A Estética no Bonde — José Ortega y Gasset

“A Estética no Bonde” foi extraído da obra El Espectador I, do filósofo espanhol José Ortega y Gasset.


Pedir a um espanhol que, ao entrar no bonde, não lance um olhar de especialista para as mulheres é exigir o impossível. Esse é um dos hábitos mais arraigados e característicos de nosso povo. Para os estrangeiros e para alguns compatriotas, essa maneira insistente e quase táctil com que o espanhol olha para as mulheres parece errada. Eu sou uma dessas pessoas: isso me causa grande repugnância. E, no entanto, acredito que esse costume, retiradas a insistência, a petulância e a tactilidade visual, é um dos traços mais originais, belos e generosos de nossa raça. Assim como acontece com outras manifestações da espontaneidade espanhola, acontece o mesmo com essa; tal como se apresentam, impolutas, grosseiras, misturando o puro e o tosco, elas oferecem um aspecto de barbárie. Porém, se fossem purificadas, separando o requintado do grosseiro e realçando seu nobre germe, poderiam constituir um sistema de gestos altamente original, digno de competir com os estilos de movimento que foram chamados de gentleman ou homme de bonne compagnie. Os artistas, os poetas, os homens do mundo são responsáveis por submeter a matéria-prima desses hábitos multisseculares à química da depuração reflexiva. Velásquez fez exatamente isso, e pode-se ter certeza de que a admiração de outras nações por sua obra é influenciada pela estilização bem-sucedida do gesto espanhol. Hermann Cohen costumava me dizer que sempre aproveitava suas estadias em Paris para ir à sinagoga a fim de contemplar os gestos dos judeus da Espanha1.

Mas não é meu objetivo agora descobrir que significado nobre pode estar por trás dos olhares atrozes do espanhol para a mulher. O assunto seria interessante; pelo menos para O Espectador, que viveu vários anos sob a influência de Platão, mestre da ciência do olhar. Porém, no momento, minha intenção é outra. Hoje peguei o bonde e, como nada do que é espanhol é estranho para mim, exerci o olhar do especialista mencionado acima. Tentei livrá-lo da insistência, da petulância e da tactilidade. E fiquei muito surpreso ao perceber que não levei nem três segundos para identificar esteticamente as oito ou nove senhoras incluídas no veículo e fazer um julgamento rigoroso sobre elas. Esta é muito bonita; aquela, malfeita; aquela ali, decididamente feia, e assim por diante. A linguagem não possui termos suficientes para expressar as nuances desse julgamento estético que, no rápido voo de um olhar, é realizado e acionado.

Como o trajeto era longo e, na melhor das hipóteses, nenhuma daquelas senhoras me concederia um futuro sentimental, tive de me recolher à meditação sem outra recompensa a não ser meu próprio olhar e suas sentenças automáticas.

Em que consiste esse fenômeno psicológico, que poderíamos chamar de cálculo da beleza feminina, perguntei a mim mesmo? Não pretendo saber agora qual é o mecanismo secreto da consciência que causa e regula esse ato de apreciação estética. Contento-me em descrever aquilo de que nos tornamos claramente conscientes quando o praticamos.

A psicologia antiga pressupõe que o indivíduo possui um ideal prévio de beleza, nesse caso, um ideal do rosto feminino, que ele aplica ao semblante real que está observando. O julgamento estético consistiria simplesmente na percepção da coincidência ou discrepância entre um e outro. Essa teoria, oriunda da metafísica platônica, tornou-se inveterada na estética e derrama nela seu erro original. O ideal, como a idéia em Platão, torna-se uma unidade de medida, pré-existente e separada das realidades, com a qual as medimos.

Essa teoria é uma construção, uma invenção originada da brilhante busca helênica pela unidade. Pois o Deus da Grécia não deve ser buscado no Olimpo — uma espécie de castelo onde uma sociedade de pessoas ilustres se regozija com a vida — mas nesse pensamento sobre o uno. O uno é a única coisa que há. As coisas brancas são brancas, e as mulheres são belas, não cada uma em si mesma e em sua própria peculiaridade, mas em virtude de sua maior ou menor participação na brancura una e na mulher-bela una. Plotino, em quem esse unitarismo atinge sua exacerbação, acumulará expressões que insinuam a trágica sede da unidade que pulsa nas coisas. Σπεύδειν, ὸρέγεσθαι πρὸς τὸ ἔν, — apressam-se, tendem a, anseiam pela unidade. Seu ser, chega-se a dizer, é apenas τὸ  ἴχνος τοῦ ένός, o traço da unidade. Sentem um zelo afrodítico pelo uno. Nosso frei Luis, que platoniza e plotiniza de sua tosca cela, encontra a frase mais feliz: a unidade é “a piedade universal das coisas”.

