O Sentido Histórico da Teoria de Einstein — José Ortega y Gasset

O Sentido Histórico da Teoria de Einstein” foi extraído do apêndice da obra El Tema de Nuestro Tempo (1923).


A teoria da relatividade, o mais elevado fato intelectual que o presente pode ostentar, é uma teoria e, portanto, é discutível se é verdadeira ou errônea. Mas, além de sua verdade ou de seu erro, uma teoria é um corpo de pensamentos que nasce em uma alma, em um espírito, em uma consciência, assim como o fruto nasce em uma árvore. Ora, um novo fruto indica uma nova espécie de planta que aparece na flora. Podemos, portanto, estudar essa teoria com a mesma intenção que o botânico quando ele descreve uma planta: desconsiderando se o fruto é saudável ou prejudicial, verdadeiro ou errado, e prestando atenção exclusivamente à identificação da nova espécie, o novo tipo de ser vivo que encontramos nela. Tal análise nos revelará o significado histórico da teoria da relatividade, o que ela é como um fenômeno histórico. 

Suas peculiaridades são indicativas de certas tendências específicas na alma que a criou. E como um edifício científico de tal importância não é o trabalho de um único homem, mas o resultado da colaboração indeliberada de muitos, precisamente dos melhores, a orientação revelada por essas tendências determinará o curso da história ocidental. 

Não quero com isso dizer que o triunfo dessa teoria influenciará os espíritos, impondo-lhes um certo rumo. Isso é óbvio e banal. O que é interessante é o contrário: é porque os espíritos tomaram espontaneamente um certo caminho que a teoria da relatividade foi capaz de vir à existência e ter sucesso. As idéias, quanto mais sutis e técnicas, mais remotas parecem em relação aos afetos humanos, mais autênticos são os sintomas das profundas variações que ocorrem na alma histórica. 

Basta sublinhar um pouco as tendências gerais que estiveram em ação durante a invenção dessa teoria; basta estender brevemente suas linhas para além dos limites da física, para que o quadro de uma nova sensibilidade apareça diante de nossos olhos, antagônica ao prevalecente nos últimos séculos.

1º Absolutismo 

O nervo de todo o sistema está na idéia da relatividade. Tudo depende, portanto, de uma correta compreensão da fisionomia que tal pensamento tem no brilhante trabalho de Einstein. Não seria de toda moderação dizer que esse é o ponto onde o gênio inseriu sua força divina, seu impulso aventureiro, a audácia de seu sublime arcanjo. Dado esse ponto, o resto da teoria poderia ter sido deixado à mera discrição. 

A mecânica clássica também reconhece a relatividade de todas as nossas determinações do movimento, portanto de cada posição no espaço e no tempo que é observável para nós. Como a teoria de Einstein, que, como ouvimos, derruba todo o edifício clássico da mecânica, enfatiza a relatividade em seu próprio nome como sua principal característica? Esse é o mal-entendido multifacetado que deve, antes de mais nada, ser eliminado. O relativismo de Einstein é estritamente o oposto do de Galileu e Newton. Para estes últimos, as determinações empíricas de duração, posicionamento e movimento são relativas porque eles acreditam na existência de um espaço, tempo e movimento absolutos. Não podemos chegar a eles; no máximo, temos informações indiretas sobre eles (por exemplo, forças centrífugas). Mas se acreditarmos em sua existência, todas as determinações que realmente possuímos serão desqualificadas como meras aparências, como valores relativos ao ponto de comparação que o observador ocupa. O relativismo aqui significa, consequentemente, um defeito. A física de Galileu e Newton, diremos, é relativa. 

Suponhamos que, por uma razão ou outra, alguém ache necessário negar a existência desses absolutos inatingíveis no espaço, no tempo e no translado. No mesmo instante, as determinações concretas, que antes pareciam relativas no mau sentido da palavra, 

livres de comparação com o absoluto, tornam-se as únicas que expressam a realidade. Não haverá mais uma realidade absoluta (inalcançável) e uma realidade relativa em comparação com ela. Haverá apenas uma realidade, e esta será a que a física positiva descreve aproximadamente. Ora, tal realidade é aquela que o observador percebe a partir do lugar que ocupa; portanto, uma realidade relativa. Mas como tal realidade relativa, na suposição que fizemos, é a única que existe, ela será, ao mesmo tempo que relativa, a verdadeira realidade, ou, o que é a mesma coisa, a realidade absoluta. O relativismo aqui não se opõe ao absolutismo; pelo contrário, funde-se com este último, e longe de sugerir um defeito em nosso conhecimento, ele lhe dá uma validade absoluta. 

