John Locke

John Locke (nascido em 1632, falecido em 1704) foi um filósofo britânico, acadêmico de Oxford e pesquisador médico. O monumental Ensaio Sobre o Entendimento Humano (1689) de Locke é uma das primeiras grandes defesas do empirismo moderno e se preocupa em determinar os limites do entendimento humano em relação a um amplo espectro de tópicos. Assim, ele nos diz em detalhes o que se pode legitimamente afirmar saber e o que não se pode. A associação de Locke com Anthony Ashley Cooper (mais tarde o Primeiro Conde de Shaftesbury) levou-o a se tornar progressivamente um funcionário do governo encarregado de coletar informações sobre comércio e colônias, um escritor da área econômica, um ativista político de oposição e, por fim, um revolucionário cuja causa acabou triunfando na Revolução Gloriosa de 1688. Entre as obras políticas de Locke, a mais famosa é o Segundo Tratado sobre o Governo, no qual ele argumenta que a soberania reside no povo e explica a natureza do governo legítimo em termos de direitos naturais e do contrato social. Ele também é famoso por pedir a separação da Igreja e do Estado em sua Carta Sobre a Tolerância. Grande parte da obra de Locke é caracterizada pela oposição ao autoritarismo. Isso fica evidente tanto no nível do indivíduo quanto no nível das instituições, como o governo e a igreja. Em relação ao indivíduo, Locke quer que cada um de nós use a razão para buscar a verdade, em vez de simplesmente aceitar a opinião das autoridades ou estar sujeito à superstição. Ele quer que proporcionemos o consentimento às proposições de acordo com as evidências que as sustentam. No nível das instituições, torna-se importante distinguir as funções legítimas das ilegítimas das instituições e fazer a distinção correspondente para o uso da força por essas instituições. Locke acredita que o uso da razão para tentar compreender a verdade e determinar as funções legítimas das instituições otimizará o florescimento humano para o indivíduo e para a sociedade, tanto em relação ao bem-estar material quanto espiritual. Isso, por sua vez, equivale a seguir a lei natural e o cumprimento do propósito divino para a humanidade.

1. Contexto histórico e a vida de Locke

John Locke (1632-1704) foi um dos maiores filósofos da Europa no final do século XVII. Locke cresceu e viveu em um dos séculos mais extraordinários da história política e intelectual inglesa. Foi um século em que os conflitos entre a Coroa e o Parlamento e os conflitos que se sobrepunham entre protestantes, anglicanos e católicos levaram a uma guerra civil na década de 1640. Com a derrota e a morte de Carlos I, iniciou-se um grande experimento nas instituições governamentais, incluindo a abolição da monarquia, da Câmara dos Lordes e da igreja anglicana, e o estabelecimento do Protetorado de Oliver Cromwell na década de 1650. O colapso do Protetorado após a morte de Cromwell foi seguido pela Restauração de Carlos II — o retorno da monarquia, da Câmara dos Lordes e da Igreja Anglicana. Esse período durou de 1660 a 1688. Ele foi marcado por conflitos contínuos entre o Rei e o Parlamento e por debates sobre a tolerância religiosa para dissidentes protestantes e católicos. Esse período termina com a Revolução Gloriosa de 1688, na qual James II foi expulso da Inglaterra e substituído por William de Orange e sua esposa Mary. O período final durante o qual Locke viveu envolveu a consolidação do poder por William e Mary e o início dos esforços de William para se opor ao domínio da Europa pela França de Luís XIV, que mais tarde culminou nas vitórias militares de John Churchill, o Duque de Marlborough.

1.1 A Vida de Locke até seu Encontro com Lord Ashley em 1666

Locke nasceu em Wrington, filho de pais puritanos de recursos modestos. Seu pai era um advogado rural que serviu em uma companhia de cavalaria do lado puritano nos estágios iniciais da Guerra Civil Inglesa. O comandante de seu pai, Alexander Popham, tornou-se deputado local, e foi seu patrocínio que permitiu que o jovem John Locke recebesse uma excelente educação. Em 1647, Locke foi para a Westminster School, em Londres.

Da escola de Westminster, ele foi para a Christ Church, em Oxford, no outono de 1652, aos vinte anos de idade. Assim como a Westminster School era a mais importante escola inglesa, a Christ Church era a mais importante faculdade de Oxford. A educação em Oxford era medieval. Locke, tal como Hobbes antes dele, achou a filosofia aristotélica que lhe foi ensinada em Oxford de pouca utilidade. No entanto, em Oxford havia mais do que Aristóteles. A nova filosofia experimental havia chegado. John Wilkins, cunhado de Cromwell, havia se tornado diretor do Wadham College. O grupo em torno de Wilkins foi o núcleo do que viria a se tornar a Royal Society inglesa. A Sociedade surgiu a partir de reuniões informais e grupos de discussão, mudou-se para Londres após a Restauração e tornou-se uma instituição formal na década de 1660, com estatutos de Carlos II. A Sociedade viu seus objetivos em contraste com as tradições escolásticas/aristotélicas que dominavam as universidades. O programa era estudar a natureza em vez de livros. Muitos dos associados de Wilkins eram pessoas interessadas em buscar a medicina por meio da observação em vez da leitura de textos clássicos. O interesse de Bacon pela experimentação cuidadosa e pela coleta sistemática de fatos a partir dos quais se poderia fazer generalizações era característico desse grupo. Um dos amigos de Locke da escola de Westminster, Richard Lower, apresentou a Locke a medicina e a filosofia experimental que estava sendo seguida pelos virtuoses de Wadham.

Locke recebeu seu B.A. em fevereiro de 1656. Sua carreira em Oxford, no entanto, continuou após o período de graduação. Em junho de 1658, Locke se qualificou como Mestre em Artes e foi eleito Aluno Sênior do Christ Church College. A classificação era equivalente a um Fellow em qualquer uma das outras faculdades, mas não era permanente. Locke ainda não havia definido qual seria sua carreira. Ele foi eleito professor de grego na Christ Church em dezembro de 1660 e professor de retórica em 1663. Nesse ponto, Locke precisava tomar uma decisão. Os estatutos da Christ Church estabeleciam que cinquenta e cinco das bolsas de estudo sênior deveriam ser reservadas para homens com ordens ou que estivessem se preparando para as ordens. Apenas cinco poderiam ser ocupadas por outros, duas em medicina, duas em direito e uma em filosofia moral. Portanto, havia um bom motivo para Locke se tornar um clérigo. Desde sua graduação, ele vinha estudando medicina. Então, Locke decidiu se tornar médico.

Com a restauração de Carlos II, John Wilkins deixou Oxford. O novo líder do grupo científico de Oxford era Robert Boyle. Ele também foi o mentor científico de Locke. Boyle (com a ajuda de seu surpreendente assistente Robert Hooke) construiu uma bomba de ar que levou à formulação da lei de Boyle e desenvolveu um barômetro como indicador meteorológico. O trabalho com a bomba de ar gerou uma controvérsia com Thomas Hobbes porque as explicações de Boyle sobre o funcionamento da bomba de ar eram incompatíveis com a teoria microcorpuscular de Hobbes. Essa controvérsia continuou por dez anos. Boyle foi, no entanto, mais influente como teórico. Ele era um filósofo mecânico que tratava o mundo como redutível à matéria em movimento. Mas ele não tinha uma descrição microcorpuscular do ar.

Locke leu Boyle antes de ler Descartes. Quando leu Descartes, viu que o grande filósofo francês oferecia uma alternativa viável ao aristotelismo estéril que lhe havia sido ensinado em Oxford. Ao escrever An Essay Concerning Human Understanding (Ensaio sobre o Entendimento Humano), Locke adotou o “modo de pensar” de Descartes, embora esse modo tenha sido transformado de modo a se tornar uma parte orgânica da filosofia de Locke. Ainda assim, embora admirasse Descartes, o envolvimento de Locke com os cientistas de Oxford lhe deu uma perspectiva que o tornou crítico dos elementos racionalistas da filosofia de Descartes.

Na Epístola ao Leitor, no início do Ensaio, Locke observa:

A comunidade do conhecimento não está, neste momento, sem mestres construtores, cujos poderosos projetos, no avanço das ciências, deixarão monumentos duradouros para a admiração da posteridade: mas nem todos devem esperar tornar-se um Boyle ou um Sydenham; e em uma época que produz mestres como o grande Huygenius e o incomparável Sr. Newton, com alguns outros dessa estirpe, já é ambição suficiente ser empregado como um subtrabalhador para limpar um pouco o terreno e remover um pouco do lixo que se encontra no caminho do conhecimento …. (N: 9-10; todas as citações são da edição Nidditch de An Essay Concerning Human Understanding [N])

Locke conhecia todos esses homens e seu trabalho. Locke, Boyle e Newton foram todos fundadores ou membros iniciais da Royal Society inglesa. Foi com Boyle que Locke aprendeu sobre o atomismo (ou a hipótese corpuscular) e foi do livro de Boyle, The Origin of Forms and Qualities (A Origem das Formas e Qualidades), que Locke aprendeu a linguagem das qualidades primárias e secundárias. Sydenham era um médico inglês e Locke fez pesquisas médicas com ele. Sydenham defendia a observação cuidadosa das doenças e rejeitava o apelo às causas subjacentes. Boyle e Newton trabalharam com cores que não envolviam explicações microcorpusculares. Locke leu o Principia Mathematica Philosophiae Naturalis de Newton enquanto estava exilado na Holanda e consultou Huygens sobre a solidez de sua matemática. Locke e Newton tornaram-se amigos após o retorno de Locke da Holanda em 1688. É possível que, ao se referir a si mesmo como um “subtrabalhador”, Locke não esteja apenas demonstrando uma certa modéstia literária, mas também contrastando as descobertas positivas desses homens com sua própria tentativa de mostrar as inadequações das filosofias aristotélica e escolástica e, até certo ponto, da cartesiana. No entanto, há muitos aspectos do projeto de Locke aos quais essa imagem de um trabalhador insuficiente não faz justiça (veja Jolley 1999: 15-17). Embora a filosofia corpuscular e as descobertas de Newton tenham claramente influenciado Locke, é ao programa baconiano de produção de histórias naturais que Locke faz referência quando fala sobre o Ensaio na Introdução. Ele escreve:

Será suficiente para o meu Propósito atual, considerar as Faculdades de discernimento do Homem, como elas são empregadas sobre os Objetos, com os quais elas têm a ver: e eu imaginarei que não me desdobrei totalmente nos Pensamentos que terei nesta Ocasião, se neste Método Histórico e Simples, eu puder dar qualquer Relato sobre as Maneiras, pelas quais nosso Entendimento chega a essas Noções das Coisas, e puder estabelecer qualquer Medida de Certeza de nosso Conhecimento…. (I.1.2, N: 43-4 – os três números são números de livro, capítulo e seção, respectivamente, seguidos pelo número da página na edição de Nidditch)

Aparentemente, o “Método Histórico e Simples” consiste em fornecer um relato genético de como chegamos às nossas idéias. Presumivelmente, isso revelará o grau de certeza do conhecimento baseado em tais idéias. O envolvimento ativo do próprio Locke com o movimento científico se deu, em grande parte, por meio de seus estudos informais de medicina. O Dr. David Thomas era seu amigo e colaborador. Locke e Thomas tinham um laboratório em Oxford que, muito provavelmente, era, de fato, uma farmácia. Em 1666, Lord Ashley, um dos homens mais ricos da Inglaterra, foi a Oxford para beber algumas águas medicinais. Ele havia pedido ao Dr. Thomas que as fornecesse. Thomas teve que sair da cidade e pediu a Locke que providenciasse a entrega da água. Como resultado desse encontro, Ashley convidou Locke para ir a Londres como seu médico pessoal. Em 1667, Locke efetivamente se mudou para Londres, tornando-se não apenas o médico pessoal de Lord Ashley, mas também secretário, pesquisador, agente político e amigo. Vivendo com ele, Locke se viu no centro da política inglesa nas décadas de 1670 e 1680.

1.2 Locke e Lord Shaftesbury 1666 a 1688

O principal trabalho de Locke enquanto morava na residência de Lord Ashley, a Exeter House, em 1668, era como médico de Ashley. Locke usou seu treinamento médico para organizar uma operação bem-sucedida em Ashley. Essa foi talvez a operação mais cuidadosamente documentada do século XVII. Locke consultou médicos de todo o país para determinar quais eram as melhores práticas para essa operação e fez da limpeza uma prioridade. Ao fazer isso, ele salvou a vida de seu cliente e, assim, mudou a história da Inglaterra.

Locke teve vários outros empregos. Trabalhou como secretário do Board of Trade and Plantations e secretário dos Lords Proprietors of the Carolinas. Lord Ashley foi um dos defensores da opinião de que a Inglaterra prosperaria por meio do comércio e que as colônias poderiam desempenhar um papel importante na promoção do comércio. Ashley persuadiu Carlos II a criar um Conselho de Comércio e Plantações para coletar informações sobre o comércio e as colônias, e Locke tornou-se seu secretário. Como secretário do Board of Trade, Locke era o ponto de coleta de informações de todo o mundo sobre comércio e colônias para o governo inglês. Entre os projetos comerciais de Ashley estava a tentativa de fundar colônias nas Carolinas. Na qualidade de secretário dos Lords Proprietors, Locke participou da redação da constituição fundamental das Carolinas. Há alguma controvérsia sobre a extensão do papel de Locke na redação da constituição. Além das questões sobre comércio e colônias, Locke estava envolvido, por meio de Shaftesbury, em outras controvérsias sobre políticas públicas. Houve uma crise monetária na Inglaterra envolvendo o valor do dinheiro e o corte de moedas. Locke escreveu artigos para Lord Ashley sobre questões econômicas, incluindo a crise da moeda.

Enquanto morava em Londres, na Exeter House, Locke continuou a se envolver em discussões filosóficas. Ele nos conta que:

Se eu fosse incomodá-lo com a história deste Ensaio, eu lhe diria que cinco ou seis amigos reunidos em minha sala, discutindo sobre um assunto muito distante deste, viram-se rapidamente em um impasse, devido às dificuldades que surgiram de todos os lados. Depois de nos intrigarmos por algum tempo, sem nos aproximarmos de uma solução para as dúvidas que nos deixavam perplexos, pensei que havíamos tomado um rumo errado; e que, antes de nos lançarmos em investigações dessa natureza, era necessário examinar nossas próprias habilidades e ver quais objetos nossos entendimentos estavam ou não aptos a tratar. Propus isso à companhia, e todos concordaram prontamente; e então concordamos que essa deveria ser nossa primeira investigação. Alguns pensamentos apressados e não digeridos, sobre um assunto que eu nunca havia considerado antes, e que eu deixei para nossa próxima reunião, deram origem a este Discurso; que, tendo sido iniciado por acaso, foi continuado por súplicas, escrito em parcelas incoerentes e, após longos intervalos de negligência, retomado novamente, conforme meu humor ou ocasiões permitiam; e, por fim, em um retiro onde a saúde me permitia lazer, foi colocado na ordem em que o senhor o vê agora. (Epístola ao Leitor, N: 7)

James Tyrrell, um dos amigos de Locke, estava presente nessa reunião. Ele lembra que a discussão foi sobre os princípios da moralidade e da religião revelada (Cranston 1957: 140-1). Assim, o estudioso e pesquisador médico de Oxford começou o trabalho que o ocuparia durante os vinte anos seguintes.

Em 1674, depois que Shaftesbury deixou o governo, Locke voltou para Oxford, onde obteve o título de bacharel em medicina e uma licença para exercer a profissão, e depois foi para a França (Cranston 1957: 160). Na França, Locke foi de Calais para Paris, Lyon e depois para Montpellier, onde passou os quinze meses seguintes. Grande parte do tempo de Locke foi gasto aprendendo sobre o protestantismo na França. O Édito de Nantes (promulgado por Henrique IV em 1598) estava em vigor e, portanto, havia um certo grau de tolerância religiosa na França. Luís XIV revogou o decreto em 1685 e os protestantes franceses foram mortos e cerca de 400.000 foram para o exílio.

Enquanto Locke estava na França, a sorte de Shaftesbury oscilava. Em 1676, Shaftesbury foi preso na torre. Sua prisão durou um ano. Em 1678, após o misterioso assassinato de um juiz de Londres, informantes (principalmente Titus Oates) começaram a revelar uma suposta conspiração católica para assassinar o rei e colocar seu irmão no trono. Isso provocou um frenesi público contra os católicos. Embora Shaftesbury não tenha inventado a história da conspiração, nem tenha induzido Oates a se manifestar, ele explorou a situação em benefício de seu partido. No caos público que cercou as revelações sensacionais, Shaftesbury organizou uma extensa rede partidária, exerceu grande controle sobre as eleições e construiu uma grande maioria parlamentar. Sua estratégia era garantir a aprovação de um projeto de lei de exclusão que impediria que o irmão de Carlos II, abertamente católico, se tornasse rei. Embora o projeto de lei de exclusão tenha sido aprovado na Câmara dos Comuns, ele foi rejeitado na Câmara dos Lordes devido à forte oposição do rei. À medida que o pânico em relação à conspiração papal diminuía, Shaftesbury ficou sem seguidores nem causa. Shaftesbury foi preso em 21 de julho de 1681 e novamente colocado na torre. Ele foi julgado sob acusações forjadas de traição, mas foi absolvido por um grande júri de Londres (repleto de seus partidários) em novembro.

