René Descartes

René Descartes (1596-1650) foi um criativo e exemplar matemático, um importante pensador científico e um metafísico original. Ao longo de sua vida, ele foi em primeiro lugar um matemático, em segundo um cientista natural ou “filósofo natural” e em terceiro um metafísico. Na matemática, ele desenvolveu as técnicas que tornaram possível a geometria algébrica (ou “analítica”). Em filosofia natural, ele pode ser creditado com várias realizações específicas: co-criador da lei senoidal da refração, desenvolvedor de um importante relato empírico sobre o arco-íris e proponente de um relato naturalista da formação da terra e dos planetas (um precursor da hipótese nebulosa). Mais importante, ele ofereceu uma nova visão do mundo natural, que continua a moldar nosso pensamento hoje: um mundo de matéria que possui algumas propriedades fundamentais e que interage de acordo com algumas leis universais. Tal mundo natural incluía uma mente imaterial que, nos seres humanos, estava diretamente relacionada ao cérebro; assim, Descartes formulou a versão moderna do problema mente-corpo. Na metafísica, ele forneceu argumentos para a existência de Deus, para mostrar que a essência da matéria é a extensão, e que a essência da mente é o pensamento. Descartes alegou, desde cedo, possuir um método especial, que foi exibido de forma variada na matemática, na filosofia natural e na metafísica, o qual, na última parte de sua vida, incluiu, ou foi complementado por, um método de dúvida.

Descartes apresentou seus resultados em grandes trabalhos publicados durante sua vida: o Discurso sobre o Método (em francês, 1637), com seus ensaios, Dióptrica, Meteorologia e Geometria; as Meditações sobre a Filosofia Primeira (i.e, sobre metafísica), com suas Objeções e Respostas (em latim, 1641, 2ª edn. 1642); os Princípios da Filosofia, abrangendo sua metafísica e grande parte de sua filosofia natural (em latim, 1644); e as Paixões da Alma, sobre as emoções (em francês, 1649). Trabalhos importantes publicados postumamente incluíram suas Cartas (em latim e francês, 1657-67); O Mundo, ou Tratado da Luz, contendo o núcleo de sua filosofia natural (em francês, 1664); Tratado do Homem (em francês, 1664), contendo sua fisiologia e psicologia mecanicista; e as Regras para a Direção da Mente (em latim, 1701), um trabalho inicial, inacabado, tentando estabelecer seu método.

Entre os estudiosos, Descartes era conhecido em sua época como um matemático excepcional, como o desenvolvedor de uma nova e abrangente física ou teoria da natureza (incluindo seres vivos) e como o proponente de uma nova metafísica. Nos anos seguintes à sua morte, sua filosofia natural foi amplamente ensinada e discutida. No século XVIII, aspectos de sua ciência permaneceram influentes, especialmente sua fisiologia, assim como seu projeto de investigar o conhecedor a fim de avaliar a possibilidade e a extensão do conhecimento humano; ele também foi lembrado por sua metafísica malsucedida e por seu uso de argumentos céticos para duvidar. No século XIX, ele foi reverenciado por sua fisiologia e teoria mecanicista de que corpos animais são máquinas (ou seja, são constituídos por mecanismos materiais, governados apenas pelas leis da matéria). O século XX celebrou de forma variada seu famoso ponto de partida, “cogito“, relembrando os dados sensoriais que alguns alegavam ser o legado de seu ponto de partida cético, e o encaravam como um modelo do filósofo culturalmente engajado. Ele foi visto, em vários momentos, como um herói e como um vilão; como um teórico brilhante que definiu novos rumos no pensamento e como o prenúncio de uma concepção fria, racionalista e calculista do ser humano. Aqueles que são novos no estudo de Descartes deveriam  empenhar-se em suas próprias obras mais detalhadamente antes de desenvolver uma opinião sobre seu legado.

1. Biografia Intelectual

1.1 Educação e juventude

Descartes nasceu em 31 de março de 1596 na casa de sua avó materna em La Haye, na região de Touraine, na França. Seu pai Joachim, um advogado que vivia em Châtellerault (22 quilômetros a sudoeste de La Haye, através do rio Creuse, na região de Poitou), estava fora, no Parlamento da Bretanha, em Rennes. A cidade de La Haye, que fica 47 quilômetros ao sul de Tours, foi posteriormente renomeada Descartes.

Quando Descartes tinha treze meses e meio de idade, sua mãe, Jeanne Brochard, morreu ao dar à luz. O jovem René passou seus primeiros anos com sua avó, Jeanne Sain Brochard, em La Haye, junto com seu irmão mais velho Pierre e sua irmã mais velha Jeanne. É provável que ele então tenha se mudado para a casa de seu tio-avô, Michel Ferrand, que, como muitos dos parentes masculinos de René, era advogado, e foi conselheiro do rei em Châtellerault. Quando Descartes conheceu Isaac Beeckman em 1618, Descartes se apresentou como “Poitevin”, ou de Poitou (10:46, 51-4; Rodis-Lewis 1998, 26; ver também 2:642). Nessa época (e de agora em diante), ele assinou cartas como “du Perron” e denominou-se “sieur du Perron” (Senhor do Perron), a partir de uma pequena fazenda em Poitou que ele herdara da família de sua mãe (Watson 2007, 81, 230). Mas ele não negligenciou seu lugar de nascimento em La Haye: em uma carta de 1649, ele se descreveu como “um homem que nasceu nos jardins de Touraine” (5:349).

Em 1606 ou 1607, Descartes entrou no recém fundado Colégio Jesuíta de La Flèche, onde permaneceu até 1614 ou 1615. Ele seguiu o curso de estudos habitual, que incluía cinco ou seis anos de escola primária, incluindo a gramática latina e grega, poetas clássicos e Cícero, seguido de três anos de currículo de filosofia. Por regra, o currículo de filosofia jesuíta seguiu Aristóteles; foi dividido nos tópicos então padronizados de lógica, moral, física e metafísica. Os jesuítas também incluíram a matemática nos três últimos anos de estudo.

A filosofia de Aristóteles foi abordada através de apresentações de livros didáticos e comentários sobre as obras de Aristóteles. O próprio Aristóteles discutia com freqüência as posições de seus antigos antecessores. Os comentários mais extensos também foram elaborados com algum detalhe sobre outras posições além das de Aristóteles. Dentro dessa estrutura, e levando em conta a leitura de Cícero, Descartes teria sido exposto na escola às doutrinas dos antigos atomistas, Platão e os estóicos, e ele teria ouvido falar dos céticos. Além disso, importantes eventos intelectuais foram conhecidos em La Flèche, incluindo a descoberta das luas de Júpiter por Galileu em 1610. Assim, embora a filosofia aristotélica escolar fosse dominante em seus anos de escola, não era o único tipo de filosofia que ele conhecia.

Famosamente, Descartes escreveu na porção autobiográfica do Discurso (1637) que, quando ele deixou a escola, “eu me vi atormentado por tantas dúvidas e erros que cheguei a pensar que não tinha ganho nada com minhas tentativas de me educar, a não ser o crescente reconhecimento de minha ignorância” (6:4). E ainda no parágrafo seguinte ele admitiu que não “deixou de valorizar os exercícios feitos nas escolas” (6:5), pois línguas, fábulas, oratória, poesia, matemática, moral, teologia e filosofia, todos tiveram seu valor, assim como a jurisprudência, a medicina e as outras ciências (incluindo a engenharia), que servem como profissões e que se pode estudar depois de frequentar uma escola como La Flèche. Ele continuou observando a contradição e a discordância que assolou a filosofia e assim infectou as ciências superiores (incluindo a medicina) “na medida em que elas emprestam seus princípios da filosofia” (6:8). Um ano depois, em 1638, ele disse a um pai inquiridor que “em nenhum lugar na terra a filosofia é melhor ensinada do que em La Flèche”, recomendando a seu correspondente que enviasse o filho mesmo que quisesse que ele transcendesse o aprendizado das escolas — sugerindo também que o filho pudesse estudar em Utrecht com Henry le Roy, um discípulo de Descartes (2:378-9). Descartes estava, no Discurso, sugerindo que não foi por acaso que a filosofia que ele aprendeu na La Flèche era incerta: a filosofia anterior estava destinada a ser incerta, já que ele (Descartes) estava agora oferecendo um primeiro vislumbre da única filosofia verdadeira que ele havia descoberto apenas recentemente. Até que ela pudesse ser promulgada, La Flèche, ou outra boa escola, seria a melhor em oferta.

Sua família queria que Descartes fosse um advogado, como seu pai e muitos outros parentes. Para isso, ele foi para Poitiers para estudar Direito, obtendo um diploma em 1616. Porém, ele nunca exerceu a advocacia ou entrou no serviço governamental que tal prática tornaria possível (Rodis-Lewis 1998, 18-22). Em vez disso, se tornou um cavalheiro soldado, mudando-se em 1618 para Breda, para apoiar o príncipe protestante Maurice contra as partes católicas da Holanda (que mais tarde formariam a Bélgica), que eram controladas pela Espanha — uma terra católica, como a França, mas a essa altura um inimigo.

1.2 Primeiros resultados, uma nova missão e método

Enquanto estava em Breda, Descartes conheceu Isaac Beeckman, um matemático e filósofo natural holandês. Beeckman definiu vários problemas para Descartes, incluindo perguntas sobre a queda de corpos, hidrostática e problemas matemáticos. Descartes e Beeckman se envolveram no que eles chamaram de “físico-matemática”, ou física matemática (10:52). Desde a antiguidade, a matemática era aplicada a vários assuntos físicos, em óptica, astronomia, mecânica (com foco na alavanca) e hidrostática. Beeckman e Descartes trouxeram para esse trabalho um compromisso com os átomos como constituintes básicos da matéria; como os antigos atomistas, eles atribuíram não apenas tamanho, forma e movimento, mas também peso a esses átomos (10:68). Descartes abriu uma seção em seu caderno intitulada “Democrítica” (10:8), em homenagem ao antigo atomista Demócrito.

Nessa época, Descartes descobriu e transmitiu a Beeckman a percepção fundamental que torna possível a geometria analítica: a técnica para descrever linhas de todos os tipos usando equações matemáticas envolvendo relações entre comprimentos. O próprio Descartes não previu substituir as construções geométricas por fórmulas algébricas; ao contrário, ele viu a geometria como a ciência matemática básica e considerou suas técnicas algébricas como uma alternativa poderosa para as construções reais de compasso e régua, quando estas últimas se tornaram muito intrincadas. Quando, no século XIX, a álgebra e a análise tiveram precedência sobre a geometria, o sistema de coordenadas retilíneas da geometria algébrica passou a ser chamado de “coordenadas cartesianas”, em homenagem à descoberta de Descartes.

Descartes deixou Breda em 1619 para juntar-se ao exército católico de Maximiliano I (Duque da Baviera e aliado da França). A guerra dizia respeito à autoridade de Fernando V, um católico, que havia sido coroado imperador do Santo Império Romano em setembro. Descartes participou da coroação e estava voltando ao exército quando o inverno o pegou na pequena cidade de Ulm (ou talvez Neuburg), não muito longe de Munique. Na noite de 10 de novembro de 1619, Descartes teve três sonhos que pareciam lhe proporcionar uma missão na vida. Os sonhos em si são interessantes e complexos (ver Sebba 1987). Descartes tirou deles a mensagem de que ele deveria iniciar a reforma de todo o conhecimento. Ele decidiu começar pela filosofia, já que os princípios das outras ciências devem ser derivados dela (6:21-2).

Descartes estava familiarizado tanto com a filosofia dominante quanto com os recentes inovadores (aqueles que, entre outras coisas, rejeitaram aspectos da filosofia de Aristóteles), incluindo a leitura que ele fez a partir de 1620. Em 1640, ele lembrou (3:185) ter lido várias obras sobre filosofia por volta do ano de 1620, escritas por comentaristas conhecidos sobre Aristóteles: Francisco Toledo (1532-96), Antonio Rubio (1548-1615), e os comentaristas Coimbran (ativo ca. 1600), juntamente com um sumário ou resumo de “toda a filosofia escolástica” de Eustáquio de São Paulo (1573-1640), cuja Summa Philosophiae foi publicada pela primeira vez em 1609. Em 1638, ele lembrou ter lido o De Sensu Rerum de Thomas Campanella (1620) cerca de quinze anos antes, e não ter ficado muito impressionado (2:659-60). E em 1630 ele conseguiu chocalhar os nomes de inovadores recentes em filosofia (1:158), incluindo Campanella (1568-1639), Bernardino Telesio (1509-88), Giordano Bruno (1548-1600), Lucilio Vanini (1585-1619) e Sébastien Basson (b. ca. 1573).

As atividades do Descartes durante o início da década de 1620 não estão bem documentadas. Ele esteve na França parte do tempo, visitando Poitou para vender algumas propriedades herdadas em 1622 e visitou Paris. Ele foi para a Itália (1623-25). Ao retornar, viveu em Paris, onde esteve em contato com matemáticos e filósofos naturais do círculo de seu amigo de longa data e correspondente Marin Mersenne (1588-1648). Enquanto estava em Paris, trabalhou em alguns problemas matemáticos e derivou a lei da seno da refração, o que facilitou seu trabalho na formulação matemática das formas das lentes (mais tarde publicada em Dióptrica). Seu maior esforço filosófico durante esses anos foi em Regras, um trabalho para transmitir seu novo método.

