O Que Restou de 22: Uma Semana na Contramão da História – Ronald Robson (org.)

Resenha de O que restou de 22: uma semana na contramão da história, org. de Ronald Robson, Editora Sétimo Selo.

1922, o ano que já terminou,
mas tem gente fingindo que não

Escrever em 2023 sobre O que restou de 22: Uma semana na contramão da história, livro de ensaios literários organizado por Ronald Robson (autor de Conhecimento por Presença: Em torno da filosofia de Olavo de Carvalho) lançado no último ano, permite que se fale sem muita necessidade de manter-se preso à efeméride do centenário da Semana de Arte Moderna. Essa data redonda foi recordada sem muito entusiasmo aqui e ali na grande mídia, constrangendo o público diante da escolha dos artistas contemporâneos invocados como exemplos do legado de 1922.

Melhor ainda, permite também ignorar o descaso da política de cultura do presidente em exercício acerca do bicentenário da Independência. Um descaso a ser lamentado menos pela ausência de estímulo estatal e mais pelo desinteresse da própria população pela data, pouco importando se à direita ou à esquerda da suposta polaridade ideológica. Como todos devem se lembrar, a data de 1922 para a sagração do movimento modernista ligava-se à do centenário da Independência do Brasil, então bastante celebrado graças a uma estratégia de criação de valores para a República ainda criança.

Escrever agora permite, contudo, ainda assim falar do tempo, da taça de um tempo qualitativo, esse tempo no qual a cultura é criada, destruída e regenerada pela força dos ritos e das contra-iniciações, ainda que profanos como o desta Semana de Arte Moderna.

Isso ficará claro para quem entender que a crítica literária é um exercício de poder espiritual, naquele sentido de que fala Northrop Frye, em A imaginação educada, acerca da literatura como “um apocalipse humano, a revelação do homem a si mesmo” e a crítica, por conseguinte, não sendo “um conjunto de sentenças judiciais, mas a consciência dessa revelação, o juízo final da humanidade”. O poder espiritual (em que se entende também o poder intelectual) implica um dever de escolha, de bênção sobre aquilo que deve ser preservado do passado e maldição em cima do que é pra ser abandonado, da sagração do que no presente deve ser protegido e alimentado para que a comunidade falante possa exercer liberdade e assim criar um futuro em que ela possa, mais que sobreviver, soberanamente viver, como bem disseram Olavo de Carvalho e Eugen Rosenstock-Huessy.

Em cada um dos quatro ensaios pode se ver possibilidades desse gênero de exercício de consciência. O ensaio que abre o volume é o do organizador, Ronald Robson, nomeado Elegia inacabada: Por um novo futuro do modernismo brasileiro. O título acentua o que foi dito até aqui. A história do Brasil está sendo disputada, e continua sendo, muito mal contada pela elite supostamente pensante. A geração de 22 tem papel fundamental nessa confusão.

Robson apresenta no ensaio um trabalho de anamnese em que mede a estatura das principais figuras da semana, Mário e Oswald de Andrade. Ele recorda outros nomes que, se não foram esquecidos, contudo foram menosprezados. E traz do umbral escritores que não só fizeram boa obra à altura do tempo, mas que podem ainda enriquecer hoje nossas artes e pensamento, autores que Robson agrega num “cânone clandestino do modernismo”: escritores como Luís Aranha, Raul Bopp (cuja imaginação mítica e simbólica nos deu o Cobra Norato, livro mais interessante que o Macunaíma) e Gerardo Mello Mourão.

Robson dá a ver como os modernistas formularam mal o problema da interpretação do Brasil. Revela o que houve de alienação na tentativa de refundar o Brasil a partir do projeto que a burguesia de São Paulo promovia, voltada a celebrar um avanço industrial que, para o artista moderno europeu, foi uma fonte de angústias que inspiraram a poesia de alguns a uma exploração da transcendência, como ocorreu com T. S. Eliot. Outro ponto cego não lhes deixava perceber que a sensibilidade em torno do que é propriamente nacional já existia na obra de um Machado de Assis, um Nina Rodrigues, Euclydes da Cunha e Monteiro Lobato. Fora a modernização das formas já em Francisca Julia da Silva, Maranhão Sobrinho e José Albano.