Nesse momento, alguns dos líderes do Country Party começaram a planejar uma insurreição armada que, se tivesse acontecido, teria começado com o assassinato de Charles e seu irmão quando voltavam das corridas de cavalos em Newmarket para Londres. As chances de que esse levante ocorresse não eram tão boas quanto os conspiradores supunham. As lembranças do tumulto da guerra civil ainda estavam relativamente frescas. Por fim, Shaftesbury, que estava mudando de esconderijo em esconderijo, desistiu e fugiu para a Holanda em novembro de 1682. Ele morreu lá em janeiro de 1683. Locke permaneceu na Inglaterra até que a conspiração de Rye House (nomeada em homenagem à casa de onde os conspiradores atirariam contra o rei e seu irmão) foi descoberta em junho de 1683. Locke partiu para o West Country para colocar seus negócios em ordem na mesma semana em que a conspiração foi revelada ao governo e, em setembro, ele estava exilado na Holanda.

Enquanto estava no exílio, Locke terminou o Ensaio sobre o Entendimento Humano e publicou uma nota prévia de cinquenta páginas sobre ele, em francês. (Isso forneceria ao mundo intelectual do continente a maior parte de suas informações sobre o Ensaio até que a tradução francesa de Pierre Coste fosse publicada em 1704). Ele também escreveu e publicou sua Epistola de Tolerentia em latim. Richard Ashcraft, em seu Revolutionary Politics and Locke’s Two Treatises of Government (Política Revolucionária e os Dois Tratados de Governo de Locke, 1986), sugere que, enquanto estava na Holanda, Locke não estava apenas terminando o Ensaio sobre o Entendimento Humano e cuidando de sua saúde, mas também estava intimamente associado aos revolucionários ingleses no exílio. O governo inglês estava muito preocupado com esse grupo. Eles tentaram fazer com que vários deles, inclusive Locke, fossem extraditados para a Inglaterra. A bolsa de estudos de Locke em Oxford foi tirada dele. Nesse meio tempo, o serviço de inteligência inglês se infiltrou no grupo rebelde na Holanda e efetivamente frustrou seus esforços — pelo menos por um tempo. Enquanto Locke vivia no exílio na Holanda, Carlos II morreu em 6 de fevereiro de 1685 e foi sucedido por seu irmão, que se tornou James II da Inglaterra. Logo depois disso, os rebeldes na Holanda enviaram uma força de soldados sob o comando do Duque de Monmouth para a Inglaterra para tentar derrubar James II. A revolta foi esmagada, e Monmouth foi capturado e executado (Ashcraft 1986). Para uma análise meticulosa, embora cautelosa, das evidências sobre o envolvimento de Locke com os rebeldes ingleses no exílio, consulte Locke: Uma Biografia (2007), de Roger Woolhouse.

No entanto, no final das contas, os rebeldes foram bem-sucedidos. James II alienou a maioria de seus apoiadores, e William de Orange foi convidado a trazer uma força holandesa para a Inglaterra. Depois que o exército de Guilherme desembarcou, Jaime II, percebendo que não conseguiria montar uma resistência eficaz, fugiu do país para o exílio na França. Esse fato ficou conhecido como a Revolução Gloriosa de 1688. Ela é um divisor de águas na história inglesa. Pois marca o ponto em que o equilíbrio de poder no governo inglês passou do rei para o Parlamento. Locke retornou à Inglaterra em fevereiro de 1689.

1.3 O Fim da Vida de Locke 1689-1704

Após seu retorno do exílio, Locke publicou o Ensaio Sobre o Entendimento Humano e os Dois Tratados sobre o Governo. Além disso, a tradução de Popple de Uma Carta Sobre a Tolerância que Locke escreveu também foi publicada. É importante observar que os Dois Tratados e a Carta Sobre a Tolerância foram publicados anonimamente. Locke passou a residir no campo, em Oates, Essex, na casa de Sir Francis e Lady Masham (Damaris Cudworth). Locke conheceu Damaris Cudworth em 1682 e se envolveu intelectual e romanticamente com ela. Ela era filha de Ralph Cudworth, o platonista de Cambridge, e filósofa por direito próprio. Depois que Locke se exilou na Holanda em 1683, ela se casou com Sir Francis Masham. Locke e Lady Masham permaneceram bons amigos e companheiros intelectuais até o fim da vida de Locke. Durante os anos restantes de sua vida, Locke supervisionou mais quatro edições do Ensaio e se envolveu em controvérsias sobre ele, principalmente em uma série de cartas publicadas com Edward Stillingfleet, bispo de Worcester. De maneira semelhante, Locke defendeu a Carta Sobre a Tolerância contra uma série de ataques. Ele também escreveu A Razoabilidade do Cristianismo e Alguns Pensamentos sobre Educação durante esse período.

Locke ainda não havia terminado com os assuntos públicos. Em 1696, a Junta Comercial foi reativada. Locke desempenhou um papel importante em seu renascimento e atuou como o membro mais influente até 1700. A nova Board of Trade tinha poderes administrativos e, de fato, preocupava-se com uma ampla gama de questões, desde o comércio de lã irlandesa e a supressão da pirataria até o tratamento dos pobres na Inglaterra e o governo das colônias. Era, na frase de Peter Laslett, “o órgão que administrava os Estados Unidos antes da Revolução Americana” (Laslett 1954 [1990: 127]). Durante esses últimos oito anos de sua vida, Locke sofria de asma, e sofria tanto que só conseguia suportar a fumaça de Londres durante os quatro meses mais quentes do ano. Locke claramente se envolveu nas atividades da Board por causa de um forte senso de dever patriótico. Após sua aposentadoria da Board of Trade em 1700, Locke permaneceu aposentado em Oates até sua morte, no domingo, 28 de outubro de 1704.

2. Os Limites da Compreensão Humana

Locke é frequentemente classificado como o primeiro dos grandes empiristas ingleses (ignorando as reivindicações de Bacon e Hobbes). Essa reputação se baseia na maior obra de Locke, o monumental Ensaio Sobre o Entendimento Humano. Locke explica seu projeto em vários lugares. Talvez o mais importante de seus objetivos seja determinar os limites do entendimento humano. Locke escreve:

Pois eu achava que o primeiro passo para satisfazer as várias indagações que a mente do homem estava apta a fazer era realizar um levantamento sobre nosso próprio entendimento, examinar nossos próprios poderes e ver a que coisas eles estavam adaptados. Até que isso fosse feito, eu suspeitava que começamos pelo lado errado e, em vão, buscamos a satisfação em uma posse tranquila e segura das verdades que mais nos preocupavam, enquanto soltávamos nossos pensamentos no vasto oceano do ser, como se toda a extensão ilimitada fosse a posse natural e indubitável de nosso entendimento, onde não havia nada que escapasse de suas decisões ou de sua compreensão. Assim, os homens, estendendo suas indagações para além de suas capacidades e deixando seus pensamentos vagarem por aquelas profundezas onde não podem encontrar uma base segura, não é de se admirar que levantem questões e multipliquem disputas que, nunca chegando a uma resolução clara, só servem para continuar e aumentar suas dúvidas e, por fim, confirmá-las em um ceticismo perfeito. Enquanto que, se as capacidades de nosso entendimento fossem bem consideradas, a extensão de nosso conhecimento uma vez descoberta e o horizonte encontrado, que estabelece a fronteira entre as partes iluminadas e as partes obscuras das coisas, entre o que é e o que não é compreensível para nós, os homens talvez concordassem com menos escrúpulo com a ignorância declarada a respeito de uma delas e empregassem seus pensamentos e discursos com mais vantagem e satisfação na outra. (I.1.7, N: 47)

Alguns filósofos antes de Locke haviam sugerido que seria bom encontrar os limites do Entendimento, mas o que Locke faz é realizar esse projeto em detalhes. Nos quatro livros do Ensaio, Locke considera as fontes e a natureza do conhecimento humano. O Livro I argumenta que não temos conhecimento inato. (Nesse ponto, ele se assemelha a Berkeley e Hume, e difere de Descartes e Leibniz). Portanto, ao nascer, a mente humana é uma espécie de tábula rasa sobre a qual a experiência escreve. No Livro II, Locke afirma que as idéias são os materiais do conhecimento e que todas as idéias vêm da experiência. O termo “idéia”, diz Locke, “…significa tudo o que é objeto do entendimento, quando um homem pensa” (I.1.8, N: 47). A experiência é de dois tipos: sensação e reflexão. Uma delas — a sensação — nos informa sobre coisas e processos no mundo externo. A outra — a reflexão — nos informa sobre as operações de nossa própria mente. A reflexão é um tipo de sentido interno que nos torna conscientes dos processos mentais em que estamos envolvidos. Algumas idéias são obtidas apenas da sensação, outras apenas da reflexão e outras de ambas.

Locke tem uma teoria atômica ou, talvez mais precisamente, uma teoria corpuscular das idéias, ou seja, há uma analogia entre a maneira como os átomos ou corpúsculos se combinam em complexos para formar objetos físicos e a maneira como as idéias se combinam. As idéias são simples ou complexas. Não podemos criar idéias simples, só podemos obtê-las por meio da experiência. Nesse aspecto, a mente é passiva. Quando a mente tem um estoque de idéias simples, ela pode combiná-las em idéias complexas de vários tipos. Nesse aspecto, a mente é ativa. Assim, Locke adere a uma versão do axioma empirista de que não há nada no intelecto que não estivesse anteriormente nos sentidos — onde os sentidos são ampliados para incluir a reflexão. O Livro III trata da natureza da linguagem, suas conexões com as idéias e seu papel no conhecimento. O Livro IV, o ponto culminante das reflexões anteriores, explica a natureza e os limites do conhecimento, a probabilidade e a relação entre razão e fé. Vamos agora considerar o Ensaio em alguns detalhes.

2.1 Livro I

No início do Ensaio sobre o Entendimento Humano, Locke diz que, como seu objetivo é “investigar a origem, a certeza e a extensão do conhecimento humano, juntamente com as bases e os graus de crença, opinião e concordância”, ele começará pelas idéias — os materiais a partir dos quais o conhecimento é construído. Sua primeira tarefa é “indagar sobre a origem dessas idéias… e as maneiras pelas quais o entendimento vem a ser provido delas” (I.1.3, N: 44). O papel do Livro I do Ensaio é defender que o fato de ser inato não é uma maneira pela qual o entendimento é fornecido por princípios e idéias. Locke trata a inatualidade como uma hipótese empírica e argumenta que não há boas evidências que a sustentem.

Locke descreve as idéias inatas como “algumas noções primárias… caracteres como que estampados na mente do homem, que a alma recebe desde o seu primeiro Ser e traz consigo para o mundo” (I.2.1, N: 48). Ao prosseguir com essa investigação, Locke rejeita a alegação de que existem princípios inatos especulativos (I.2), princípios morais inatos práticos (I.3) ou que temos idéias inatas sobre Deus, identidade ou impossibilidade (I.4). Locke rejeita argumentos decorrentes do assentimento universal e ataca os relatos disposicionais sobre princípios inatos. Assim, ao considerar o que contaria como evidência do assentimento universal a proposições como “O que é, é” ou “É impossível que a mesma coisa seja e não seja”, ele afirma que as crianças e os estúpidos deveriam estar cientes de tais verdades se elas fossem inatas, mas que eles “não têm a menor apreensão ou pensamento delas”. Por que as crianças e os idiotas deveriam ter consciência e capacidade de articular tais proposições? Locke diz:

Parece-me uma quase contradição dizer que há verdades impressas na alma, que ela não percebe ou não entende; impressão, se significa alguma coisa, não é outra coisa senão fazer com que certas verdades sejam percebidas. (I.2.5, N: 49)

Portanto, o primeiro ponto de Locke é que, se as proposições fossem inatas, elas deveriam ser percebidas imediatamente por bebês e por estúpidos (e, de fato, por todos os outros), mas não há evidências de que sejam. Locke passa então a atacar os relatos disposicionais que dizem, grosso modo, que as proposições inatas são capazes de ser percebidas sob certas circunstâncias. Até que essas circunstâncias ocorram, as proposições permanecem não percebidas na mente. Com o advento dessas condições, as proposições são então percebidas. Locke apresenta o seguinte argumento contra o fato de as proposições inatas serem disposicionais:

Pois se qualquer [proposição] pode [estar na mente, mas não ser conhecida]; então, pela mesma Razão, todas as Proposições que são verdadeiras, e a Mente é sempre capaz de concordar com elas, pode ser dita que está na Mente, e que está impressa: uma vez que se qualquer uma pode ser dita como estando na Mente, que esta nunca conheceu, deve ser apenas porque ela é capaz de conhecê-la; e assim a Mente é de todas as Verdades que ela sempre conhecerá. (I.2.5, N: 50)

A essência desse argumento e de muitos outros argumentos de Locke contra os relatos disposicionais de proposições inatas é que tais relatos disposicionais não fornecem um critério adequado para distinguir proposições inatas de outras proposições que a mente pode vir a descobrir. Assim, mesmo que algum critério seja proposto, ele acabará não fazendo o trabalho que deveria fazer.

Quando Locke passa dos princípios especulativos para a questão da existência ou não de princípios morais práticos inatos, muitos dos argumentos contra os princípios especulativos inatos continuam a se aplicar, mas há algumas considerações adicionais. Princípios práticos, como a Regra de Ouro, não são autoevidentes da mesma maneira que princípios especulativos como “O que é, é”. Assim, é possível perguntar de maneira clara e sensata as razões pelas quais se deve considerar a Regra de Ouro verdadeira ou obedecê-la (I.3.4, N: 68). Existem diferenças substanciais entre as pessoas com relação ao conteúdo dos princípios práticos. Logo, eles são candidatos ainda menos prováveis a serem proposições inatas ou a satisfazerem o critério de assentimento universal. No quarto capítulo do Livro I, Locke levanta pontos semelhantes sobre as idéias que compõem os princípios especulativos e práticos. A questão é que, se as idéias que constituem os princípios não são inatas, isso nos dá ainda mais razões para afirmar que os princípios não são inatos. Ele examina as idéias de identidade, impossibilidade e Deus para defender esses pontos.

No Livro I, Locke fala pouco sobre quem defende a doutrina dos princípios inatos que ele está atacando. Por esse motivo, às vezes ele é acusado de atacar espantalhos. John Yolton argumentou de maneira persuasiva (Yolton 1956) que a visão de que as idéias e os princípios inatos eram necessários para a estabilidade da religião, da moralidade e da lei natural era muito difundida na Inglaterra no século XVII e que, ao atacar tanto o relato ingênuo quanto o disposicional das idéias e dos princípios inatos, Locke está atacando posições que eram amplamente defendidas e continuaram a ser defendidas após a publicação do Ensaio. Portanto, a acusação de que o relato de Locke sobre princípios inatos é feito de palha não é uma crítica justa. Mas há também algumas conexões importantes com filósofos e escolas específicas que merecem ser observadas e alguns pontos sobre idéias inatas e a investigação.

Em I. 4. 24. Locke nos diz que a doutrina dos princípios inatos, uma vez aceita, “aliviava os preguiçosos das dores da busca” e que a doutrina é um obstáculo à investigação que é usado por aqueles que “pretendiam ser mestres e professores” para obter ilegitimamente o controle das mentes de seus alunos. Locke tem claramente em mente os aristotélicos e os escolásticos das universidades. Assim, o ataque de Locke aos princípios inatos está ligado ao seu anti-autoritarismo. Trata-se de uma expressão de sua visão da importância da investigação livre e autônoma na busca da verdade. Em última análise, Locke defende que esse é o melhor caminho para o conhecimento e a felicidade. Locke, assim como Descartes, está derrubando os alicerces da antiga casa de conhecimento escolástica aristotélica. Porém, enquanto Descartes se concentrou no empirismo na base da estrutura, Locke está se concentrando nas alegações de que as idéias inatas fornecem seus primeiros princípios. O ataque às idéias inatas é, portanto, o primeiro passo para a demolição do modelo escolástico de ciência e conhecimento. Ironicamente, também fica claro em II.1.9. que Locke vê a afirmação de Descartes de que sua essência é ser uma coisa pensante como implicando uma doutrina de idéias e princípios inatos.

2.2 Livro II

No Livro II do Ensaio, Locke apresenta sua descrição positiva de como adquirimos os materiais do conhecimento. Locke distingue uma variedade de tipos diferentes de idéias no Livro II. Ele defende que a mente é uma tabula rasa ou folha em branco até que a experiência na forma de sensação e reflexão forneça os materiais básicos — idéias simples — a partir dos quais a maior parte de nosso conhecimento mais complexo é construída. Embora a mente possa ser uma tábula rasa no que diz respeito ao conteúdo, é evidente que Locke acredita que nascemos com uma variedade de faculdades para receber e habilidades para manipular ou processar o conteúdo quando o adquirimos. Assim, por exemplo, a mente pode se envolver em três tipos diferentes de ação ao reunir idéias simples. O primeiro desses tipos de ação é combiná-las em idéias complexas. As idéias complexas são de dois tipos: idéias de substâncias e idéias de modos. As substâncias são existências independentes. Os seres que contam como substâncias incluem Deus, anjos, seres humanos, animais, plantas e uma variedade de coisas construídas. Os modos são existências dependentes. Entre eles estão as idéias matemáticas e morais e toda a linguagem convencional da religião, da política e da cultura. A segunda ação que a mente realiza é a aproximação de duas idéias, sejam elas simples ou complexas, uma da outra, de modo a visualizá-las de uma só vez, sem uni-las. Isso nos dá nossas idéias de relações (II.12.1, N: 163). O terceiro ato da mente é a produção de nossas idéias gerais por abstração das particulares, deixando de fora as circunstâncias particulares de tempo e lugar, o que limitaria a aplicação de uma idéia a um indivíduo em particular. Além dessas habilidades, há faculdades como a memória, que permite o armazenamento de idéias.