Mas tudo isso, repito, é uma construção. Não existe um modelo único e geral ao qual as coisas reais imitem2. O que devo fazer para aplicar aos rostos dessas senhoras um esquema prévio de beleza feminina? Isso seria falta de elegância e, ademais, não é verdade. Longe de saber qual é a beleza suprema da mulher, o homem a busca perpetuamente, desde a juventude até a decrepitude. Ah, se ao menos a conhecêssemos de antemão!

Se a conhecêssemos de antemão, a vida perderia um de seus melhores trunfos e grande parte de seu drama. Toda mulher que vemos pela primeira vez desperta em nós a esperança suprema de que talvez ela seja a mais bela. E nesse jogo de esperanças e decepções, que expandem e contraem nossos corações, a vida corre rapidamente por um campo irregular e aprazível. No capítulo sobre o rouxinol3, Buffon conta sobre um desses passarinhos que atingiu a idade de quatorze anos por não ter tido a chance de amar. “Diz-se”, acrescenta ele, “que o amor encurta os dias; mas a verdade é que ele os completa”.

Continuemos nossa análise. Como não encontro em mim aquele arquétipo e modelo único de beleza feminina, suponho — como também já aconteceu algumas vezes com os estéticos — que, pelo menos, haverá uma pluralidade deles, vários tipos de perfeição corporal: a morena perfeita e a loira ideal, a ingênua e a nostálgica, e assim por diante.

Podemos ver imediatamente que essa suposição apenas multiplica as dificuldades da anterior. Em primeiro lugar, não me dou conta de que possuo essa galeria de rostos exemplares, nem posso suspeitar de onde posso tê-la adquirido. Em segundo lugar, dentro de cada tipo, encontro uma gama ilimitada de possíveis belezas diferentes. Os “tipos” ideais teriam, então, de ser multiplicados de tal modo que perderiam seu caráter de gêneros e, sendo tão inumeráveis quanto os próprios rostos individuais, anulariam o propósito dessa teoria, que também consiste em fazer do uno e geral o padrão e o protótipo para a avaliação do singular e do variado.

No entanto, estamos interessados em destacar algo nessa doutrina que “dispersa” o modelo único em uma pluralidade de modelos típicos ou exemplares. O que foi que levou a essa dispersão? Sem dúvida, a advertência de que, na realidade, quando calculamos a beleza feminina, não partimos do esquema ideal e único para submeter a fisionomia concreta a ele, sem lhe dar voz no processo estético. Pelo contrário: partimos do rosto que vemos, e ele, por si só, de acordo com essa teoria, seleciona entre nossos modelos aquele que deve ser aplicado a ele. Dessa maneira, a realidade individual colabora em nosso julgamento da perfeição e não permanece, como antes, totalmente passiva.

Essa é uma advertência exata, em meu entendimento, que reflete um fenômeno efetivo de minha consciência e não é uma construção hipotética. Sim: meu estado de espírito quando olho para esta mulher é completamente diferente daquele que um juiz usaria na pressa de aplicar o Código estabelecido, a lei acordada. Eu não conheço a lei; pelo contrário, eu a procuro no rosto da transeunte. Meu olhar tem o caráter de uma experiência absoluta. Com o rosto que vejo diante de mim, gostaria de aprender, de saber o que é beleza. Cada individualidade feminina me promete uma beleza desconhecida, totalmente nova; a emoção que move meus olhos é a de alguém que espera uma descoberta, uma revelação sublime.

A expressão mais exata da situação em que nos encontramos quando, pela primeira vez, olhamos para uma mulher, seria esta, que parece apenas uma frívola e pomposa frase: “Toda mulher é bela até que prove o contrário”. E poderíamos até acrescentar: de uma beleza que não prevíamos.

