-causada fora do tempo, que portanto não está sujeita às leis determinísticas da natureza, de acordo com as quais nosso entendimento constrói a experiência.

Muitos enigmas que Kant não resolve surgem nesse quadro. Por exemplo, se meu entendimento constrói todas as aparências em minha experiência da natureza, e não somente as aparências de minhas próprias ações, então por que sou responsável somente por minhas próprias ações, e não por tudo o que acontece no mundo natural? Ademais, se eu não estou sozinho no mundo, mas há muitos eus noumenais agindo livremente e incorporando suas ações livres na experiência que constroem, então como os múltiplos agentes transcendentalmente livres interagem? Como você integra minhas ações livres na experiência que sua compreensão constrói? Apesar desses enigmas não resolvidos, Kant sustenta que só podemos dar sentido à avaliação moral e à responsabilidade pensando na liberdade humana desse modo, porque é a única maneira de evitar que a necessidade natural prejudique ambos.

Finalmente, como Kant invoca o idealismo transcendental para dar sentido à liberdade, interpretar seu pensamento sobre a liberdade nos leva de volta às disputas entre a interpretação dos dois objetos e à interpretação dos dois aspectos do idealismo transcendental. À primeira vista, a interpretação dos dois objetos parece fazer melhor sentido na visão de Kant sobre a liberdade transcendental do que a interpretação dos dois aspectos. Se a moralidade exige que eu seja transcendentalmente livre, então parece que meu verdadeiro eu, e não apenas um aspecto do meu eu, deve estar fora do tempo, de acordo com o argumento de Kant. Porém, a aplicação da interpretação dos dois objetos à liberdade levanta problemas próprios, uma vez que envolve fazer uma distinção entre eus noumenais e fenomenais que não surgem da interpretação dos dois aspectos. Se apenas meu eu noumenal é livre, e a liberdade é necessária para a responsabilidade moral, então meu eu fenomenal não é moralmente responsável. Entretanto, como estão relacionados meus eus noumenal e fenomenal, e por que a punição é infligida aos eus fenomenais? Não está claro se e até que ponto apelar para a teoria de Kant sobre a liberdade pode ajudar a resolver disputas sobre a interpretação adequada do idealismo transcendental, uma vez que existem sérias questões sobre a coerência da teoria de Kant em qualquer das interpretações.

5.3 O Fato da Razão

Podemos saber que somos livres nesse sentido transcendental? A resposta de Kant é complicada. Por um lado, ele distingue entre conhecimento teórico e crença moralmente justificada (A820-831/B848-859). Não temos conhecimento teórico de que somos livres ou sobre qualquer coisa além dos limites da experiência possível, mas estamos moralmente justificados em acreditar que somos livres em tal sentido. Por outro lado, Kant também usa uma linguagem mais forte do que essa ao discutir a liberdade. Por exemplo, ele diz que “entre todas as idéias especulativas da razão, a liberdade é a única cuja possibilidade conhecemos a priori, embora sem ter qualquer percepção, porque ela é a condição da lei moral, a qual nós conhecemos”. Em uma nota de rodapé a essa passagem, Kant explica que conhecemos a liberdade a priori porque “se não houvesse liberdade, a lei moral não seria encontrada em nós mesmos”, e na opinião de Kant todos se deparam com a lei moral a priori (5:4). Por essa razão, Kant afirma que a lei moral “prova” o objetivo, “embora apenas a realidade prática, indubitável” da liberdade (5:48-49). Portanto, Kant quer dizer que temos conhecimento da realidade da liberdade, mas que isso é conhecimento prático de uma realidade prática, ou cognição “somente para fins práticos”, através da qual ele pretende distingui-la do conhecimento teórico baseado na experiência ou na reflexão sobre as condições da experiência (5:133). Nosso conhecimento prático da liberdade se baseia, ao invés disso, na lei moral. A diferença entre a linguagem mais forte e mais fraca de Kant parece ser principalmente que sua linguagem mais forte enfatiza que nossa crença ou conhecimento prático sobre a liberdade é inabalável e que, por sua vez, fornece apoio para outras crenças moralmente fundamentadas em Deus e na imortalidade da alma.

Kant chama nossa consciência da lei moral, nossa percepção de que a lei moral nos vincula ou tem autoridade sobre nós, de “fato da razão” (5:31-32, 42-43, 47, 55). Portanto, na sua opinião, o fato da razão é a base prática para nossa crença ou conhecimento prático de que somos livres. Kant insiste que essa consciência moral é “inegável”, “a priori”, e “inevitável” (5:32, 47, 55). Todo ser humano tem uma consciência, um senso comum de moralidade e uma firme convicção de que ele ou ela é moralmente responsável. Podemos ter crenças diferentes sobre a fonte da autoridade da moralidade – Deus, convenção social, razão humana. Podemos chegar a conclusões diferentes sobre o que a moralidade requer em situações específicas. E podemos violar nosso próprio senso de dever. Mas todos nós temos uma consciência e uma crença inabalável de que a moralidade se aplica a nós. Segundo Kant, essa crença não pode e não precisa ser justificada ou “provada por qualquer dedução” (5:47). É apenas um fato básico sobre os seres humanos o fato de que nós nos responsabilizamos moralmente. Todavia, Kant está fazendo aqui uma afirmação também normativa: é também um fato, que não pode e não precisa ser justificado, que nós somos moralmente responsáveis, que a moralidade tem autoridade sobre nós. Kant sustenta que a filosofia deve estar relacionada com a defesa dessa crença moral do senso comum e que, de qualquer forma, nunca a poderíamos provar ou refutar (4:459).