Depois de estabelecer o mecanismo geral de como as idéias simples e complexas relativas a substâncias, modos, relações e assim por diante são derivadas da sensação e da reflexão, Locke também explica como uma variedade de tipos específicos de idéias, como as idéias de solidez, número, espaço, tempo, poder, identidade e relações morais, surgem da sensação e da reflexão. Várias dessas idéias são de interesse particular. O capítulo de Locke sobre poder dá origem a uma discussão sobre o livre-arbítrio e a ação voluntária (consulte o verbete sobre Locke e a liberdade). Locke também fez uma série de afirmações interessantes sobre a filosofia da mente. Ele sugeriu, por exemplo, que, pelo que sabemos, Deus poderia facilmente acrescentar os poderes da percepção e do pensamento à matéria organizada da maneira correta, assim como poderia acrescentar esses poderes a uma substância imaterial que, então, seria unida à matéria organizada da maneira correta. Sua descrição da identidade pessoal em II. XXVI foi revolucionária. (Consulte o verbete sobre Locke a respeito da identidade pessoal). Esses dois tópicos e outros relacionados são tratados no documento suplementar: Some Interesting Issues in Locke’s Philosophy of Mind (Algumas questões interessantes na filosofia da mente de Locke)

A seguir, vamos nos concentrar em algumas questões centrais na descrição de Locke sobre objetos físicos. (Consulte também o verbete A Filosofia da Ciência de Locke, que aborda vários tópicos relacionados à descrição de Locke sobre objetos físicos que são de considerável importância, mas que estão muito além do escopo desta descrição geral a respeito da filosofia de Locke). Isso inclui Locke no que diz respeito ao conhecimento em filosofia natural, as limitações da filosofia corpuscular e a relação de Locke com Newton.

Locke oferece uma descrição dos objetos físicos com base na filosofia mecânica e na hipótese corpuscular. Os adeptos da filosofia mecânica sustentavam que todos os fenômenos materiais podem ser explicados pela matéria em movimento e pelo impacto de um corpo sobre outro. Eles viam a matéria como passiva. Eles rejeitavam as “qualidades ocultas” e a “causação à distância” da filosofia aristotélica e escolástica. A hipótese corpusculariana de Robert Boyle tratava o mundo material como composto de partículas. Alguns corpuscularistas defendiam que os corpúsculos podiam ser divididos e que o universo estava repleto de matéria, sem espaço vazio. Os atomistas, por outro lado, acreditavam que as partículas eram indivisíveis e que o mundo material era composto de átomos e do vazio ou espaço vazio no qual os átomos se moviam. Locke era um atomista.

Os átomos têm propriedades. Eles são estendidos, sólidos, têm uma forma específica e estão em movimento ou em repouso. Eles se combinam para produzir as coisas e os objetos físicos familiares, o ouro e a madeira, os cavalos e as violetas, as mesas e as cadeiras do nosso mundo. Essas coisas familiares também têm propriedades. Elas são estendidas, sólidas, têm uma forma específica e estão em movimento e em repouso. Além dessas propriedades que compartilham com os átomos que as compõem, elas têm outras propriedades, como cores, cheiros e sabores, que adquirem por estarem em relação com os percebedores. A distinção entre esses dois tipos de propriedades remonta aos atomistas gregos. Ela é articulada por Galileu e Descartes, bem como pelo mentor de Locke, Robert Boyle.

Locke faz essa distinção no Livro II, Capítulo 8 do Ensaio e, usando a terminologia de Boyle, chama as duas classes diferentes de propriedades de qualidades primárias e secundárias de um objeto. Essa distinção é feita por ambos os principais ramos da filosofia mecânica do século XVII e início do século XVIII. Tanto os teóricos do plenum cartesiano, que sustentavam que o mundo estava repleto de matéria infinitamente divisível e que não havia espaço vazio, quanto os atomistas, como Gassendi, que afirmavam que havia átomos indivisíveis e espaço vazio no qual os átomos se moviam, faziam a distinção entre essas duas classes de propriedades. Ainda assim, as diferenças entre esses dois ramos da filosofia mecânica afetam sua descrição das qualidades primárias. No capítulo sobre Solidez (II.4), Locke rejeita a definição cartesiana de corpo como simplesmente estendido e argumenta que os corpos são estendidos e impenetráveis ou sólidos. A inclusão da solidez na descrição que Locke faz dos corpos e das qualidades primárias os distingue do espaço vazio no qual se movem.

As qualidades primárias de um objeto são propriedades que o objeto possui independentemente de nós — como ocupar espaço, estar em movimento ou em repouso, ter solidez e textura. As qualidades secundárias são poderes dos corpos de produzir idéias em nós, como cor, sabor, cheiro e assim por diante, que são causadas pela interação de nosso aparato perceptual específico com as qualidades primárias do objeto. Nossas idéias de qualidades primárias se assemelham às qualidades do objeto, enquanto nossas idéias de qualidades secundárias não se assemelham aos poderes que as causam. Locke também distingue uma segunda classe de propriedades secundárias que são os poderes que uma substância tem de afetar outra, por exemplo, o poder do fogo de derreter um pedaço de cera.

Tem havido um debate acadêmico considerável sobre os detalhes do relato de Locke sobre a distinção. Entre as questões estão as qualidades que Locke atribui a cada uma das duas categorias. Locke fornece várias listas. Outra questão é saber qual é o critério para colocar uma qualidade em uma lista e não em outra. Locke afirma que todas as idéias de qualidades secundárias chegam a nós por um sentido, enquanto as idéias de qualidades primárias chegam a nós por dois, ou Locke não está fazendo a distinção dessa maneira? Outra questão é se existem apenas qualidades primárias de átomos ou se os compostos de átomos também têm qualidades primárias. E, embora Locke afirme que nossas idéias de qualidades primárias se assemelham às qualidades primárias dos objetos, e que as idéias de qualidades secundárias não se assemelham às suas causas no objeto, o que significa “assemelhar-se” nesse contexto? Relacionado a essa questão está o modo como devemos saber sobre partículas que não podemos sentir. Parece claro que Locke defende que há certas analogias entre os objetos macroscópicos de tamanho médio que encontramos no mundo, por exemplo, pórfiro e maná, e as partículas que compõem essas coisas. Maurice Mandelbaum chamou esse processo de “transdicção”. Essas analogias nos permitem dizer certas coisas sobre a natureza das partículas e das qualidades primárias e secundárias. Por exemplo, podemos inferir que os átomos são sólidos e que o calor é uma taxa maior de movimento dos átomos, enquanto o frio é um movimento mais lento. Mas essas analogias podem não nos levar muito longe na compreensão das conexões necessárias entre as qualidades na natureza. Outra questão é se Locke vê a distinção como reducionista. Se o que queremos dizer com reducionismo aqui é que somente as qualidades primárias são reais e elas explicam as qualidades secundárias, então não parece haver uma resposta clara. As qualidades secundárias certamente nada mais são do que certas qualidades primárias que nos afetam de determinadas maneiras. Isso parece ser um reducionismo. Porém, no relato de Locke sobre “idéias reais” em II.30, tanto as idéias de qualidades primárias quanto as secundárias contam como reais. E embora Locke sustente que nossas idéias de qualidades secundárias são causadas por qualidades primárias, em certos aspectos importantes as qualidades primárias não as explicam. Locke afirma que não podemos sequer conceber como o tamanho, a figura e o movimento das partículas poderiam causar qualquer sensação em nós. Portanto, conhecer o tamanho, a figura e o movimento das partículas não nos seria útil nesse sentido (ver IV.3.11-40, N: 544-546).

Locke provavelmente defende alguma versão da teoria representacional da percepção, embora alguns estudiosos contestem isso. Nessa teoria, o que a mente percebe imediatamente são idéias, e as idéias são causadas pelos objetos que as causam e as representam. Assim, a percepção é uma relação triádica, em vez de ser simplesmente uma relação diádica entre um objeto e um percebedor. Essa teoria relacional diádica é geralmente chamada de realismo ingênuo porque sugere que o percebedor está percebendo diretamente o objeto, e ingênua porque essa visão está aberta a uma série de objeções sérias. Algumas versões da teoria representacional também estão abertas a sérias objeções. Se, por exemplo, tratarmos as idéias como coisas, então podemos imaginar que, por vermos idéias, as idéias na verdade impedem que vejamos coisas no mundo externo. As idéias seriam como um quadro ou uma pintura. A imagem copiaria o objeto original no mundo externo, mas como nosso objeto imediato de percepção é a imagem, seríamos impedidos de ver o original, assim como ficar em frente a uma pintura em um cavalete pode nos impedir de ver a pessoa que está sendo pintada. Portanto, isso às vezes é chamado de teoria da percepção imagem/original. Como alternativa, Jonathan Bennett a chamou de “o véu da percepção” para enfatizar que “ver” as idéias nos impede de ver o mundo externo. Um filósofo que provavelmente defendia essa visão era Nicholas Malebranche, um seguidor de Descartes. Antoine Arnauld, por outro lado, embora acredite no caráter representativo das idéias, é um realista direto sobre a percepção. Arnauld envolveu-se em uma longa controvérsia com Malebranche e criticou o relato de Malebranche sobre as idéias. Locke segue Arnauld em sua crítica a Malebranche nesse ponto (Locke, 1823, Vol. IX: 250). No entanto, Berkeley atribuiu a interpretação do véu da percepção sobre a teoria representacional da percepção a Locke, assim como muitos comentaristas posteriores, incluindo Bennett. A.D. Woozley coloca a dificuldade de fazer isso de forma sucinta:

… é pouco crível que Locke tenha sido capaz de ver e declarar tão claramente a objeção fundamental à teoria da imagem-original da percepção sensorial e que ele mesmo tenha defendido a mesma teoria. (Woozley 1964: 27)

O que envolve o relato de Locke sobre a percepção ainda é uma questão de debate acadêmico. Uma análise dessa questão em um simpósio que incluiu John Rogers, Gideon Yaffe, Lex Newman, Tom Lennon e Vere Chappell em uma reunião da Divisão do Pacífico da American Philosophical Association em 2003, posteriormente ampliada e publicada no Pacific Philosophical Quarterly (2004, volume 85, número 3), revelou que a maioria dos participantes do simpósio sustentava a opinião de que Locke tem uma teoria representativa da percepção, mas que ele não é um cético em relação ao mundo externo da maneira que a doutrina do véu da percepção poderia sugerir.

Outra questão que tem sido motivo de controvérsia desde a primeira publicação do Ensaio é o que Locke quer dizer com o termo “substância”. A distinção entre qualidade primária e secundária nos leva a entender os objetos físicos de certa forma, mas Locke não sabe o que está por trás ou sustenta as qualidades primárias em si. Ele também está intrigado com o que as substâncias materiais e imateriais podem ter em comum que nos levaria a aplicar a mesma palavra a ambas. Esse tipo de reflexão o levou à noção relativa e obscura de substância em geral. Trata-se de um “não sei o quê” que é o suporte de qualidades que não podem subsistir por si mesmas. Experimentamos propriedades que aparecem em grupos regulares, mas devemos inferir que há algo que sustenta ou talvez “mantém unidas” essas qualidades. Pois não temos experiência dessa substância de apoio. Está claro que Locke não vê alternativa para a afirmação de que há substâncias que sustentam as qualidades. Ele não tem, por exemplo, uma teoria de tropos (tropos são propriedades que podem existir independentemente de substâncias) que poderia usar para dispensar a noção de substância. (Na verdade, ele pode estar rejeitando algo como uma teoria dos tropos quando rejeita a doutrina aristotélica das qualidades reais e insiste na necessidade de substâncias). Portanto, ele não é de forma alguma um cético em relação à “substância” da mesma maneira que Hume. Mas também é bastante claro que ele insiste regularmente nas limitações de nossas idéias sobre substâncias. O bispo Stillingfleet acusou Locke de colocar a substância fora da parte razoável do mundo. Mas Locke não está fazendo isso.

Desde Berkeley, a doutrina de Locke sobre o substrato ou substância em geral tem sido atacada como incoerente. Ela parece implicar que temos um particular sem quaisquer propriedades, e essa parece ser uma noção inconsistente com o empirismo. Não temos experiência de tal entidade e, portanto, não temos como derivar tal idéias da experiência. O próprio Locke reconhece esse ponto (I.4.18, N: 95). Para evitar esse problema, Michael Ayers propôs que devemos entender as noções de “substrato” e “substância em geral” em termos da distinção de Locke entre essências reais e nominais e, particularmente, de sua doutrina das essências reais desenvolvida no Livro III do Ensaio, e não como um problema separado do problema de conhecer as essências reais. A essência real de uma coisa material é sua constituição atômica. Essa constituição atômica é a base causal de todas as propriedades observáveis da coisa, a partir da qual criamos essências nominais. Se a essência real fosse conhecida, todas as propriedades observáveis poderiam ser deduzidas dela. Locke afirma que as essências reais das coisas materiais são totalmente desconhecidas para nós. O conceito de substância em geral de Locke também é um “algo que não sei o quê”. Assim, na interpretação de Ayers, “substância em geral” significa algo como “o que quer que seja que sustenta as qualidades”, enquanto a essência real significa “essa constituição atômica específica que explica esse conjunto de qualidades observáveis”. Assim, Ayers quer tratar o substrato desconhecido como se estivesse escolhendo a mesma coisa que a essência real — eliminando, assim, a necessidade de particulares sem propriedades. Essa maneira proposta de interpretação de Locke tem sido criticada por estudiosos, tanto pela falta de apoio textual quanto pelo fato de entrar em conflito com algumas coisas que Locke realmente diz (veja Jolley 1999: 71-3). Como chegamos a um dos conceitos importantes do Livro III, vamos nos voltar para esse livro e para a discussão de Locke sobre a linguagem.

2.3 Livro III

Locke dedica o Livro III do Ensaio sobre o Entendimento Humano à linguagem. Essa é uma forte indicação de que Locke acredita que as questões sobre a linguagem são de considerável importância para a obtenção do conhecimento. No início do livro, ele observa a importância das idéias gerais abstratas para o conhecimento. Elas servem como tipos sob os quais classificamos toda a vasta multidão de existências particulares. Assim, as idéias abstratas e a classificação são de importância central na discussão de Locke sobre a linguagem e sua importância para o conhecimento. Sem termos e classes gerais, estaríamos diante da tarefa impossível de tentar conhecer um vasto mundo de particularidades.

Há uma clara conexão entre os Livros II e III, pois Locke afirma que as palavras representam idéias. Em sua discussão sobre a linguagem, Locke distingue as palavras de acordo com as categorias de idéias estabelecidas no Livro II do Ensaio. Assim, há idéias de substâncias, modos simples, modos mistos, relações e assim por diante. É nesse contexto que Locke faz a distinção entre essências reais e nominais mencionada acima. Talvez por causa de seu foco no papel que os termos do tipo desempenham na classificação, Locke dá muito mais atenção aos substantivos do que aos verbos. Locke reconhece que nem todas as palavras estão relacionadas a idéias. Há também as muitas partículas, palavras que “…significam a conexão que a mente dá às idéias, ou proposições, umas com as outras” (II.7.1, N: 471). Ainda assim, é a relação de palavras e idéias que recebe a maior parte da atenção de Locke no Livro III.

Norman Kretzmann considera a afirmação de que “as palavras, em sua significação primária ou imediata, não significam nada além das idéias presentes na mente daquele que as usa” (III.2.2) “a principal tese semântica de Locke” (ver Kretzmann 1968:179). Essa tese tem sido frequentemente criticada como um erro clássico na teoria semântica. Assim, Mill, por exemplo, escreveu: “Quando digo, ‘o sol é a causa do dia’, não quero dizer que minhas idéias sobre o sol causam ou excitam em mim a concepção do dia” (Mill 1843: livro 1, cap. 2, § 1). Essa crítica ao relato de Locke sobre a linguagem é paralela à crítica ao “véu da percepção” de seu relato sobre a percepção e sugere que Locke não está distinguindo o significado de uma palavra de sua referência. Kretzmann, no entanto, argumenta de forma persuasiva que Locke distingue entre significado e referência e que as idéias fornecem o significado, mas não a referência das palavras. Assim, a linha de crítica representada pela citação de Mill não tem fundamento.