É o caso da mecânica de Einstein. Sua física não é relativa, mas relativista, e através de seu relativismo alcança um significado absoluto. 

A mais trivial deturpação que a nova mecânica pode sofrer é a de ser interpretada como mais uma desova do velho relativismo filosófico que ela decapitou precisamente. Para o velho relativismo, nosso conhecimento é relativo, porque o que aspiramos conhecer (a realidade tempo-espacial) é absoluto e não o alcançamos. Para a física einsteiniana, nosso conhecimento é absoluto; a realidade é relativa. 

É, portanto, apropriado, antes de tudo, enfatizar como uma das facetas mais genuínas da nova teoria a sua tendência absolutista na ordem do conhecimento. É inconcebível que isso não tenha sido enfatizado por aqueles que interpretam o significado filosófico dessa brilhante inovação. No entanto, essa tendência é bastante clara na fórmula principal de toda a teoria: as leis físicas são verdadeiras, qualquer que seja o sistema de referência utilizado, ou seja, qualquer que seja o local de observação. Há 50 anos, os pensadores estavam preocupados com o fato de se, “do ponto de vista de Sirius”, as verdades humanas seriam verdadeiras. Isso equivale a rebaixar a ciência que o homem faz, atribuindo-lhe um valor meramente doméstico. A mecânica de Einstein permite que nossas leis físicas harmonizem-se com aquelas que talvez circulem nas mentes residentes em Sirius. 

No entanto, esse novo absolutismo difere radicalmente daquele que animou os espíritos racionalistas dos últimos séculos. Estes últimos acreditavam que era oferecido ao homem a surpresa do segredo das coisas, mas apenas à busca, no seio de seu próprio espírito, das verdades eternas com as quais ele era preenchido. Assim Descartes criou a física desenhando-a, não a partir da experiência, mas do que ele chamou de trésor de mon esprit. Essas verdades, que não vêm da observação, mas da razão pura, têm um valor universal e, em vez de aprendê-las das coisas, de certa forma as impomos: elas são verdades a priori. Frases reveladoras desse espírito racionalista são encontradas no próprio Newton. “Na filosofia da natureza”, diz ele, “devemos nos abstrair dos sentidos”. Em outras palavras: para descobrir o que é uma coisa, é preciso dar as costas a ela. Um exemplo dessas verdades mágicas é a lei da inércia; de acordo com ela, um corpo livre de todas as influências, se se mover, se moverá em uma direção reta e uniforme. Ora, tal corpo livre de todas as influências é desconhecido para nós. Por que uma afirmação dessas? Simplesmente porque o espaço tem uma estrutura rectilínea, euclidiana, e, consequentemente, qualquer movimento “espontâneo”, que não seja desviado por alguma força, estará de acordo com a lei do espaço.

No entanto, quem garante essa natureza euclidiana do espaço? A experiência? De modo algum; é a razão pura que, antes de qualquer experiência, decide sobre a necessidade absoluta de que o espaço em que os corpos físicos se movem seja euclidiano. O homem só pode ver no espaço euclidiano. Essa peculiaridade do habitante da terra é elevada pelo racionalismo à lei de todo o cosmos. Os antigos absolutistas cometiam a mesma ingenuidade em todos os aspectos. Eles partem de uma estimativa excessiva do homem. Eles fazem do homem o centro do universo, quando ele é apenas um canto do universo. E esse é o erro mais grave que a teoria de Einstein corrige.