Kant poderia argumentar que o fato da razão, ou a nossa consciência de obrigação moral, implica que somos livres com base naquilo que deveria implicar que podemos. Em outras palavras, Kant poderia acreditar que isso se segue ao fato de que devemos (moralmente) fazer algo que podemos ou somos capazes de fazê-lo. Tal é sugerido, por exemplo, numa passagem na qual Kant nos pede para imaginar alguém sendo ameaçado de execução imediata por seu príncipe, a menos que ele “dê um falso testemunho contra um homem honrado que o príncipe gostaria de destruir sob um pretexto plausível”. Kant diz que “[ele] talvez não se atrevesse a afirmar se o faria ou não, mas deve admitir sem hesitação que isso seria possível para ele. Ele julga, portanto, que pode fazer algo porque está consciente de que deveria fazê-lo e conhece a liberdade dentro dele, a qual, sem a lei moral, teria permanecido desconhecida para ele” (5:30). Trata-se de um exemplo hipotético de uma ação ainda não realizada. Parece que as dores da culpa sobre a imoralidade de uma ação que você realizou no passado, seguindo esse raciocínio, implicaria mais diretamente que você tem (ou pelo menos teve) a capacidade de agir de outro modo do que o fez, e portanto, que você é livre no sentido de Kant.

5.4 O Imperativo Categórico

Tanto no Groundwork of the Metaphysics of Morals como na Crítica da Razão Prática, Kant também apresenta um argumento mais detalhado para a conclusão de que moralidade e liberdade implicam reciprocamente um ao outro, o que às vezes é chamado de tese de reciprocidade (Allison 1990). Sob esse ponto de vista, agir moralmente é exercer a liberdade, e a única maneira de exercer plenamente a liberdade é agir moralmente. Os argumentos de Kant para justificar tal visão diferem nesses textos, mas a estrutura geral de seu argumento na Crítica da Razão Prática pode ser resumida da seguinte forma.

Em primeiro lugar, decorre da idéia básica de ter uma vontade que agir é agir com base em algum princípio, ou no que Kant chama de máxima. Uma máxima é uma regra subjetiva ou política de ação: ela diz o que você está fazendo e por quê. Kant dá como exemplos as máximas “não deixar passar nenhum insulto sem resposta” e “aumentar minha riqueza por todos os meios seguros” (5:19, 27). Podemos não ter consciência de nossas máximas, podemos não agir de forma consistente sobre as mesmas máximas, e nossas máximas podem não ser consistentes umas com as outras. No entanto, Kant sustenta que, como somos seres racionais, nossas ações sempre visam algum tipo de fim ou objetivo, o qual nossa máxima expressa. O objetivo de uma ação pode ser algo tão básico quanto gratificar um desejo, ou pode ser algo mais complexo como tornar-se um médico ou um advogado. Em qualquer caso, as causas de nossas ações nunca são nossos desejos ou impulsos, na opinião de Kant. Se eu agir para gratificar algum desejo, então escolho agir segundo uma máxima que especifica a gratificação desse desejo como o objetivo de minha ação. Por exemplo, se eu desejar um pouco de café, então posso agir de acordo com a máxima de ir a uma cafeteria e comprar um pouco de café para gratificar esse desejo.

Em segundo lugar, Kant distingue dois tipos básicos de princípios ou regras sobre os quais podemos agir: o que ele chama de princípios materiais e formais. Agir para satisfazer algum desejo, como quando atuo sobre a máxima para ir tomar um café, é agir sobre um princípio material (5:21ss.). Aqui, o desejo (por café) fixa o objetivo, que Kant chama de objeto ou matéria da ação, e o princípio diz como atingir esse objetivo (ir a uma cafeteria). Correspondentes aos princípios materiais, na opinião de Kant, esses são o que ele chama de imperativos hipotéticos. Um imperativo hipotético é um princípio de racionalidade que diz que eu deveria agir de uma certa maneira se eu optasse por satisfazer algum desejo. Se as máximas em geral são regras que descrevem como se deve agir, então os imperativos em geral prescrevem como se deve agir. Um imperativo é hipotético se ele diz como eu deveria agir unicamente se eu escolher perseguir algum objetivo para satisfazer um desejo (5:20). Isto, por exemplo, é um imperativo hipotético: se você quer café, então vá à cafeteria. Esse imperativo hipotético se aplica a você somente se você desejar café e optar por satisfazer esse desejo.

Ao contrário dos princípios materiais, os princípios formais descrevem como se age sem fazer referência a qualquer desejo. Isso é mais fácil de entender através do tipo de imperativo correspondente, o que Kant chama de imperativo categórico. Um imperativo categórico ordena incondicionalmente que eu deva agir de alguma forma. Assim, enquanto os imperativos hipotéticos se aplicam a mim somente na condição de que eu tenha e estabeleça o objetivo de satisfazer os desejos que eles me dizem como satisfazer, os imperativos categóricos se aplicam a mim, não importa quais sejam meus objetivos e desejos. Kant considera as leis morais como imperativos categóricos, que se aplicam a todos incondicionalmente. Por exemplo, a exigência moral de ajudar outros necessitados não se aplica a mim somente se eu desejar ajudar outros necessitados, e o dever de não roubar não é suspenso se eu tiver algum desejo que eu possa satisfazer roubando. As leis morais não têm tais condições, mas se aplicam incondicionalmente. É por isso que elas se aplicam a todos da mesma maneira.