Além dos tipos de idéias mencionados acima, há também idéias particulares e abstratas. As idéias particulares têm em si as idéias de lugares e épocas específicos que limitam a aplicação da idéia a um único indivíduo, enquanto as idéias gerais abstratas deixam de fora as idéias de épocas e lugares específicos para permitir que a idéia se aplique a outras qualidades ou coisas semelhantes. Tem havido um considerável debate filosófico e acadêmico sobre a natureza do processo de abstração e o relato de Locke sobre ele. Berkeley argumentou que o processo, tal como Locke o concebe, é incoerente. Em parte, isso se deve ao fato de Berkeley ser um imagista, ou seja, ele acredita que todas as idéias são imagens. Se alguém é um imagista, torna-se impossível imaginar que uma idéia poderia incluir tanto as idéias de um triângulo retângulo quanto de um triângulo equilátero. Michael Ayers argumentou recentemente que Locke também era um imagista. Isso faria com que a crítica de Berkeley a Locke fosse muito pertinente. Entretanto, a afirmação de Ayers foi contestada (veja, por exemplo, Soles 1999). O processo de abstração é de considerável importância para o conhecimento humano. Locke acredita que a maioria das palavras que usamos são gerais (III.1.1, N: 409). Claramente, são apenas as idéias gerais ou de tipo que podem servir em um esquema classificatório.

Em sua discussão sobre nomes de substâncias e no contraste entre nomes de substâncias e nomes de modos, surgem várias características interessantes das opiniões de Locke sobre linguagem e conhecimento. As substâncias físicas são átomos e coisas compostas de átomos. Mas não temos experiência com a estrutura atômica de cavalos e mesas. Conhecemos cavalos e mesas principalmente por qualidades secundárias, como cor, sabor e cheiro, e assim por diante, e por qualidades primárias, como forma, movimento e extensão. Portanto, como a essência real (a constituição atômica) de um cavalo é desconhecida para nós, nossa palavra “cavalo” não pode obter seu significado a partir dessa essência real. O que a palavra geral significa é o complexo de idéias que decidimos que fazem parte da noção desse tipo de coisa. Essas idéias são obtidas por meio da experiência. Locke chama essas idéias gerais que escolhem um tipo de coisa de essência nominal desse tipo.

Uma das questões centrais do Livro III tem a ver com a classificação. Com base em que dividimos as coisas em tipos e organizamos esses tipos em um sistema de espécies e gêneros? Na tradição aristotélica e escolástica que Locke rejeita, as propriedades necessárias são aquelas que um indivíduo deve ter para existir e continuar existindo. Elas contrastam com as propriedades acidentais. As propriedades acidentais são aquelas que um indivíduo pode ganhar e perder e, ainda assim, continuar existindo. Se um conjunto de propriedades necessárias for compartilhado por vários indivíduos, esse conjunto de propriedades constitui a essência de um tipo natural. Supõe-se que as fronteiras entre os tipos sejam nítidas e determinadas. O objetivo da ciência aristotélica é descobrir as essências dos tipos naturais. Os tipos podem então ser organizados hierarquicamente em um sistema classificatório de espécies e gêneros. Essa classificação do mundo por tipos naturais será única e privilegiada, pois somente ela corresponde à estrutura do mundo. Essa doutrina de essências e tipos é frequentemente chamada de essencialismo aristotélico. Locke rejeita uma variedade de aspectos dessa doutrina. Ele rejeita a noção de que um indivíduo tem uma essência além de ser tratado como pertencente a uma espécie. Ele também rejeita a alegação de que há uma única classificação de coisas na natureza que o filósofo natural deve procurar descobrir. Ele sustenta que há muitas maneiras possíveis de classificar o mundo, cada uma das quais pode ser particularmente útil, dependendo dos objetivos de cada um.

O relato pragmático de Locke sobre a linguagem e a distinção entre essências nominais e reais constituem uma alternativa anti-essencialista a esse essencialismo aristotélico e seu registro correlato da classificação dos tipos naturais. Ele afirma que não há limites fixos na natureza a serem descobertos, ou seja, não há pontos de demarcação claros entre as espécies. Sempre há casos limítrofes. Há um debate sobre se a visão de Locke é de que essa falta de limites fixos é verdadeira tanto no nível das aparências e das essências nominais, quanto no nível das constituições atômicas e das essências reais, ou apenas no nível das essências nominais. A primeira visão é que Locke sustenta que não há tipos naturais aristotélicos nem no nível da aparência nem no nível da realidade atômica. A segunda visão sustenta que Locke acredita que existem tipos naturais aristotélicos no nível atômico, mas que simplesmente não podemos chegar a eles ou saber o que são. Em qualquer uma dessas interpretações, a essência real não pode fornecer o significado dos nomes das substâncias. Arthur O. Lovejoy, em A Grande Cadeia do Ser, e David Wiggins são defensores da segunda interpretação, enquanto Michael Ayers e William Uzgalis defendem a primeira (Uzgalis 1988; Ayers 1991: II. 70).

Por outro lado, as idéias que usamos para compor nossas essências nominais nos vêm da experiência. Locke afirma que a mente é ativa na criação de nossas idéias de tipos e que há tantas propriedades para escolher que é possível que pessoas diferentes criem idéias bastante diferentes da essência de uma determinada substância. Isso tem dado a alguns comentaristas a impressão de que a criação de tipos é totalmente arbitrária e convencional para Locke e que não há base para criticar uma essência nominal específica. Às vezes, Locke diz coisas que podem sugerir isso. Mas essa impressão deve ser combatida. Peter Anstey caracterizou o convencionalismo de Locke em relação aos termos classificatórios como restrito e convergente (Anstey 2011: 209, 212). Locke afirma que, embora a criação de essências nominais seja o trabalho do entendimento, esse trabalho é limitado tanto pelo uso (em que as palavras representam idéias que já estão em uso) quanto pelo fato de que as palavras de substância devem copiar as propriedades das substâncias a que se referem. Locke diz que nossas idéias de tipos de substâncias têm como arquétipo o complexo de propriedades que produzem as aparências que usamos para fazer nossas essências nominais e que causam a unidade do complexo de idéias que nos aparecem regularmente combinadas. A própria noção de um arquétipo implica restrições sobre quais propriedades (e, portanto, quais idéias) podem ser combinadas. Se não houvesse tais restrições, não poderia haver arquétipo. (Para uma discussão mais aprofundada sobre a distinção entre essência nominal e real, consulte o item Locke sobre Essências Reais).

Vamos começar com o uso das palavras. Em uma comunidade de usuários de idiomas, é importante que as palavras sejam usadas com o mesmo significado. Se essa condição for atendida, isso facilitará o principal objetivo da linguagem, que é a comunicação. Se alguém deixar de usar as palavras com o significado que a maioria das pessoas atribui a elas, não conseguirá se comunicar de forma eficaz com os outros. Dessa forma, o objetivo principal do idioma seria frustrado. Deve-se observar também que, para Locke, as tradições de uso podem ser modificadas. Caso contrário, não seríamos capazes de melhorar nosso conhecimento e compreensão obtendo idéias mais claras e determinadas.

Na criação dos nomes das substâncias, há um período de descoberta, à medida que a idéia geral abstrata é reunida (por exemplo, a descoberta de violetas ou ouro) e, em seguida, a nomeação dessa idéia e sua introdução na linguagem. A própria linguagem é vista como um instrumento para a realização dos propósitos e práticas principalmente prosáicas da vida cotidiana. As pessoas comuns são os principais criadores da linguagem.

Noções vulgares combinam com discursos vulgares; e ambos, embora bastante confusos, servem muito bem para o Mercado e para a Vigília. Mercadores e amantes, cozinheiros e comerciantes têm palavras com as quais podem tratar de seus assuntos cotidianos; e assim, penso eu, também poderiam ter os filósofos e os disputantes, se tivessem a intenção de entender e ser claramente entendidos. (III.11.10, N: 514)

Essas pessoas comuns usam algumas qualidades aparentes, principalmente idéias de qualidades secundárias, para criar idéias e palavras que sirvam a seus propósitos.

Os filósofos naturais (ou seja, os cientistas) aparecem mais tarde para tentar determinar se as conexões entre as propriedades que as pessoas comuns reuniram em uma determinada idéias são de fato válidas na natureza. Os cientistas estão buscando encontrar as conexões necessárias entre as propriedades. Ainda assim, mesmo os cientistas, na visão de Locke, estão restritos ao uso de qualidades observáveis (e principalmente secundárias) para categorizar as coisas na natureza. Às vezes, os cientistas podem descobrir que as pessoas comuns erraram, como quando chamaram as baleias de “peixes”. Acontece que uma baleia não é um peixe, mas um mamífero. Há um grupo característico de qualidades que os peixes têm e que as baleias não têm. Há um grupo característico de qualidades que os mamíferos têm e que as baleias também têm. Portanto, classificar uma baleia como um peixe é um erro. Da mesma maneira, poderíamos criar uma idéias sobre o ouro que incluísse apenas o fato de ser um metal macio e ter a cor dourada. Nesse caso, não conseguiríamos distinguir entre ouro e ouro de tolo. Assim, uma vez que é a mente que produz idéias complexas (elas são “a obra do entendimento”), a pessoa é livre para reunir qualquer combinação de idéias que desejar e chamá-la do que quiser. Entretanto, o produto desse trabalho está aberto a críticas, seja porque não está de acordo com o uso atual ou porque representa inadequadamente os arquétipos que deveria copiar no mundo. Nós nos engajamos em tais críticas a fim de melhorar a compreensão humana do mundo material e, portanto, da condição humana. Esse é o caráter convergente do convencionalismo de Locke. Ao se tornar mais precisa, a essência nominal converge para a essência real.

Entretanto, não devemos nos esquecer dos mestres construtores que Locke menciona no início do Ensaio. Stephen Gaukroger (2010) afirma que a grande conquista de Locke foi fornecer uma justificativa filosófica para o tipo de filosofia experimental que o trabalho de Boyle sobre a bomba de ar, o trabalho dele e de Newton sobre as cores, bem como a medicina observacional de Sydenham. Todos eles foram atacados por não fornecerem explicações em termos da teoria da matéria. Assim, Locke está justificando a autonomia da filosofia experimental. Essas explicações experimentais dependem apenas da relação entre os fenômenos, mesmo quando há alguma base microcorpuscular para os fenômenos que estão sendo explicados. De acordo com Gaukroger, essa é a contribuição de Locke para o colapso do mecanicismo. Para obter detalhes sobre o problema e sua solução, consulte os capítulos 4 e 5 de Gaukroger (2010).

A distinção entre modos e substâncias é certamente uma das mais importantes na filosofia de Locke. Em contraste com as substâncias, os modos são existências dependentes — eles podem ser considerados como a ordenação das substâncias. Esses são termos técnicos para Locke, portanto, devemos ver como eles são definidos. Locke escreve:

Primeiro, chamo de Modos as idéias complexas que, embora compostas, não contêm em si mesmas a suposição de subsistirem por si mesmas; tais são as idéias significadas pelas palavras Triângulo, Gratidão, Maus-tratos, etc. (II.12.4, N: 165)

Locke continua a distinguir entre modos simples e mistos. Ele escreve:

Desses Modos, há dois tipos, que merecem consideração distinta. Primeiro, há alguns que são apenas variações, ou combinações diferentes da mesma Idéia simples, sem a mistura de qualquer outra, como uma dúzia ou uma partitura; que nada mais são do que as idéias de tantas unidades distintas sendo somadas, e esses eu chamo de Modos simples, por estarem contidos dentro dos limites de uma Idéia simples. Em segundo lugar, há outros, compostos de Idéias de vários tipos, reunidas para formar uma complexa; por exemplo, a Beleza, que consiste em uma certa combinação de Cor e Figura, causando Deleite ao Observador; Roubo, que sendo a mudança oculta da Posse de qualquer coisa, sem o consentimento do Proprietário, contém, como é visível, uma combinação de várias Idéias de vários tipos; e estes eu chamo de Modos Mistos. (II.12.5, N: 165)

Quando elaboramos idéias de modos, a mente está novamente ativa, mas o arquétipo está em nossa mente. A questão passa a ser se as coisas no mundo se encaixam em nossas idéias, e não se nossas idéias correspondem à natureza das coisas no mundo. Nossas idéias são adequadas. Assim, definimos “solteiro” como um ser humano solteiro, adulto e do sexo masculino. Se descobrirmos que alguém não se enquadra nessa definição, isso não reflete negativamente em nossa definição, significa apenas que esse indivíduo não pertence à classe dos solteiros. Os modos nos dão as idéias da matemática, da moralidade, da religião e da política e, de fato, das convenções humanas em geral. Como essas idéias modais não são apenas criadas por nós, mas servem como padrões que indicam que as coisas no mundo se encaixam ou não se encaixam e, portanto, pertencem ou não pertencem a esse tipo, as idéias de modos são claras e distintas, adequadas e completas. Assim, nos modos, temos as essências real e nominal combinadas. É possível dar definições precisas de termos matemáticos (ou seja, dar condições necessárias e suficientes), e é possível dar demonstrações dedutivas de verdades matemáticas. Locke às vezes diz que a moralidade também é passível de demonstração dedutiva. Embora pressionado por seu amigo William Molyneux a produzir tal moralidade demonstrativa, Locke nunca o fez. O verbete A Filosofia Moral de Locke oferece uma excelente discussão sobre as opiniões de Locke sobre a moralidade e questões relacionadas a elas, para as quais não há espaço neste relato geral. Os termos do discurso político também têm algumas das mesmas características modais para Locke. Quando Locke define os estados de natureza, a escravidão e a guerra no Segundo Tratado Sobre o Governo, por exemplo, presumivelmente estamos obtendo definições modais precisas das quais se pode deduzir consequências. É possível, entretanto, que com a política estejamos obtendo um estudo que requer tanto a experiência quanto o aspecto modal dedutivo.

2.4 Livro IV

No quarto livro do Ensaio sobre o Entendimento Humano, Locke nos diz o que é conhecimento e o que os seres humanos podem saber e o que não podem (e não simplesmente o que eles sabem e o que não sabem). Locke define conhecimento como “a percepção da conexão e concordância ou discordância e repugnância de qualquer uma de nossas idéias” (IV.1.1, N: 525). Essa definição de conhecimento contrasta com a definição cartesiana de conhecimento como sendo quaisquer idéias que sejam claras e distintas. O relato de Locke sobre o conhecimento permite que ele diga que podemos conhecer substâncias apesar do fato de que nossas idéias sobre elas sempre incluem a noção obscura e relativa de substância em geral. Ainda assim, a definição de conhecimento de Locke levanta, nesse domínio, um problema análogo aos que vimos com a percepção e a linguagem. Se o conhecimento é a “percepção de … a concordância ou discordância … de qualquer uma de nossas idéias” — não estamos presos no círculo de nossas próprias idéias? E quanto a conhecer a existência real das coisas? Locke está claramente ciente desse problema e muito provavelmente sustenta que a implausibilidade de hipóteses céticas, como a hipótese do sonho de Descartes (ele nem se dá ao trabalho de mencionar a hipótese do malin genie ou do demônio maligno de Descartes), juntamente com as conexões causais entre qualidades e idéias em seu próprio sistema, é suficiente para resolver o problema. Também vale a pena observar que há diferenças significativas entre o tipo de empirismo de Locke e o de Berkeley, o que tornaria mais fácil para Locke resolver o problema do véu da percepção do que para Berkeley. Locke, por exemplo, faz inferências transdiciplinares sobre átomos quando Berkeley não está disposto a permitir que tais inferências sejam legítimas. Isso implica que Locke tem uma semântica que lhe permite falar sobre as causas não experimentadas da experiência (como os átomos) onde Berkeley não pode. (Veja a discussão perspicaz de Mackie sobre o problema do véu da percepção, em Problemas desde Locke, 1976: 51 a 67).

O que, então, podemos saber e com que grau de certeza? Podemos saber que Deus existe com o segundo maior grau de certeza, o da demonstração. Também sabemos que existimos com o mais alto grau de certeza. As verdades da moralidade e da matemática também podem ser conhecidas com certeza, porque são idéias modais cuja adequação é garantida pelo fato de que tomamos essas idéias como modelos ideais aos quais outras coisas devem se ajustar, em vez de tentar copiar algum arquétipo externo que só podemos compreender de modo inadequado. Por outro lado, nossos esforços para compreender a natureza dos objetos externos são limitados, em grande parte, à conexão entre suas qualidades aparentes. A verdadeira essência dos elefantes e do ouro está oculta para nós, embora, em geral, suponhamos que eles sejam alguma combinação distinta de átomos que causam o agrupamento de qualidades aparentes que nos leva a ver elefantes e violetas, ouro e chumbo como tipos distintos. Nosso conhecimento de coisas materiais é probabilístico e, portanto, é mais uma opinião do que um conhecimento. Assim, nosso “conhecimento” de objetos externos é inferior ao nosso conhecimento de matemática e moralidade, de nós mesmos e de Deus. De fato, temos um conhecimento sensível de objetos externos, que é limitado às coisas que estamos vivenciando no momento. Embora Locke afirme que só temos conhecimento de um número limitado de coisas, ele acredita que podemos julgar a verdade ou a falsidade de muitas proposições, além daquelas que podemos legitimamente afirmar que conhecemos. Isso nos leva a uma discussão sobre probabilidade.