2º Perspectivismo 

O espírito provincial sempre foi, e com razão, considerado como uma imperícia. Consiste em um erro de ótica. O provincial não percebe que está olhando para o mundo a partir de uma posição excêntrica. Ele assume, pelo contrário, que está no centro do mundo e julga tudo como se sua visão fosse central. Daí uma deplorável vaidade que produz tais efeitos cômicos. Todas as suas opiniões nascem falsificadas, porque partem de um pseudo-centro. Por outro lado, o homem da capital sabe que sua cidade, por maior que seja, é apenas um ponto no cosmos, um canto excêntrico. Ele sabe, além disso, que não existe um centro no mundo e que, portanto, é necessário descontar em todos os nossos julgamentos a perspectiva peculiar que a realidade oferece quando vista do nosso ponto de vista. Por isso, o provincial, o vizinho da grande cidade parece sempre cético, quando ele só está mais consciente. 

A teoria de Einstein veio a revelar que a ciência moderna em sua disciplina exemplar — a nuova scienza de Galileu, a gloriosa física do Ocidente — sofreu de um provincialismo agudo. A geometria euclidiana, que só se aplica às proximidades, foi projetada sobre o universo. Hoje as pessoas na Alemanha começam a chamar o sistema de Euclides de “geometria do próximo”, em oposição a outros corpos de axiomas que, como o de Riemann, são geometrias de longo alcance. 

Como todo provincialismo, essa geometria provincial foi superada por uma aparente limitação, um exercício de modéstia. Einstein convenceu-se de que falar do Espaço é uma megalomania que leva inexoravelmente ao erro. Não conhecemos mais extensões do que medimos, e só podemos medir com nossos instrumentos. Eles são nosso órgão de visão científica; eles determinam a estrutura espacial do mundo que conhecemos. Porém, como acontece com qualquer outro ser que queira construir física a partir de outra parte do mundo, acontece que tal limitação não é realmente uma limitação. 

Não se trata, portanto, de cair em uma interpretação subjetivista do conhecimento, segundo a qual a verdade só é verdadeira para um determinado sujeito. De acordo com a teoria da relatividade, o evento A, que do ponto de vista terrestre precede o evento B no tempo, a partir de outro lugar do universo, Sirius, por exemplo, aparecerá sucedendo a  B. Não há uma inversão mais completa da realidade. Isto significa que ou nossa imaginação é falsa ou o é a do residente siriano? De forma alguma. Nem o sujeito humano nem o sujeito siriano deforma o real. O que acontece é que uma das qualidades próprias da realidade consiste em ter uma perspectiva, ou seja, em se organizar de maneiras diferentes para ser visto de um lugar ou de outro. Espaço e o tempo são os ingredientes objetivos da perspectiva física, e é natural que eles variem de acordo com o ponto de vista. 

Na introdução ao primeiro Espectador, que apareceu em janeiro de 1916, quando ainda nada havia sido publicado sobre a teoria geral da relatividade1, expus brevemente essa doutrina perspectivista, dando-lhe uma amplitude que transcende a física e abraça toda a realidade. Dou este aviso para mostrar o quanto essa maneira de pensar é um sinal dos tempos. 

E o que mais me surpreende é que ninguém ainda tenha notado essa característica principal do trabalho de Einstein. Sem uma única exceção — tanto quanto sei — tudo o que foi escrito sobre ela interpreta a grande descoberta como mais um passo no caminho do subjetivismo.2 Em todas as línguas e em todas as frases foi repetido que Einstein confirma a doutrina kantiana, pelo menos em um ponto: a subjetividade do espaço e do tempo. Eu me preocupo em afirmar que tal crença me parece ser o mais completo equívoco sobre o significado da teoria da relatividade. 

Vamos colocar o assunto em poucas palavras, mas da maneira mais clara possível. Perspectiva é a ordem e a forma que a realidade toma para o observador. Se o lugar que o espectador ocupa varia, a perspectiva também varia. Por outro lado, se o espectador é substituído por outro no mesmo lugar, a perspectiva permanece idêntica. Certamente, se não há sujeito contemplativo, para quem a realidade aparece, não há perspectiva. Isso significa que ela é subjetiva? Aqui reside o mal-entendido que há pelo menos dois séculos conduz toda a filosofia, e com ela a atitude do homem para com o universo, desviada. Para evitar isso, basta fazer uma simples distinção. 