Terceiro, na medida em que atuo apenas baseado em princípios materiais ou imperativos hipotéticos, não ajo livremente, mas ajo apenas para satisfazer algum(s) desejo(s) que tenho, e o que desejo não está, em última instância, sob meu controle. Até certo ponto, somos capazes de moldar racionalmente nossos desejos, porém, na medida em que escolhemos agir para satisfazer desejos, estamos escolhendo deixar a natureza nos governar em vez de nos governarmos a nós mesmos (5:118). Somos sempre livres no sentido de que sempre temos a capacidade de nos governar racionalmente em vez de deixar que nossos desejos estabeleçam nossos fins para nós. Contudo, podemos (livremente) deixar de exercer essa capacidade. Ademais, como Kant sustenta que os desejos nunca nos levam a agir, mas, ao contrário, sempre escolhemos agir segundo uma máxima – mesmo quando essa máxima especifica a satisfação de um desejo como objetivo de nossa ação –, segue-se também que somos sempre livres no sentido de que escolhemos livremente nossas máximas. No entanto, nossas ações não são livres no sentido de sermos autônomos se escolhermos agir somente sobre princípios materiais, porque nesse caso não damos a lei a nós mesmos, mas optamos por permitir que a natureza em nós (nossos desejos) determine a lei para nossas ações.

Finalmente, a única maneira de agir livremente no sentido pleno do exercício da autonomia é, portanto, agir sobre princípios formais ou imperativos categóricos, o que é também agir moralmente. Kant não quer dizer que agir de forma autônoma exige que não levemos em conta nossos desejos, o que seria impossível (5:25, 61). Ao contrário, ele sustenta que normalmente formulamos máximas com o objetivo de satisfazer nossos desejos, mas que “assim que elaboramos máximas da vontade própria” nos tornamos imediatamente conscientes da lei moral (5:29). Essa consciência imediata da lei moral toma a seguinte forma:

Eu, por exemplo, estabeleci como minha máxima aumentar minha riqueza por todos os meios seguros. Eu tenho agora um depósito em minhas mãos, cujo dono morreu e não deixou nenhum registro dele. Naturalmente, esse é um caso para a minha máxima. Agora, quero apenas saber se essa máxima também poderia ser utilizada como uma lei prática universal. Portanto, eu aplico a máxima ao caso presente e pergunto se ela poderia realmente tomar a forma de uma lei e, consequentemente, se eu poderia através da minha máxima ao mesmo tempo aplicar uma lei como esta: que todos possam negar um depósito que ninguém possa provar ter sido feito. Eu me dou conta imediatamente de que tal princípio, como lei, aniquilar-se-ia a si próprio, uma vez que isso faria com que não houvesse nenhum depósito. (5:27)

Em outras palavras, para avaliar a permissibilidade moral de minha máxima, pergunto se todos poderiam agir sobre ela, ou se ela poderia ser querida como uma lei universal. A questão não é se seria bom que todos agissem de acordo com minha máxima, ou se eu gostaria, mas apenas se seria possível que minha máxima fosse aceita como uma lei universal. Isso se refere à forma, não à questão ou ao conteúdo da máxima. Uma máxima tem forma moralmente admissível, para Kant, somente se ela pudesse ser entendida como uma lei universal. Se minha máxima falhar nesse teste, como essa falha, então é moralmente inadmissível que eu aja em conformidade com ela.

Se minha máxima passa no teste da lei universal, então é moralmente permissível que eu aja de acordo com ela, mas eu só exerço plenamente minha autonomia se minha razão fundamental para agir de acordo com essa máxima for a de que é moralmente permissível ou exigido que eu o faça. Imagine que estou emocionado por um sentimento de simpatia ao formular a máxima para ajudar alguém em necessidade. Nesse caso, minha razão original para formular essa máxima é que um certo sentimento me comoveu. Tais sentimentos não estão inteiramente sob meu controle e podem não estar presentes quando alguém realmente precisa de minha ajuda. Porém, essa máxima passa no teste de Kant: poderia ser desejado como uma lei universal que todos ajudassem outros necessitados por motivos de simpatia. Portanto, não seria errado agir de acordo com tal máxima quando o sentimento de simpatia me comove. Contudo, ajudar outros necessitados não exerceria minha autonomia total, a menos que minha razão fundamental para fazê-lo não seja que eu tenha algum sentimento ou desejo, mas sim que seria correto ou pelo menos admissível fazê-lo. Somente quando tal princípio puramente formal fornece o motivo fundamental para minha ação é que eu ajo de forma autônoma.

Portanto, a lei moral é uma lei de autonomia no sentido de que “liberdade e lei prática incondicional implicam reciprocamente uma à outra” (5:29). Mesmo quando minhas máximas são originalmente sugeridas por meus sentimentos e desejos, se eu agir somente de acordo com máximas moralmente permitidas (ou exigidas) porque são moralmente permitidas (ou exigidas), então minhas ações serão autônomas. E o contrário também é verdade: para Kant essa é a única maneira de agir de forma autônoma.