É verdade que às vezes as promessas não são cumpridas. A esse respeito, lembro-me de uma anedota proveniente do submundo jornalístico de Madri. Conta-se que um crítico de teatro, falecido há poucos anos, sofria da debilidade de distribuir elogios e censuras conforme as condições financeiras. Ele havia selecionado um tenor que faria sua estréia no Teatro Real no dia seguinte. O crítico endividado se apressou em visitá-lo. O tenor falou sobre as muitas crianças e a casa de sua mãe. Ele falou sobre os muitos filhos e a pouca renda: o negócio foi fechado em mil pesetas. O dia da estréia começou sem que o crítico recebesse a quantia combinada. Começou a apresentação e o dinheiro não chegou; passou um ato, e outro, e todos os outros, e quando o crítico começou a escrever para a redação, o pagamento ainda não havia chegado. Na manhã seguinte, o jornal inseriu a crítica da ópera; nela, nenhuma palavra foi dita sobre o tenor até a última linha, que dizia: “Esquecemos de dizer que o tenor X fez sua estréia: ele é um artista que promete; veremos se ele cumpre”.

Às vezes, então, a promessa de beleza não é cumprida. Assim, bastou que eu olhasse por um momento para aquela senhora na parte de trás do bonde para julgá-la feia. Vamos decompor esse ato de julgamento adverso em seus elementos. Para isso, devemos repeti-lo mais lentamente, de modo que a reflexão possa surpreender nossa consciência espontânea nos estágios sucessivos de sua atividade.

E percebo o seguinte: o olhar primeiro se fixa em todo o rosto, no todo, e parece tomar uma direção; depois escolhe uma fração, talvez a testa, e desliza ao longo dela. Essa linha é suavemente curvada e meu espírito a segue como se isso fosse agradável, sem raiva ou insatisfação interna.

A frase que melhor descreve meu estado de espírito no momento seria: Isso está indo bem! Porém, de repente, quando ponho meus olhos em seu etéreo elo que está sobre o nariz, percebo uma dificuldade, uma hesitação ou um obstáculo. Algo análogo ao que experimentamos em uma bifurcação, onde dois caminhos começam. O caminho da testa parece — não sei bem por quê — como se exigisse continuar em uma linha nasal diferente da real. Mas ela impõe outra trajetória ao meu olhar. Sim, não há dúvida; vejo duas linhas, uma sutil e espectral sobre o nariz de carne, que é, digamos francamente, um tanto grosseiro. Então, diante dessa dualidade, a consciência sofre um piétinement sur place; ela hesita, oscila e, nessa hesitação, mede a distância entre a fração que deveria ser e a que é.

Entretanto, não se trata de renovar agora, fração por fração, o que descartamos com relação ao semblante total. Não existe um modelo ideal de nariz, boca e bochecha. Se analisarmos os fatos, perceberemos que toda fração feia (não monstruosa)4 pode parecer bonita em outro conjunto.

A realidade é que nós, ao percebermos o defeito, saberíamos como corrigi-lo. Desenhamos linhas desencarnadas que aqui acrescentam um pouco de forma; ali, por outro lado, elas suprimem e amputam algumas das existentes. Linhas desencarnadas, eu disse, e isso não é uma metáfora. Nossa consciência as traça olhando constantemente para onde não as encontra corpóreas. É bem sabido que não podemos olhar imparcialmente para as estrelas à noite, mas que destacamos uma ou outra do conjunto iluminado. Destacá-las já é colocar certas estrelas em uma relação mais intensa umas com as outras; para isso, estendemos de uma a outra à maneira dos fios de uma aranha sideral. Os pontos incandescentes são assim ligados e constituem uma “forma desencarnada”, essa é a origem psicológica das constelações: perpetuamente, quando a noite pura faz pulsar sua escuridão azulada, os olhos do homem pagão se erguem e veem Sagitário disparando, Cassiopeia irritada, a Virgem esperando e Órion se opondo ao Touro com seu escudo de diamantes.

Da mesma maneira que ocorre com o grupo de pontos estelares organizados em uma constelação, o rosto real que vemos a partir da emanação de um perfil ideal coincide mais ou menos com ele. No mesmo movimento de nossa consciência, surge a percepção do ser corpóreo e a suspeita de sua perfeição ideal.

Chegamos, então, à convicção de que o modelo não é único para todos, nem mesmo típico. Cada fisionomia dá origem, como na fosforescência mística, ao seu próprio ideal, único e exclusivo. Quando Rafael diz que pinta não o que vê, mas “uma certa idéia que eu vi em minha mente”, ele não se refere à idéia platônica que exclui a diversidade inesgotável e multiforme do real. Não; cada coisa ao nascer traz seu próprio ideal intransferível.

Desse modo, abrimos para a Estética as portas de sua prisão acadêmica e a convidamos a explorar as riquezas do mundo. 