Quando vemos uma bola de bilhar imóvel e solitária, percebemos apenas suas qualidades de cor e forma. Mas então outra bola de bilhar colide com a primeira. Esta é ejetada com uma velocidade proporcional à colisão. Então notamos uma nova qualidade da bola que antes estava escondida: sua elasticidade. Contudo, alguém pode nos dizer que a elasticidade não é uma qualidade da primeira bola, já que ela só está presente quando outra bola colide com ela. Responderíamos prontamente que não existe tal coisa. A elasticidade é uma qualidade da primeira bola, não inferior a sua cor e forma; mas é uma qualidade reativa ou responsiva à ação de outro objeto. Assim, no homem, o que normalmente chamamos de seu caráter é sua maneira de reagir às coisas externas — coisas, pessoas, eventos. 

Pois bem, quando uma realidade entra em colisão com aquele outro objeto que chamamos de “sujeito consciente”, a realidade responde aparecendo a ele. A aparência é uma qualidade objetiva do real, é sua resposta a um sujeito. Esta resposta é, além disso, diferente de acordo com a condição do contemplador; por exemplo, de acordo com o lugar de onde ele olha. Veja como a perspectiva, o ponto de vista, adquire um valor objetivo, enquanto que até agora eram considerados como deformações que o sujeito impunha à realidade. Tempo e espaço são novamente, ao contrário da tese kantiana, formas do real. 

Se entre os infinitos pontos de vista houvesse um excepcional, ao qual se pudesse atribuir uma congruência superior com as coisas, os outros poderiam ser considerados como deformadores ou “meramente subjetivos”. Era nisso que Galileu e Newton acreditavam quando falavam de espaço absoluto, ou seja, de um espaço contemplado de um ponto de vista que não é um espaço concreto. Newton chama o espaço absoluto de sensorium Dei, o órgão visual de Deus; poderíamos dizer a perspectiva divina. Porém, assim que se pensa nessa idéia de uma perspectiva que não é tirada de nenhum lugar particular e exclusiva, descobre-se sua natureza contraditória e absurda. Não há espaço absoluto porque não há uma perspectiva absoluta. Para ser absoluto, o espaço deve deixar de ser um espaço real cheio de coisas — e tornar-se uma abstração. 

A teoria de Einstein é uma maravilhosa justificativa para a multiplicidade harmoniosa de todos os pontos de vista. Estenda essa idéia à moral e à estética, e você tem uma nova maneira de sentir a história e a vida. 

O indivíduo, para conquistar a máxima verdade possível, não deve, como lhe foi pregado durante séculos, suplantar seu ponto de vista espontâneo por outro exemplar e normativo, que costumava ser chamado de “visão das coisas sub specie aeternitatis“. A visão da eternidade é cega, nada vê, não existe. Ao invés disso, tentará ser fiel ao imperativo unipessoal que representa sua individualidade. 

O mesmo se aplica aos povos. Em vez de considerarmos as culturas não européias como bárbaras, começaremos a respeitá-las como estilos de lidar com o cosmos equivalentes ao nosso próprio. Existe uma perspectiva chinesa tão justificada quanto a perspectiva ocidental. 

3. O Anti-Utopismo ou Anti-Racionalismo 

A mesma tendência que em sua forma positiva leva ao perspectivismo, em sua forma negativa significa hostilidade ao utopismo. 

A concepção utópica é aquela que é criada a partir de “lugar nenhum” e, no entanto, afirma aplicar-se a todos. Para uma sensibilidade como essa, que transparece na teoria da relatividade, tal interioridade à localização deve parecer uma insolência. No espetáculo cósmico não há espectador sem uma determinada localidade. Querer ver algo e não querer vê-lo de um lugar preciso é um absurdo. Essa insubordinação pueril às condições que a realidade nos impõe; essa incapacidade de aceitar o destino alegremente; esse fingimento ingênuo de acreditar que é fácil suplantá-lo com nossos desejos estéreis, são traços de um espírito que agora falece, deixando seu lugar para outro completamente antagônico.