6. O Bem Mais Elevado e Os Postulados Práticos

Kant defende que a razão inevitavelmente produz não apenas a consciência da lei moral, mas também a idéia de um mundo no qual existe tanto a completa virtude quanto a completa felicidade, que ele chama de bem maior. Nosso dever de promover o bem mais elevado, na opinião de Kant, é a soma de todos os deveres morais, e só podemos cumprir esse dever se acreditarmos que o bem mais elevado é um estado de coisas possível. Ademais, podemos acreditar que o bem mais elevado só é possível se também acreditamos na imortalidade da alma e na existência de Deus, de acordo com Kant. Com base nisso, ele afirma que é moralmente necessário acreditar na imortalidade da alma e na existência de Deus, o que ele chama de postulados da pura razão prática. Esta seção traça brevemente a visão de Kant sobre o bem mais elevado e seu argumento para esses postulados práticos na Crítica da Razão Prática e em outras obras.

6.1 O Bem Mais Elevado

Na seção anterior vimos que, na opinião de Kant, a lei moral é um princípio puramente formal que nos ordena a agir somente com base em máximas que têm o que ele chama de forma de lei, forma que as máximas só têm se elas puderem ser desejadas como leis universais. Além disso, nossa razão fundamental para escolher agir de acordo com tais máximas deve ser o fato de que elas tenham tal forma de lei, e não que a ação com base nelas atinja algum fim ou objetivo que satisfaça um desejo (5:27). Por exemplo, eu deveria ajudar outros necessitados não porque fazê-lo me faria sentir bem – e mesmo que isso me fizesse bem – mas porque é certo; e é certo (ou permissível) ajudar outros necessitados porque essa máxima pode ser desejada como uma lei universal.

Embora Kant sustente que a moralidade de uma ação depende da forma de sua máxima e não de seu fim ou objetivo, ele afirma que toda ação humana tem um fim e que nós estamos inevitavelmente preocupados com as consequências de nossas ações (4:437; 5:34; 6:5-7, 385). Isso não é uma exigência moral, mas faz parte simplesmente do que significa ser um ser racional. Ademais, Kant também tem uma opinião mais forte acerca de que é uma característica inevitável da razão humana, o fato de formarmos idéias não apenas sobre as consequências imediatas e a curto prazo de nossas ações, mas também sobre as últimas consequências. Essa é a manifestação prática da demanda geral da razão pelo que Kant chama de “o incondicional” (5:107-108). Em particular, como naturalmente temos desejos e inclinações, e nossa razão tem “uma comissão” para atender à satisfação de nossos desejos e inclinações, na opinião de Kant, nós inevitavelmente formamos uma idéia sobre a satisfação máxima de todas as nossas inclinações e desejos, que ele chama de felicidade (5:61, 22, 124). Essa idéia é indeterminada, no entanto, já que ninguém pode saber “o que ele realmente deseja e quer” e, portanto, o que o faria completamente feliz (4:418). Formamos também a idéia de um mundo moral ou reino de fins, no qual todos agem somente de acordo com máximas que podem ser leis universais (A808/B836, 4:433ss).

Mas nenhuma dessas idéias expressa por si só nosso fim incondicionalmente completo, como exige a razão humana em seu uso prático. Um mundo perfeitamente moral por si só não constituiria nosso “todo e completo bem […] mesmo no julgamento de uma razão imparcial”, porque é da natureza humana também a necessidade de felicidade (5:110, 25). E a felicidade por si só não seria incondicionalmente boa, porque a virtude moral é uma condição do merecimento de ser feliz (5:111). Portanto, nosso fim incondicionalmente completo deve combinar tanto a virtude quanto a felicidade. Nas palavras de Kant, “virtude e felicidade juntas constituem a posse do maior bem de uma pessoa, e a felicidade distribuída na exata proporção da moralidade (enquanto o valor de uma pessoa e seu valor para ser feliz) constitui o maior bem de um mundo possível” (5:110-111). É esse mundo ideal combinando a virtude completa com a felicidade completa que Kant normalmente tem em mente quando discute o bem mais alto.

Kant diz que temos o dever de promover o bem mais elevado, considerado nesse sentido (5:125). Ele não quer dizer, entretanto, que esteja identificando algum novo dever que não seja derivado da lei moral, além de todos os deveres particulares que temos que são derivados da lei moral. Por exemplo, ele não está alegando que além dos meus deveres de ajudar os outros necessitados, de não cometer roubo, etc., eu também tenho o dever adicional de representar o bem mais elevado como o extremo fim de toda conduta moral, combinado com a felicidade, e de promover esse fim. Em vez disso, como vimos, Kant sustenta que é uma característica inevitável do raciocínio humano, em vez de uma exigência moral, que representamos todos os deveres particulares como levando à promoção do bem mais elevado. Portanto, o dever de promover o bem mais elevado não é um dever particular, mas a soma de todos os nossos deveres derivados da lei moral – “não aumenta o número de deveres morais, mas fornece a estes um ponto de referência especial para a unificação de todos os fins” (6:5). Kant também não quer dizer que alguém tenha o dever de realizar ou efetivamente produzir o bem mais elevado através de seu próprio poder, embora sua linguagem às vezes sugira isso (5:113, 122). Ao contrário, pelo menos em seus trabalhos posteriores, Kant afirma que somente o esforço comum de toda uma “comunidade ética” pode realmente produzir o bem mais elevado, e que o dever dos indivíduos é promover (mas não produzir sozinho) esse fim com toda a sua força, fazendo o que a lei moral ordena (6:97-98, 390-394).