2.5 Conhecimento e Probabilidade

O conhecimento envolve a constatação da concordância ou discordância de nossas idéias. O que é, então, a probabilidade e como ela se relaciona com o conhecimento? Locke escreve:

Uma vez que as Faculdades do Entendimento foram dadas ao Homem, não apenas para especulação, mas também para a condução de sua vida, o Homem estaria em grande desvantagem se não tivesse nada para orientá-lo, a não ser a Certeza do verdadeiro Conhecimento… Portanto, assim como Deus colocou algumas coisas em plena luz do dia; assim como nos deu algum Conhecimento certo… Assim, em relação à maior parte de nossas preocupações, ele nos proporcionou apenas a penumbra, se assim posso dizer, da Probabilidade, adequada, presumo, àquele estado de Mediocridade e Probacionismo em que ele teve o prazer de nos colocar aqui, no qual, para controlar nosso excesso de confiança e presunção, poderíamos, por meio da Experiência de todos os dias, ser conscientizados de nossa falta de visão e de nossa vulnerabilidade ao Erro… (IV. 14 .1-2, N: 652)

Portanto, com exceção das poucas coisas importantes que podemos saber com certeza, por exemplo, a existência de nós mesmos e de Deus, a natureza da matemática e a moralidade em termos gerais, na maior parte do tempo devemos levar nossa vida sem conhecimento. O que é, então, probabilidade? Locke escreve:

Como a Demonstração é a exibição da concordância ou discordância de duas Idéias, pela intervenção de uma ou mais Provas, que têm uma conexão constante, imutável e visível uma com a outra: assim, a Probabilidade nada mais é do que a aparência de tal Acordo ou Desacordo, pela intervenção de Provas, cuja conexão não é constante e imutável, ou pelo menos não é percebida como tal, mas é ou parece, em sua maior parte, ser assim, e é suficiente para induzir a Mente a julgar a Proposição como verdadeira ou falsa, em vez do contrário. (IV.15.1, N: 654)

O raciocínio provável, por essa razão, é um argumento, semelhante em certos aspectos ao raciocínio demonstrativo que produz conhecimento, mas diferente também em certos aspectos cruciais. É um argumento que fornece evidências que levam a mente a julgar uma proposição verdadeira ou falsa, mas sem a garantia de que o julgamento esteja correto. Esse tipo de julgamento provável vem em graus, variando de quase demonstrações e certezas a incertezas e improbabilidades próximas da impossibilidade. Ele está correlacionado com graus de assentimento que vão desde a garantia total até a conjectura, a dúvida e a desconfiança.

A nova ciência da probabilidade matemática havia surgido no continente na época em que Locke estava escrevendo o Ensaio. Sua descrição da probabilidade, entretanto, mostra pouca ou nenhuma consciência da probabilidade matemática. Em vez disso, ele reflete uma tradição mais antiga que tratava o testemunho como um raciocínio provável. Como o objetivo de Locke, acima de tudo, é discutir o grau de concordância que devemos dar a várias proposições religiosas, a concepção mais antiga de probabilidade muito provavelmente serve melhor aos seus propósitos. Assim, quando Locke descreve os fundamentos da probabilidade, ele cita a conformidade da proposição com nosso conhecimento, observação e experiência, e o testemunho de outros que estão relatando suas observações e experiências. Com relação a esse último, devemos considerar o número de testemunhas, sua integridade, sua habilidade de observação, o contra testemunho e assim por diante. Ao julgar racionalmente o quanto concordar com uma proposição provável, essas são as considerações relevantes que a mente deve analisar. Locke também sugere que devemos ser tolerantes para com opiniões divergentes, pois temos mais motivos para preservar as opiniões que temos do que para desistir delas diante de estranhos ou adversários que podem muito bem ter algum interesse em que façamos isso.

Locke distingue dois tipos de proposições prováveis. A primeira delas tem a ver com existências particulares ou matérias de fato, e a segunda está para além do testemunho dos sentidos. As matérias de fato estão abertas à observação e à experiência e, portanto, todos os testes mencionados acima para determinar o assentimento racional às proposições sobre elas estão disponíveis para nós. As coisas são bem diferentes com assuntos que estão acima do testemunho dos sentidos. Isso inclui o conhecimento de espíritos imateriais finitos, como anjos, ou coisas tais como átomos, que são pequenos demais para serem sentidos, ou plantas, animais ou habitantes de outros planetas que estão para além do nosso alcance sensorial devido à distância que estão de nós. Com relação a essa última categoria, Locke diz que devemos depender da analogia como a única ajuda para nosso raciocínio. Ele escreve:

Assim, ao observar que o simples atrito violento de dois corpos um sobre o outro produz calor e, muitas vezes, o próprio fogo, temos motivos para pensar que o que chamamos de calor e fogo consiste na agitação violenta das partes minúsculas e imperceptíveis da matéria em chamas…. (IV.16.12, N: 665-6)

Raciocinamos sobre os anjos considerando a Grande Cadeia do Ser; imaginando que, embora não tenhamos experiência com anjos, as fileiras de espécies que estão acima de nós são provavelmente tão numerosas quanto aquelas abaixo de nós, das quais temos experiência. Esse raciocínio é, entretanto, apenas provável.

2.6 Razão, Fé e Entusiasmo

Os méritos relativos dos sentidos, da razão e da fé para alcançar a verdade e a orientação da vida foram uma questão importante durante esse período. Conforme observado acima, James Tyrrell lembrou que o ímpeto original para a redação do Ensaio Sobre o Entendimento Humano foi uma discussão sobre os princípios da moralidade e da religião revelada. No Livro IV, capítulos 17, 18 e 19, Locke trata da natureza da razão, da relação da razão com a fé e da natureza do entusiasmo. Locke observa que todas as seitas fazem uso da razão tanto quanto podem. Somente quando isso falha é que elas recorrem à fé e afirmam que o que é revelado está acima da razão. Mas ele acrescenta:

E eu não vejo como eles podem argumentar com alguém ou mesmo convencer um negador que usa o mesmo argumento, sem estabelecer limites estritos entre fé e razão. (IV.18.2, N: 689)

Locke então define razão como

a descoberta da certeza ou da probabilidade de tais proposições ou verdades, às quais a mente chega por dedução feita a partir de tais idéias, conforme tenha obtido pelo uso de suas faculdades naturais; isto é, pelo uso da sensação ou da reflexão. (IV.18.2, N: 689)

A fé, por outro lado, é o assentimento a qualquer proposição “…com base no crédito do proponente, como vindo de Deus, em alguma forma extraordinária de comunicação”. Ou seja, temos fé naquilo que é revelado pela revelação e que não pode ser descoberto pela razão. Locke também faz distinção entre a revelação original feita por Deus a alguma pessoa e a revelação tradicional, que é a revelação original “…entregue a outros em palavras e as formas comuns de transmitirmos nossas concepções uns aos outros” (IV.18.3, N: 690).

Locke argumenta que algumas coisas poderiam ser descobertas tanto pela razão quanto pela revelação — Deus poderia revelar as proposições da geometria de Euclides, ou elas poderiam ser descobertas pela razão. Nesses casos, haveria pouca utilidade para a fé. A revelação tradicional nunca pode produzir tanta certeza quanto a contemplação da concordância ou discordância de nossas próprias idéias. Da mesma forma, as revelações sobre matérias de fato não produzem tanta certeza quanto ter a própria experiência. A revelação, portanto, não pode contradizer o que sabemos ser verdade. Se pudesse, ela minaria a confiabilidade de todas as nossas faculdades. Esse seria um resultado desastroso. A revelação se destaca onde a razão não consegue chegar. Quando temos poucas ou nenhuma idéias para a razão contradizer ou confirmar, esses são os assuntos apropriados para a fé.

…que parte dos anjos se rebelou contra DEUS e, assim, perdeu seu primeiro estado de felicidade; e que os mortos ressuscitarão e viverão novamente: Estes e outros semelhantes, estando além da descoberta da razão, são puramente assuntos de fé, com os quais a razão nada tem a ver. (IV.18.8, N: 694)

Ainda assim, a razão tem um papel crucial a desempenhar com relação à revelação. Locke escreve:

Porque a Mente, não estando certa da Verdade daquilo que evidentemente não conhece, mas apenas cedendo à Probabilidade que lhe parece, é obrigada a dar seu assentimento a tal Testemunho, que, sendo satisfeito, vem de alguém que não pode errar e não enganará. Porém, ainda assim, cabe à Razão julgar a veracidade do fato de ser uma Revelação e o significado das Palavras em que é entregue. (IV.18.8, N: 694)

Portanto, com relação à questão crucial de como devemos saber se uma revelação é genuína, devemos usar a razão e os cânones da probabilidade para julgar. Locke afirma que, se os limites entre a fé e a razão não forem claramente marcados, não haverá lugar para a razão na religião e, então, teremos todas as “opiniões e cerimônias extravagantes que podem ser encontradas nas religiões do mundo…” (IV.18.11, N: 696).

Se alguém aceitar a revelação sem usar a razão para julgar se é uma revelação genuína ou não, terá o que Locke chama de um terceiro princípio de assentimento além da razão e da revelação, ou seja, o entusiasmo. O entusiasmo é uma confiança vã ou infundada no favor ou na comunicação divina. Isso implica que não há necessidade de usar a razão para julgar se esse favor ou comunicação é genuíno ou não. Claramente, quando essas comunicações não são genuínas, elas são “as fantasias infundadas do próprio cérebro de um homem” (IV.19.2, N: 698). Esse tipo de entusiasmo era característico dos extremistas protestantes desde a época da guerra civil. Locke não foi o único a rejeitar o entusiasmo, mas ele o rejeita com veemência. O entusiasmo viola o princípio fundamental pelo qual o entendimento opera — que o assentimento seja proporcional à evidência. Abandonar esse princípio fundamental seria catastrófico. Esse é um ponto que Locke também defende em A Conduta do Entendimento e A Razoabilidade do Cristianismo. Locke quer que cada um de nós use nosso entendimento para buscar a verdade. Sobre os entusiastas, aqueles que abandonam a razão e afirmam saber com base apenas na fé, Locke escreve

… aquele que tira a Razão para dar lugar à Revelação, apaga a Luz de ambas, e faz muito mais do que isso, como se quisesse persuadir um homem a fechar os olhos, para melhor receber a luz remota de uma estrela que é invisível por um telescópio. (IV.19.4, N: 698)

Em vez de se envolverem no trabalho tedioso que é necessário para raciocinar corretamente e julgar a genuinidade de sua revelação, os entusiastas se convencem de que possuem uma revelação imediata. Isso leva a “opiniões estranhas e ações extravagantes” que são características do entusiasmo e que devem alertar que esse é um princípio errado. Assim, Locke rejeita veementemente qualquer tentativa de transformar a persuasão interior que não é julgada pela razão em um princípio legítimo.

Passemos agora à análise das obras educacionais de Locke.

3. Principais Obras de Locke sobre Educação

Alguns Pensamentos Sobre Educação e a Conduta do Entendimento são uma boa ponte entre o Ensaio Sobre o Entendimento Humano e suas obras políticas. Ruth Grant e Nathan Tarcov escrevem na introdução de sua edição dessas obras:

As idéias de liberdade, tão cruciais para todos os escritos de Locke sobre política e educação, são rastreadas no Ensaio até a reflexão sobre o poder da mente sobre suas próprias ações, especialmente o poder de suspender ações na busca da satisfação de seus próprios desejos até depois de uma consideração completa de seus objetos (II.21.47, N: 51-52). O Ensaio mostra, portanto, como é possível a independência da mente buscada na Conduta. (G&T 1996: xvi)

Alguns Pensamentos Sobre Educação foi publicado pela primeira vez em 1693. Esse livro reuniu os conselhos que Locke vinha dando a seu amigo Edward Clarke sobre a educação do filho de Clarke (e também de suas filhas) desde 1684. Ao preparar a revisão para a quarta edição do Ensaio Sobre o Entendimento Humano, Locke começou a escrever um capítulo chamado “The Conduct of the Understanding” (A Conduta do Entendimento). Esse capítulo ficou bastante longo e nunca foi adicionado ao Ensaio, e nem mesmo concluído. Foi deixado para os responsáveis pela literatura de Locke decidirem o que fazer com ele. A Conduta foi publicado por Peter King em sua edição póstuma de algumas das obras de Locke em 1706. Como Locke estava compondo essas obras, parte do material da Conduta acabou entrando nos Pensamentos. Grant e Tarcov escrevem que os Pensamentos e a Conduta “se complementam bem: os Pensamentos se concentram na educação das crianças por seus pais, enquanto a Conduta trata da autoeducação dos adultos” (G&T 1996: vii). No entanto, eles também observam tensões entre os dois que ilustram os paradoxos da sociedade liberal. Pensamentos é dirigido à educação dos filhos e filhas da nobreza inglesa no final do século XVII. Em alguns aspectos, é, portanto, significativamente mais limitado ao seu tempo e lugar do que o Conduta. No entanto, sua insistência na inculcação de virtudes como

a justiça, o respeito pelos direitos dos outros, a civilidade, a liberalidade, a humanidade, a abnegação, a indústria, a economia, a coragem, a veracidade e a disposição para questionar preconceitos, autoridade e os preconceitos de seus próprios interesses

muito provavelmente representa as qualidades necessárias para os cidadãos em uma sociedade liberal (G&T 1996: xiii).

Os Pensamentos de Locke representam o ponto culminante de um século daquilo que foi chamado de “a descoberta da criança”. Na Idade Média, a criança era vista como

apenas um simples brinquedo, um simples animal ou um adulto em miniatura que se vestia, brincava e deveria agir como os mais velhos… Suas idades não eram importantes e, portanto, raramente eram conhecidas. Sua educação era indiferenciada, seja por idade, habilidade ou ocupação pretendida. (Axtell 1968: 63-4)

Locke tratava as crianças como seres humanos nos quais o desenvolvimento gradual da racionalidade precisava ser estimulado pelos pais. Locke recomendava que os pais passassem tempo com os filhos e adaptassem a educação deles ao seu caráter e às suas idiossincrasias, que desenvolvessem um corpo e um caráter sadios e que fizessem da brincadeira a principal estratégia de aprendizado, em vez do aprendizado mecânico ou da punição. Assim, ele incentivou o aprendizado de idiomas, aprendendo a conversar com eles antes de aprender as regras gramaticais. Locke também sugere que a criança aprenda pelo menos um ofício manual.

Ao defender um tipo de educação que tornasse as pessoas capazes de pensar por si mesmas, Locke estava preparando-as para tomar decisões eficazes em suas próprias vidas — para se envolverem no autogoverno individual — e para participarem do governo de seu país. O Conduta revela as conexões que Locke vê entre razão, liberdade e moralidade. A razão é necessária para um bom autogoverno porque a razão, na medida em que é livre de parcialidade, intolerância, paixão e capaz de questionar a autoridade, leva a julgamentos e ações justos. Portanto, temos a responsabilidade de cultivar a razão a fim de evitar as falhas morais da paixão, da parcialidade e assim por diante (G&T 1996: xii). Essa é, na frase de Tarcov, a educação de Locke para a liberdade.

Passemos agora aos escritos políticos de Locke. (Consulte o verbete sobre a filosofia política de Locke, que se concentra em cinco tópicos (o estado de natureza, a lei natural, a propriedade, o consentimento e a tolerância) e aprofunda esses tópicos mais do que seria possível em um relato geral, fornecendo muitas informações úteis sobre os debates a respeito deles).

4. Os Dois Tratados Sobre o Governo

Lord Shaftsbury havia sido demitido de seu cargo de Lord Chancellor em 1673 e se tornou um dos líderes do partido de oposição, o Country Party. Em 1679, a principal questão foi a tentativa dos líderes do Country Party de excluir James, Duque de York, da sucessão de seu irmão Carlos II no trono. Eles queriam fazer isso porque James era católico, e a Inglaterra, nessa época, era um país firmemente protestante. Eles obtiveram a maioria na Câmara dos Comuns por meio de sérias campanhas eleitorais de base e aprovaram um projeto de lei de exclusão, mas como o rei não queria ver seu irmão excluído do trono, o projeto foi reprovado na Câmara dos Lordes. Eles tentaram mais algumas vezes, sem sucesso. Tendo fracassado por meios parlamentares, alguns dos líderes do Country Party começaram a planejar uma rebelião armada.

Os Two Treatises of Government (Dois Tratados Sobre o Governo) foram publicados em 1689, muito tempo depois de a rebelião planejada pelos líderes do Country Party não ter se concretizado e depois de Shaftsbury ter fugido do país para a Holanda e morrido. A introdução dos Dois Tratados foi escrita após a Revolução Gloriosa de 1688 e deu a impressão de que o livro foi escrito para justificar a Revolução Gloriosa. Hoje sabemos que os Dois Tratados Sobre o Governo foram escritos durante a crise da Exclusão, em 1681, e podem ter sido destinados, em parte, a justificar o levante armado geral que os líderes do Partido Country estavam planejando.