A propensão utópica dominou a mente européia durante toda a era moderna: na ciência, na moral, na religião, na arte. Foi necessário contrabalançar o enorme desejo de dominar o real, específico do europeu, para que a civilização ocidental não terminasse em um gigantesco fracasso. A civilização não terminou em um gigantesco fracasso. Porque o mais grave do utopismo não é que ele forneça falsas soluções para problemas — científicos ou políticos — mas algo pior: é que ele não aceita o problema — o real — como ele se apresenta. pelo contrário, evidentemente — a priori — impõe a ele uma forma caprichosa. 

Se compararmos a vida do Ocidente com a da Ásia — os indianos, os chineses — somos atingidos pela instabilidade espiritual dos europeus, em comparação com o profundo equilíbrio da alma oriental. Tal equilíbrio revela que, pelo menos nos grandes problemas da vida, o homem do Oriente encontrou fórmulas de ajuste mais perfeito à realidade. O europeu, por outro lado, tem sido frívolo em sua apreciação dos fatores elementares da vida, e tem feito interpretações fantasiosas a respeito deles, as quais periodicamente se faz necessário substituir. 

O desvio utópico da inteligência humana começa na Grécia, e ocorre onde o racionalismo é exacerbado. A razão pura constrói um modelo de mundo — cosmo físico ou cosmo político — na crença de que ele é a verdadeira realidade, e deve, portanto, substituir o mundo real. A divergência entre as coisas e as idéias puras é tal que o conflito não pode ser evitado. Mas o racionalista não tem dúvidas de que é seu dever ceder ao real. Tal convicção é a característica do temperamento racionalista. 

É claro que a realidade é dura o suficiente para resistir à investida de idéias. Assim, o racionalismo procura uma saída: reconhece que, por um momento, a idéia não pode ser realizada, mas que a realizará em “um processo infinito” (Leibniz, Kant). O utopismo assume a forma de ucronismo. Durante os últimos dois séculos e meio, tudo foi resolvido pelo apelo ao infinito, ou pelo menos a períodos de duração indeterminada (no darwinismo, uma espécie nasce de outra, com apenas alguns milênios no meio). Como se o tempo, a fluidez espectral, simplesmente correndo, pudesse ser causa de um nada e tornar plausível o que na atualidade é inconcebível. 

É incompreensível que a ciência, cujo único prazer é obter uma imagem precisa das coisas, possa se alimentar de ilusões. Lembro que um detalhe teve uma grande influência em meu pensamento. Há muitos anos, eu estava lendo uma palestra do fisiologista Loeb sobre tropismos. O tropismo é um conceito com o qual foi feita uma tentativa de descrever e esclarecer a lei que rege os movimentos elementares da infusória. Com correções e adições, esse conceito é útil para entender alguns desses fenômenos. Mas no final de sua palestra, Loeb acrescenta: “Chegará o momento em que o que agora chamamos de atos morais do homem será explicado simplesmente como tropismos”. Essa audácia me perturbou muito, pois abriu meus olhos para muitos outros julgamentos da ciência moderna, que, menos ostensivamente, cometem a mesma falha. Assim — pensei —, que um conceito como o tropismo, capaz de mal penetrar o segredo de fenômenos tão simples como o salto de infusórios, pode ser suficiente num futuro vago para explicar algo tão misterioso e complexo como os atos éticos do homem! Qual é o sentido disso? A ciência deve resolver seus problemas hoje, e não nos trasladar para as calendas gregas. Se seus métodos atuais não são suficientes para dominar os enigmas do universo de hoje, a coisa discreta a fazer é substituí-los por outros mais eficazes. Porém, a ciência utilizada está cheia de problemas que são deixados intocados porque são incompatíveis com os métodos, como se os primeiros fossem obrigados a ser subordinados aos segundos, e não o contrário! A ciência está cheia de ucronismos, de calendas gregas. 

Quando saímos desse culto científico idólatra dos métodos pré-estabelecidos e olhamos para o pensamento de Einstein, ele chega até nós como um vento fresco da manhã. A atitude de Einstein é completamente diferente da atitude tradicional. Com um gesto de jovem atleta, o vemos ir direto aos problemas e, usando os meios à mão, tomá-los pelos cornos. Daquilo que parecia um defeito e uma limitação na ciência, ele faz uma virtude e uma tática eficaz. 

Um breve desvio esclarecerá a questão.