Finalmente, de acordo com Kant, devemos conceber o bem mais elevado como um estado de coisas possível, a fim de cumprir nosso dever de promovê-lo. Aqui Kant não pretende dizer que nós inevitavelmente representamos o bem mais elevado possível, já que sua opinião é a de que devemos representá-lo como possível apenas se quisermos cumprir nosso dever de promovê-lo, e ainda assim podemos falhar em cumprir nosso dever. Ao contrário, temos a escolha de conceber o bem mais elevado possível, de considerá-lo impossível ou de permanecer sem compromisso (5:144-145). Porém, podemos cumprir nosso dever de promover o bem mais elevado somente escolhendo conceber o bem mais elevado possível, porque não podemos promover nenhum fim sem acreditar que é possível atingir esse fim (5:122). Portanto, cumprir a soma de todos os deveres morais para promover o bem mais elevado exige acreditar que um mundo de completa virtude e felicidade não é simplesmente “um fantasma da mente”, e sim que poderia realmente ser realizado (5:472).

6.2 Os postulados da razão pura prática

Kant argumenta que só podemos cumprir nosso dever de promover o bem mais elevado se acreditarmos na imortalidade da alma e na existência de Deus. Isso porque, para cumprir esse dever, devemos acreditar que o bem maior é possível, e ainda assim, para acreditar que o bem maior é possível, devemos acreditar que a alma é imortal e que Deus existe, de acordo com Kant.

Considere primeiro o argumento moral de Kant para acreditar na imortalidade. O bem mais elevado, como vimos, seria um mundo de completa moralidade e felicidade. Todavia, Kant sustenta que é impossível para “um ser racional do mundo sensível” demonstrar “total conformidade das disposições com a lei moral”, o que ele chama de “santidade”, porque nunca podemos extirpar a propensão de nossa razão para dar prioridade aos incentivos da inclinação em detrimento do incentivo do dever, propensão que Kant chama de maldade radical (5:122, 6:37). Kant afirma que a lei moral, no entanto, exige santidade e que, portanto, “só pode ser encontrada em um progresso sem fim em direção àquela conformidade completa”, um progresso, pois, que vai até o infinito (5:122). Isso não quer dizer que podemos substituir o progresso sem fim em direção à conformidade completa com a lei moral pela santidade no conceito do bem mais elevado, mas sim que devemos representar essa conformidade completa como um progresso infinito em direção ao limite da santidade. Kant continua: “Esse progresso sem fim, entretanto, só é possível no pressuposto da existência e da personalidade do mesmo ser racional continuando sem fim (o que é chamado de imortalidade da alma). Portanto, o bem mais elevado é praticamente possível somente a partir do pressuposto da imortalidade da alma, de modo que isto, como inseparável da lei moral, é um postulado da pura razão prática” (ibid.). A idéia de Kant não é que devemos nos imaginar alcançando a santidade mais tarde, embora não sejamos capazes de alcançá-la nesta vida. Ao contrário, sua visão é que devemos representar a santidade como um progresso contínuo em direção à completa conformidade de nossas disposições com a lei moral que começa nesta vida e se estende até o infinito.

O argumento moral de Kant sobre a crença em Deus na Crítica da Razão Prática pode ser resumido como se segue. Kant defende que virtude e felicidade não apenas são combinadas, mas são necessariamente combinadas na idéia do bem mais elevado, porque somente possuir virtude faz com que se seja digno da felicidade – uma afirmação que Kant parece considerar como parte do conteúdo da lei moral (4:393; 5:110, 124). No entanto, podemos representar a virtude e a felicidade como necessariamente combinadas apenas ao representarmos a virtude como a causa eficiente da felicidade. Isso significa que devemos representar o bem maior não simplesmente como um estado de coisas em que todos são felizes e virtuosos, mas sim como um estado em que todos são felizes porque são virtuosos (5:113-114, 124). Entretanto, está além do poder do ser humano, tanto individual quanto coletivamente, garantir que a felicidade resulte da virtude, e também não conhecemos nenhuma lei da natureza que garanta isso. Portanto, devemos concluir que o bem mais elevado é impossível, a menos que postulemos “a existência de uma causa da natureza, distinta da natureza, que contém o fundamento dessa conexão, ou seja, a exata correspondência da felicidade com a moralidade” (5:125). Essa causa da natureza teria que ser Deus, pois ela deve ter compreensão e vontade. Kant provavelmente não concebe Deus como a causa eficiente de uma felicidade que é recompensada em uma vida futura para aqueles que são virtuosos nesta vida. Ao contrário, sua concepção é provavelmente a de que representamos nosso progresso sem fim rumo à santidade, começando com esta vida e se estendendo até o infinito, enquanto causa eficiente de nossa felicidade, a qual também começa nesta vida e se estende até uma futura, de acordo com as leis teleológicas que Deus estabelece e harmoniza com as causas eficientes na natureza (A809-812/B837-840; 5:127-131, 447-450).

Ambos os argumentos são subjetivos, no sentido de que, ao invés de tentar mostrar como o mundo deve ser constituído objetivamente para que o bem mais elevado seja possível, eles pretendem mostrar apenas o modo como devemos conceber o bem mais elevado a fim de sermos subjetivamente capazes tanto de representá-lo como possível quanto de cumprir nosso dever de promovê-lo. No entanto, Kant também afirma que ambos os argumentos têm uma base objetiva: primeiro, na medida em que não se pode provar objetivamente que a imortalidade ou a existência de Deus são impossíveis; e, segundo, no sentido de que ambos os argumentos procedem de um dever de promover o bem mais elevado que não se fundamenta no caráter subjetivo da razão humana, mas na lei moral, que é objetivamente válida para todos os seres racionais. Portanto, embora não seja, estritamente falando, um dever acreditar em Deus ou na imortalidade, devemos acreditar em ambos para cumprir nosso dever de promover o bem mais elevado, dado o caráter subjetivo da razão humana.