Em Regras, ele procurou generalizar os métodos da matemática de modo a proporcionar um caminho para o conhecimento claro de tudo o que os seres humanos podem conhecer. Seus conselhos metodológicos incluíam uma sugestão que é familiar a todo estudante de geometria elementar: dividir seu trabalho em pequenos passos que se possa compreender completamente e sobre os quais se tenha certeza absoluta, e verificar o trabalho com frequência. Entretanto, ele também teve conselhos para o ambicioso buscador da verdade, sobre por onde começar e como trabalhar até coisas maiores. Assim, a Regra 10 diz: “O que é que se deve fazer? “Para adquirir discernimento, devemos exercer nossa inteligência investigando o que outros já descobriram, e pesquisar metodicamente até mesmo os produtos mais insignificantes da habilidade humana, especialmente aqueles que exibem ordem” (10:403). Como exemplos de artes “simples” “em que prevalece a ordem”, ele deu a confecção de tapetes e bordados, e também jogos de números e de aritmética. Ele passou a discutir os papéis das “faculdades cognitivas” na aquisição de conhecimentos, que incluem o intelecto, a imaginação, a percepção dos sentidos e a memória. Essas faculdades permitem ao buscador do conhecimento combinar verdades simples para resolver problemas mais complexos, tais como a solução de problemas na óptica (10:394), ou a descoberta de como funciona um ímã (10:427).

No final de 1628, Descartes havia abandonado os trabalhos sobre as Regras, tendo concluído cerca da metade do tratado projetado. Naquele ano ele mudou-se para a Holanda e, depois disso, retornou à França com pouca frequência, antes de se mudar para a Suécia em 1649. Enquanto estava na Holanda, se esforçou para manter seu endereço em segredo e mudou de lugar frequentemente, de acordo com seu lema, “quem vive bem escondido, vive bem” (1:286*).

1.3 Guinada Metafísica,  física abrangente, Discurso

Ao chegar na Holanda, Descartes empreendeu um trabalho sobre dois tipos de tópicos. No verão de 1629, um impressionante conjunto de parhelia, ou falsos sóis, foi observado perto de Roma. Quando Descartes ouviu falar deles, ele partiu para encontrar uma explicação. (Ele, por fim, levantou a hipótese de que um grande e sólido anel de gelo no céu atua como uma lente para formar múltiplas imagens do sol [6:355]). Tal trabalho interrompeu suas investigações sobre outro tópico, que o havia engajado durante seus primeiros nove meses na Holanda (1:44) — o tópico da metafísica, ou seja, a teoria dos primeiros princípios de tudo o que existe. Os objetos metafísicos de investigação incluíam a existência e a natureza de Deus e da alma (1:144, 182). Entretanto, essas investigações metafísicas não estavam totalmente divorciadas de problemas como a parábola, pois ele afirmava que através de suas investigações sobre Deus e o eu humano, ele foi capaz de “descobrir o fundamento da física” (1:144). Posteriormente, Descartes mencionou um pequeno tratado metafísico em latim — presumivelmente uma versão inicial das Meditações — que ele escreveu ao visitar a Holanda pela primeira vez (1:184, 350). E sabemos que Descartes mais tarde confidenciou a Mersenne que as Meditações continham “todos os princípios da sua física” (3:233).

Enquanto trabalhava no parhelia, Descartes concebeu a idéia de um tratado muito ambicioso. Ele escreveu a Mersenne que havia decidido não explicar “apenas um fenômeno” (o parhelia), mas compor um tratado no qual ele explicava “todos os fenômenos da natureza, ou seja, o todo da física” (1:70). Essa obra acabou se tornando O Mundo, que deveria ter tido três partes: sobre a luz (um tratado geral sobre a natureza visível, ou material), sobre o homem (um tratado de fisiologia) e sobre a alma. Somente os dois primeiros sobrevivem (e talvez só eles tenham sido escritos), sendo o Tratado sobre a Luz e o Tratado sobre o Homem. Nessas obras, que Descartes decidiu suprimir ao saber da condenação de Galileu (1:270, 305), ele ofereceu uma visão abrangente do universo como sendo constituído a partir de uma forma nua de matéria com apenas comprimento, largura e profundidade (volume tridimensional) e esculpida em partículas com tamanho e forma, que podem estar em movimento ou em repouso, e que interagem através de leis de movimento impostas por Deus (11:33-4). Esses trabalhos continham uma descrição do universo visível como um único sistema físico no qual todas as suas operações, desde a formação dos planetas e a transmissão da luz do sol, até os processos fisiológicos dos corpos humanos e não humanos dos animais, podem ser explicadas através do mecanismo da matéria disposta em formas e estruturas e em movimento de acordo com três leis do movimento. De fato, suas explicações no Mundo e nos subsequentes Princípios fizeram pouco uso das três leis do movimento, a não ser de uma forma qualitativa. As leis sustentavam a noção de que a matéria se move regularmente (em linha reta) e que, em caso de impacto, pedaços de matéria alteram seus movimentos de maneira regular — algo que acontece constantemente em todo o universo (o “plenum“) concebido por Descartes.

Depois de suprimir seu Mundo, Descartes decidiu apresentar, anonimamente, uma amostra limitada de sua nova filosofia, no Discurso com seus ensaios anexos. O Discurso relatou a própria jornada da vida de Descartes, explicando como ele chegou à posição de duvidar de seus conhecimentos anteriores e procurando começar de novo. Ele ofereceu alguns resultados iniciais de suas investigações metafísicas, incluindo o dualismo mente-corpo. Contudo, não se envolveu no profundo ceticismo das meditações posteriores, nem alegou estabelecer, metafisicamente, que a essência da matéria é extensão. Essa última conclusão foi apresentada meramente como uma hipótese cuja fecundidade poderia ser testada e comprovada através de seus resultados, como consta nos ensaios anexos sobre Dióptrica e Meteorologia. Esta última área temática compreendia os fenômenos “atmosféricos”. Em sua Meteorologia, Descartes descreveu sua hipótese geral sobre a natureza da matéria, antes de continuar a fornecer relatos acerca de vapores, sal, ventos, nuvens, neve, chuva, granizo, relâmpagos, arco-íris, coroas e parhelia.

Descartes escreveu em Meteorologia que ele estava trabalhando a partir da seguinte “suposição” ou hipótese: “que a água, a terra, o ar e todos os outros corpos assim, que estão ao nosso redor, são compostos de muitas pequenas partes de vários formatos e tamanhos, as quais nunca estão tão bem dispostas nem tão exatamente unidas entre si que não permanecem muitos intervalos ao seu redor; e que esses intervalos não estão vazios, mas são preenchidos com aquela matéria extremamente sutil através da mediação da qual, tal como eu disse acima, a ação da luz é comunicada” (6:233). Ele apresentou uma base corpuscular para sua física, que negava a teoria do atomismo antigo e afirmava que todos os corpos são compostos de um tipo de matéria, que é infinitamente divisível (6:239). No Mundo, ele havia apresentado seu corpuscularismo não-atomístico, mas sem negar o espaço vazio e sem afirmar a infinita divisibilidade (11:12-20).

Em Meteorologia, ele também proclamou que sua filosofia natural não tinha necessidade das “formas substanciais” e das “qualidades reais” que outros filósofos “imaginam estar nos corpos” (6:239). Ele havia assumido a mesma posição no Mundo, onde disse que, ao conceber seu novo “mundo” (ou seja, sua concepção do universo), “não uso as qualidades chamadas calor, frio, umidade e secura, tal como fazem os Filósofos” (11:25). De fato, Descartes alegou que ele mesmo poderia explicar essas qualidades através da matéria em movimento (11:26), uma afirmação que ele repetiu em Meteorologia (6:235-6). Com efeito, ele negava a então dominante ontologia escolar aristotélica, que explicava todos os corpos naturais como sendo compostos de uma “matéria prima” informada por uma “forma substancial”, e que explicava qualidades como o quente e o frio como sendo realmente herdados nos corpos de um modo “semelhante” às qualidades do quente e do frio tal como as experimentamos tactualmente.

Ao contrário da matéria puramente extensa de Descartes, que pode existir por si só, tendo apenas tamanho e forma, muitos aristotélicos escolásticos consideravam que a matéria prima não pode existir por si só. Para formar uma substância, ou algo que pode existir por si só, a matéria prima deve ser “informada” por uma forma substancial (uma forma que transforma algo em uma substância). Os quatro elementos aristotélicos, terra, ar, fogo e água, tinham formas substanciais que combinavam as qualidades básicas de quente, frio, úmido e seco: a terra é fria e seca; o ar é quente e úmido; o fogo é quente e seco; e a água é fria e úmida. Eles próprios podem então servir como “matéria” para formas substanciais superiores, tais como a forma de um mineral, de um ímã, ou de um ser vivo. Seja no caso da terra ou de um coelho vivo, a “forma” de uma coisa orienta sua atividade característica. Para a terra, essa atividade é se aproximar do centro do universo; a água tem a mesma tendência, mas não tão fortemente. Por essa razão, explicaram os aristotélicos, o planeta terra se formou no centro, com a água em sua superfície. Um novo coelho é formado quando um coelho macho contribui, através de sua semente-matéria, com a “forma” de coelho com a semente-matéria da coelha fêmea. Essa forma organiza então essa matéria em formato de um coelho, incluindo a organização e direção da atividade de seus vários órgãos e processos fisiológicos. O comportamento do coelho recém-nascido é então guiado por sua “alma sensível” específica do coelho, que é o nome para a forma substancial do coelho. Outras propriedades do coelho, como a brancura de seu pêlo, são explicadas pela “qualidade real” do branco herdado em cada fio de pêlo.

Embora no Mundo e em Meteorologia Descartes tenha evitado a negação direta de formas substanciais e qualidades reais, é claro que ele pretendia negá-las (1:324; 2:200; 3:420, 500, 648). Duas considerações ajudam a explicar sua tentativa de argumentação: primeiro, quando ele escreveu essas obras, ele ainda não estava preparado para divulgar sua metafísica, que apoiaria sua hipótese sobre a matéria e assim descartaria as formas substanciais (1:563); e, segundo, ele era sensível ao valor prudencial de não atacar diretamente a posição aristotélica escolar (3:298), uma vez que era a opinião aceita no ensino universitário (3:577) e era fortemente apoiada por teólogos ortodoxos, tanto católicos como protestantes (1:85-6; 3:349).

Após a publicação do Discurso em 1637, Descartes recebeu em sua correspondência perguntas e desafios a várias doutrinas, incluindo seu relato da seqüência de fenômenos durante o batimento do coração e a circulação do sangue; sua omissão sobre formas substanciais e qualidades reais; seu argumento para uma distinção entre mente e corpo; e sua visão de que as hipóteses filosóficas naturais poderiam ser “provadas” através dos efeitos que elas explicam (6:76). A correspondência de Descartes da segunda metade dos anos 1630 devolve, entre outras coisas, o estudo atento de suas discussões sobre a confirmação de hipóteses na ciência, suas respostas às objeções relativas à sua metafísica e sua explicação de que ele havia deixado os argumentos mais radicais e céticos fora deste trabalho, uma vez que foi escrito em francês para uma ampla audiência (1:350, 561).

Em 1635, Descartes foi pai de uma filha chamada Francine. Sua mãe era a governanta de casa de Descartes, Helena Jans. Elas viveram com Descartes parte do tempo na última década de 1630, e Descartes estava organizando para que se juntassem a ele quando soube da morte prematura de Francine, em setembro de 1640. Descartes contribuiu posteriormente com um dote para o casamento de Helena em 1644 (Watson 2007, 188).

1.4 A metafísica e a física abrangente reveladas

Em uma carta de 13 de novembro de 1639, Descartes escreveu a Mersenne dizendo que estava “trabalhando em um discurso no qual tentava esclarecer o que escrevera até agora” sobre metafísica (2:622). Essas eram as Meditações, e presumivelmente ele estava revisando ou reformulando o tratado latino de 1629. Ele anunciou a Mersenne um plano para apresentar o trabalho aos “vinte ou trinta teólogos mais instruídos” antes da sua publicação. No final, ele e Mersenne coletaram sete conjuntos de objeções às Meditações, que Descartes publicou com a obra, juntamente com suas respostas (1641, 1642). Algumas objeções eram de teólogos sem nome, transmitidas por Mersenne; um conjunto veio do padre holandês Johannes Caterus; outro conjunto foi do filósofo jesuíta Pierre Bourdin; outros foram do próprio Mersenne, dos filósofos Pierre Gassendi e Thomas Hobbes, e do filósofo teólogo católico Antoine Arnauld.

Como mencionado anteriormente, Descartes ponderou que as Meditações deveriam conter os princípios de sua física. Mas não há nenhuma Meditação rotulada como “princípios da física”. Os princípios em questão, que são difundidos através da obra, dizem respeito à natureza da matéria (que sua essência é extensão), a atividade de Deus na criação e conservação do mundo, a natureza da mente (que é uma substância não estendida e pensante), a união e interação mente-corpo, e a ontologia das qualidades sensoriais. (Descartes e seus seguidores incluíram tópicos relativos à natureza da interação mente e mente-corpo dentro da física ou filosofia natural, sobre os quais, ver Hatfield 2000).