Laudata sii, Diversità
delle creature, sirena
del mondo!

Aqui está como eu, deste humilde bonde que passa por Fuencarral, envio uma objeção ao radiante jardim de Academus.

O amor me move, e isso me faz falar… Amor pela multiplicidade da vida, que às vezes os melhores, contra sua vontade, contribuíram para diminuir. Pois da mesma maneira que os gregos fizeram do ser a coisa única e da beleza uma norma ou modelo geral, Kant vai encontrar a bondade, a perfeição moral em um imperativo genérico e abstrato.

Não, não; o dever não é único e genérico. Cada um de nós tem o seu próprio, inalienável e exclusivo. Para governar minha conduta, Kant me oferece um critério: que eu deva sempre querer o que qualquer outra pessoa pode querer. Mas isso esvazia o ideal, transforma-o em uma máscara judicial e em uma máscara com características pouco atraentes. Só posso desejar plenamente aquilo que surge em mim como um anseio de toda a minha individualidade pessoal.

O cálculo da beleza feminina, uma vez analisado, serve como uma chave para todos os outros domínios de avaliação. Assim como na beleza, também na ética.

Vimos anteriormente que o rosto individual é tanto um projeto de si mesmo quanto uma realização mais ou menos completa. Assim, na moralidade, acho que vejo cada homem que passa diante de mim como se fosse inscrito em uma silhueta moral de si mesmo: ela especifica o que seu caráter individual seria em perfeição. Alguns de nós, por meio de nossas ações, aumentam completamente o limite de nossas possibilidades; mas muitas vezes diferimos, por defeito ou excesso, do que seria nossa própria plenitude. Quantas vezes nos surpreendemos ao nos encontrarmos desejando que nosso vizinho faça isso ou aquilo porque vemos com estranha evidência que ele completaria assim sua personalidade!

Não vamos, portanto, medir cada pessoa senão apenas em relação a si mesma: o que ela é como realidade com o que ela é como projeto. “Torne-se o que você é”. Esse é o imperativo justo… Mas muitas vezes fazemos o que Mallarmé sugere de forma maravilhosa e misteriosa quando, resumindo Hamlet, ele o chama de “o senhor latente que não pode se tornar”5.

Em todos os lugares essa idéia é frutífera para nós, descobrindo na própria realidade, em seu aspecto mais imprevisível, em sua capacidade de inovação ilimitada, a sublime incubadora de ideais, de padrões, de perfeições.

Na crítica literária ou artística, ela é imediatamente aplicável: vamos reproduzir a análise motivada pelo julgamento da beleza feminina com relação a uma leitura. Ao ler um livro, no corpo que dá forma ao que é lido, ele bate como uma martelada íntima de prazer ou desprazer: “Isso é bom, dizemos; é como deve ser”. “Isso dá errado; sua perfeição indica outra trajetória”. E automaticamente, sobre a obra, inscritos ou circunscritos nela, deixamos um ponto crítico que é o esquema pretendido por ela. Sim, todo livro é primeiro uma intenção e depois uma realização. Com a primeira, vamos medir a segunda. A própria obra nos revela sua norma e seu pecado. E o maior absurdo seria fazer de um autor a métrica de outro.

Esta senhora que vem à minha frente…

Cuatro Caminos! — exclama o condutor. Esse grito sempre me causou uma emoção dolorosa, porque é um símbolo de perplexidade. Veja, a viagem terminou. Não se pode pedir mais por dez centavos.

1916.


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Notas:

  1. Esse mesmo pensamento, exposto de forma geral, pode ser encontrado nas Meditações do Quixote. ↩︎
  2. Αλλ ὃμως πάντα τὸ αὐτὸ μιμεῖται, τυγχάνει δὲ τὰ μέν πόρρωθεν, τὰ δὲ μᾶλλον  — Enéadas, VI, 2, 11: “Todas as coisas imitam a mesma coisa, mas algumas são mais próximas e outras menos”. ↩︎
  3. N.T.: O rouxinol vive, na natureza, de um a cinco anos, embora o maior tempo registrado seja de oito anos e quatro meses. ↩︎
  4. O monstruoso é um defeito biológico e, portanto, anterior ao plano do discernimento estético. O oposto de “monstruoso” não é o “belo”, mas o “normal”. ↩︎
  5. “Mas avance o senhor latente que não pode se tornar, sombra jovem de todos, mantendo assim o mito.” Divagações, Hamlet. ↩︎

Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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