A Mulher que Fugiu de Sodoma — José Geraldo Vieira

A Mulher que fugiu de Sodoma é o primeiro romance publicado de José Geraldo Vieira, lançado no ano de 1936, possuindo 336 páginas. Ele recebeu quatro edições com o autor ainda em vida: Schmidt Editor (1931), Editora Globo (1933), Martins (1962), Melhoramentos (1975); e três edições póstumas: Planeta (2008), Descaminhos (2015), e a mais recente pela Editora Sétimo Selo (2021).

Nascido carioca, José Geraldo é um romancista cuja obra atualmente reveste-se com um ar de esoterismo: um tanto esquecido pela crítica brasileira (exceto pelo grandioso Otto Maria Carpeaux), não são muitos os que têm conhecimento amplo do autor ou que nutrem algum interesse por ele, sobretudo na Academia.

O livro foi escrito em três dias e três noites, fato que por si só é impressionante, dada a sua densidade literária e a presença de incontáveis camadas de significado. Tempo de escrita tão curto fez até mesmo com que o autor protelasse sua publicação, temendo que o público o considerasse um romance autobiográfico.

A obra é dividida em três partes bem concatenadas e fechadas entre si. Diferente dos de Machado de Assis, a linha temporal do romance escrito por José Geraldo Vieira é simples e compassada, não havendo cortes bruscos entre uma narração e outra: as narrações e a mudança do eixo de visão entre um personagem e outro ocorre sumariamente por um critério de conveniência, id est, à medida em que a história de um dos personagens ajuda a desvelar o que se passa com aquele outro.

A primeira parte do livro já se inicia com o narrador lançando ao leitor a tensão de fundo que guiará toda a narrativa: o vício do médico Mário Montemor. Devendo 16 contos de réis a um colega de trabalho que lhe emprestara tal dinheiro, que Mário gastara em apostas, este assume para a sua mulher (Lúcia Montemor) o problema que ele próprio criou. Lúcia, até então, apenas desconfiava superficialmente do desvio moral de seu marido.

É possível resumir esse Ato Inicial na grande aflição e vexames que Lúcia enfrenta ao buscar resolver o conflito causado por seu esposo. Esse trecho da primeira parte foi instrumentalmente utilizado por José Geraldo para inserir na vida da personagem uma figura decisiva para o restante da narrativa: a perdulária e burguesa Ana Maria, que empresta à Lúcia a quantia necessária para que Mário possa reaver o dinheiro ao seu emprestador.

Após outros problemas de natureza moral ainda mais grave causados por seu marido, Lúcia decide abandoná-lo para ser preceptora da filha de Ana Maria, passando a viver em suas acomodações. A cena que marca sua saída de casa se dá durante uma forte tempestade. Observando tal cena, é possível sugerir que José Geraldo Vieira entrou em contato e foi marcado pelo Rei Lear de Shakespeare; munindo-se da técnica do Bardo, o autor, nesse trecho do livro, se utiliza do cenário exterior como figuração simbólica dos movimentos interiores da psique de Lúcia.

Vendo-se abandonado pela própria esposa, o último refúgio que Mário buscou foi sua própria família. Ele procurou ajuda no seu Tio Zózimo, um cafeeiro e fazendeiro. A fim de reabilitar o sobrinho, Zózimo o envia à Paris para que ele realize uma especialização, esperando que o foco universitário e os ares de uma nova cidade ajudem o sobrinho a livrar-se do vício.

A segunda parte do livro é exclusivamente dedicada para narrar a estadia de Mário em Paris. Após um ano sem recair no vício em apostas, o personagem revê um antigo companheiro médico de São Paulo. A tragédia se dá quando a esposa de seu amigo informa que Lúcia não sentira saudades de Mário ou remorso de o ter abandonado, notícia que o deixa diante de um abismo e o faz reencontrar-se com o vício que até então se encontrava soterrado na boêmia parisiense e na vida universitária.

Ao nos depararmos com a reviravolta causada pela notícia, percebemos o quanto José Geraldo conhece a psicologia por trás do vício: Mário, que até então se julgava livre e liberto, entra em tal conflito existencial que recorre ao seu recôndito e adormecido vício em apostas para sedar a dor causada pela notícia.

Nessa parte do livro o autor demonstra uma  capacidade mnemônica absurda, lembrando com exatidão de ruas, pontes, passagens e de características topográficas e geográficas de Paris. Ademais, ele também ostenta extenso vocabulário, destacando seu domínio na língua francesa e inglesa (existem diálogos inteiros do livro que foram escritos em francês), além de apresentar termos da literatura médica com os quais estava familiarizado por ter ingressado nessa carreira nos primeiros anos da vida adulta. Tais termos, embora pareçam ser confusos ao leitor em um primeiro instante, são necessários ao livro por descreverem fenômenos patológicos específicos, os quais seriam muito prolixamente descritos sem esse suporte.