Havia sérios obstáculos a uma rebelião para forçar a exclusão de James do trono. A nobreza anglicana inglesa precisava apoiar tal ação. Mas a igreja anglicana, desde a infância, ensinava que: “…os deveres políticos dos homens eram exaustivamente determinados por seus superiores terrestres, que, sob graves escrúpulos de consciência, eles poderiam corretamente se recusar a cumprir os decretos de autoridade que violavam diretamente a lei divina, mas não poderiam, em nenhuma circunstância, ter o direito de resistir a essa autoridade”. (Dunn, 1968, p. 48) Como em 1679 já estava bastante claro que o rei se opunha à exclusão de seu irmão do trono, favorecer a exclusão implicava “resistência explícita e autoconsciente ao soberano”. A resistência passiva simplesmente não seria suficiente. Por outro lado, a política real “ultrajava seus preconceitos religiosos mais profundos e estimulava suas ansiedades emocionais mais obscuras”. Portanto, os nobres estavam em profundo conflito e nenhuma das opções disponíveis lhes parecia muito palatável. John Dunn continua observando: “Para exercer influência sobre sua escolha, era necessário, acima de tudo, apresentar uma ordenação mais coerente de seus valores, mostrar que a tradição política na qual os dissidentes viam sua conduta não era necessariamente empiricamente absurda ou socialmente subversiva. A nobreza tinha que ser persuadida de que poderia haver motivos para a rebelião que não a tornassem nem blasfema nem suicida”. (Dunn, 1968, p. 49) Para atingir esse objetivo, Locke escolheu o mais relevante e extremo dos defensores do direito divino dos reis para atacar. Sir Robert Filmer (c 1588-1653), um homem da geração de Carlos I e da Guerra Civil Inglesa, que defendeu a coroa em várias obras. Sua obra mais famosa, no entanto, Patriarcha, foi publicada postumamente em 1680 e representou a exposição mais completa e coerente da visão que Locke desejava negar. Filmer sustentava que os homens nasciam em servidão indefesa a uma família autoritária, a uma hierarquia social e a um soberano cuja única restrição era seu relacionamento com Deus. Nessas circunstâncias, qualquer coisa que não fosse a obediência passiva seria “viciosa, blasfema e intelectualmente absurda”. Portanto, Locke precisava refutar Filmer e, nas palavras de Dunn: “resgatar o relato contratualista da obrigação política das críticas de impiedade e absurdo. Somente dessa maneira ele poderia devolver à nobreza anglicana uma base coerente para a autonomia moral ou uma iniciativa prática no campo da política”. (Dunn, 1968, 50)

O Primeiro Tratado Sobre o Governo é uma obra polêmica que visa refutar a base teológica da versão patriarcal da doutrina do Direito Divino dos Reis apresentada por Sir Robert Filmer. Locke destaca a alegação de Filmer de que os homens não são “naturalmente livres” como a questão principal, pois essa é a “base” ou premissa sobre a qual Filmer ergue seu argumento para a alegação de que todo governo “legítimo” é uma “monarquia absoluta” — os reis descendem do primeiro homem, Adão, e seus súditos são naturalmente escravos. No início do Primeiro Tratado, Locke nega que as escrituras ou a razão apoiem a premissa ou os argumentos de Filmer. No que se segue no Primeiro Tratado, Locke examina minuciosamente as principais passagens bíblicas.

Embora o Segundo Tratado Sobre o Governo forneça a teoria positiva de Locke sobre o governo, ele também continua seu argumento contra as alegações de Sir Robert Filmer de que os monarcas detêm legitimamente o poder absoluto sobre seus súditos. Locke afirma que a visão de Filmer é suficientemente incoerente para fazer com que os governos sejam estabelecidos pela força e pela violência. Assim, Locke afirma que deve fornecer um relato alternativo sobre a origem do governo “para que os homens não caiam na perigosa crença de que todo governo no mundo é meramente o produto da força e da violência” (Tratados II, 1, 4). O relato de Locke envolve vários dispositivos que eram comuns na filosofia política dos séculos XVII e XVIII — a teoria dos direitos naturais e o contrato social. Os direitos naturais são aqueles direitos que supostamente temos como seres humanos antes de qualquer governo ser criado. Podemos supor que, assim como outros animais, temos o direito natural de lutar por nossa sobrevivência. Locke argumenta que temos o direito aos meios para sobreviver. Quando Locke explica como surge o governo, ele usa as idéias de que as pessoas concordam que sua condição no estado de natureza é insatisfatória e, portanto, concordam em transferir alguns de seus direitos para um governo central, mantendo outros. Essa é a teoria do contrato social. Há muitas versões da teoria dos direitos naturais e do contrato social na filosofia política da Europa dos séculos XVII e XVIII, algumas conservadoras e outras radicais. A versão de Locke pertence ao lado radical do espectro. Essas teorias radicais do direito natural influenciaram as ideologias das revoluções americana e francesa.

A estratégia de Locke para refutar as alegações de Filmer de que os monarcas têm poder absoluto sobre seus súditos é mostrar que Filmer está combinando uma grande variedade de poderes limitados, todos os quais podem ser detidos por um homem e, assim, dar a falsa aparência de que um rei tem poder absoluto sobre esposas, filhos, servos e escravos, bem como sobre os súditos de uma comunidade. No entanto, quando distinguidos adequadamente e as limitações de cada um são mostradas, fica claro que os monarcas não têm poder absoluto legítimo sobre seus súditos.

4.1 O Segundo Tratado Sobre o Governo

Uma parte importante do projeto de Locke no Segundo Tratado é descobrir qual é o papel do governo legítimo, o que lhe permite distinguir a natureza do governo ilegítimo. Uma vez feito isso, a base para a revolução legítima se torna clara. Descobrir qual é o papel adequado ou legítimo do governo civil seria, de fato, uma tarefa difícil se examinássemos a vasta complexidade dos governos existentes. Como se deve proceder? Uma estratégia é considerar como é a vida na ausência de um governo civil. Presumivelmente, esse é um estado mais simples, que pode ser mais fácil de entender. Então, podemos ver qual é o papel que o governo civil deve desempenhar. Essa é a estratégia adotada por Locke, seguindo Hobbes e outros. Assim, no primeiro capítulo do Segundo Tratado, Locke define o poder político.

O poder político, portanto, considero o direito de fazer leis com penas de morte e, consequentemente, com todas as outras penalidades, para regular e preservar a propriedade, e de empregar a força da comunidade na execução dessas leis e na defesa da comunidade contra danos estrangeiros; e tudo isso apenas para o bem público. (Tratados, II, 1,3)

No segundo capítulo do Segundo Tratado, Locke descreve o estado em que não há governo com poder político real. Esse é o estado de natureza. Às vezes, supõe-se que o estado de natureza é um estado em que não há governo algum. Isso é apenas parcialmente verdadeiro. No estado de natureza, é possível não haver governo, haver um governo ilegítimo ou haver um governo legítimo com menos do que o poder político total. (Consulte a seção sobre o estado de natureza no item sobre a filosofia política de Locke).

Se considerarmos o estado de natureza antes da existência de um governo, trata-se de um estado de igualdade política em que não há superior ou inferior natural. Dessa igualdade decorre a obrigação de amor mútuo e os deveres que as pessoas devem umas às outras, bem como as grandes máximas de justiça e caridade. Esse estado já existiu? Tem havido um debate considerável sobre isso. Ainda assim, é evidente que tanto Hobbes quanto Locke responderiam afirmativamente a essa pergunta. Sempre que as pessoas não concordam em estabelecer uma autoridade política comum, elas permanecem no estado de natureza. É como dizer que as pessoas estão no estado de serem naturalmente solteiras até se casarem. Locke acredita claramente que é possível encontrar o estado de natureza em sua época, pelo menos nos “lugares interiores e vagos da América” (Segundo Tratado V. 36) e nas relações entre diferentes povos. Talvez o desenvolvimento histórico dos estados também tenha passado pelos estágios de um estado de natureza. Uma possibilidade alternativa é a de que o estado de natureza não seja um estado histórico real, mas sim uma construção teórica, destinada a ajudar a determinar a função adequada do governo. Se alguém rejeitar a historicidade dos estados de natureza, ainda assim poderá considerá-los um dispositivo analítico útil. Para Locke, é muito provável que sejam as duas coisas.

4.2 A Natureza Humana e os Propósitos de Deus

De acordo com Locke, Deus criou o homem e nós somos, de fato, propriedade de Deus. O principal objetivo estabelecido por nosso criador, como espécie e como indivíduos, é a sobrevivência. Um Deus sábio e onipotente, tendo criado as pessoas e enviado-as a este mundo:

…por sua ordem e para seus negócios, elas são propriedade dele, cuja obra são, feitas para durar durante o prazer dele, e não um do outro: e sendo equipadas com faculdades semelhantes, compartilhando tudo em uma comunidade da natureza, não se pode supor qualquer subordinação entre nós, que possa nos autorizar a destruir uns aos outros, como se fôssemos feitos para os usos uns dos outros, como as fileiras inferiores de criaturas são para os nossos. (Tratados II,2,6)

Segue-se imediatamente que “ele não tem liberdade para destruir a si mesmo ou a qualquer criatura que esteja em sua posse, mesmo quando algum uso mais nobre do que sua simples posse o exija” (Tratados II.2.6). Portanto, o assassinato e o suicídio violam o propósito divino.

Se considerarmos a sobrevivência como o fim, então podemos nos perguntar quais são os meios necessários para esse fim. Na opinião de Locke, esses meios são a vida, a liberdade, a saúde e a propriedade. Como o fim é estabelecido por Deus, na visão de Locke, temos direito aos meios para esse fim. Portanto, temos direitos à vida, à liberdade, à saúde e à propriedade. Esses são direitos naturais, ou seja, são direitos que temos em um estado de natureza antes da introdução do governo civil, e todas as pessoas têm esses direitos igualmente.

Há também uma lei da natureza. É a Regra de Ouro, interpretada em termos de direitos naturais. Assim, Locke escreve:

O estado de natureza tem uma lei natural para governá-lo, que obriga a todos: e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que a consultam que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deve prejudicar outro em sua vida, saúde, liberdade ou posses…. (Tratados II.2.6)

Locke nos diz que a lei da natureza é revelada pela razão. Locke afirma sobre a lei que ela ordena o que é melhor para nós. Se não fosse assim, diz ele, a lei desapareceria, pois não seria obedecida. É nesse sentido que Locke quer dizer que a razão revela a lei. Se você refletir sobre o que é melhor para si mesmo e para os outros, considerando a meta de sobrevivência e nossa igualdade natural, chegará a essa conclusão. (Consulte a seção sobre a lei da natureza no item sobre a Filosofia Política de Locke).

Locke não pretende que sua descrição do estado de natureza seja uma espécie de utopia. Em vez disso, ela serve como um dispositivo analítico que explica por que se torna necessário introduzir o governo civil e qual é a função legítima do governo civil. Assim, na concepção de Locke, há problemas com a vida no estado de natureza. A lei da natureza, assim como as leis civis, pode ser violada. Não há polícia, promotores ou juízes no estado de natureza, pois todos eles são representantes de um governo com poder político total. As vítimas, portanto, devem fazer cumprir a lei da natureza no estado de natureza. Além de nossos outros direitos no estado de natureza, temos o direito de aplicar a lei e de julgar em nosso próprio nome. Locke nos diz que podemos ajudar uns aos outros. Podemos intervir em casos em que nossos próprios interesses não estejam diretamente ameaçados para ajudar a aplicar a lei da natureza. Esse direito acaba servindo como justificativa para uma rebelião legítima. Ainda assim, no estado de natureza, a pessoa com maior probabilidade de fazer cumprir a lei nessas circunstâncias é a pessoa que foi prejudicada. O princípio básico da justiça é que a punição deve ser proporcional ao crime. Porém, quando as vítimas estão julgando a gravidade do crime, é mais provável que elas o julguem mais grave do que um juiz imparcial. Como resultado, haverá erros judiciais regulares. Esse talvez seja o problema mais importante do estado de natureza.

4.3 Sobre a Guerra e a Escravidão

Nos capítulos 3 e 4, Locke define os estados de guerra e escravidão. O estado de guerra é um estado em que alguém tem uma intenção sedimentada e estabelecida de violar o direito de alguém à vida (e, portanto, todos os seus outros direitos). Essa pessoa se coloca em um estado de guerra com a pessoa cuja vida pretende tirar. Em tal guerra, a pessoa que pretende violar o direito à vida de alguém é um agressor injusto. Essa não é a relação normal entre as pessoas, imposta pela lei da natureza no estado natural. Locke está se distanciando de Hobbes, que fez do estado de natureza e do estado de guerra termos equivalentes. Para Locke, o estado de natureza é normalmente aquele em que seguimos a Regra de Ouro interpretada em termos de direitos naturais e, portanto, amamos nossos semelhantes. O estado de guerra só ocorre quando alguém se propõe a violar os direitos de outra pessoa. Assim, na teoria da guerra de Locke, sempre haverá uma vítima inocente de um lado e um agressor injusto do outro.

A escravidão é o estado de estar no poder absoluto ou arbitrário de outra pessoa. Na definição de escravidão de Locke, há apenas uma maneira bastante notável de se tornar um escravo legítimo. Para isso, é preciso ser um agressor injusto derrotado em uma guerra. O justo vencedor tem então a opção de matar o agressor ou escravizá-lo. Locke nos diz que o estado de escravidão é a continuação do estado de guerra entre um conquistador legítimo e um cativo, no qual o conquistador adia a tomada da vida do cativo e, em vez disso, faz uso dele. Essa é uma guerra contínua porque, se o conquistador e o cativo fizerem algum acordo para obediência de um lado e poder limitado do outro, o estado de escravidão cessa e se torna uma relação entre um mestre e um servo na qual o mestre tem apenas poder limitado sobre seu servo. A razão pela qual a escravidão cessa com o pacto é que “nenhum homem pode, por acordo, passar para outro aquilo que não tem em si mesmo, um poder sobre sua própria vida” (Tratados II.4.24). A escravidão legítima é um conceito importante na filosofia política de Locke, principalmente porque nos diz qual é a extensão legítima do poder despótico e define e ilumina, por contraste, a natureza da escravidão ilegítima. A escravidão ilegítima é o estado em que alguém possui poder absoluto ou despótico sobre outra pessoa sem justa causa. Locke sustenta que é esse estado ilegítimo de escravidão que os monarcas absolutos desejam impor a seus súditos. É muito provável que seja por essa razão que a escravidão legítima seja definida de forma tão restrita. Isso mostra que o capítulo sobre a escravidão desempenha um papel crucial no argumento de Locke contra Sir Robert Filmer e, portanto, não poderia ter sido facilmente dispensado. Ainda assim, é possível que Locke tivesse um propósito adicional ou talvez um motivo bem diferente para escrever sobre a escravidão.

Nos últimos sessenta anos, tem havido um fluxo constante de artigos e livros argumentando que, devido ao envolvimento de Locke com o comércio e o governo colonial, a teoria da escravidão no Segundo Tratado tinha a intenção de justificar as instituições e práticas da escravidão afro-americana. Se esse fosse o caso, a filosofia de Locke não contradiria suas ações como investidor e administrador colonial. Entretanto, há fortes objeções a essa visão. Se tivesse a intenção de justificar a escravidão afro-americana, Locke teria se saído muito melhor com uma definição muito mais inclusiva de escravidão legítima do que a que ele dá. Às vezes, sugere-se que o relato de Locke sobre “guerra justa” é tão vago que poderia ser facilmente distorcido para justificar as instituições e práticas da escravidão afro-americana. No entanto, esse também não é o caso. No capítulo “Of Conquest” (Da conquista), Locke lista explicitamente os limites do poder legítimo dos conquistadores. Esses limites sobre quem pode se tornar um escravo legítimo e quais são os poderes de um conquistador justo garantem que essa teoria da conquista e da escravidão condenaria as instituições e práticas da escravidão afro-americana nos séculos XVII, XVIII e XIX. No entanto, o debate continua. Um elemento do debate tem a ver com o papel de Locke na redação das Constituições Fundamentais das Carolinas. David Armitage, em seu artigo de 2004 “John Locke, Carolina e os Dois Tratados Sobre o Governo“, argumenta que Locke estava envolvido em uma revisão da Constituição Fundamental das Carolinas na mesma época em que estava escrevendo os Dois Tratados Sobre o Governo. A disposição de que “Todo liberto das Carolinas tem poder e autoridade absolutos sobre seus escravos negros” permaneceu inalterada no documento. Em seu livro de 2016, O Plano de Ashley Cooper, Thomas Wilson faz um relato detalhado das intenções de Ashley Cooper para a colônia da Carolina e de como a intenção de Cooper foi frustrada pelos proprietários de escravos de Barbados, que mudaram a sociedade da Carolina de uma sociedade com escravos para uma sociedade escravagista. L. H. Roper, em seu livro de 2004, Definindo a Carolina: Propriedade, Plantadores e Conspirações 1662-1729, oferece um relato diferente do que deu errado, concentrando-se nos conflitos sobre o comércio de escravos indígenas. O artigo de James Farr, “Locke, a Lei Natural e a Escravidão no Novo Mundo” (2008), é uma das melhores afirmações da posição segundo a qual Locke pretendia que sua teoria da escravidão se aplicasse ao absolutismo inglês e não à escravidão afro-americana, ao mesmo tempo em que observa que o envolvimento de Locke com a escravidão arruinou sua reputação de grande defensor da liberdade.  Roger Woolhouse, em sua recente biografia de Locke (Woolhouse 2007: 187), observa que “embora não haja consenso sobre toda a questão, certamente parece haver ‘uma contradição gritante entre suas teorias e a escravidão afro-americana'”.