Uma vez que Descartes apresentou sua metafísica, ele sentiu-se livre para prosseguir com a publicação de toda a sua física. Entretanto, ele primeiramente precisou ensiná-la a falar latim (3:523), a lingua franca do século XVII. Ele esboçou um esquema para publicar uma versão latina de sua física (os Princípios) junto com um trabalho escolar aristotélico sobre física, para que as vantagens comparativas fossem manifestadas. Para isso, ele escolheu a Summa philosophiae de Eustáquio de São Paulo. Essa parte de seu plano nunca chegou a ser concretizada. Sua intenção permaneceu a mesma: ele desejava produzir um livro que pudesse ser adotado nas escolas, mesmo nas escolas jesuítas como La Flêche (3:233, 523). Por fim, sua física foi ensinada na Holanda, França, Inglaterra e em partes da Alemanha. Nas terras católicas, o ensino de sua filosofia foi prejudicado quando suas obras foram colocadas no Índice de Livros Proibidos em 1663, embora seus seguidores na França, como Jacques Rohault (1618-72) e Pierre Regis (1632-1707), continuassem a promover a filosofia natural de Descartes.

Os Princípios apareceram em latim em 1644, com uma tradução francesa seguida em 1647. Descartes acrescentou à tradução francesa uma “Carta do Autor” para servir de prefácio. Na carta, ele explicou elementos importantes de sua atitude em relação à filosofia, incluindo a opinião de que em assuntos filosóficos é preciso raciocinar através dos argumentos e avaliá-los por si mesmo (9B:3). Ele também apresentou uma imagem das relações entre as várias partes da filosofia, sob a forma de uma árvore:

Assim, o conjunto da filosofia é como uma árvore. As raízes são metafísicas, o tronco é físico, e os ramos que emergem do tronco são todas as outras ciências, que podem ser reduzidas a três principais, a saber: medicina, mecânica e moral. Por “moral” entendo o mais alto e mais perfeito sistema moral, que pressupõe um conhecimento completo das outras ciências e é o nível máximo de sabedoria. (9B:14)

Os Princípios disponíveis oferecem metafísica na Parte I; os princípios gerais da física, na forma de sua teoria da matéria e leis do movimento, são apresentados na Parte II, como continuação da metafísica; a Parte III diz respeito aos fenômenos astronômicos; e a Parte IV cobre a formação da terra e procura explicar as propriedades dos minerais, metais, magnetos, fogo e afins, aos quais são anexadas discussões sobre como os sentidos funcionam e uma discussão final de questões metodológicas da filosofia natural. Sua intenção tinha sido também explicar em profundidade as origens das plantas e animais, a fisiologia humana, a união mente-corpo e sua interação, e a função dos sentidos. No final, ele teve que abandonar a discussão sobre plantas e animais (Princ. IV.188), mas incluiu alguma discussão sobre a união mente-corpo em seu relato abreviado a ecerca dos sentidos.

1.5 Controvérsia teológica, Paixões e morte

Desde cedo, em sua correspondência com Mersenne, Descartes mostrou preocupação em evitar envolver-se em controvérsias teológicas ou ganhar a inimizade das autoridades eclesiásticas (1:85-6, 150, 271). No entanto, ele foi arrastado para a controvérsia teológica com os teólogos calvinistas da Holanda. Na última década de 1630, Henry le Roy (1598-1679), ou Regius, um professor de medicina em Utrecht, ensinou o sistema de filosofia natural de Descartes. Já em 1640, Gisbert Voetius (1589-1676), um teólogo em Utrecht, expressou seu descontentamento sobre isso a Mersenne (3:230). A controvérsia surgiu inicialmente entre Regius e Voetius, com Descartes aconselhando o primeiro. Voetius, que era reitor da Universidade, convenceu o senado da faculdade a condenar a filosofia de Descartes em 1642. Ele e seus colegas publicaram duas obras (em 1642 e 1643) atacando a filosofia de Descartes, às quais o próprio Descartes respondeu publicando uma Carta a Voetius (1643). A controvérsia ferveu em meados da década de 1640. Descartes acabou tendo um desentendimento com Regius, que publicou uma carta ou manifesto que se desviava da teoria da mente humana de Descartes. Descartes respondeu com seus Comentários sobre uma Certa Carta (1648).

Em meados dos anos 40, Descartes continuou o trabalho sobre seu sistema fisiológico, que ele havia perseguido durante toda a década de 1630. Ele permitiu que seu Tratado sobre o Homem fosse copiado (4:566-7) e começou um novo trabalho (5:112), Descrição do Corpo Humano, no qual procurou explicar o desenvolvimento embrionário dos corpos animais. Durante esse período ele correspondeu-se com a princesa Elisabeth, inicialmente sobre temas metafísicos decorrentes de sua leitura das Meditações e depois sobre as paixões e emoções. Eventualmente, ele escreveu as Paixões da Alma (1649), que deram o relato mais extenso de sua fisiologia comportamental a ser publicado em sua vida e que continha uma teoria abrangente e original sobre as paixões e emoções. Partes desse trabalho constituem o que temos da teoria moral de Descartes.

Em 1649, Descartes aceitou o convite da rainha Christina, da Suécia, para juntar-se a sua corte. A pedido da Rainha, ele compôs os Estatutos da Academia Real Sueca. No dia em que os entregou a ela, adoeceu. Ele nunca se recuperou. Morreu em 11 de fevereiro de 1650.

2. Desenvolvimento Filosófico

Em geral, é raro que as posições e argumentos de um filósofo permaneçam os mesmos durante toda uma vida. Isso significa que, na leitura das obras dos filósofos e na reconstrução de seus argumentos, deve-se prestar atenção ao lugar de cada obra no desenvolvimento filosófico do autor em questão. Os leitores das obras filosóficas de Immanuel Kant estão cientes da distinção básica entre seus períodos crítico e pré-crítico. Os leitores das obras de G. W. Leibniz também estão cientes de seu desenvolvimento filosófico, embora em seu caso haja menos consenso sobre como colocar seus escritos em um esquema de desenvolvimento.

Estudiosos têm proposto vários esquemas para dividir a vida de Descartes em períodos. Este verbete adota uma divisão relativamente simples entre a época em que a matemática forneceu o modelo para seu método e o período após a “guinada metafísica” de 1629, quando sua concepção do papel do intelecto na aquisição do conhecimento mudou e quando ele chegou a conceber a verdade de suas hipóteses especiais ou particulares na filosofia natural como menos do que certas e, portanto, sujeitas ao esquema de confirmação através das conseqüências mencionadas acima. Com efeito, ele adotou um esquema hipotético-dedutivo de confirmação, mas com esta diferença: o leque de hipóteses foi limitado por suas conclusões metafísicas sobre a essência da mente e da matéria, sua união e o papel de Deus na criação e conservação do universo. Consequentemente, algumas hipóteses, tais como as “formas substanciais” dos escolásticos, foram descartadas. Diferenças argumentativas entre o Mundo, o Discurso, as Meditações e os Princípios podem então ser vistas como decorrentes do fato de que, nos anos 1630, Descartes ainda não havia apresentado sua metafísica e assim adotou um modo empírico de justificação, enquanto que, após 1641, ele poderia apelar para sua metafísica publicada, procurando assegurar a estrutura geral de sua física.

Outros estudiosos vêem as coisas de maneira diferente. John Schuster (1980) descobriu que a epistemologia das Regras durou até os anos 1630 e foi substituída (infelizmente, a seu ver) apenas pela busca metafísica da certeza das Meditações. Daniel Garber (1992, 48) também sustenta que Descartes abandonou seu método inicial após o Discurso. Machamer e McGuire (2006) acreditam que Descartes esperava que a filosofia natural atendesse ao padrão de certeza absoluta durante o período das Meditações, e que ele, na verdade, admitiu a derrota nesse ponto nos artigos finais dos Princípios, adotando um padrão inferior de certeza para suas hipóteses particulares (como a explicação do magnetismo por partículas em forma de saca-rolhas). Eles vêem os Princípios como marcando a “guinada epistêmica” de Descartes para longe da postura metodológica do realismo encontrada nas Regras, no Discurso e nas Meditações.

Essas opiniões contrastantes sobre o desenvolvimento intelectual de Descartes sugerem diferentes relações entre sua metafísica e física. Schuster (1980) trata os argumentos metafísicos de Descartes como uma espécie de pós-pensamento. Machamer e McGuire (2006) vêem a suposta “guinada epistêmica” de Descartes e seu recuo do realismo como uma resposta à crítica filosófica em 1641; eles encontram mais continuidade entre as Regras de Descartes e seus escritos até 1641 do que Garber, ou do que é apresentado aqui. Uma maneira de entender essa descontinuidade anterior é conceder que Descartes estava trabalhando primeiro nos problemas físicos, ao mesmo tempo em que enfatizava que seus insights metafísicos de 1628-9 lhe permitiram alcançar uma concepção geral da matéria como tendo apenas propriedades “geométricas”, isto é, tamanho, forma, posição e movimento.

Há também diferenças entre os intérpretes quanto à prioridade relativa nos esforços filosóficos de Descartes sobre epistemologia ou teoria do conhecimento, em oposição à metafísica ou filosofia primeira. No relato do desenvolvimento de Descartes a partir da seção 1, ele se interessou primeiro pelas questões epistemológicas e metodológicas, e esses interesses chegaram a um ponto alto nas Regras. Em seguida, seu objetivo era estabelecer uma nova filosofia natural baseada em uma nova metafísica. Nos trabalhos existentes dos anos 1630, o Mundo, o Discurso e os ensaios, ele defendeu os princípios gerais de sua física, incluindo sua concepção da matéria, por razões empíricas. Argumentou a partir do escopo explicativo e da parcimônia teórica. No que diz respeito à parcimônia ou simplicidade, ele apontou que sua matéria reconcebida tinha apenas algumas propriedades básicas (especialmente tamanho, forma, posição e movimento), a partir das quais construiria suas explicações. Afirmou que suas explicações poderiam se estender a todos os fenômenos naturais, celestiais e terrestres, inorgânicos e orgânicos. Mas durante toda a década de 1630, Descartes alegou que também estava de posse de uma metafísica que poderia justificar os primeiros princípios de sua física, os quais ele finalmente apresentou nas Meditações e Princípios.

Alguns estudiosos enfatizam os aspectos epistemológicos do trabalho de Descartes, começando pelas Regras e continuando até os Princípios. Assim, a principal mudança no desenvolvimento intelectual de Descartes é a introdução de argumentos céticos no Discurso e nas Meditações. Muitos intérpretes, representados de forma proeminente no último século XX por Richard Popkin (1979), acreditam que Descartes levou muito a sério a ameaça cética ao conhecimento e procurou superá-la nas Meditações. Em contraste, no principal fio interpretativo seguido aqui, os argumentos céticos foram uma ferramenta cognitiva que Descartes utilizou a fim de guiar o leitor das Meditações dentro do quadro cognitivo correto para compreender as primeiras verdades da metafísica. Atingir um conhecimento estável de tais verdades teria como efeito colateral a segurança contra o desafio cético.

O leitor curioso sobre essas questões deve ler as obras relevantes de Descartes, juntamente com sua correspondência da segunda metade dos anos 1630 e início dos 1640.

3. Uma Nova Metafísica

Descartes primeiro apresentou sua metafísica nas Meditações e depois a reformulou em formato de livro didático nos Princípios. Sua metafísica procurou responder a estas questões filosóficas: Como a mente humana adquire conhecimento? Qual é o sinal da verdade? Qual é a verdadeira natureza da realidade? Como são nossas experiências relacionadas a nossos corpos e cérebros? Existe um Deus benevolente e, se existe, como podemos conciliar sua existência com os fatos da doença, do erro e das ações imorais?

3.1 Como nossas mentes conhecem?

Descartes não tinha dúvidas de que os seres humanos sabem algumas coisas e são capazes de descobrir outras, incluindo (pelo menos desde seus insights metafísicos de 1629) verdades fundamentais sobre a estrutura básica da realidade. Contudo, ele também acreditava que os métodos filosóficos ensinados nas escolas de seu tempo e utilizados pela maioria de seus contemporâneos eram profundamente falhos. Considerava que as doutrinas da filosofia aristotélica escolástica continham um erro básico sobre a forma como verdades fundamentais, tais como as verdades da metafísica, deveriam ser obtidas. Ele expôs esse erro de opinião na Primeira Meditação, dizendo (não diretamente, mas remetendo o leitor): “O que quer que eu tenha até agora aceito como mais verdadeiro, adquiri tanto pelos sentidos como através dos sentidos” (7:18). Em seguida, ele desafiou a veridicalidade dos sentidos com os argumentos céticos da Primeira Meditação, incluindo argumentos provenientes de erros anteriores, o argumento dos sonhos, e o argumento de um Deus enganador ou um enganador malvado.

No esquema aristotélico contra o qual Descartes se move, todo o conhecimento surge dos sentidos, de acordo com o slogan “Não há nada no intelecto que não estivesse anteriormente nos sentidos” (7:75, 267). Da mesma maneira, os escolásticos ortodoxos aristotélicos concordaram que não há “nenhum pensamento sem um fantasma”, ou uma imagem. Descartes explicou essas convicções como sendo os resultados de preconceito infantil (7:2, 17, 69, 107; Princ. I.71-3). Como crianças, somos naturalmente guiados por nossos sentidos na busca de benefícios e na prevenção de danos corporais. Como resultado, quando nos tornamos adultos, estamos “imersos” no corpo e nos sentidos, e assim aceitamos a visão filosófica de que os sentidos são a base para aprender sobre a natureza da realidade (7:38, 75, 82-3).