Do trabalho de Kant, uma grande descoberta permanecerá duradoura: que a experiência não é apenas um monte de dados transmitidos pelos sentidos, mas um produto de dois fatores. Os dados sensatos devem ser coletados, filtrados, organizados em um sistema de ordem. Tal ordem é fornecida pelo sujeito, é a priori. Em outras palavras: a experiência física é um composto de observação e geometria. A geometria é uma grade elaborada pela razão pura: A observação é o trabalho dos sentidos. Toda a ciência explicativa dos fenômenos materiais contidos, contém e conterá esses dois ingredientes. 

Essa identidade de composição, que a física moderna sempre manifestou ao longo de sua história, não exclui, entretanto, as variações mais profundas dentro de seu espírito: a relação entre dois ingredientes dá lugar a interpretações muito diferentes. Das duas, qual deve ser subordinada à outra? A observação deve ceder às exigências da geometria, ou a geometria à observação? Decidir por uma ou por outra é pertencer a dois tipos antagônicos de tendência intelectual. Dentro da mesma física, existem duas castas opostas de homens. 

É bem sabido que a experiência de Michelson tem o status de uma experiência crucial: ela coloca o pensamento do físico entre uma pedra e um lugar rígido. A lei geométrica que proclama a inalterável homogeneidade do espaço, quaisquer que sejam os processos que nele ocorram, entra em conflito rigoroso com a observação, com o fato, com a matéria. Ou a matéria cede à geometria, ou a geometria cede à matéria. 

Nesse agudo dilema, dois temperamentos intelectuais nos surpreendem e testemunhamos sua reação. Lorentz e Einstein, confrontados com a mesma experiência, tomam decisões opostas. Lorentz, representando aqui o antigo racionalismo, acredita que é necessário admitir que é a matéria que cede e contrai. A famosa “contração de Lorentz” é um exemplo admirável de utopia. É o Juramento do Jogo da Bola transplantado para a Física. Einstein adota a solução oposta. A geometria deve ceder; o espaço puro deve curvar-se à observação, deve dobrar-se.

Assumindo a perfeita congruência de caráter, Lorentz, levado à política, diria: que as nações pereçam e os princípios sejam salvos. Einstein, por outro lado, argumentaria: é preciso buscar princípios para que as nações possam ser salvas, pois é para isso que servem os princípios. 

Não é fácil exagerar a importância dessa mudança à qual Einstein está sujeitando a ciência física. Até agora, o papel da geometria, da razão pura, era o de exercer uma ditadura incontestável. Em linguagem comum, os traços do sublime ofício atribuído à razão permanecem: o vulgar falar dos “ditames da razão”. Para Einstein, o papel da razão é muito mais modesto: de ditador a humilde instrumento, que precisa confirmar sua eficácia em cada caso. 

Galileo e Newton tornaram o universo euclidiano, simplesmente porque a razão assim o ditou. Mas a razão pura não pode fazer nada além de inventar sistemas de ordem. Eles podem ser muito numerosos e diferentes. A geometria euclidiana é um; outro é a de Riemann, a de Lobacchewski, e assim por diante. Porém, é claro que não são eles, que não é a razão pura que determina o que é o real. Pelo contrário, a realidade seleciona entre essas ordens possíveis, entre esses esquemas, aquele que está mais em sintonia com ela. É isso que significa a teoria da relatividade. Contra o passado racionalista de quatro séculos, Einstein se opõe brilhantemente e inverte a relação inveterada entre razão e observação. A razão deixa de ser uma regra imperativa e torna-se um arsenal de instrumentos; a observação os testa e decide qual é o correto. A ciência resulta assim de uma seleção mútua entre idéias puras e fatos puros. 

Essa é uma das características mais importantes do pensamento de Einstein, pois marca o início de uma atitude totalmente nova em relação à vida. A cultura não é mais, como tem sido até agora, uma norma imperativa à qual nossa existência deve se conformar. Agora vislumbramos uma relação mais delicada e mais justa entre as duas. Entre as coisas da vida, algumas são selecionadas como possíveis formas de cultura; mas entre essas possíveis formas de cultura, a vida, por sua vez, seleciona as únicas a serem realizadas.