Jessé de Almeida Primo, em Alguns personagens de 22 : Quaresma, Peixoto & Cia., complementa com outras contradições. À ruindade do verso de Mário de Andrade se soma a incapacidade de tirar a trave do olho quando atacava a retórica parnasiana com um versejar cheio de vícios… parnasianos.

Essa má implicância com o parnasianismo é analisada no ensaio do poeta Emmanuel Santiago, De parnasianos a modernos: a virada de chave modernista na poesia brasileira, que demonstra o quanto a virada do parnasianismo para a dicção modernista se deve muito à mudança de ensino no final do século XIX, então baseada na retórica clássica; quando esta cede lugar a outro modelo humanístico, a percepção negativa dos modernos em relação aos parnasianos surge nesse fundo de linguagem.

Primo ainda pinta uma imagem de Mário como a de um velho parnasiano no esforço malogrado de soar moderno, com uma “dicção envelhecida, de salão, afetada”, em contraponto a Carlos Drummond (cujo polêmico No meio do caminho incomodou a muitos por causa da prosódia modernista, ao mesmo tempo que acenava para Dante Alighieri e Olavo Bilac, algo o que Santiago aponta), cuja sensibilidade contemporânea não precisava ser forçada, cuja inserção no modernismo não era por influência de 22, mas pela inserção crítica em seu tempo.

Jessé denuncia outras bobagens modernistas que se tornaram lugar-comum. Uma é a apologia de um falar que se dizia brasileiro, conquanto mais galicista que outra coisa. Ou a do tipo meio besta que é a do poeta-agitador, cuja obra tanto é mais fraca quanto mais seu autor faz barulho ao derrubar totens pernetas em manifestos e festas, figura que surge de tempos em tempos. Há mais a se dizer sobre esse ensaio que se articula em torno das figuras antagônicas do reacionário Policarpo Quaresma e do revolucionário Floriano Peixoto para simbolizar tendências que se misturavam também na ala mais à direita da poesia Pau-Brasil.

Nem tudo é desmistificação, porém. A crítica aos de 22 já é feita há tempos. Por exemplo, no A Semana da Arte Moderna na contramão da história e outros ensaios, de Franklin de Oliveira. Ou em projetos de renovação via tradição no Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre e na Geração de 45. As críticas feitas pelos poetas desta escola são comentadas no ensaio final, do também poeta Wladimir Saldanha. Saldanha leva à frente a crítica ao contrapor alguns poetas fracos de hoje que desprezam a forma, que se usam de um verso livre preguiçoso, de nenhum engenho, afim aos dos dois Andrades de 22, e atualizando o identitarismo a partir da moda americana do momento (não à toa, todos poetas festejados pelos prêmios oficiais, pela academia, pelo mercado, e pelo que sobrou da imprensa cultural na grande mídia), com outros poetas cujo ofício do verso concilia essas mesmas conquistas de 22, o citado verso livre e a lírica do cotidiano, com a tradição (algo que os modernistas de além-mar, como Pessoa, Pound e o já citado Eliot, já faziam). Esses outros não festejados são agrupados no que Saldanha chama de underground estético: poetas da linha de Érico Nogueira, Wagner Shadeck e João Filho, já antologiados numa edição bilingue, em português e em francês traduzido pelo Saldanha, Poesia brasileira em contracorrente: o retorno estético do século XXI/ Poésie brésilienne à contre-courant: retour esthétique du XXIe siècle (ed. Mondrongo).