Descartes negou que os sentidos revelem a natureza das substâncias. Ele sustentou que, de fato, o intelecto humano é capaz de perceber a natureza da realidade através de uma percepção puramente intelectual. Isso significa que, para obter as verdades fundamentais da metafísica, devemos “retirar a mente para fora dos sentidos” (7:4, 12, 14) e nos voltarmos para nossas idéias inatas acerca das essências das coisas, incluindo as essências da mente, da matéria e de um ser infinito (Deus). Descartes construiu as Meditações para assegurar esse processo de retirada dos sentidos na Meditação I. A Meditação II traz a descoberta de uma verdade inicial, no cogito (7:25), que está em outro lugar resumido como o argumento “cogito, ergo sum,” ou “eu penso, portanto, eu existo” (7:140). Descartes observa que o resultado do cogito é conhecido apenas pelo fato de que ele é “clara e distintamente ” percebido pelo intelecto (7:35). Assim, estabelece uma percepção intelectual clara e distinta, independente dos sentidos, como um sinal da verdade (7:35, 62, 73).

Descartes então desdobra os resultados da percepção clara e distinta nas Meditações III-VI, e ele repete e amplia esses resultados nos Princípios I-II. Consideramos tais resultados nas seções 3.3-3.5. Por enquanto, vamos examinar o que Descartes pensava sobre os sentidos como uma fonte de conhecimento que seria diferente do intelecto puro.

Descartes coloca em dúvida os sentidos na Primeira Meditação, e ele afirma na Meditação Seis que os sentidos não são destinados a fornecer o conhecimento da “natureza essencial” dos objetos externos (7:83). Assim, sua posição nas Meditações difere daquela das Regras, pois neste trabalho ele admitiu que algumas “naturezas simples” pertencentes às coisas corpóreas podem e devem ser consideradas através das imagens dos sentidos (10:383, 417). Nas Meditações, ele sustentou que a essência da matéria poderia ser apreendida por meio de idéias inatas, independentemente de qualquer imagem sensorial (7:64-5, 72-3). Nessa medida, sua posição posterior concorda com a tradição platônica em filosofia, que denigria o conhecimento sensorial e sustentava que as coisas conhecidas pelo intelecto têm uma realidade mais elevada do que os objetos dos sentidos. Descartes, entretanto, não era platonista, um ponto ao qual voltaremos. Sua atitude em relação aos sentidos em seu período maduro não foi de total desprezo.

Descartes atribuiu dois papéis aos sentidos na aquisição do conhecimento humano. Primeiro, ele reconheceu que os sentidos geralmente são adequados para detectar benefícios e danos para o corpo. De fato, ele considerou que sua função natural era “informar a mente do que é benéfico ou prejudicial para a composição da qual a mente faz parte” (7:83), ou seja, para a composição da mente e do corpo. Nesse sentido, ele concordava com a concepção da função dos sentidos que era amplamente compartilhada na literatura tradicional da filosofia natural, incluindo a literatura aristotélica, bem como na literatura médica sobre as funções naturais dos sentidos.

Em segundo lugar, ele reconheceu que os sentidos têm um papel essencial a desempenhar na filosofia natural. A literatura interpretativa mais antiga às vezes tinha Descartes afirmando que ele poderia derivar todo o conhecimento filosófico ou científico natural do intelecto puro, independente dos sentidos. Porém, Descartes sabia muito bem que não poderia fazer isso. Ele distinguia entre os princípios gerais de sua física e os mecanismos mais particulares que postulava para explicar fenômenos naturais, tais como o magnetismo ou as propriedades do petróleo e da água. Ele afirmou derivar os princípios gerais “de certas sementes da verdade” que são inatas na mente (6:64). Entre elas está a doutrina fundamental de que a essência da matéria é extensão (Princ. II.3-4, IV.203). Quanto a fenômenos particulares, em geral ele teve que confiar em observações para determinar suas propriedades (tais como as propriedades do ímã), e reconheceu que múltiplas hipóteses sobre mecanismos subvisíveis poderiam ser construídas para explicar esses fenômenos. O filósofo natural deve, portanto, testar as várias hipóteses por suas consequências, e considerar as virtudes empíricas tais como a simplicidade e alcance (Disc. VI; Princ. IV.201-6). Além disso, Descartes sabia que alguns problemas dependem de medições que só podem ser feitas com os sentidos, incluindo a determinação do tamanho do sol (7:80) ou os índices de refração de vários materiais (Met. VIII).

Embora Descartes tenha reconhecido um papel importante para os sentidos na filosofia natural, ele também limitou o papel do conhecimento baseado nos sentidos em comparação com a epistemologia aristotélica. Segundo muitos aristotélicos escolásticos, todo o conteúdo intelectual surge através de um processo de abstração intelectual que parte das imagens sensoriais presentes na faculdade da imaginação. Os objetos matemáticos são formados pela abstração de tais imagens. Até mesmo a metafísica repousa no conhecimento derivado da abstração de imagens. Naturalmente, nesse esquema aristotélico, o intelecto desempenha um papel importante na compreensão dos objetos matemáticos ou das essências das coisas naturais através da consideração das imagens. Em contraste, Descartes afirmou que as verdades da matemática e da metafísica são captadas pelo intelecto operando independentemente dos sentidos e sem a necessidade de assistência da faculdade da imaginação. Descartes chamou o exercício da capacidade intelectual, separado das imagens baseadas nos sentidos, de uso do “intelecto puro”.

No esquema das capacidades mentais de Descartes, o conhecimento não surge somente do intelecto. O intelecto pode apresentar algum conteúdo como verdadeiro, mas por si só não afirma ou nega essa verdade. Essa função pertence à vontade. Um julgamento, e portanto uma instância de conhecimento (pelo menos putativo), não surge nesse esquema até que a vontade tenha afirmado ou negado o conteúdo apresentado pelo intelecto.

Ademais, nem todo o conteúdo derivado da faculdade intelectual é “puro”. No esquema de Descartes, existem apenas dois poderes da mente: o intelecto e a vontade (Med. IV, Princ. I.32-4). O intelecto é o poder de percepção ou representação. Atos de intelecto puro ocorrem sem a necessidade de qualquer processo cerebral que os acompanhe; são percepções puramente intelectuais. Mas existem outros atos intelectuais que requerem a presença do corpo: percepção sensorial, imaginação e memória corpórea (que envolve o corpo). Esses atos intelectuais são menos claros e distintos do que atos do intelecto puro, e podem de fato ser obscuros e confusos (como no caso das sensações de cor). No entanto, a vontade pode afirmar ou negar tal conteúdo. Como discutido na próxima subseção, pode surgir erro nesses julgamentos.

Em suma, ao considerar a resposta de Descartes à forma como conhecemos, podemos distinguir classes de conhecimento que diferem em relação ao grau de certeza que se pode esperar alcançar. Os primeiros princípios metafísicos, conhecidos pelo intelecto agindo sozinho, devem atingir a certeza absoluta. O conhecimento prático sobre benefícios e danos imediatos é conhecido pelos sentidos. Tal conhecimento geralmente é suficientemente bom. Os objetos da ciência natural são conhecidos por uma combinação de intelecto puro e observação sensorial: o intelecto puro nos diz quais propriedades os corpos podem ter, e nós usamos os sentidos para determinar quais exemplos particulares de tais propriedades os corpos possuem. Para as partículas submicroscópicas, devemos raciocinar desde os efeitos observados até a causa potencial. Nesses últimos casos, nossas medições e nossas inferências podem estar sujeitas a erro, mas também podemos esperar chegar à verdade.

3.2 O sinal da verdade

No início da Terceira Meditação, Descartes declara: “Pareço agora ser capaz de estabelecer como regra geral que tudo o que percebo de forma muito clara e distinta é verdade” (7:35). A clareza e a distinção da percepção intelectual é o sinal da verdade.

No quinto conjunto de Objeções às Meditações, Gassendi sugere que existe uma dificuldade com relação a

qual habilidade ou método possível nos permitirá descobrir que nosso entendimento é tão claro e distinto a ponto de ser verdadeiro e de tornar impossível que estejamos enganados. Como eu protestei no início, muitas vezes somos enganados, embora pensemos que sabemos algo tão clara e distintamente quanto qualquer coisa que possa ser conhecida. (7:318)

Gassendi perguntou, com efeito, como devemos reconhecer percepções claras e distintas. Se clareza e distinção é o sinal da verdade, qual é o método para reconhecer a clareza e a distinção?

Em resposta, Descartes afirma que já forneceu tal método (7:379). O que ele poderia ter em mente? Não pode ser a simples crença de que se alcançou clareza e distinção, pois o próprio Descartes reconhece que os indivíduos podem estar errados nessa crença (7:35, 361). No entanto, ele oferece um critério. Temos uma percepção clara e distinta de algo se, quando o consideramos, não podemos duvidar (7:145). Isto é, diante de uma percepção clara e distinta genuína, nossa afirmação é tão firme que não pode ser abalada, mesmo por um esforço concertado para colocar em dúvida as coisas assim afirmadas.

Como mencionado em 3.1, Descartes acreditava que qualquer ato de julgamento, como a afirmação “eu penso, portanto, eu existo”, envolve tanto o intelecto quanto a vontade. O intelecto percebe ou representa o conteúdo do julgamento; a vontade afirma ou nega esse conteúdo. Diante da clareza genuína e da distinção, “uma grande luz no intelecto” é seguida por “uma grande inclinação da vontade” (7:59). A inclinação da vontade é tão forte que equivale a compulsão; não podemos deixar de afirmar isso. Descartes, portanto, faz da convicção inabalável o critério. Não pode alguém ser inabalável em sua convicção apenas porque é teimoso? Certamente que sim. Todavia, Descartes está falando de uma convicção que permanece inabalável diante de desafios sérios e bem pensados (7:22). Ser imune à dúvida não significa simplesmente que você não duvida de uma proposição, ou mesmo que resiste a uma tentativa momentânea de duvidar; o verdadeiro critério para a verdade é o de que o conteúdo de uma proposição seja tão claramente percebido que a vontade seja atraída a ela de tal forma que a afirmação da vontade não pode ser abalada mesmo pelas dúvidas sistemáticas e sustentadas das Meditações. Talvez porque o processo para alcançar o conhecimento de verdades fundamentais requer uma dúvida sistemática e sustentada, Descartes indica que tal dúvida deve ser empreendida apenas uma vez no curso de uma vida (7:18; 3:695).

Mesmo assim, os problemas permanecem. Tendo em conta a clareza e a distinção como critério de verdade no início da Terceira Meditação, Descartes imediatamente coloca isso em dúvida. Ele reintroduz um elemento da dúvida radical da Primeira Meditação: de que um Deus poderoso poderia tê-lo criado com “uma natureza tal que eu fui enganado mesmo em assuntos que pareciam os mais evidentes” (7:36). Descartes, portanto, lança uma investigação sobre “se existe um Deus, e, se existe, se ele pode ser um enganador” (7:36).

No decorrer da Terceira Meditação, Descartes constrói um argumento para a existência de Deus que parte do fato de que ele tem uma idéia de um ser infinito. O argumento é intrincado. Ele invoca o princípio metafísico de que “deve haver pelo menos tanta realidade na causa eficiente e total quanto no efeito dessa causa” (7:40). Esse princípio é apresentado como algo “que se manifesta por meio da luz natural” (7:40), o qual é descrito como um poder cognitivo cujos resultados são indubitáveis (7:38), como percepção clara e distinta (7:144). Descartes aplica então esse princípio não à mera existência da idéia de Deus como um estado de espírito, mas ao conteúdo dessa idéia. Descartes caracteriza esse conteúdo como infinito, e argumenta então que um conteúdo que representa o infinito requer um ser infinito como sua causa. Ele conclui, portanto, que um ser infinito, ou Deus, deve existir. Ele então equaciona um ser infinito com um ser perfeito e pergunta se um ser perfeito poderia ser um enganador. Ele conclui: “Está suficientemente claro que ele não pode ser um enganador, pois é evidente pela luz natural que toda fraude e engano dependem de algum defeito” (7:52).

O segundo e quarto conjuntos de objeções chamaram a atenção para uma característica problemática desse argumento. Nas palavras de Arnauld:

Tenho uma outra preocupação, a de como o autor evita o raciocínio em círculo quando diz que temos certeza de que o que percebemos clara e distintamente é verdade apenas porque Deus existe. Porém, podemos ter certeza de que Deus só existe porque percebemos isso de maneira clara e distinta. Portanto, antes de termos certeza de que Deus existe, devemos ser capazes de ter certeza de que o que percebemos clara e evidentemente é verdade (7:214).

Arnauld levanta aqui o conhecido problema do círculo cartesiano, que tem sido muito discutido pelos comentaristas nos últimos anos.

Em resposta a Arnauld, Descartes afirma que ele evitou esse problema ao distinguir entre as percepções presentes claras e distintas e aquelas que são meramente lembradas (7:246). Ele não está aqui desafiando a confiabilidade da memória (Frankfurt 1962). Ao contrário, sua estratégia é sugerir que a hipótese de um Deus enganador só pode se apresentar quando não estamos percebendo clara e distintamente o infinito e a perfeição de Deus, porque quando estamos fazendo isso não podemos deixar de acreditar que Deus não é um enganador. É como se essa percepção muito evidente fosse então equilibrada com a opinião incerta de que Deus pode ser um enganador (7:144). A percepção evidente vence e a dúvida é eliminada.