4. O Finitismo 

Não quero terminar esta pesquisa sobre as profundas tendências que surgem na teoria da relatividade sem mencionar a mais clara e óbvia. Enquanto o passado utópico fixava tudo recorrendo ao infinito no espaço e no tempo, a física de Einstein — e também a recente matemática de Brouwer e Weyl — circunscreve o universo. O mundo de Einstein tem curvatura, e por isso é fechado e finito.3 

Para quem acredita que as doutrinas científicas nascem de uma geração espontânea, sem sequer abrir os olhos e a mente para os fatos, essa inovação não tem importância. Ela se reduz a uma modificação da forma que costumava ser atribuída ao mundo. Mas a suposição é falsa: não nasce uma doutrina científica, por mais óbvios que sejam os fatos sobre os quais ela se baseia, sem uma clara predisposição do espírito para ela. É necessário compreender a gênese de nossos pensamentos com toda sua delicada duplicidade. Não são descobertas outras verdades além daquelas que são buscadas de antemão. As demais, por mais óbvias que sejam, encontram o espírito cego. 

Isso dá enorme margem ao fato de que de repente, na física e na matemática, começou uma nítida preferência pelo finito e uma grande antipatia pelo infinito. Pode haver uma diferença mais radical entre duas almas do que o fato de uma tender para a idéia de que o Universo não tem limites e a outra sentir ao redor de si um mundo confinado? A infinidade do cosmos foi uma das grandes idéias excitantes produzidas pela Renascença. Levantou marés patéticas nos corações, e Giordano Bruno teve uma morte cruel por isso. Ao longo da era moderna, sob os cuidados do homem ocidental, essa infinidade da paisagem cósmica pulsou como um cenário mágico. 

Agora, de repente, o mundo é limitado, é um pomar com paredes confinadas, é uma sala, um interior. Esse novo cenário não sugere um modo de vida totalmente novo, o oposto do antigo? Nossos netos entrarão na existência com essa noção, e seus gestos em direção ao espaço terão um significado oposto ao nosso. Há evidentemente nessa propensão para o finitismo um claro desejo de limitação, de sereno asseio, de antipatia a superlativos vagos, de anti-romantismo. O homem grego, o homem “clássico”, também viveu em um universo limitado. Toda a cultura grega palpitava de horror ao infinito e buscava o metron, a moderação. 

É, no entanto, superficial acreditar que a alma humana está caminhando para um novo classicismo. Nunca houve um neoclassicismo que não fosse uma frivolidade. O Classicismo busca o limite, mas isso se deve ao fato de nunca ter experimentado a ausência de limites. Nosso caso é o contrário: o limite significa para nós uma amputação, e o mundo fechado e finito no qual vamos agora respirar será irremediavelmente um toco do universo4.

Original disponível em: https://ia800905.us.archive.org/25/items/eltemadenuestrot00orte/eltemadenuestrot00orte.pdf


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Notas:

[1] A primeira publicação de Einstein sobre sua recente descoberta, Die Grundlagen der allgemeinen Relativitätstheorie, foi publicada naquele ano.

[2] Algum tempo depois que isso foi publicado, chamou minha atenção que uma palestra do filósofo Geiger havia aparecido ao mesmo tempo na qual ele também fala do sentido absoluto ligado à teoria de Einstein. Porém, o fato é que a tese de Geiger tem alguma base em comum com a apresentada neste ensaio.

[3] O infinito é perseguido em todos os lugares do sistema de Einstein. Assim, por exemplo, a possibilidade de velocidades infinitas é suprimida.

[4] Dois outros pontos teriam que ser abordados para que as linhas gerais da mente criada pela teoria da relatividade fossem completas. Um deles é o cuidado com que são enfatizadas as descontinuidades no real, ao contrário da perplexidade do contínuo que tem dominado o pensamento dos últimos séculos. Esta descontinuidade triunfa tanto na biologia quanto na história. O outro ponto, talvez o mais grave de todos, é a tendência de suprimir a causalidade que opera latentemente dentro da teoria de Einstein. A física, que começou como mecânica e depois se tornou dinâmica, tende em Einstein a tornar-se meramente cinemática. Ambos os pontos só podem ser discutidos mediante o recurso a questões técnicas difíceis, que tentei eliminar no texto.

Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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