Nada “Moderno” e “Muito Século XX” — José Ortega y Gasset

Nada “Moderno” e “Muito Século XX” foi extraído da obra El Espectador I, do filósofo espanhol José Ortega y Gasset.

Essa obrigação de sacudir a poeira de idéias antigas e carbonizadas de nossa consciência e fazer com que o novo crie raízes nelas é sempre uma tarefa difícil e dolorosa. O velho carrega em sua defesa certas forças que, como tais, são dependentes dele. Em primeiro lugar, o velho é o habitual, o acostumado: como disse Juan de Valdés, mudar de hábitos é como morrer. Ademais, o velho tem uma fisionomia autoritária; assim como nossos avós, nossos pais e nossos magistrados, nós o encontramos, ao nascer, com o caráter de uma realidade que nos foi imposta, que prevaleceu sobre nós. Por fim, o velho é algo já concluído; nesse sentido, perfeito, enquanto o novo está em um estado nascente, e pode-se dizer que, embora seja novo, ainda não se manifestou completamente. Quem será capaz de lutar vitoriosamente contra poderes tão sutis que influenciam a textura mais íntima de nossa personalidade?

A luta de um novo século contra aquele que o precede sempre envolve esforços heróicos. Porém, nosso caso é ainda mais sério: de certa maneira, único.  

No El Espectador, uma certa hostilidade em relação ao século XIX aparece com grande frequência. Não há dúvida de que nosso futuro está em superar a conduta daquele século. A consequência disso é o fato de que haverá discordâncias mais acentuadas do que coincidências entre ele e os novos desejos. Isso pode parecer injusto? Não posso negar que temos uma relação incomparavelmente mais próxima com o século XIX do que com o século XIII, e é exatamente por isso que digo que ele é nosso maior e mais urgente inimigo. O século XIII está apenas em livros e monumentos: de sua distância quase irreal, ele nos lança um veneno imaginário que não consegue nos ferir. A rigor, o século XIII e todos os outros séculos passados existem para nós apenas no século XIX, tal como ele os viu e por meio de seu gênio. Este, então, é o verdadeiro, o único inimigo. Nós o carregamos dentro de nós e, para onde quer que nos voltemos, esbarraremos na ponta de sua lança. Quanto mais dele aceitarmos plenamente, maior será a necessidade de enfatizar nossas diferenças. Contra ele, diante dele, é preciso que se organize nossas características peculiares.

E nós descobrimos que uma das singularidades daquele século foi a de proteger-se contra qualquer tentativa de superação no tempo.

Talvez seja paradoxal eu acusar um século que fez do progresso seu ideal de impedir o progresso e a renovação. Como assim? O século do progresso! O século da modernidade…!

E, no entanto, é assim que as coisas são. Aqueles que estão em movimento, experimentando novas aspirações — na ciência ou na moralidade, na arte ou na política — percebem isso o tempo todo e de maneiras muito concretas.

Pensemos um pouco sobre isso: Como um século que se auto-denominou moderno pode tolerar a tentativa de substituir suas próprias idéias por outras e, consequentemente, declarar que suas próprias idéias são antiquadas, não modernas? Espero que um dia essa audácia de chamar uma era de moderna pareça uma ousadia. Assim como também vale a pena, em outro momento, refletir sobre o que significa, psicologicamente, fazer do progresso o centro de nossas preocupações. Pode ser que nos surpreendamos com um desvio quase patológico da consciência.

( Dentro de nós, ao pensarmos nisso, o século XIX vem à tona e grita: É patológico o esforço primordial pelo progresso? Mas: será que isso ainda pode ser discutido? Devemos retornar ao ancestralismo das eras passadas? O leitor certamente já foi assaltado neste momento por pensamentos semelhantes. Essa é a prova de que é preciso que deixemos esse século bem e verdadeiramente morto em nós: essa é a prova de que o século XIX não permite que os futuros sejam diferentes do que ele é e procura impor a eles não apenas suas preocupações, mas até mesmo a postura que ele tinha em mente. O século progressista não concebe o progresso de nenhuma outra forma que não seja no estado de uma alma progressista.)

Se fosse possível para o espírito conservar as idéias e tendências dissociadas, essa ambição de modernidade, colocada no centro dele, não produziria efeitos tão contrários a si mesma. Todavia, em nossa psique não há compartimentos estanques, e a ambição pura da modernidade não vive pura, mas tinge e é tingida por tudo o mais que carregamos dentro de nós.

Dois exemplos deixarão isso claro. No século XIX, os médicos exerciam uma filosofia profissional que era o positivismo. Em 1880, essa era a filosofia oficial de nosso planeta. Desde então, o tempo passou e tudo caminhou, inclusive a sensibilidade filosófica. O

positivismo aparece hoje para todo espírito reflexivo e verdadeiro como uma ideologia extemporânea. Outras formas de pensar, percorrendo a mesma trajetória do positivismo, preservando e aprimorando o que nele havia de intenções severas, o substituíram. De nada adianta: os médicos do século XIX se apegam a ele; qualquer outra doutrina que não seja o positivismo lhes parece não apenas um erro — o que seria justificável —, mas uma revivescência do passado. E o fato é que o positivismo viveu dentro deles em uma atmosfera espiritual impregnada de ambição modernizante, de modo que o positivismo lhes parece não apenas verdadeiro, mas também moderno. E vice-versa: qualquer coisa que não seja positivismo será repelida por eles, não tanto porque pareça falsa, mas porque lhes soa não-moderno.

Conheço muitas pessoas que são tímidas em sua meditação e relutam em deixar suas convicções íntimas anti-positivistas crescerem, com medo do espectro do imodernismo que as ameaça.

O mesmo se aplica à política. No século passado, a política vivia sob a bandeira progressista. Tal como modernidade, progresso é uma palavra formal, muito bonita e estimulante, como um incentivo divino: tudo se encaixa em seu significado esquemático e côncavo. Contudo, para os políticos progressistas, progresso significa uma política peculiarmente concreta e limitada; essa política é, obviamente, a deles. Será inútil tentar falar com eles sobre o progresso subsequente: eles não lhe darão ouvidos. Se você disser a eles que a salvação da democracia depende de ela não ser feita em solidariedade com o sufrágio universal, com o Parlamento etc., eles o chamarão de reacionário. On est toujours le réactionnaire de quelqu’un.

Menos do que em qualquer outra pessoa, há uma suspeita na cabeça dos homens que se dizem modernos de que o mundo marcha sobre eles.

Considero essa superstição muito perigosa. A experiência repetida tem me mostrado que a maior e melhor parte da juventude é prisioneira da autoridade mística que o moderno — ou seja, o século XIX — exerce sobre suas emoções. Sendo assim, é precisamente a era que proclama a mutabilidade progressiva das idéias, das instituições, do ser humano em geral, que mais eficazmente finge um caráter de eternidade, de imutabilidade para sua genuína e transitória conduta. Há aqueles que acreditam que a supressão dos fios no telégrafo sem fio é intolerável.

No que me diz respeito, a sorte está lançada. Não sou nada moderno, mas muito século XX.

1916.


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Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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