Descartes responde explicitamente à acusação de circularidade da maneira que acabamos de descrever. Ao longo dos anos, os estudiosos têm debatido se tal resposta é adequada. Alguns estudiosos construíram outras respostas em nome de Descartes ou encontraram tais respostas embutidas em seu texto em vários locais. Um tipo de resposta apela para uma distinção entre a luz natural e uma percepção clara e distinta, e procura justificar a luz natural sem apelar para Deus (Jacquette 1996). Outra resposta sugere que, no final, Descartes não visava a metafísica da certeza em relação a um mundo independente da mente, mas estava apenas buscando um conjunto de crenças internamente coerente (Frankfurt 1965). Uma resposta relacionada sugere que Descartes estava atrás de mera certeza psicológica (Loeb 1992). O leitor interessado pode acompanhar essa questão voltando-se para a literatura aqui citada (assim como para Carriero 2008, Doney 1987, e Hatfield 2006).

Partindo de sua afirmação de que percepções claras e distintas são verdadeiras, Descartes procura estabelecer vários resultados a respeito da natureza da realidade, incluindo a existência de um Deus perfeito, bem como a natureza da mente e da matéria (à qual nos voltaremos na subseção seguinte). Aqui devemos perguntar: como é que a mente humana pode perceber a natureza da realidade? Descartes tem uma resposta específica a essa questão: a mente humana vem suprida de idéias inatas que lhe permitem perceber as principais propriedades de Deus (infinito e perfeição), a essência da matéria, e a essência da mente. Para os leitores da época de Descartes, essa afirmação naturalmente levantaria uma outra questão: assumindo que essas idéias inatas dizem respeito a “verdades eternas” sobre Deus, a matéria e a mente, será que essas verdades se sustentam independentemente de Deus, ou elas refletem, em vez disso, o conteúdo do próprio intelecto de Deus?

Descartes rejeitou ambas as alternativas. Ele negou, junto com muitos de seus contemporâneos, que existem verdades eternas independentes da existência de Deus. No entanto, ele também negou que as verdades eternas estejam fixadas no intelecto de Deus. Alguns filósofos neoplatônicos sustentavam que as verdades eternas na mente humana são cópias, ou ectipos, dos arquétipos na mente de Deus. Alguns filósofos aristotélicos pouco antes de Descartes, incluindo Francisco Suárez (1548-1617), afirmavam que as verdades eternas refletem a própria compreensão de Deus sobre seu poder criativo; o poder de Deus implica que, se Ele cria um coelho, este deve ser um animal. Verdades eternas estão latentes no poder criador de Deus, e Ele entende isso, de modo que se os seres humanos entendem as verdades eternas como eternas, o fazem também através da compreensão do poder criador de Deus (Hatfield 1993).

Descartes tinha um relato diferente. Ele defendia que as verdades eternas são as criações livres de Deus (1:145, 149, 151; 7:380, 432), originárias dele de uma maneira que não faz distinção entre seu poder, vontade e intelecto. Deus decide qual é a essência de um círculo, ou faz com que 2 + 3 = 5. Ele poderia ter criado outras essências, embora sejamos incapazes de conceber o que elas poderiam ter sido. Nossa capacidade conceitual é limitada às idéias inatas que Deus implantou em nós, e elas refletem as verdades reais que Ele criou. Deus cria as verdades eternas (relativas à lógica, à matemática, à natureza do bem, às essências da mente e da matéria), e cria a mente humana e a provê com idéias inatas que correspondem a essas verdades. No entanto, mesmo nesse esquema, devem permanecer algumas verdades eternas que não são criadas por Deus: aquelas que pertencem à essência do próprio Deus, incluindo sua existência e perfeição (ver Wells 1982).

3.3 A natureza da realidade

Descartes revela sua ontologia de maneira implícita nas Meditações, mais formalmente nas Respostas, e de maneira mais formal nos Princípios. Seus principais resultados metafísicos, que descrevem a natureza da realidade, afirmam a existência de três substâncias, cada uma caracterizada por uma essência. A primeira e principal substância é Deus, cuja essência é a perfeição. Na verdade, Deus é a única substância verdadeira, ou seja, o único ser capaz de existir por si só. As outras duas substâncias, mente e matéria, são criadas por Deus e só podem existir através de seu ato contínuo de preservação ou conservação, chamado de “concordância” de Deus (Princ. I.51).

Os argumentos de Descartes para estabelecer as essências dessas substâncias apelam diretamente para sua percepção clara e distinta dessas essências. A essência da matéria é extensão em comprimento, largura e profundidade. Poder-se-ia falar aqui em “extensão espacial”, mas com esta ressalva: a de que Descartes negou a existência de espaço separado da matéria. A matéria cartesiana não preenche um recipiente espacial distinto; ao contrário, a extensão espacial é constituída por matéria estendida (não há espaço vazio, ou não preenchido). Tal substância estendida possui os “modos” adicionais de tamanho, forma, posição e movimento. Os modos são propriedades que existem apenas como modificações do essencial (principal) e dos atributos gerais de uma substância. Além de sua essência, extensão, a matéria também possui os atributos gerais de existência e duração. As partes individuais da matéria têm durações como modos particulares. Todos os modos da matéria, incluindo tamanho, forma, posição e movimento, podem existir apenas como modificações da substância estendida.

A essência da mente é pensamento. Além de existência e duração, as mentes têm os dois principais poderes ou faculdades anteriormente mencionados: intelecto e vontade. O poder intelectual (ou perceptivo) é ainda dividido nos modos de intelecto puro, imaginação e percepção sensorial. O intelecto puro opera independentemente do cérebro ou do corpo; a imaginação e a percepção dos sentidos dependem do corpo para sua operação (assim como a memória corpórea). A vontade também é dividida em vários modos, incluindo desejo, aversão, asserção, negação e dúvida. Estes sempre requerem algum conteúdo intelectual (seja puro, imaginário ou sensorial) sobre o qual se possa operar. Talvez por essa razão Descartes descreve a mente como uma “substância intelectual” (7:78; também, 7:12). Parece que ele defendia que a mente tem essencialmente uma vontade, mas que o poder intelectual (ou perceptivo, ou representativo) é mais básico, porque a vontade depende dela em sua operação.

Que papel desempenha a consciência na teoria da mente de Descartes? Muitos estudiosos acreditam que, para Descartes, a consciência é a propriedade determinante da mente (por exemplo, Rozemond 2006). Há algum apoio para essa posição nas Segundas Respostas. Ali Descartes define a mente como “a substância na qual o pensamento reside imediatamente” (7:161). Ele diz do termo “pensamento” que ele se estende a “tudo que está dentro de nós de tal maneira que estamos imediatamente conscientes disso” (7:160*). Se a mente é substância pensante e os pensamentos são essencialmente consciência, talvez a consciência seja a essência do pensamento?

Descartes de fato afirmava que todos os pensamentos são, de alguma forma, conscientes (7:226). Ele não quis dizer com isso que temos consciência reflexiva e que podemos nos lembrar de cada pensamento que temos (5:220). Na Segunda Meditação, ele se descreve a si mesmo como uma coisa pensante enumerando todos os modos de pensamentos dos quais ele é consciente: compreensão (ou intelectualidade), vontade, imaginação, e (neste ponto, pelo menos aparentemente) percepções sensoriais (7:28). Assim, ele estabelece a consciência como uma marca do pensamento. Porém, será ela a essência? Há outra possibilidade. Se a percepção (intelecção, representação) é a essência do pensamento, então todos os pensamentos podem ser conscientes de uma maneira básica, porque a característica da substância intelectual é representar, e qualquer representação presente em uma substância intelectual é, portanto, consciente. Da mesma maneira, qualquer ato de vontade presente em uma substância intelectual também está disponível para a consciência, porque é da essência de tal substância a percepção de seus próprios estados (11:343). Assim, a percepção ou representação é a essência da mente, e a consciência segue como resultado do fato de a mente ser uma substância representativa.

Mesmo assim, ao distinguir entre pensamentos dotados de consciência e pensamentos dos quais temos consciência reflexiva, Descartes abriu um espaço para pensamentos conscientes que não percebemos ou não lembramos. Tal como em sua teoria dos sentidos (Sec. 5), ele admite sensações despercebidas e operações mentais desapercebidas sobre elas.

3.4 Relação mente-corpo

No Discurso, Descartes apresentou o seguinte argumento para estabelecer que mente e corpo são substâncias distintas:

Em seguida, examinei atentamente o que eu era. Vi que enquanto eu podia fingir que não tinha corpo e que não havia mundo nem lugar para eu estar, não podia fingir que não existia. Vi, ao contrário, que pelo simples fato de pensar em duvidar da verdade de outras coisas, seguiu-se muito claramente e certamente que eu existia; enquanto que se eu tivesse simplesmente deixado de pensar, mesmo que tudo o mais que eu tivesse imaginado tivesse sido verdade, eu não deveria ter tido nenhuma razão para acreditar que eu existia. A partir disso, eu sabia que eu era uma substância cuja essência ou natureza é simplesmente pensar, e que não requer nenhum lugar, ou depende de qualquer coisa material, para existir. (6:32–3)

Esse argumento vai do fato de que ele pode duvidar da existência do mundo material, mas não pode duvidar da existência de si mesmo como coisa pensante, à conclusão de que seus pensamentos pertencem a uma substância não-espacial que é distinta da matéria.

O argumento é falacioso. Baseia-se em uma concepção baseada na ignorância. Descartes não incluiu nada no argumento para afastar a possibilidade de que ele, como coisa pensante, seja de fato um sistema material complexo. Ele apenas confiou no fato de que pode duvidar da existência da matéria para concluir que a matéria é distinta da mente. Tal argumento é claramente inconclusivo. Do fato de que o Coringa não pode, em certo momento, duvidar da existência do Batman (porque estava com ele), mas pode duvidar da existência de Bruce Wayne (que poderia, pelo que o Coringa sabe, ter sido morto pelos capangas do Coringa), não se segue que Bruce Wayne não seja o Batman. Na verdade, ele é o Batman. O Coringa é meramente ignorante desse fato.

Nas Meditações, Descartes mudou a estrutura do argumento. Na Segunda Meditação, ele estabeleceu que não podia duvidar da existência de si mesmo como uma coisa de pensamento, mas que podia duvidar da existência da matéria. Entretanto, ele recusou-se explicitamente a usar tal situação para concluir que sua mente era distinta do corpo, com o argumento de que ele ainda ignorava sua natureza (7:27). Então, na Sexta Meditação, tendo estabelecido, para sua satisfação, o sinal da verdade, ele usou esse sinal para enquadrar um argumento positivo no sentido de que a essência da mente é pensamento e que uma coisa que pensa não é estendida; e que a essência da matéria é extensão e que coisas estendidas não podem pensar (7:78). Ele baseou esse argumento em percepções intelectuais claras e distintas das essências da mente e da matéria, não no fato de que ele poderia duvidar da existência de uma ou de outra.

Tal conclusão na Sexta Meditação afirma o conhecido dualismo da substância de Descartes. Esse dualismo leva a problemas. Tal como a princesa Elisabeth, entre outros, perguntou: se a mente não se estende e a matéria se estende, como eles interagem? Esse problema não só irritou Descartes, que admitiu a Elisabeth que não tinha uma boa resposta (3:694), mas também irritou os seguidores de Descartes e outros metafísicos. Parece que, de algum modo, os estados da mente e do corpo devem ser colocados em relação, porque quando decidimos pegar um lápis nosso braço realmente se move, e quando a luz bate em nossos olhos, experimentamos o mundo visível. Mas como a mente e o corpo interagem? Alguns seguidores de Descartes adotaram uma posição ocasionalista, segundo a qual Deus medeia as relações causais entre mente e corpo; a mente não afeta o corpo, e o corpo não afeta a mente, mas Deus dá à mente sensações apropriadas no momento certo, e Ele faz o corpo se mover colocando-o nos estados cerebrais corretos em um momento que corresponde à vontade de pegar o lápis. Outros filósofos adotaram ainda outras soluções, incluindo o monismo de Espinosa e a harmonia pré-estabelecida de Leibniz.

Nas Meditações e nos Princípios, Descartes não se concentrou na questão metafísica de como a mente e o corpo interagem. Ao contrário, ele discutiu o papel funcional da união da mente e do corpo na economia da vida. Acontece que nossas sensações nos servem bem para evitar danos e buscar benefícios. As sensações de dor nos advertem sobre os danos corporais. O prazer nos leva a abordar coisas que (geralmente) são boas para nós. Nossas percepções sensoriais são suficientemente confiáveis para que possamos distinguir objetos que precisam ser distinguidos, e podemos navegar à medida que nos movimentamos. Tal como Descartes via, “Deus ou natureza” estabeleceu essas relações em nosso benefício. Elas não são perfeitas. Às vezes nossos sentidos apresentam as coisas de maneira diferente do que são, e às vezes fazemos julgamentos sobre coisas sensoriais que se estendem para além do uso apropriado dos sentidos.

3.5 Deus e erro

Ao discutir o sinal da verdade, Descartes sugeriu que o intelecto humano é geralmente confiável porque foi criado por Deus. Ao discutir o funcionamento dos sentidos para preservar ou manter o corpo, ele explicou que Deus arranjou as regras da interação mente-corpo de tal maneira que produz sensações que geralmente são propícias ao bem do corpo. No entanto, em cada caso, ocorrem erros. Em várias circunstâncias, nossos julgamentos podem ser falsos (muitas vezes, sobre coisas sensoriais), assim como, mais amplamente, os seres humanos fazem más escolhas morais, ainda que Deus lhes tenha dado uma vontade que é intrinsecamente atraída pelo bem (1:366, 5:159, Princ. I.42). Ademais, nossas percepções sensoriais podem representar as coisas como sendo de certa maneira, quando não o são. Às vezes sentimos dor porque um nervo foi danificado em algum lugar ao longo de seu comprimento e, no entanto, não há danos nos tecidos no local em que a dor é sentida. Os amputados podem sentir dor em seus dedos quando não têm dedos (Princ. IV.196).