A parte final de seu magnífico Segundo Ato (ato final da vida de Mário Montemor, que está prestes a morrer) é marcada por uma balada de Oscar Wilde, executada musicalmente enquanto Mário sofre de uma agonizante pneumonia:

“For he who lives more live than ones
more deaths than one must die”.1

Oscar Wilde em ‘The Ballads of Reading Gaol’

Embora, no livro, essa balada possua significado próprio, ela também significa algo acerca de quem lê: amando junto com o protagonista e sofrendo junto as dores do seu vício, o leitor, enfim, vive a vida do personagem e morre a morte do personagem.

A terceira parte traz o foco narrativo de volta à Lúcia. O narrador, nesse ato final, revela ao leitor uma importante informação que até então se insinuava ao longo do livro: o grande “demiurgo” por trás dos acontecimentos decorridos na vida de Mário enquanto este vivia em Paris era o esposo de Ana Maria, o sr. Nuno de Almada. Decidindo proteger a preceptora de sua filha do sofrimento, Nuno escondeu a carta que narrava a morte de Mário, motivo que leva Lúcia a abandonar a residência dos Almada e a companhia de Ana Maria, tão logo realizada sua descoberta: ela fora tratada como uma peça num tabuleiro de xadrez.

Citando a frase do professor Olavo de Carvalho: “a grande literatura – toda ela – é psicanálise”. Ao se conhecer os mecanismos psicológicos do protagonista, salas da consciência que antes se encontravam escuras passam a ser iluminadas, tal é o poder da palavra e da imaginação que a grande literatura carrega.

“ – Tell me, good Brutus, can you see your face?
– No, Cassius; for the eye sees not itself but by reflection; by some other things”2

Júlio César, William Shakespeare

Embora possa impressionar o bom leitor pela técnica, A Mulher que fugiu de Sodoma é mais que isso: é um espelho onde, em maior ou menor grau, o leitor vê-se a si próprio.

Notas:

[1] “Pois aquele que vive mais vidas do que uma
Mais mortes do que uma deve morrer.”

[2] “— Diga-me, bom Brutus, consegues ver teu rosto?
—Não, Cassius, pois o olho não vê a si mesmo. Mas pela reflexão, por meio de algumas outras coisas.”

Júlio César, William Shakespeare


Esta resenha não tem a intenção de substituir a leitura do livro, ok? Se você gostou dela e deseja ajudar na continuação de nosso trabalho, você pode adquirir esse e outros títulos do José Geraldo Vieira no site da Editora Sétimo Selo usando nosso cupom, DIARIO5, para garantir um desconto especial no momento da compra, ou também o pode fazer através dos nossos links da Amazon.

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Até a próxima!


Sobre o Autor ou Tradutor

Lucas de Souza

Estudante de Direito, amante da literatura inglesa e músico nas horas vagas.

2 thoughts on “A Mulher que Fugiu de Sodoma — José Geraldo Vieira

  1. Estava procurando algumas reflexões dignas sobre essa obra e como conheço seu trabalho pelo insta, resolvi ler.
    Terminei a obra essa semana. É realmente densa para alguém que está iniciando na literatura brasileira rsrs Deveria ter seguido o conselho do Olavo e iniciar por Graciliano Ramos.
    Confesso que nem conhecia a mulher de Ló na Bíblia (que virou estátua de sal), pois me converti recentemente e dificilmente me interessava pelas Sagradas Escrituras.
    De qualquer modo, gostaria de saber se voce conseguiu apontar a relação da história com a mulher de Ló com Lúcia, pois Sodoma trata-se do contexto geral dos personagens.
    Enfim, sei que há várias de significados a serem extraídas e que pode ser uma pergunta besta. Mas como sei que você possui densidade literária sei que é a pessoa certa para fazer essa pergunta 🙂

  2. Vou tentar responder conforme a minha percepção. A narrativa, por se tratar de um símbolo, as vezes permite mais de uma interpretação possível, vamos lá. Lúcia é um nome que vem do latim “Lux”. A Luz é o elemento fundamental não só para a vida, mas para o movimento das coisas. Os seres vivos se movem animados pela luz. O ato de transformar um ser vivo em uma estátua de pedra é justamente o momento em que eu retiro a vida daquele ente. A relação de Lúcia com a mulher de Ló é inversa: a mulher de Ló é a pedra, a ausência de movimento; Lúcia é luz, é aquela que faz as coisas se moverem. Existe essa relação simbólica entre Lúcia e a mulher de Ló. Na narrativa, isso acontece de maneira concreta quando ela decide sair da casa dos Almadas por quê entre eles e o Mário Montemor havia uma certa correspondência: a história dela estava petrificada pelos eventos que ocorreram entre ela e Mário, e os Almadas constituem o fator petrificante da história. A partir do momento em que ela decide sair de lá, ela se torna uma anti-mulher-de-Ló, por assim dizer. Ela decide despetrificar a própria vida e seguir adiante. Espero que tenha conseguido responder de maneira clara e satisfatória 🙂

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