Uma das principais contribuições de O que restou de 22 é a recordação que Robson faz daquelas boas idéias do modernismo que foram desprezadas e que mantém um potencial de renovar a cultura. O antropofagismo nunca foi incorporado à reflexão dos brasilianistas, mas ainda tem força nutritiva, tanto mais nesse nosso momento em que a ideologia decolonialista (sic), mal-digerida do pasto ideológico dos EUA e muito regurgitada no debate público, domina o ambiente acadêmico na medida que vem empobrecendo o debate nacional, um problema menos de má consciência histórica e mais de consciência fraca. E outra boa idéia de Oswald, nascida desse comércio com nossos mitos e lendas, a de trocar o discurseira da interpretação e o falatório dos manifestos (sim, Oswald depois iria se aborrecer deles, assim como Mário também fez sua crítica sobre o fracasso de 22), preferindo o símbolo em vez da experiência:

“No universo de referências de Oswald, dividem um mesmo espaço primitivismo, autenticidade, cultivo do mistério, preferência pelo símbolo à alegoria, visão transcendental não normatizada e início de uma nova fase da história na América Latina, em especial no Brasil. É um conjunto de idéias interessantes, dotado de algum vigor, e que representa a maior contribuição de Oswald àquela possibilidade assinalada por Antonio Candido: a de que aquilo que nos inferioriza se torna aquilo que nos marginaliza num sentido superior. (p. 41)”

O mais curioso nesta revisão é a que fez o próprio Mário anos depois, lamentando a vacuidade do pensamento nacional pós-22 por não se voltar para o ser, apenas para o impermanente (nem preciso dizer que hoje a situação piorou demais, e é bom reforçar que esse rebaixamento geral da atenção se viu, vez ou outra, justificado pelo mito macunaímico). E mais, o Mário chega a dizer que as gerações novas deveriam buscar a “verdade absoluta”, pois civilizações jovens se estabelecem em torno de tabus e se mantém por costumes severos.

A partir desse livro, posso dizer que a Semana de 22 foi um ritual mágico de refundação do Brasil que tentou anular o rito petrino do “Independência ou Morte!”, trocando o símbolo da primeira missa no Brasil pelo lamentável banquete canibal em que o Bispo Sardinha foi devorado pelos indígenas. Os de 22 distorceram o passado para engendrar um futuro num ritual de parco poder mágico, e o futuro não aconteceu conforme conjurado. Ainda assim, 22 serviu de desculpinha para que muita arte fuleira fosse elogiada pelos poderes do ar e separar o Brasil do resto da história ocidental. Esse livro não serve de contra-feitiço para anular um rito que já perdeu seu poder persuasivo há tempos, mas busca dizer o quanto os efeitos daquele feitiço são apenas ilusionismo, pelotiqueirice a que não faz mais sentido celebrar (e, realmente, pouco se celebrou).

Por fim, é preciso dizer, todos os ensaios vêm numa escrita muito agradável, e bela. É um livro leve, em que se converge aquela boa vontade de se comunicar que se via na crítica publicada em jornais até os anos setenta, antes que o estilo pesado da academia tomasse esses espaços e contribuísse para que o povo se desinteressasse de nossa literatura. E tudo com o cuidado metodológico e conhecimento das fontes, que é o de bom que se deve manter do modelo acadêmico. A gente até havia esquecido: a crítica também pode render boa literatura. E recordar-nos disso na própria tessitura do texto nos mostra bons modos de se fazer crítica e teoria literária no país.


Esta resenha não tem a intenção de substituir a leitura do livro. Se você gostou dela e deseja ajudar na continuação de nosso trabalho, você pode adquirir esse e diversos outros títulos no site da Editora Sétimo Selo usando nosso cupom, DIARIO5, para garantir um desconto especial no momento da compra.

Sobre o Autor ou Tradutor

Ricardo de Carvalho

Ricardo de Carvalho nasceu e vive em São Luís, Maranhão. Graduou-se em História pela Universidade Federal do Maranhão, mas hoje é copywriter. Escreve sobre cultura em seu perfil no Instagram: @oricardodecarvalho.

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