Descartes respondeu a esses problemas de maneira diferente. Ele explicou os erros cognitivos e morais como resultantes da liberdade humana. Deus fornece aos seres humanos uma vontade e as vontades são intrinsecamente livres. Assim, não há diferença no grau de liberdade entre Deus e o homem. Todavia, os seres humanos têm intelectos finitos. E porque são livres, podem escolher julgar em situações cognitivas ou morais para as quais não têm percepções claras e distintas da verdade ou do bem. Se os seres humanos restringissem seus atos de vontade a casos de percepção clara e distinta, eles nunca errariam. Mas as vicissitudes da vida podem exigir julgamentos em circunstâncias menos que ideais, ou podemos decidir julgar mesmo que nos falte uma percepção clara. Em ambos os casos, podemos errar.

As questões são diferentes para os erros de representação sensorial. Os sentidos dependem dos meios de comunicação e dos órgãos sensoriais e dos nervos que devem correr do exterior do corpo para o cérebro. Deus estabelece a relação mente-corpo para que nossas sensações sejam bons guias para a maioria das circunstâncias. Porém, os meios de comunicação podem ser pobres (a luz pode não ser boa), as circunstâncias podem ser incomuns (como com o bastão parcialmente submerso que aparece como se estivesse dobrado), ou os nervos podem ser danificados (como com o amputado). Nesses casos, os relatos dos sentidos são sub-ótimos. Como Deus criou o sistema de união mente-corpo, Deus não deveria ser responsabilizado pelo fato de que os sentidos podem deturpar o modo como as coisas são? Aqui Descartes não apela para nossa liberdade de não atender aos sentidos, pois na verdade, muitas vezes devemos usar os sentidos em circunstâncias cognitivas sub-ótimas quando navegamos pela vida. Ao contrário, ele aponta que Deus estava trabalhando com os mecanismos finitos do corpo humano (7:88), e sugere que Deus fez o melhor que podia ser feito dado o tipo de peças necessárias para constituir tal máquina (peças estendidas que poderiam quebrar ou ser perturbadas de maneira incomum).

Na verdade, a distinção entre esses dois tipos de erro, erro cognitivo e deturpação sensorial, não é completamente clara em Descartes. No caso do amputado, a dor parece estar em dedos que não estão lá. Esse parece ser um caso claro de deturpação sensorial: o conteúdo representativo (que os dedos estão danificados) não coincide com o mundo. Da mesma maneira ocorre com o bastão parcialmente submerso. Ele pode parecer dobrado. Nesses casos, mesmo que utilizemos nossos intelectos para interpretar as ilusões ou deturpações sensoriais de modo a evitar erros por meio da retenção de julgamento ou mesmo julgando corretamente (7:438), há um claro sentido no qual a deturpação sensorial ocorreu.

Em outros casos, porém, Descartes descreve os sentidos como fornecendo material para o erro, mas permanece incerto se ele assimila tal erro ao que foi rotulado como erro cognitivo ou à deturpação sensorial. Na Terceira Meditação, ele descreve as sensações de cor e outras sensações das chamadas “qualidades secundárias” como “materialmente falsas”. Os estudiosos acharam difícil interpretar a noção de falsidade material, em parte porque a discussão de Descartes sobre ela na Terceira Meditação parece oferecer duas possibilidades, e em parte porque sua longa discussão sobre o assunto na Quarta Resposta, em resposta às objeções de Arnauld, é intrincada e aparentemente contraditória.

Na Terceira Meditação, Descartes define inicialmente a falsidade material como algo que “ocorre nas idéias, quando elas representam não-coisas como coisas” (7:43). Ele oferece como exemplo a idéia do frio: nossos sentidos representam o frio como uma qualidade positiva dos objetos, mas Descartes considera a possibilidade de que o frio em si seja apenas a ausência de calor, e assim ele não é uma qualidade propriamente dita. Portanto, esse caso deve ser assimilado à deturpação sensorial: a representação das coisas como elas não são (representando o frio como uma qualidade quando ele é a ausência de uma qualidade). A falsidade material seria uma questão de deturpação.

Todavia, Descartes também oferece uma outra interpretação sobre a obscuridade das idéias sensoriais. Ele permite que tais idéias possam ser “verdadeiras” no sentido de representar algo positivo nas coisas, mas que elas possam fazê-lo de tal modo que “a realidade que elas representam é de tal maneira leve que eu não consigo nem mesmo distingui-la de uma não-coisa” (7:44). Assim, as idéias sensoriais não são deturpadas, são simplesmente tão obscuras e confusas que não podemos dizer qual pode ser seu conteúdo representativo considerando seu caráter experiente, como o caráter fenomenal do frio ou da cor. (Metafísica e filosofia natural são necessárias para nos dizer o que nossas sensações de cor representam obscuramente: propriedades das superfícies de objetos que refletem a luz de uma certa maneira — veja a Seção 5.) Neste caso, “falsidade material” não equivaleria a uma deturpação, mas a uma representação tão obscura que deixa espaço para julgamentos equivocados, tais como a chamada “tese da semelhança”, segundo a qual as qualidades nos objetos se assemelham às nossas sensações sobre eles. Com base nessa interpretação, Descartes está dizendo que a tese de semelhança surge não porque as idéias sensoriais de frio ou de cor deturpam essas qualidades nos objetos, mas porque cometemos um erro cognitivo, decorrente dos preconceitos da infância (tal como mencionado na seção 3.1 e discutido mais detalhadamente em Princ. I.66-72), quando afirmamos a tese de semelhança.

As questões em torno da noção de falsidade material em Descartes são intrincadas e vão até o cerne de sua teoria da mente e da representação sensorial. O leitor interessado pode ter acesso à literatura através de Wee (2006) e Hatfield (2013).

4. A Nova Ciência

Quando Descartes esteve em La Flèche, já havia sinais de que a concepção do universo estava mudando. Lembre-se de que a descoberta de quatro luas do planeta Júpiter por Galileu foi celebrada na La Flèche em 1610. De modo mais geral, Copérnico tinha, no século anterior, oferecido um forte argumento para se acreditar que o sol, não a terra, está no centro do sistema solar. No início do século XVII, Johannes Kepler anunciou novos resultados na óptica, no que diz respeito à formação das imagens, à teoria das lentes e ao fato de que a imagem da retina tem um papel central na visão. No início dos anos 1630, Descartes estava ciente (1:263) da afirmação de William Harvey de que o sangue circula no corpo.

O próprio Descartes contribuiu com alguns novos resultados específicos para a descrição matemática da natureza, como co-descobridor da lei senoidal da refração e como desenvolvedor de um modelo preciso a respeito do arco-íris. No entanto, por mais significativos que esses resultados sejam, sua principal contribuição para a “nova ciência” foi a forma como ele descreveu uma visão geral de uma abordagem mecanicista da natureza e esboçou em detalhes essa visão para fornecer uma alternativa abrangente para a física aristotélica dominante.

Nos livros didáticos da física aristotélica da época de Descartes, era comum dividir a física em “geral” e “especial”. A física geral se baseava nos princípios básicos aristotélicos de análise de substâncias naturais: forma, matéria, privação, causa, lugar, tempo, movimento. A física especial dizia respeito a entidades naturais atualmente existentes, divididas em inanimadas e animadas. A física inanimada subdividia-se ainda mais em celeste e terrestre, de acordo com a crença aristotélica de que a Terra estava no centro do universo, e de que a Terra era de natureza diferente dos céus (incluindo a Lua, e tudo que estava para além dela). A física terrestre inanimada abrangia primeiro os quatro elementos (terra, ar, fogo e água), depois os corpos “mistos” compostos a partir deles, incluindo os vários tipos de minerais. A física terrestre animada dizia respeito aos vários poderes que os aristotélicos atribuíam aos seres que possuem alma, onde a alma é considerada como um princípio de vida (possuindo tanto poderes vitais quanto mentais ou cognitivos). Nos livros mais simples, os poderes da alma foram divididos em três grupos: vegetativo (incluindo nutrição, crescimento e reprodução), que pertenciam tanto às plantas quanto aos animais; sensível (incluindo sentidos externos, sentidos internos, apetite e movimento), que pertenciam somente aos animais; e racional, que pertencia somente aos seres humanos. Todos os corpos, tanto na física inanimada quanto na física terrestre animada, eram governados por uma “forma” ou princípio ativo, tal como descrito na seção 1.3.

A ambição de Descartes era fornecer substitutos para todas as partes principais da física aristotélica. Em sua física, há apenas uma matéria e ela não tem formas ativas. Assim, ele dissolveu o limite que tinha feito o celeste e o terrestre diferirem em espécie. Sua matéria única tinha apenas as propriedades de tamanho, forma, posição e movimento. A matéria é infinitamente divisível e constitui espaço; não há nenhum vazio, portanto nenhum recipiente espacial distinto da matéria. Os movimentos da matéria são governados por três leis do movimento, incluindo um precursor da lei da inércia de Newton (mas sem a noção de forças vetoriais) e uma lei do impacto. A matéria de Descartes não possuía nenhuma “força” ou agência ativa; as leis do movimento foram decretadas por Deus e foram sustentadas por sua atividade. Terra, ar, fogo e água eram simplesmente quatro entre muitos tipos naturais, todos distinguidos simplesmente pelos tamanhos, formas, posições e movimentos característicos de suas partes.

Embora Descartes subscrevesse nominalmente a história bíblica da criação, em sua filosofia natural ele apresentou a hipótese de que o universo começou como uma sopa caótica de partículas em movimento e que tudo mais foi formado posteriormente como resultado de padrões que se desenvolveram dentro dessa matéria em movimento. Assim, ele concebeu que muitos sóis se formaram, em torno dos quais os planetas se uniram. Nesses planetas, formaram-se montanhas e mares, assim como metais, magnetos e fenômenos atmosféricos como nuvens e chuva. Os próprios planetas são transportados ao redor do sol em suas órbitas por um meio fluido que gira como um redemoinho ou vórtice. Os objetos caem à terra não por causa de qualquer “forma” intrínseca que os direciona para o centro do universo, e também não por causa de uma força de atração ou outra força descendente. Ao invés disso, eles são impulsionados para baixo pelas partículas giratórias do éter circundante. Descartes insistiu que todos os casos de ação aparente à distância, incluindo o magnetismo, devem ser explicados através do contato de partícula sobre partícula. Ele explicou o magnetismo como resultado das partículas em forma de saca-rolhas que brotam dos pólos da terra e fluem de norte para sul ou vice-versa, fazendo com que as agulhas magnetizadas se alinhem com seu fluxo (Princ. IV.133-83). Para explicar a polaridade magnética, Descartes postulou que as partículas que saem do pólo sul são rosqueadas em uma direção e as do norte são rosqueadas em sentido oposto (como os eixos rosqueados opostos nos pedais das bicicletas).

Descartes também queria fornecer um relato sobre a formação de plantas e animais por causas mecânicas, mas ele não conseguiu, durante sua vida útil, enquadrar um relato que estivesse disposto a publicar (de modo que apenas partes de sua fisiologia foram reveladas no Discurso, Dióptrica, Meditações, Princípios e Paixões). Em escritos que foram publicados apenas postumamente (mas que foram lidos por amigos e seguidores durante sua vida, por exemplo, 5:112), ele desenvolveu uma extensa descrição fisiológica dos corpos animais, na qual ele explicou as funções da vida de uma maneira puramente mecânica, sem apelo a uma alma ou princípio vital.

Ao mecanizar o conceito de ser vivo, Descartes não negou a distinção entre viver e não viver, mas redesenhou a linha entre seres com alma e sem. Em sua opinião, entre os seres terrestres, somente os humanos têm alma. Ele assim equiparou alma com mente: as almas são responsáveis pela intelectualidade e pela volição, incluindo experiências sensoriais conscientes, experiências conscientes de imagens e memórias vividas conscientemente. Descartes considerava os animais não humanos como máquinas, desprovidos de mente e consciência, e, portanto, sem sentimento. (Embora os seguidores de Descartes o entendessem como tendo negado todo sentimento aos animais, alguns estudiosos recentes questionam essa interpretação; sobre essa controvérsia, ver Cottingham 1998 e Hatfield 2008). Consequentemente, Descartes foi obrigado a explicar todos os poderes que os aristotélicos tinham atribuído à alma vegetativa e sensível por meio de processos puramente materiais e mecanicistas (11:202). Tais explicações mecanicistas se estenderam, então, não apenas à nutrição, crescimento e reprodução, mas também às funções dos sentidos externos e internos, incluindo a capacidade dos animais não humanos de responder através de seus órgãos sensoriais de uma maneira situacionalmente apropriada: para abordar coisas que são benéficas para seu corpo (incluindo alimento) e para evitar o perigo (como a ovelha evita o lobo).