Para ver a razão, considere o que aconteceria se não acreditássemos em Deus ou na imortalidade, de acordo com Kant. Na Crítica da Razão Pura, Kant parece dizer que isso nos deixaria sem qualquer incentivo para sermos morais, e até mesmo que a lei moral seria inválida sem Deus e a imortalidade (A813/B841, A468/B496). No entanto, Kant rejeita posteriormente esse ponto de vista (8:139). Sua opinião madura é que nossa razão estaria em conflito consigo mesma se não acreditássemos em Deus e na imortalidade, pois a pura razão prática representaria a lei moral como autoritária para nós e assim nos apresentaria um incentivo suficiente para determinar nossa vontade; todavia, a pura razão teórica (ou seja, especulativa) minaria tal incentivo ao declarar a moralidade como um ideal vazio, pois não seria capaz de conceber o bem mais elevado possível (5:121, 143, 471-472, 450-453). Em outras palavras, a lei moral permaneceria válida e daria a qualquer ser racional um incentivo suficiente para agir a partir do dever, mas seríamos incapazes de agir como seres racionais, “pois é condição para ter razão em tudo […] que seus princípios e afirmações não se contradigam” (5:120). A única maneira de trazer a razão especulativa e prática “para aquela relação de igualdade na qual a razão em geral pode ser usada propositalmente” é afirmar os postulados com base no argumento de que a pura razão prática tem primazia sobre a razão especulativa. Isso significa, explica Kant, que, se a capacidade da razão especulativa “não se estende ao estabelecimento de certas proposições afirmativamente, embora elas não a contradigam, tão logo essas mesmas proposições pertençam inseparavelmente ao interesse prático da razão pura, ela deve aceitá-las […] tendo em mente, no entanto, que essas não são suas percepções, mas são ainda extensões de seu uso a partir de outra perspectiva, ou seja, uma perspectiva prática” (5:121). O primado da razão prática é um elemento chave da resposta de Kant à crise do Iluminismo, pois ele sustenta que a razão merece a autoridade soberana que lhe foi confiada pelo Iluminismo somente com base nisso.

7. A unidade da natureza e a liberdade

Esta seção final discute brevemente como Kant tenta unificar as partes teóricas e práticas de seu sistema filosófico na Crítica da Faculdade de Julgar.

7.1 O grande abismo

No Prefácio e Introdução à Crítica da Faculdade de Julgar, Kant anuncia que seu objetivo no trabalho é “pôr fim a [sua] empresa crítica inteira”, fazendo a ponte entre o “fosso” ou “abismo” que separa o domínio de sua filosofia teórica (discutida principalmente na Crítica da Razão Pura) do domínio de sua filosofia prática (discutida principalmente na Crítica da Razão Prática) (5:170, 176, 195). Em suas palavras: “O entendimento legisla a priori em favor da natureza, como sendo objeto dos sentidos, por um conhecimento teórico da natureza em uma experiência possível. A razão legisla a priori em favor da liberdade e de sua própria causalidade, como sendo o supersensível no sujeito, em favor de uma cognição prática incondicionada. O domínio do conceito de natureza sob uma legislação e o do conceito de liberdade sob a outra estão inteiramente vedados de qualquer influência mútua que poderiam ter uns sobre os outros individualmente (cada um de acordo com suas leis fundamentais) pelo grande abismo que separa o supersensível das aparências” (5:195).

Uma maneira de entender o problema que Kant está articulando aqui é considerá-lo uma vez mais em termos da crise do Iluminismo. A crise foi a de que a ciência moderna ameaçou minar as crenças morais e religiosas tradicionais, e a resposta de Kant é argumentar que, de fato, esses interesses essenciais da humanidade são consistentes uns com os outros quando é concedida soberania à razão e é dada primazia à razão prática sobre a razão especulativa. Entretanto, a estrutura idealista transcendental dentro da qual Kant desenvolve tal resposta parece adquirir a consistência desses interesses ao preço de sacrificar uma visão unificada do mundo e de nosso lugar nele. Se a ciência se aplica apenas às aparências, enquanto as crenças morais e religiosas se referem às coisas em si mesmas ou “ao supersensível”, então, como podemos integrá-las em uma única concepção de mundo que nos permita a transição de um domínio para o outro? A solução de Kant é introduzir uma terceira faculdade cognitiva a priori, que ele chama de poder reflexivo de julgamento, que nos dá uma perspectiva teleológica sobre o mundo. O julgamento reflexivo fornece o conceito de teleologia ou a proposição que faz a ponte entre a natureza e a liberdade, e assim unifica as partes teóricas e práticas da filosofia de Kant em um único sistema (5:196-197).