Recentemente, houve um debate sobre qual teoria da escravidão e do absolutismo Locke estava atacando. Johan Olsthoorn e Laurens van Apeldoorn (2020) argumentam que o relato de Locke sobre a escravidão e, em particular, que nenhuma pessoa pode estabelecer consensualmente um governo absoluto sobre si mesma, com todas as suas consequências, tem pouca força contra outras teorias contratuais clássicas, em particular as de Grotius e Puffendorf. Tanto Grotius quanto Puffendorf defenderam o absolutismo e a escravidão colonial.

Felis Waldmann em “Escravidão e Absolutismo nos Dois Tratados de Locke: Uma Resposta a Olsthoorn e van Apeldoorn“, contesta várias de suas afirmações e considera outras irrelevantes. Mais notavelmente, ele se opõe a estas afirmações: Primeiro, “Locke está trabalhando com uma concepção idiossincrática de escravidão e governo absoluto repudiada por proeminentes pensadores do início da modernidade que defendem o absolutismo político”. Segundo: “Assim como Filmer, Locke sustenta que os governantes absolutos podem matar e mutilar arbitrariamente seus súditos à vontade, pelo fato de terem um domínio sobre a vida deles”. Por fim, ele se opõe à afirmação de que: “Os primeiros advogados naturais modernos, de Grotius em diante, conceituaram a escravidão de forma bastante diferente, insistindo que as pessoas escravizadas não eram propriedade da mesma forma que possuímos coisas (que podem ser destruídas à vontade)” (Waldmann 7).

Em resumo, a resposta de Waldmann à primeira alegação é que Filmer representou com precisão a posição realista no final da década de 1670 e início da década de 1680 e, portanto, o relato de Locke não é um espantalho. Assim, Locke está atacando o relato de Filmer sobre a escravidão e não uma versão fraca e extrema do argumento do absolutismo que ninguém defendia. Waldmann sugere que a segunda afirmação amplia essa tendência dos dois autores de retratar o argumento de Locke como não respondendo aos argumentos padrão do absolutismo. Assim, Olsthoorn e van Apeldoorn atribuem a posição de Filmer a Locke. Waldmann conclui que as alegações de Olsthoorn e van Apeldoorn de que, como a posição de Locke sobre a escravidão era significativamente diferente das de Grotius e Puffendorf, ela tinha pouca força contra eles é, de fato, o caso. Mas ele acha que isso é de pouca importância, já que Locke não estava argumentando contra eles. Uma sugestão que ele considera plausível é que Locke está direcionando seu argumento contra a possibilidade de autoescravização a Thomas Hobbes. Hobbes foi reconhecido por seus contemporâneos por afirmar tanto que alguém poderia, por contrato, escravizar a si mesmo quanto que o rei tinha domínio sobre seus súditos.

William Uzgalis, em seu capítulo de 2017 “John Locke, Escravidão e Terras Indígenas“, sustenta que Locke tem duas teorias sobre a escravidão, uma delas sobre a escravidão legítima e a outra sobre a escravidão ilegítima. Observe que os autores discutidos acima simplesmente não fazem essa distinção. Se fizessem, ficaria claro que, embora Locke compartilhe com Filmer a conceituação dominium da escravidão, que permite ao senhor matar ou mutilar um escravo, nenhuma das duas teorias pertence a Filmer e, se Locke estiver correto sobre o absolutismo real e dado o caráter das práticas do tráfico de escravos e da escravidão colonial, tanto o absolutismo interno quanto o tráfico de escravos e a escravidão colonial se enquadram na teoria da escravidão ilegítima. Nem Grotius, nem Puffendorf, nem Hobbes têm uma teoria explícita da escravidão ilegítima. Uzgalis também observa que Grotius e Puffendorf forneceram alegações de que Locke poderia ter adotado se quisesse justificar o comércio de escravos e a escravidão nas colônias. Ainda assim, ele nega todas elas, e com boas razões. Se ele tivesse feito isso, teria enfraquecido substancialmente seu argumento contra o tipo de absolutismo que atribuiu a Filmer e aos Stuarts. Isso sugere que ele estava elaborando uma teoria alternativa e não argumentando contra seus concorrentes, com exceção, talvez, de Hobbes.

Holly Brewer, em seu artigo de 2017 “Escravidão, Soberania e ‘Sangue Hereditário’, Reconsiderando John Locke e as Origens da Escravidão Americana“, defende uma abordagem diferente para essas questões. Ela apresenta evidências de que os reis Stuart, e Charles II e seu irmão James, Duque de York, em particular, não estavam apenas interessados em um governo absoluto em casa; eles promoveram ativamente a Royal Africa Company, o comércio de escravos e a escravidão nas colônias, pois isso proporcionava quantias consideráveis de dinheiro aos cofres reais. James era o governador (o presidente) da Royal Africa Company e almirante da frota inglesa. Lord Shaftesbury, patrono de Locke, era o subgovernador, e Locke o auxiliava. Usando a frota, James atacou e capturou fortes holandeses na costa da África para criar bases para a Royal Africa Company e privar os holandeses delas. Os Stuarts cunharam moedas de guinéu para comemorar esses esforços. Depois de se tornar rei, James continuou como governador da Royal Africa Company. Assim, Brewer destaca as semelhanças e conexões entre o absolutismo contra o qual Locke se opunha em seu país e o comércio de escravos e a escravidão nas colônias. Ela argumenta que a disseminação da escravidão precisa ser entendida como uma política imperial inglesa, e não como algo que ocorreu em épocas e lugares diferentes, sem conexão entre si. Ela também afirma que, embora Locke fosse membro do Conselho de Comércio do Rei Guilherme III nos últimos anos do século XVII, ele procurou desfazer as políticas de Stuart relativas à escravidão nas colônias.

4.4 Da Propriedade

O Capítulo 5, “Da Propriedade”, é um dos capítulos mais famosos, influentes e importantes do Segundo Tratado Sobre o Governo. De fato, algumas das questões mais controversas sobre o Segundo Tratado decorrem de interpretações variadas sobre ele. Nesse capítulo, Locke, de fato, descreve a evolução do estado de natureza até o ponto em que se torna conveniente para aqueles que o habitam fundar um governo civil. Portanto, ele não é apenas um relato sobre a natureza e a origem da propriedade privada, mas leva à explicação de por que o governo civil substitui o estado de natureza (consulte a seção sobre propriedade no verbete sobre a filosofia política de Locke).

Ao discutir a origem da propriedade privada, Locke começa observando que Deus deu a terra a todos os homens em comum. Portanto, há uma questão sobre como a propriedade privada surge. Locke considera isso uma dificuldade séria. Ele ressalta, no entanto, que devemos fazer uso da terra “para o melhor proveito da vida e da conveniência” (Tratados II.5.25). Qual é, então, o meio de se apropriar da propriedade do estoque comum? Locke argumenta que a propriedade privada não surge por consentimento universal. Se alguém tivesse que sair por aí perguntando a todos se poderia comer essas bagas, morreria de fome antes de obter a concordância de todos. Locke defende que temos propriedade sobre nossa própria pessoa. E o trabalho de nosso corpo e o trabalho de nossas mãos nos pertencem adequadamente. Portanto, quando alguém pega sementes ou bagas, elas pertencem à pessoa que as pegou. Tem havido alguma controvérsia sobre o que Locke quer dizer com “trabalho”. Daniel Russell afirma que, para Locke, o trabalho é uma atividade direcionada a um objetivo que converte materiais que poderiam atender às nossas necessidades em recursos que de fato o fazem (Russell 2004). Essa interpretação do que Locke quer dizer com “trabalho” se conecta muito bem com sua afirmação de que temos uma obrigação de direito natural, primeiro de nos preservar e depois de ajudar na preservação e no florescimento dos outros.

Poderíamos pensar que, então, poderíamos adquirir o quanto quiséssemos, mas esse não é o caso. Locke introduz pelo menos duas qualificações importantes sobre a quantidade de propriedade que pode ser adquirida. A primeira qualificação tem a ver com o desperdício. Locke escreve:

Aquilo que qualquer pessoa pode usar para obter qualquer vantagem da vida antes que isto se estrague, ele pode, com seu trabalho, fixar uma propriedade; o que estiver além disso é mais do que sua parte e pertence a outros. (Tratados II.5.31)

Como, originalmente, as populações eram pequenas e os recursos grandes, vivendo dentro dos limites estabelecidos pela razão, haveria pouca disputa ou contenda sobre a propriedade, pois um único homem poderia fazer uso de apenas uma parte muito pequena do que estava disponível.

Observe que, até agora, Locke tem falado sobre caça e coleta e sobre os tipos de limitações que a razão impõe ao tipo de propriedade que os caçadores e coletores possuem. Na próxima seção, ele aborda a agricultura e a propriedade da terra e os tipos de limitações que existem nesse tipo de propriedade. De fato, vemos a evolução do estado de natureza de um tipo de sociedade de caçadores/coletores para uma sociedade agrícola e agropecuária. Mais uma vez, é o trabalho que impõe limitações à quantidade de terra que pode ser cercada. É apenas o quanto se pode trabalhar. Mas há uma qualificação adicional. Locke diz:

Nem essa apropriação de qualquer parcela de terra, ao melhorá-la, prejudicou qualquer outro homem, uma vez que ainda havia o suficiente, e tão bom quanto; e mais do que os ainda não providos poderiam usar. De modo que, de fato, nunca houve menos para os outros por causa de seu cercamento para si mesmo: pois aquele que deixa tanto quanto outro pode usar, faz o mesmo que não levar nada. Ninguém poderia se considerar prejudicado pelo fato de outro homem beber, embora tenha tomado um bom gole, se lhe restasse um rio inteiro da mesma água para saciar sua sede; e o caso da terra e da água, onde há o suficiente, é perfeitamente o mesmo. (Tratados II.5.33)

O próximo estágio na evolução do estado de natureza envolve a introdução do dinheiro. Locke observa que:

… antes que o desejo de ter mais do que o necessário tivesse alterado o valor intrínseco das coisas, que depende apenas de sua utilidade para a vida do homem; ou tivesse concordado que um pequeno pedaço de metal amarelo, que se conservaria sem se desgastar ou deteriorar, deveria valer um grande pedaço de carne ou um monte inteiro de milho; embora os homens tivessem o direito de se apropriar, por meio de seu trabalho, cada um por si mesmo, tanto das coisas da natureza quanto pudesse usar; no entanto, isso não poderia ser muito, nem em prejuízo de outros, onde a mesma abundância fosse deixada para aqueles que usassem a mesma atividade. (Tratados II.5.37)

Portanto, antes da introdução do dinheiro, havia um grau de igualdade econômica imposto à humanidade tanto pela razão quanto pelo sistema de troca. E os homens estavam em grande parte confinados à satisfação de suas necessidades e conveniências. A maioria das necessidades da vida tem vida relativamente curta — frutos silvestres, ameixas, carne de veado e assim por diante. Uma pessoa poderia razoavelmente trocar suas frutas silvestres por nozes que durariam não semanas, mas talvez um ano inteiro. E Locke diz

…se ele desse suas nozes por uma peça de metal, satisfeito com sua cor, ou trocasse suas ovelhas por conchas, ou lã por uma pedra cintilante ou diamante, e os mantivesse consigo por toda a vida, ele não invadiria o direito de outros, ele poderia acumular o quanto quisesse dessas coisas duráveis; a ultrapassagem dos limites de sua propriedade não reside na grandeza de suas posses, mas no perecimento de qualquer coisa que esteja inutilmente nela. (Tratados II.5.146)

A introdução do dinheiro é necessária para o aumento diferencial da propriedade, com a consequente desigualdade econômica. Sem o dinheiro, não haveria sentido em ir além da igualdade econômica do estágio anterior. Em uma economia monetária, diferentes graus de atividade poderiam dar aos homens proporções muito diferentes.

Os homens tornaram viável essa divisão das coisas em uma desigualdade de posses privadas, fora dos limites da sociedade e sem um pacto, apenas atribuindo um valor ao ouro e à prata e concordando tacitamente com o uso do dinheiro, pois nos governos as leis regulam os direitos de propriedade e a posse da terra é determinada por constituições positivas. (Tratados II.5.50)

A implicação é que a introdução do dinheiro causa desigualdade, o que, por sua vez, multiplica as causas de brigas e contendas e aumenta o número de violações da lei da natureza. Isso leva à decisão de criar um governo civil. Antes de nos voltarmos para a instituição do governo civil, entretanto, devemos nos perguntar o que acontece com as qualificações sobre a aquisição de propriedade após o advento do dinheiro? Uma resposta proposta por C. B. Macpherson em The Political Theory of Possessive Individualism (A Teoria Política do Individualismo Possessivo) é que as qualificações foram completamente deixadas de lado, e agora temos um sistema para a aquisição ilimitada de propriedade privada. Isso não parece ser correto. Parece claro, ao contrário, que pelo menos a qualificação de não deterioração é satisfeita, porque o dinheiro não se deteriora. As outras qualificações podem se tornar um tanto irrelevantes com o advento das convenções sobre propriedade adotadas na sociedade civil. Isso deixa em aberto a questão de saber se Locke aprovava essas mudanças. Macpherson, que considera Locke um porta-voz de um sistema proto-capitalista, vê Locke como defensor da aquisição ilimitada de riqueza. James Tully, por outro lado, em Um Discurso Sobre a Propriedade, afirma que Locke vê as novas condições, a mudança nos valores e a desigualdade econômica que surgem como resultado do advento do dinheiro, como a queda do homem. Tully vê Locke como um crítico persistente e poderoso do interesse próprio. Essa notável diferença de interpretação tem sido um tópico importante de debates entre os acadêmicos nos últimos quarenta anos. Embora o Segundo Tratado Sobre o Governo possa deixar essa questão difícil de determinar, pode-se considerar a observação de Locke em Alguns Pensamentos Sobre a Educação de que

A cobiça e o desejo de ter em nossa posse e domínio mais do que precisamos, sendo a raiz de todos os males, devem ser precoce e cuidadosamente eliminados e inculcada a qualidade contrária de estar pronto para transmitir aos outros. (G&T 1996: 81)

Vamos então nos voltar para a instituição do governo civil.

4.5 A Teoria do Contrato Social

Assim como os direitos naturais e a teoria da lei natural tiveram uma fluorescência nos séculos XVII e XVIII, o mesmo ocorreu com a teoria do contrato social. Por que Locke é um teórico do contrato social? Será que essa era apenas uma maneira predominante de pensar sobre o governo na época, que Locke adotou cegamente? A resposta é que há algo no projeto de Locke que o empurra fortemente na direção do contrato social. Alguém poderia afirmar que os governos foram originalmente instituídos pela força e que nenhum acordo estava envolvido. Se Locke adotasse essa visão, ele seria forçado a voltar atrás em muitas das coisas que estão no centro de seu projeto no Segundo Tratado, embora casos como a conquista normanda o forcem a admitir que os cidadãos podem vir a aceitar um governo que foi originalmente imposto a eles. Lembre-se de que o Segundo Tratado apresenta a teoria positiva de Locke sobre o governo e que ele diz explicitamente que precisa apresentar uma alternativa à visão

de que todo governo no mundo é meramente o produto da força e da violência, e que os homens vivem juntos por regras que não são diferentes daquelas das feras, onde o mais forte leva a melhor… (Tratados II, 1, 4)

Portanto, embora Locke possa admitir que alguns governos surgem por meio da força ou da violência, ele estaria destruindo a distinção mais central e vital, aquela entre governo civil legítimo e ilegítimo, se admitisse que o governo legítimo pode surgir dessa forma. Logo, para Locke, o governo legítimo é instituído pelo consentimento explícito dos governados. (Consulte a seção sobre consentimento, obrigação política e os fins do governo no item sobre a filosofia política de Locke). Aqueles que fazem esse acordo transferem para o governo o direito de executar a lei da natureza e julgar seu próprio caso. Esses são os poderes que eles dão ao governo central, e é isso que torna o sistema de justiça dos governos uma função legítima desses governos.

Ruth Grant argumentou de forma persuasiva que o estabelecimento do governo é, de fato, um processo de duas etapas. O consentimento universal é necessário para formar uma comunidade política. Uma vez dado, o consentimento para participar de uma comunidade é obrigatório e não pode ser retirado. Isso torna as comunidades políticas estáveis. Grant escreve: “Tendo estabelecido que a participação em uma comunidade implica a obrigação de obedecer à vontade da comunidade, a questão permanece: Quem governa?” (1987: 114-115). A resposta a essa pergunta é determinada pela regra da maioria. A questão é que o consentimento universal é necessário para estabelecer uma comunidade política, e o consentimento da maioria para responder à pergunta sobre quem deve governar essa comunidade. O consentimento universal e o consentimento da maioria são, portanto, diferentes em espécie, não apenas em grau. Grant escreve:

O argumento de Locke para o direito da maioria é a base teórica para a distinção entre o dever para com a sociedade e o dever para com o governo, a distinção que permite um argumento para a resistência sem anarquia. Quando o governo designado se dissolve, os homens continuam obrigados à sociedade, agindo por meio da regra da maioria. (1987: 119)

É perfeitamente possível que a maioria confira o governo da comunidade a um rei e seus herdeiros, a um grupo de oligarcas ou a uma assembleia democrática. Portanto, o contrato social não está inextricavelmente ligado à democracia. Ainda assim, um governo de qualquer tipo deve desempenhar a função legítima de um governo civil.