No Tratado sobre o Homem e as Paixões, Descartes descreveu processos puramente mecânicos dos órgãos sensíveis, cérebro e músculos, que deveriam explicar as funções da alma sensível. Esses processos envolviam “espíritos animais”, ou matéria sutil, tal como destilada do sangue na base do cérebro e distribuída pelos nervos para causar movimentos musculares de acordo com as estruturas cerebrais e a estimulação sensorial corrente. As estruturas cerebrais que medeiam o comportamento podem ser inatas ou adquiridas. Descartes atribuiu algumas coisas que os animais fazem ao instinto; outros aspectos de seu comportamento ele explicou através de uma espécie de memória associativa mecanicista. Ele defendia que a fisiologia humana é semelhante à fisiologia animal não humana, tanto no que diz respeito às funções vegetativas quanto (algumas) sensíveis — essas funções sensíveis que não envolvem consciência ou inteligência:

Ora, um número muito grande dos movimentos que ocorrem dentro de nós não depende de modo algum da mente. Isso inclui batimento cardíaco, digestão, nutrição, respiração quando estamos dormindo, e também ações acordadas como caminhar, cantar e similares, quando elas ocorrem sem que a mente atenda a elas. Quando as pessoas tomam uma queda e estendem suas mãos para proteger a cabeça, não é a razão que as instrui a fazer isso; acontece simplesmente que a visão da queda iminente atinge o cérebro e envia os espíritos animais para os nervos da maneira necessária para produzir esse movimento, mesmo sem qualquer vontade mental, da mesma maneira que seria produzido em uma máquina (7:229–30). 

Muitos dos comportamentos dos seres humanos são na verdade realizados sem a intervenção da mente.

O fato de Descartes ter oferecido explicações mecanicistas para muitas características da natureza não significa que suas explicações tenham sido bem sucedidas. De fato, seus seguidores e detratores debateram o sucesso de suas várias propostas durante quase um século após sua morte. Seus relatos sobre magnetismo e gravidade foram desafiados. Leibniz desafiou a coerência das leis do movimento e do impacto de Descartes. Newton ofereceu suas próprias leis do movimento e uma lei de atração gravitacional. Seu relato dos movimentos planetários orbitais substituiu os vórtices de Descartes. Outros lutaram para que a fisiologia de Descartes funcionasse. Havia também desafios mais profundos. Alguns se perguntavam se Descartes poderia realmente explicar como sua matéria infinitamente divisível poderia se coalescer em corpos sólidos. Por que as coleções de partículas não deveriam agir como focos de fumaça, que se separam ao contato com partículas grandes? De fato, como as próprias partículas permanecem coesas?

Tais problemas eram reais, e a física de Descartes foi abandonada no decorrer do século XVIII. No entanto, ela proporcionou uma concepção voltada para uma substituição abrangente da física aristotélica que persistiu com a visão newtoniana de uma física unificada dos reinos celeste e terrestre, e que continuou na visão mecanicista da vida que foi reavivada na segunda metade do século XIX.

5. Teoria da Percepção Sensorial

Como a nova “filosofia mecânica” de Descartes e outros substituiu a física aristotélica, a teoria das qualidades sensoriais teve que passar por uma mudança substancial. Isso foi especialmente verdadeiro para o que ficou conhecido como as qualidades secundárias (na terminologia de Robert Boyle e John Locke). As qualidades secundárias incluem cores, sons, odores, gostos e qualidades táteis, como o calor e o frio. Os aristotélicos sustentam que essas qualidades existem em objetos como “qualidades reais” que são como instâncias ou amostras da qualidade conforme experienciada. Uma coisa vermelha possui a qualidade vermelha da mesma maneira que possui um formato: é simplesmente vermelha, e nós experimentamos essa mesma vermelhidão quando vemos um objeto vermelho (a “tese de semelhança”, conforme mencionado na seção 3.5).

Descartes procurou substituir “qualidades reais” por um relato mecanicista das qualidades nos objetos. Ele apresentou a luz como uma propriedade das partículas e seus movimentos: ela é uma “tendência a mover” tal como encontrada em um meio contínuo e irradiando a partir de um corpo luminoso. Quando a luz atinge um objeto, as partículas que constituem a luz alteram sua rotação em torno de seu eixo. A “rotação” é o que faz com que a luz tenha uma cor em vez de outra. Quando partículas com um ou outro grau de rotação interagem com os nervos da retina, elas fazem com que esses nervos se abanem de certa maneira. Esses abanões são transmitidos ao cérebro onde afetam os espíritos animais, que por sua vez afetam a mente, fazendo com que a mente experimente uma ou outra cor, dependendo do grau de giro e de como ele afeta o cérebro. A cor nos objetos é, portanto, aquela propriedade de sua superfície que faz com que partículas de luz girem de uma maneira ou de outra, e, portanto, causem uma sensação ou outra. Não há nada mais na superfície de um objeto, no que diz respeito à cor, do que um determinado formato de superfície que induz vários giros em partículas de luz.

Descartes introduziu essa nova teoria das qualidades sensoriais nos seis primeiros capítulos do Mundo. Lá, ele a defendeu argumentando que sua explicação das qualidades dos corpos em termos de tamanho, forma e movimento são claramente compreendidas por comparação com as qualidades aristotélicas (11:33). Posteriormente, nas Meditações e nos Princípios, ele defendeu tal relato apelando para o resultado metafísico de que o corpo possui apenas modos geométricos de extensão. As qualidades reais são descartadas porque não são elas mesmas instâncias de tamanho, forma ou movimento (mesmo que manchas de cor tenham um tamanho e um formato, e possam ser movimentadas).

Além de uma nova teoria das qualidades sensoriais, Descartes ofereceu teorias sobre a maneira pela qual as propriedades espaciais — tamanho, forma, distância e posição — são percebidas na visão. Na época de Descartes e antes, “óptica” foi definida como a teoria da visão, incluindo aspectos físicos, fisiológicos e psicológicos. Essa era uma área de investigação desde a antiguidade. Euclides e Ptolomeu tinham cada um escrito sobre problemas ópticos. Durante a Idade Média, o filósofo natural árabe Ibn al-Haytham produziu um novo e importante trabalho teórico no qual ele ofereceu um amplo relato sobre a percepção das propriedades espaciais.

O terreno teórico em óptica mudou com a doutrina de Kepler de que a visão é mediada pela imagem da retina e de que a retina é o corpo sensível no olho. Os teóricos anteriores geralmente acreditavam que o “humor cristalino”, agora conhecido como a lente, era o corpo sensível. Descartes aceitou o resultado de Kepler e emoldurou uma nova teoria da percepção espacial. Algumas de suas teorizações simplesmente adaptaram as teorias de Ibn al-Haytham à imagem da retina recentemente descoberta. Assim, Ibn al-Haytham defendia que o tamanho é percebido através da combinação do ângulo visual que um corpo subtende com a percepção de sua distância, para chegar a uma percepção do verdadeiro tamanho do objeto. (O ângulo visual é formado pelas direções de um ponto de vista a um objeto visto para uma determinada fixação, por exemplo, o ângulo formado pela direção para os pés e para o nariz de uma pessoa em pé a uma distância moderada até nós, com os olhos fixados no momento). No esquema de al-Haytham, o ângulo visual é registrado na superfície do humor cristalino. Descartes defendia que o tamanho é percebido através da combinação do ângulo visual com a distância percebida, mas agora ele tratava o ângulo visual como a extensão da projeção de um objeto sobre a retina.

No relato de Ibn al-Haytham, se o tamanho de um objeto é conhecido, a distância pode ser percebida através de uma inferência; para um determinado tamanho, a distância de um objeto é inversamente proporcional a seu ângulo visual. Descartes reconheceu esse relato tradicional, que depende da experiência passada com o tamanho de um objeto e de uma inferência ou julgamento rápido que combina o ângulo visual percebido com o tamanho conhecido ou lembrado. Descartes afirmou que esses julgamentos rápidos são habituais e acontecem tão rapidamente que passam despercebidos. Além disso, as sensações que apresentam os objetos de acordo com o ângulo visual também passam despercebidas, pois são rapidamente substituídas por experiências visuais de objetos à distância.

Ibn al-Haytham também explicou que a distância pode ser percebida por um observador que é sensível ao número de porções iguais de espaço terrestre que se encontram entre o observador e um objeto distante. Descartes não adotou essa explicação. Entretanto, Descartes usou sua fisiologia mecanicista para enquadrar um novo relato de como a distância pode ser percebida, uma teoria diferente de qualquer outra que poderia ter sido encontrada em Ibn al-Haytham.

Na nova teoria de Kepler de como o olho funciona, uma imagem é formada na retina como resultado da refração pela córnea e pela lente. Para objetos a diferentes distâncias, as propriedades focais do sistema devem ser alteradas, assim como a distância focal de uma câmera é alterada. Havia várias teorias de como isso poderia ocorrer, mas Descartes aceitou a idéia de que a lente muda de formato ou “acomoda” para uma visão próxima e distante. Ele então teorizou que essa mudança na forma da lente deve ser controlada por músculos, os quais são controlados por processos nervosos no cérebro.

Descartes percebeu que o estado nervoso central que controla a acomodação variaria diretamente em proporção à distância dos objetos. Entretanto, ao contrário do caso de inferir a distância a partir do tamanho e ângulo visual conhecidos, Descartes não supôs que a mente estivesse ciente do aparato para controlar a acomodação do olho. Ao contrário, ele supôs que, por um mecanismo inato, o estado central do cérebro que varia com a distância causa diretamente uma idéia de distância na mente (6:137; 11:183). Essa idéia fisiologicamente produzida de distância poderia então ser combinada com o ângulo visual percebido a fim de perceber o tamanho de um objeto, tal como na teoria de al-Haytham da percepção do tamanho. Quando percebemos corretamente a distância e a combinamos com o ângulo visual (por um ato mental desapercebido), o resultado é uma percepção verídica de um tamanho à distância. Descartes descreveu a percepção resultante como possuindo os atributos que foram designados como “constância de tamanho” no século XX:

Quanto à maneira como vemos o tamanho e a forma dos objetos, não preciso dizer nada em particular, pois está incluída na maneira como vemos a distância e a posição de suas partes. Ou seja, julgamos seu tamanho pelo conhecimento ou opinião que temos sobre sua distância, em comparação com o tamanho das imagens que imprimem no dorso dos olhos — e não simplesmente pelo tamanho dessas imagens. Isso é suficientemente óbvio pelo fato de que as imagens impressas por objetos muito próximos a nós são cem vezes maiores do que aquelas impressas por objetos dez vezes mais distantes, e ainda assim não nos fazem ver os objetos cem vezes maiores; em vez disso, fazem com que os objetos pareçam quase do mesmo tamanho, pelo menos se sua distância não nos enganar. (6:140)

Quando Descartes fala em levar em conta o “tamanho das imagens” na retina, ele precisa apenas falar do ângulo visual, que pode ser considerado como equivalente ao tamanho da imagem da retina. Além disso, ao dizer que um objeto dez vezes mais distante do que um objeto próximo deveria ser cem vezes menor, ele está falando de área; ele seria dez vezes menor em altura linear. Assim, Descartes aqui descreve um processo no qual o ângulo visual é combinado com a distância percebida a fim de produzir um “tamanho à distância” que reflete o tamanho verdadeiro constante do objeto nos casos em que registramos corretamente e combinamos a distância com o ângulo visual.

O trabalho de Descartes sobre percepção visual é apenas um exemplo de sua adoção de uma postura naturalista em relação à experiência mental consciente, procurando explicar aspectos de tal experiência. Paixões constitui outro. Diz-se às vezes que o dualismo de Descartes colocou a mente fora da natureza, tornando-a como uma substância imaterial. Isso é um julgamento retrospectivo a partir de uma perspectiva na qual substâncias imateriais são automaticamente consideradas “não naturais”. Para Descartes e seus seguidores, a interação mente-corpo e suas leis foram incluídas dentro do domínio da filosofia natural ou física (no sentido geral deste último termo, como a teoria da natureza). Descartes falou das relações regulares entre estados cerebrais e as experiências sensoriais resultantes, que seus seguidores, tais como Regis, posteriormente consideraram “leis” da relação mente-corpo (ver Hatfield 2000). Dessa forma, Descartes e seus seguidores postularam a existência de leis psicofísicas ou psicofisiológicas, muito antes de Gustav Fechner (1801-87) ter formulado uma ciência da psicofísica no século XIX.

6. Legado

As coisas que os leitores acham valiosas no trabalho de Descartes mudaram ao longo dos séculos. Vimos que sua filosofia natural teve um impacto imediato que durou até o século XVIII. Sua teoria da visão fazia parte dessa herança, assim como seus resultados em matemática. Vimos também que seu relato mecanicista da psicologia da alma sensível e sua visão de que os animais são como máquinas foram revividos no século dezenove.

O destino dos aspectos metafísicos e epistemológicos da filosofia de Descartes é complexo. Em seu próprio tempo, ele inspirou uma grande quantidade de seguidores, que procuraram desenvolver sua metafísica, epistemologia, filosofia natural, e até mesmo acrescentar uma ética elaborada. Esses autores incluíam Geraud de Cordemoy, Arnold Geulincx, Antoine Le Grand, Nicolas Malebranche, Regis e Rohault. O filósofo britânico Henry More no início seguiu Descartes, mas posteriormente se voltou contra ele. Outros grandes filósofos, incluindo Bento de Espinosa e G. W. Leibniz, foram influenciados pelo pensamento de Descartes, mas desenvolveram seus próprios e distintos sistemas.