É importante para Kant que uma terceira faculdade independente tanto da compreensão quanto da razão forneça essa perspectiva mediadora, pois ele sustenta que não temos fundamentos teóricos adequados para atribuir uma teleologia objetiva à própria natureza e, ainda assim, considerar a natureza como teleológica apenas por motivos morais só aumentaria a desconexão entre nossas formas científicas e morais de ver o mundo. Os fundamentos teóricos não nos justificam na atribuição de uma teleologia objetiva à natureza, porque não é uma condição de autoconsciência o fato de nossa compreensão construir a experiência de acordo com o conceito de teleologia, o qual não está entre as categorias de Kant ou entre os princípios do entendimento puro que fundamentam as leis básicas da natureza. É por isso que sua filosofia teórica nos licencia apenas na atribuição de causas mecânicas à própria natureza. Até aqui, Kant é solidário com a tensão dominante na filosofia moderna que bane as causas finais da natureza e, ao invés disso, trata a natureza como nada além de matéria em movimento, que pode ser descrita matematicamente de forma completa. Porém, Kant quer de alguma forma conciliar essa visão mecanicista da natureza com uma concepção de atuação humana que é essencialmente teleológica. Como vimos na seção anterior, Kant sustenta que toda ação humana tem um fim e que a soma de todos os deveres morais é promover o bem maior. É essencial para a abordagem de Kant, no entanto, manter a autonomia tanto da compreensão (na natureza) quanto da razão (na moralidade), sem permitir que uma invada o domínio da outra, e ainda harmonizá-las em um único sistema. Essa harmonia só pode ser orquestrada de um ponto de vista independente, a partir do qual não julgamos o modo como a natureza é constituída objetivamente (o que é trabalho do entendimento) ou como o mundo deve ser (o que é trabalho da razão), e a partir do qual apenas regulamentamos ou refletimos sobre nosso conhecimento de uma forma que nos permita considerá-lo sistematicamente unificado. Segundo Kant, essa é a tarefa da reflexão sobre o julgamento, cujo princípio a priori é considerar a natureza como proposital ou teleológica, “mas apenas como um princípio regulador da faculdade da cognição” (5:197).

7.2 O propósito da natureza

Na Crítica da Faculdade de Julgar, Kant discute quatro formas principais pelas quais refletir o julgamento nos leva a considerar a natureza como proposital: primeiro, nos leva a considerar a natureza como governada por um sistema de leis empíricas; segundo, nos permite fazer julgamentos estéticos; terceiro, nos leva a pensar nos organismos como objetivamente propositados; e, quarto, nos leva, em última instância, a pensar no fim último da natureza como um todo.

Primeiro, refletir o julgamento nos permite descobrir as leis empíricas da natureza, levando-nos a considerar a natureza como se fosse o produto de um projeto inteligente (5:179-186). Não precisamos refletir julgamento para compreender as leis a priori da natureza com base em nossas categorias, como por exemplo a de que cada evento tem uma causa. Porém, além dessas leis a priori, a natureza também é governada por leis particulares e empíricas, como a de que o fogo causa fumaça, o que não podemos conhecer sem consultar a experiência. Para descobrir essas leis, devemos formar hipóteses e conceber experimentos na suposição de que a natureza é governada por leis empíricas que podemos compreender (Bxiii-xiv). A reflexão de julgamento faz essa suposição através de seu princípio que considera a natureza como proposital para nossa compreensão, o que nos leva a tratar a natureza como se suas leis empíricas fossem projetadas para serem compreendidas por nós (5:180-181). Como esse princípio apenas regula nosso conhecimento, mas não é constitutivo da própria natureza, isso não equivale a supor que a natureza seja realmente o produto de um design inteligente, o que, segundo Kant, não temos razão em acreditar com base em fundamentos teóricos. Ao contrário, equivale apenas a abordar a natureza na prática da ciência como se ela tivesse sido projetada para ser compreendida por nós. Temos razão em fazer isso porque nos possibilita descobrir as leis empíricas da natureza. Porém, é apenas um princípio regulador de julgamento, não um conhecimento teórico genuíno, o fato de que a natureza é intencional desse modo.

Em segundo lugar, Kant pensa que os julgamentos estéticos sobre a beleza e a sublimidade envolvem uma espécie de propósito, e que a beleza da natureza em particular nos sugere que a natureza é hospitaleira para nossos fins. De acordo com sua teoria estética, julgamos os objetos como belos não porque eles gratificam nossos desejos, já que os julgamentos estéticos são desinteressados, mas porque a apreensão de sua forma estimula o que ele chama de harmoniosa “livre brincadeira” de nossa compreensão e imaginação, na qual temos um prazer distintamente estético (5:204-207, 217-218, 287). Portanto, a beleza não é uma propriedade dos objetos, mas uma relação entre sua forma e a forma como nossas faculdades cognitivas funcionam. No entanto, fazemos julgamentos estéticos que reivindicam validade intersubjetiva porque assumimos que existe um senso comum que permite a todos os seres humanos comunicar o sentimento estético (5:237-240, 293-296). A bela arte é criada intencionalmente para estimular esse prazer estético universalmente comunicável, embora só seja eficaz quando parece não intencional (5:305-307). A beleza natural, entretanto, é não intencional: as paisagens não sabem como estimular a livre brincadeira de nossas faculdades cognitivas, e não têm o objetivo de nos dar prazer estético. Em ambos os casos, então, os belos objetos nos parecem propositais porque nos dão prazer estético na livre brincadeira de nossas faculdades, mas também não parecem propositais porque ou não o fazem ou não parecem fazê-lo intencionalmente. Kant chama essa relação entre nossas faculdades cognitivas e as qualidades formais dos objetos que julgamos belos de “objetividade subjetiva” (5:221). Embora seja apenas subjetivo, o propósito exibido pela beleza natural em particular pode ser interpretado como um sinal de que a natureza é hospitaleira para nossos interesses morais (5:300). Ademais, Kant também interpreta a experiência da sublimidade na natureza considerando-a como envolta de propósito. Contudo, nesse caso, não é exatamente a propositividade da natureza e sim nossos próprios propósitos, ou “vocação” como seres morais, que nos dão consciência na experiência do sublime, na qual as dimensões e o poder da natureza contrastam vivamente com o poder superior de nossa razão (5:257-260, 267-269).