Talvez o efeito mais profundo que Descartes teve na epistemologia e metafísica moderna tenha surgido de sua idéia de examinar o conhecedor como um meio para determinar o escopo e as possibilidades do conhecimento humano. Entre seus seguidores imediatos, Malebranche desenvolveu mais plenamente esse aspecto da filosofia de Descartes. Filósofos posteriores que não eram seguidores de Descartes também adotaram a estratégia de investigar o conhecedor. Os trabalhos epistemológicos de Locke, George Berkeley, David Hume, Thomas Reid e Immanuel Kant continuaram essa investigação. Esses autores chegaram a conclusões diferentes das de Descartes quanto à capacidade da mente humana de conhecer as coisas tal como elas são em si mesmas. Hume e Kant especialmente — e cada um à sua maneira — rechaçaram a própria noção de uma metafísica que revela a realidade tal como ela é em si mesma. Eles não apenas negaram as teorias metafísicas particulares de Descartes; eles rejeitaram completamente seu tipo de projeto metafísico. Mas o fizeram através do tipo de investigação que o próprio Descartes havia tornado proeminente: a investigação das capacidades cognitivas do conhecedor.

Durante o século XX, vários aspectos da filosofia de Descartes foram amplamente invocados e talvez igualmente mal interpretados. O primeiro é o ceticismo de Descartes. No início do século XX, uma resposta à ameaça do ceticismo sobre nosso conhecimento do mundo externo foi a de recuar para a posição de que só podemos conhecer nossos próprios dados sensoriais, onde “dados sensoriais” são equiparados aos supostos conteúdos da experiência sensorial imediata: para a visão, manchas de cor com um formato (por exemplo, Russell 1914). Alguns autores trataram então o projeto de Descartes nas Meditações como sendo o de reduzir o conhecimento humano a dados sensoriais imediatos, a partir dos quais o conhecimento do mundo externo deveria ser construído.

Como uma leitura de Descartes, essa posição tem pouco a oferecer. Conforme vimos, na Segunda e Terceira Meditações Descartes argumenta desde a indubitabilidade do raciocínio do cogito à confiabilidade da percepção intelectual até a existência de um ser perfeito (Deus). Neste último argumento, ele procura de fato inferir a realidade de um ser externo a si mesmo. Porém, a inferência não invoca a experiência sensorial. Ela procede de uma idéia não-sensorial e inata de Deus para a existência desse Deus. O que quer que se pense sobre a qualidade do argumento, nada tem a ver com dados sensoriais. Descartes usou argumentos céticos como uma ferramenta para desvincular o leitor do mundo sensorial, a fim de empreender investigações metafísicas. Resultou, de fato, na Sexta Meditação, uma reavaliação dos sentidos em relação à metafísica. Contudo, mais uma vez, os dados sensoriais não estavam na mistura.

Outra linha de interpretação do século XX também focalizava o isolamento do sujeito na Segunda Meditação. No decorrer dessa Meditação, Descartes aceita que conhece o conteúdo de sua mente, incluindo putativas experiências sensoriais, embora duvide da existência de seu corpo. Alguns filósofos concluíram a partir disso que Descartes acreditava que os seres humanos podem realmente, em seu estado natural, ter experiências sensoriais, mesmo que lhes falte um corpo. Porém Descartes negou, de fato, essa possibilidade. Em sua metafísica, a percepção sensorial e a imaginação dependem, para sua existência, da união mente-corpo. Pode haver percepções intelectuais que não dependem do cérebro. Mas atos de imaginação e percepção sensorial requerem o cérebro (Pass. I.19-20, 43). Assim, Descartes de fato não acreditava que pudéssemos ter todas as nossas experiências sensoriais, mesmo que não tivéssemos cérebro. Ao contrário, ele admitiu que podia conceber suas experiências sensoriais independentemente do cérebro, e que, se Deus não fosse supremamente bom, Deus poderia produzir essas experiências em nós independentemente do cérebro; mas uma vez que a perfeição de Deus é inconsistente com o engano, ele nunca o faria. Portanto, a concebibilidade não é em todos os casos — e especialmente não em casos de mera ignorância, como na Segunda Meditação – uma possibilidade metafísica possível (como vimos no argumento do Discurso para a distinção mente-corpo).

Uma terceira concepção é pouco mais do que o uso (ou abuso) de Descartes como representante de uma espécie de “racionalidade ocidental” abrangente, que racionalizou demais o ser humano e negou o corpo e as emoções. A alegação de que Descartes negou o corpo e as emoções é facilmente posta de lado. É uma generalização excessiva, e um mal-entendido, do procedimento de Descartes de “retirar a mente dos sentidos” nas Meditações com o propósito de fazer metafísica. Uma leitura historicamente mais matizada do texto de Descartes o ligaria à prática da meditação espiritual existente no século XVII, uma prática que Descartes cooptou para suas meditações metafísicas (ver os três primeiros capítulos em Rorty 1986). Além disso, a noção de que Descartes ignorou o corpo e as emoções não corresponde em nada ao seu trabalho sobre as Paixões, no qual o corpo tem um papel de protagonista. De modo mais geral, esse tipo de carga não envolve a longa parte da Sexta Meditação que diz respeito à união e interação mente-corpo e a mente encarnada.

Uma versão recente dessa caricatura sugere que Descartes tinha uma noção do comportamento humano que consistia em um ciclo de “sentido-representação-plano-movimento” (Wheeler 2005, cap. 3). Como já foi mencionado, Descartes explicou muitos comportamentos humanos através da máquina do corpo, sem intervenção mental. Como ele disse na Quarta Resposta, “Quando as pessoas tomam uma queda e estendem suas mãos para proteger a cabeça, não é a razão que as instrui a fazer isso” (7:230); ao contrário, a máquina do corpo (processos materiais nos órgãos dos sentidos, cérebro e músculos) produz esse comportamento, sem qualquer contribuição mental. Descartes idealizou explicações puramente mecanicistas semelhantes para muitos dos comportamentos que surgem a partir das paixões ou emoções. Nesse sentido, o corpo age primeiro e a experiência sentida da paixão tem a função de levar a mente a querer fazer o que o corpo já está fazendo (Pass. I.37-40). Em qualquer caso, Descartes de modo algum sustenta que todo comportamento humano surge ou deve surgir de uma deliberação racional. O que não quer dizer que ele tenha desvalorizado a deliberação racional quando há tempo e necessidade de assumi-la. Porém, ele não tinha a ilusão de que todo comportamento humano eficaz deriva da razão.

Como os intérpretes poderiam enganar-se tanto com Descartes? Uma explicação recente sugere que muitos “teóricos” pós-modernos absorveram seus Descartes em segunda mão, e a mesma explicação poderia ser estendida a outros que invocam Descartes somente após um rápido envolvimento com seus escritos. Como explica o historiador literário Michael Moriarty, importantes teóricos franceses como Jacques Lacan e Michel Foucault teriam, no decorrer de sua educação francesa, “recebido uma base sólida em filosofia, e nas obras de Descartes em particular” (Moriarty 2003, 52). Eles então usam Descartes como um animal de caça. Moriarty sugere que muitos leitores de Lacan e Foucault não receberam a mesma educação em filosofia ou em Descartes. Tais indivíduos, “que leram Lacan ou Foucault sem, ou nem antes, terem lido Descartes, absorvem assim uma certa percepção sobre Descartes, mais negativa, talvez, do que a dos próprios autores, que escrevem contra o conteúdo de sua própria cultura, podem ter a intenção de transmitir” (2003, 53). A implicação é que Lacan e Foucault envolveram Descartes a partir de um conhecimento de seus escritos, enquanto outros que não têm tal conhecimento entendem mal o valor de tal envolvimento genuíno e tiram implicações mal compreendidas. Isso também explicaria como Descartes poderia ser encarregado de negar as emoções, mesmo tendo publicado um livro inteiro sobre as Paixões, e como as implicações desse livro poderiam ser negligenciadas por alguém ansioso para encontrar um alvo famoso com o qual discordar.

Deixando de lado tais interpretações manifestamente equivocadas, qual é atualmente o legado de Descartes? A amplitude de sua influência no século XVII é permanente, incluindo suas contribuições específicas em matemática e óptica, sua perspectiva para uma fisiologia mecanicista e o modelo que ele ofereceu a Newton de uma física unificada celestial e terrestre que atribui algumas propriedades básicas a uma matéria onipresente, cujas moções são regidas por algumas leis simples. A esse respeito, o trabalho de Descartes oferece um exemplo de filosofia culturalmente engajada. Descartes tinha um senso para as questões filosóficas fundamentais de seu tempo, muitas das quais diziam respeito à teoria da natureza e à tentativa de fundar uma nova ciência natural. Ele não apenas ofereceu uma reformulação sistemática da filosofia natural existente, mas o fez de uma maneira que pudesse ser ouvida e compreendida.

Além das influências históricas do passado, a filosofia de Descartes continua a nos falar agora e a oferecer novos conhecimentos às novas gerações de filósofos que estão em condições de ouvir o que ele disse. Isso pode ser visto no renascimento das teorias do corpo-primeiro das emoções. (Ironicamente, alguns dos detratores mais eloquentes de Descartes junto aos cientistas que estudam as emoções, incluindo Damasio 1994, defendem teorias semelhantes em muitos aspectos às de Descartes, sobre as quais, ver Hatfield 2007). Ademais, suas teorias das qualidades sensoriais inspiraram novas reflexões (Simmons 2003), assim como seu relato da percepção da distância (ver Wolf-Devine 1993 e os verbetes sobre ótica e percepção em Nolan 2014). De modo mais geral, suas meditações são um dos exemplos mais refinados de prosa filosófica em toda a história da filosofia. Isso, por si só, garante sua contínua relevância.

No fim, o legado de Descartes consiste em parte de problemas que ele levantou, ou trouxe à tona, mas não resolveu. O problema mente-corpo é um caso em questão. O próprio Descartes argumentou a partir de sua capacidade clara e distinta de conceber mente e corpo como seres distintos até a conclusão de que eles realmente são substâncias separadas. A maioria dos filósofos de hoje não aceita nem a base metodológica para sua afirmação, nem a própria afirmação. De fato, desde a época de Kant, poucos filósofos acreditaram que os pensamentos claros e distintos da mente humana são um guia para a realidade absoluta das coisas. Portanto, a noção de que mesmo a clara concebibilidade discerne possibilidades metafísicas não é aceita. Além disso, poucos filósofos hoje são dualistas quanto à substância.

Mesmo assim, o problema mente-corpo persiste. Ao distinguir o domínio do mental do físico, Descartes tocou um acorde. Muitos filósofos aceitam a distinção conceitual, mas permanecem incertos sobre a metafísica subjacente: se a mente é idêntica ao cérebro; ou se o mental emerge de processos complexos no cérebro; ou constitui uma propriedade que é diferente de qualquer propriedade puramente física, mesmo sendo instanciada pelo cérebro. Nesse caso, um problema que Descartes destacou vigorou para além de sua proposta de solução.


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Bibliography

Note on references and abbreviations: References to Descartes’ works as found herein use the pagination of the Adam and Tannery volumes (AT), Oeuvres de Descartes, 11 vols. The citations give volume and page numbers only (dropping the abbreviation “AT”). Where possible, the Cottingham, Stoothoff, Murdoch, and Kenny translation, The Philosophical Writings of Descartes, 3 vols., has been used; it shows the AT pagination in the margins. Where the translation has been emended, the citation is marked with an asterisk (*). The AT volume numbers provide a guide to which work is being cited in translation: vols. 1–5, correspondence; vol. 6, Discourse and essays (including the Dioptrics and Meteorology); vol. 7, Meditations; vol. 10, Rules; vol. 11:1–118, World, or Treatise on Light; vol. 11:119–222, Treatise on Man; vol. 11:301–488, Passions. Where there is no accessible translation for a citation from AT, the citation is shown in italics. Works that are broken into parts and/or articles are cited by abbreviated title, part, and article: Med. for the MeditationsMet. for the MeteorologyPrinc. for the Principles, and Pass. for the Passions.

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Other Internet Resources

Links to digitized photographic reproductions of early editions of Descartes’ works may be found under Original editions and early translations of major works. The following links are to other online editions:

  • French Meditations and Discourse, online French text of the six Meditations and the Discourse (from the Association de Bibliophiles Universels, http://abu.cnam.fr/)
  • French Dioptrics, online French text of La dioptrique (from Les classiques des sciences sociales, University of Quebec at Chicoutimi)
  • French Discourse and Meditations, online French text of the Discourse and six Meditations plus the first three Objections and Replies, from the edition of Descartes’ works by Victor Cousin (Project Gutenburg)
  • Latin Meditations, online Latin text of the six Meditations (from The Latin Library, Classics Page, Neo-Latin, Descartes)
  • Latin Meditations, online Latin text of the six Meditations, ed. Artur Buchenau. Leipzig: Felix Meiner, 1913 (from Project Gutenburg)
  • Latin, French, and English Meditations, Latin text of the six Meditations, plus the 1647 French translation and the 1901 John Veitch translation into English (Wright State University)
  • French and English Passions (1649/1650), side by side (Descartes Web Project, Claremont Graduate University)

The following provide access to digital photographic reproductions of many additional texts:

  • An Analytic Bibliography of On-Line Neo-Latin Texts, has links to more than 46,000 neo-Latin texts, including many by Descartes (Dana F. Sutton)
  • Gallica, a search engine for a large digital collection (Bibliothèque nationale de France)

evil: concept of | existentialism | Lange, Friedrich Albert | Nietzsche, Friedrich: life and works | Nietzsche, Friedrich: moral and political philosophy | relativism | Schopenhauer, Arthur

Acknowledgments

The author thanks Holly Pittman for advice concerning this entry.

Este artigo foi publicado originalmente no site Plato Stanford: https://plato.stanford.edu/entries/descartes

Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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