Em terceiro lugar, Kant argumenta que refletir o julgamento nos permite considerar os organismos vivos como objetivamente intencionais, mas unicamente como um princípio regulador que compensa nossa incapacidade de compreendê-los completamente de forma mecanicista, o que reflete as limitações de nossas faculdades cognitivas em vez de qualquer teleologia intrínseca na natureza. Não podemos compreender plenamente os organismos mecanicisticamente porque eles são seres “auto-organizadores”, cujas partes são “combinadas em um todo, sendo reciprocamente a causa e o efeito de sua forma” (5:373-374). As partes de um relógio só são possíveis através de sua relação com o todo, mas isso porque o relógio é projetado e produzido por algum ser racional. Um organismo, pelo contrário, produz e sustenta a si mesmo, o que é inexplicável para nós a menos que atribuamos aos organismos propósitos em analogia com a arte humana (5:374-376). Entretanto, Kant afirma que é apenas um princípio regulador da reflexão de julgamento considerar os organismos desse modo, e que não temos justificação para atribuir propósitos objetivos aos próprios organismos, pois é apenas “devido à constituição peculiar de minhas faculdades cognitivas [que] não posso julgar sobre a possibilidade dessas coisas e sua geração a não ser pensando em uma causa para esses atos de acordo com as intenções” (5:397-398). Especificamente, não podemos compreender como um todo pode ser a causa de suas próprias partes porque dependemos da intuição sensível para obter o conteúdo de nossos pensamentos e, portanto, devemos pensar o particular (intuição) em primeiro lugar, subordinando-o ao geral (um conceito). A fim de ver que isso é apenas uma limitação do intelecto discursivo humano, imagine um ser com uma compreensão intuitiva cujo pensamento não depende, como o nosso, de receber passivamente informações sensoriais, mas que cria o conteúdo de seu pensamento no ato de pensá-lo. Tal ser (divino) poderia compreender como um todo pode ser a causa de suas partes, já que poderia compreender um todo imediatamente sem primeiro pensar em detalhes e depois combiná-los em um todo (5:401-410). Portanto, uma vez que temos um intelecto discursivo e não podemos saber como as coisas pareceriam a um ser com um intelecto intuitivo, e ao mesmo tempo só podemos pensar em organismos teleologicamente, o que exclui o mecanicismo, Kant diz agora que devemos pensar tanto no mecanicismo quanto na teleologia unicamente como sendo princípios reguladores que precisamos para explicar a natureza, e não como princípios constitutivos que descrevem como a natureza é constituída intrinsecamente (5:410ss).

Em quarto lugar, Kant conclui a Crítica da Faculdade de Julgar com um longo apêndice argumentando que refletir o julgamento apoia a moralidade, levando-nos a pensar sobre o fim último da natureza, o qual somente podemos compreender em termos morais, e que, ao contrário, a moralidade reforça uma concepção teleológica da natureza. Uma vez concedido por razões teóricas que devemos entender certas partes da natureza (organismos) teleologicamente, embora apenas como um princípio regulador da reflexão de julgamento, Kant diz que podemos ir mais longe e considerar a natureza como um sistema teleológico (5:380-381). Porém, podemos considerar toda a natureza como um sistema teleológico apenas empregando a idéia de Deus, novamente apenas regulativamente, como sendo seu projetista inteligente. Isso envolve atribuir o que Kant chama de propósito externo à natureza – ou seja, atribuir propósitos a Deus na criação da natureza (5:425). Qual é, então, o fim último de Deus na criação da natureza? Segundo Kant, o fim último da natureza deve ser o ser humano, mas somente como ser moral (5:435, 444-445). Isso porque somente os seres humanos usam a razão para estabelecer e perseguir fins, usando o resto da natureza como meio para seus fins (5:426-427). Ademais, Kant afirma que a felicidade humana não pode ser o fim último da natureza, porque, como vimos, ele afirma que a felicidade não é incondicionalmente valiosa (5:430-431). Pelo contrário, a vida humana tem valor não por causa do que gozamos passivamente, mas somente por causa do que fazemos ativamente (5:434). Podemos ser plenamente ativos e autônomos, entretanto, somente agindo moralmente, o que implica que Deus criou o mundo para que os seres humanos pudessem exercer autonomia moral. Uma vez que também precisamos da felicidade, isso também pode ser admitido como um fim condicionado e consequente, de modo que, refletindo o julgamento, eventualmente ela nos conduza ao bem mais elevado (5:436). Todavia, a reflexão sobre as condições da possibilidade do bem mais elevado nos leva novamente ao argumento moral de Kant para acreditar na existência de Deus, o que por sua vez reforça a perspectiva teleológica sobre a natureza com a qual se começou a refletir o julgamento.

Assim, Kant argumenta que, embora a filosofia teórica e prática proceda de pontos de partida separados e irredutíveis – a autoconsciência como o princípio mais elevado para nosso conhecimento da natureza, e a lei moral como base para nosso conhecimento da liberdade –, a reflexão do julgamento os unifica em uma visão de mundo única e teleológica que atribui valor preeminente à autonomia humana.

Bibliografia

Literatura Primária

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Este artigo foi publicado originalmente no site Plato Stanford: https://plato.stanford.edu/entries/kant/

Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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