4.6 A Função do Governo Civil

Locke está agora em condições de explicar a função de um governo legítimo e distingui-lo de um governo ilegítimo. O objetivo de um governo legítimo é preservar, na medida do possível, os direitos à vida, à liberdade, à saúde e à propriedade de seus cidadãos, processar e punir os cidadãos que violam os direitos dos outros e buscar o bem público, mesmo que isso entre em conflito com os direitos dos indivíduos. Ao fazer isso, ele fornece algo que não está disponível no estado de natureza, um juiz imparcial para determinar a gravidade do crime e estabelecer uma punição proporcional ao crime. Esse é um dos principais motivos pelos quais a sociedade civil é uma melhoria em relação ao estado de natureza. Um governo ilegítimo não conseguirá proteger os direitos à vida, à liberdade, à saúde e à propriedade de seus súditos e, no pior dos casos, esse governo ilegítimo alegará poder violar os direitos de seus súditos, ou seja, alegará ter poder despótico sobre eles. Como Locke está argumentando contra a posição de Sir Robert Filmer, que sustentava que o poder patriarcal e o poder político são a mesma coisa e que, na verdade, eles equivalem ao poder despótico, Locke se esforça para distinguir essas três formas de poder e mostrar que elas não são equivalentes. Assim, no início do capítulo 15, “Sobre o Poder Paternal, Político e Despótico Considerados em Conjunto”, ele escreve:

EMBORA eu já tenha tido a oportunidade de falar sobre eles antes, ainda assim, os grandes erros dos últimos tempos sobre o governo, tendo, como suponho, surgido da confusão desses poderes distintos um com o outro, talvez não seja errado considerá-los juntos.

Os capítulos 6 e 7 apresentam o relato de Locke sobre o poder paterno e o poder político, respectivamente. O poder paterno é limitado. Ele dura apenas durante a menoridade dos filhos e tem outras limitações. O poder político, derivado da transferência do poder dos indivíduos para fazer cumprir a lei da natureza, tem o direito de matar no interesse de preservar os direitos dos cidadãos ou de apoiar o bem público. O poder despótico legítimo, por outro lado, implica o direito de tirar a vida, a liberdade, a saúde e pelo menos parte da propriedade de qualquer pessoa sujeita a esse poder.

4.7 Rebelião e Regicídio

No final do Segundo Tratado, aprendemos sobre a natureza dos governos civis ilegítimos e as condições sob as quais a rebelião e o regicídio são legítimos e apropriados. Conforme observado acima, os estudiosos agora sustentam que o livro foi escrito durante a Crise de Exclusão e pode ter sido escrito para justificar uma insurreição geral e o assassinato do rei da Inglaterra e de seu irmão. O argumento a favor da revolução legítima decorre da distinção entre governo civil legítimo e ilegítimo. Um governo civil legítimo busca preservar a vida, a saúde, a liberdade e a propriedade de seus súditos, desde que isso seja compatível com o bem público. Por fazer isso, ele merece obediência. Um governo civil ilegítimo busca violar sistematicamente os direitos naturais de seus súditos. Ele procura torná-los escravos ilegítimos. Como um governo civil ilegítimo faz isso, ele se coloca em um estado de natureza e em um estado de guerra com seus súditos. O magistrado ou rei de tal estado viola a lei da natureza e, assim, transforma-se em uma perigosa fera de rapina que opera com base no princípio de que a força faz a razão, ou de que o mais forte vence. Nessas circunstâncias, a rebelião é legítima, assim como a morte dessa perigosa fera de rapina. Assim, Locke justifica a rebelião e o regicídio em determinadas circunstâncias. Presumivelmente, essa justificativa seria oferecida para o assassinato do rei da Inglaterra e de seu irmão se a conspiração de Rye House tivesse sido bem-sucedida. Mesmo que essa não fosse a intenção de Locke, ela teria servido admiravelmente a esse propósito.

5. Locke e a Tolerância Religiosa

A questão da tolerância religiosa era de amplo interesse na Europa no século XVII, em grande parte porque a intolerância religiosa e a violência que a acompanhava eram muito difundidas. A Reforma dividiu a Europa em campos religiosos concorrentes, o que provocou guerras civis e grandes perseguições religiosas. John Marshall, em seu grande estudo John Locke, a Tolerância e a Cultura do Iluminismo Inicial, observa que a década de 1680 foi o clímax desse tipo de perseguição. A República Holandesa, onde Locke passou anos no exílio, havia sido fundada como um estado secular que permitiria diferenças religiosas. Essa foi uma reação à perseguição católica aos protestantes. Entretanto, quando a Igreja Calvinista ganhou poder, começou a perseguir outras seitas, como os Remonstrantes, que discordavam deles. Apesar disso, a República Holandesa continuou sendo o país mais tolerante da Europa. Na França, o conflito religioso havia sido temporariamente acalmado pelo edito de Nantes. No entanto, em 1685, ano em que Locke escreveu a Primeira Carta sobre tolerância religiosa, Luís XIV revogou o Édito de Nantes, e os huguenotes estavam sendo perseguidos. Embora proibidos de fazer isso, cerca de 200.000 emigraram, enquanto provavelmente 700.000 foram forçados a se converter ao catolicismo. As pessoas na Inglaterra estavam bem cientes dos eventos que ocorriam na França.

Na própria Inglaterra, o conflito religioso dominou o século XVII, contribuindo em aspectos importantes para a Guerra Civil Inglesa e a abolição da Igreja Anglicana durante o Protetorado. Após a Restauração de Carlos II, os anglicanos no parlamento aprovaram leis que reprimiam tanto os católicos quanto as seitas protestantes, como presbiterianos, batistas, quakers e unitarianos, que não concordavam com as doutrinas ou práticas da Igreja estatal. Dentre essas várias seitas dissidentes, algumas eram mais próximas dos anglicanos, outras mais distantes. Um motivo, entre outros, pelo qual o Rei Charles pode ter achado Shaftesbury útil foi o fato de ambos estarem preocupados com a tolerância religiosa. Eles se separaram quando ficou claro que o rei estava interessado principalmente na tolerância para os católicos e Shaftesbury para os dissidentes protestantes.

Uma estratégia amplamente discutida para reduzir o conflito religioso na Inglaterra foi chamada de compreensão. A idéia era reduzir as doutrinas e práticas da igreja anglicana a um mínimo, de modo que a maioria, se não todas, as seitas dissidentes fossem incluídas na igreja estatal. Para aquelas que nem mesmo essa medida serviria, deveria haver tolerância. Podemos definir tolerância como a ausência de perseguição estatal. Nenhuma dessas estratégias teve muito progresso durante o curso da Restauração.

Quando Locke fugiu para a Holanda após a descoberta da conspiração da casa de Rye, ele se envolveu com um grupo de acadêmicos que defendiam a tolerância religiosa. Esse grupo incluía Benjamin Furly, um quaker com quem Locke viveu por um tempo, o famoso filósofo Pierre Bayle, vários teólogos holandeses e muitos outros. Esse grupo leu todos os argumentos a favor da intolerância religiosa e os discutiu em clubes de livros e conversas. Os membros do grupo consideravam a tolerância não apenas para protestantes e dissidentes protestantes, mas também para judeus, muçulmanos e católicos. Uma descoberta recente de uma página das reflexões de Locke sobre a tolerância aos católicos mostra que Locke considerou até mesmo os prós e contras da tolerância aos católicos (Walmsley e Waldmann 2019). Alguns membros do grupo também escreveram artigos e livros toleracionistas. Eles ajudavam uns aos outros a conseguir empregos. Alguns de seus membros fundaram revistas que revisavam livros e artigos sobre temas religiosos, científicos e outros. O grupo levava a sério a noção de liberdade de expressão, civilidade e polidez no discurso. Eles se autodenominavam “a República das Letras” ou, na frase de Locke, “a comunidade do aprendizado”.

Quais eram as opiniões religiosas de Locke e onde ele se encaixava nos debates sobre a tolerância religiosa? Essa é uma pergunta bastante difícil de responder. A religião e o cristianismo, em particular, talvez sejam a influência mais importante na forma da filosofia de Locke. Mas que tipo de cristão era Locke? A família de Locke era puritana. Em Oxford, Locke evitou se tornar um padre anglicano. Ainda assim, o próprio Locke afirmou ser anglicano até sua morte e o biógrafo de Locke do século XIX, Fox Bourne, achava que Locke era anglicano. Outros o identificaram com os latitudinarianos — um movimento entre os anglicanos para defender um cristianismo razoável que os dissidentes deveriam aceitar. Ainda assim, há algumas razões para pensar que Locke não era nem um anglicano ortodoxo nem um latitudinariano. Locke conseguiu que Isaac Newton escrevesse o mais poderoso tratado antitrinitariano de Newton. Locke conseguiu que o trabalho fosse publicado anonimamente na Holanda, embora, no final, Newton tenha decidido não publicar (McLachlan, 1941). Isso sugere fortemente que Locke também já era ariano ou unitarista nessa época. (Ário, entre 250 e 336, afirmava a primazia do Pai sobre o Filho e, portanto, rejeitava a doutrina da Trindade e foi condenado como herege no Concílio de Nicéia, em 325. Newton sustentava que a Igreja havia tomado a direção errada ao condenar Ário). Considerando que um dos principais temas da Carta Sobre Tolerância de Locke é que deve haver uma separação entre a Igreja e o Estado, essa não parece ser a opinião de um homem dedicado a uma religião estatal. Pode parecer que o fato de Locke ter escrito The Reasonableness of Christianity (A Razoabilidade do Cristianismo), no qual ele argumenta que as doutrinas básicas do cristianismo são poucas e compatíveis com a razão, faz dele um latitudinariano. No entanto, Richard Ashcraft argumentou que a compreensão para os anglicanos significava a conformidade com as práticas existentes da Igreja Anglicana, ou seja, o abandono da dissidência religiosa. Ashcraft também sugere que os latitudinarianos não eram, portanto, um meio-termo moderado entre extremos conflitantes, mas parte de um dos extremos — “a face aceitável da perseguição à dissidência religiosa” (Ashcraft 1992: 155). Ashcraft afirma que, embora os latitudinarianos possam ter representado a “teologia racional” da igreja anglicana, havia uma “teologia racional” dissidente concorrente. Assim, embora seja verdade que Locke tinha amigos latitudinarianos, dada a distinção de Ashcraft entre “teologias racionais” anglicanas e dissidentes, é inteiramente possível que A Razoabilidade do Cristianismo seja uma obra de “teologia racional” dissidente.

Locke vinha pensando, falando e escrevendo sobre tolerância religiosa desde 1659. Suas opiniões evoluíram. No início da década de 1660, ele muito provavelmente era um anglicano ortodoxo. Ele e Shaftesbury haviam instituído a tolerância religiosa nas Constituições Fundamentais das Carolinas (1669). Ele escreveu a Epistola de Tolerantia em latim em 1685, enquanto estava exilado na Holanda. Muito provavelmente, ele estava vendo refugiados protestantes atravessando as fronteiras da França, onde Luís XIV havia acabado de revogar o Édito de Nantes. A própria Holanda era uma teocracia calvinista com problemas significativos em relação à tolerância religiosa. Porém, a Carta de Locke não se limita às questões da época. Locke apresenta um relato de princípios sobre a tolerância religiosa, embora isso esteja misturado com argumentos que se aplicam apenas aos cristãos e, talvez, em alguns casos, apenas aos protestantes. Ele excluiu tanto os católicos quanto os ateus da tolerância religiosa. No caso dos católicos, foi porque ele os considerava agentes de uma potência estrangeira. Pelo fato de não acreditarem em Deus, segundo Locke, no caso dos ateus: “Promessas, convênios e juramentos, que são os vínculos da sociedade humana, não podem ser cumpridos por um ateu” (Mendus 1991: 47). Ele faz sua defesa geral da tolerância religiosa ao mesmo tempo em que dá continuidade à retórica antipapista do partido Country, que buscava excluir James II do trono.

Os argumentos de Locke a favor da tolerância religiosa se conectam muito bem com sua descrição do governo civil. Locke define vida, liberdade, saúde e propriedade como nossos interesses civis. Essas são as preocupações adequadas de um magistrado ou governo civil. O magistrado pode usar a força e a violência quando necessário para preservar os interesses civis contra ataques. Essa é a função central do Estado. As preocupações religiosas de uma pessoa com a salvação, entretanto, não estão dentro do domínio dos interesses civis e, portanto, estão fora da preocupação legítima do magistrado ou do governo civil. De fato, Locke acrescenta um direito adicional aos direitos naturais de vida, liberdade, saúde e propriedade — o direito de liberdade de escolher o próprio caminho para a salvação. (Consulte a seção sobre Tolerância no verbete sobre a Filosofia Política de Locke).

Locke defende que o uso da força pelo Estado para fazer com que as pessoas mantenham determinadas crenças ou se envolvam em determinadas cerimônias ou práticas é ilegítimo. O principal meio que o magistrado tem à sua disposição é a força, mas a força não é um meio eficaz para mudar ou manter a crença. Suponhamos, então, que o magistrado use a força para fazer com que as pessoas declarem que acreditam. Locke escreve:

Uma doce religião, de fato, que obriga os homens a dissimular e dizer mentiras a Deus e aos homens, para a salvação de suas almas! Se o magistrado pensa em salvar os homens dessa forma, ele parece entender pouco sobre o caminho da salvação; e se ele não faz isso para salvá-los, por que ele é tão solícito com os artigos de fé a ponto de promulgá-los por meio de uma lei? (Mendus 1991: 41)

Portanto, a perseguição religiosa por parte do Estado é inadequada. Locke defende que “o que quer que seja lícito na comunidade não pode ser proibido pelo magistrado na igreja”. Isso significa que o uso de pão e vinho, ou mesmo o sacrifício de um bezerro, não poderia ser proibido pelo magistrado.

Se houver igrejas concorrentes, pode-se perguntar qual delas deve ter o poder? A resposta é claramente que o poder deve ir para a igreja verdadeira e não para a igreja herética. Contudo, Locke afirma que isso equivale a não dizer nada. Pois toda igreja acredita ser a igreja verdadeira, e não há juiz além de Deus que possa determinar qual dessas afirmações está correta. Assim, o ceticismo sobre a possibilidade de conhecimento religioso é fundamental para o argumento de Locke a favor da tolerância religiosa.
Por fim, para um relato da influência das obras de Locke, consulte o documento suplementar: Suplemento sobre a influência das obras de Locke.


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Bibliografia

Primary Literature

Locke’s Works

Oxford University Press is in the process of producing a new edition of all of Locke’s works. This will supersede The Works of John Locke of which the 1823 edition is probably the most standard. The new Clarendon editions began with Peter Nidditch’s edition of An Essay Concerning Human Understanding in 1975. The Oxford Clarendon editions contain much of the material of the Lovelace collection, purchased and donated to Oxford by Paul Mellon. This treasure trove of Locke’s works and letters, which includes early drafts of the Essay and much other material, comes down from Peter King, Locke’s nephew, who inherited Locke’s papers. Access to these papers has given scholars in the twentieth century a much better view of Locke’s philosophical development and provided a window into the details of his activities which is truly remarkable. Hence the new edition of Locke’s works will very likely be definitive.

The Clarendon Edition of the Works of John Locke, Oxford: Clarendon Press:

  • [N] An Essay Concerning Human Understanding, Peter H. Nidditch (ed.), 1975. doi:10.1093/actrade/9780198243861.book.1/actrade-9780198243861-book-1
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  • Drafts for the Essay Concerning Human Understanding, and Other Philosophical Writings: In Three Volumes, Vol. 1: Drafts A and B, Peter H. Nidditch and G. A. J. Rogers (eds.), 1990. doi:10.1093/actrade/9780198245452.book.1/actrade-9780198245452-book-1
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  • A Paraphrase and Notes on the Epistles of St Paul to the Galatians, 1 and 2 Corinthians, Romans, Ephesians, 2 volumes, Arthur W. Wainwright (ed.)
    • volume 1, 1987. doi:10.1093/actrade/9780198248019.book.1/actrade-9780198248019-book-1
    • volume 2, 1987. doi:10.1093/actrade/9780198248064.book.1/actrade-9780198248064-book-1
  • Locke on Money, 2 volumes, Patrick Hyde Kelly (ed.)
    • Volume 1, 1991. doi:10.1093/actrade/9780198245469.book.1/actrade-9780198245469-book-1
    • Volume 2, 1991,. doi:10.1093/actrade/9780198248378.book.1/actrade-9780198248378-book-1
  • The Correspondence of John Locke, eight volumes, E.S. de Beer (ed.)
    • Vol. 1: Introduction; Letters Nos. 1–461, 2010. doi:10.1093/actrade/9780199573615.book.1/actrade-9780199573615-book-1
    • Vol. 2: Letters Nos. 462–848, 1976. doi:10.1093/actrade/9780198245599.book.1/actrade-9780198245599-book-1
    • Vol. 3: Letters Nos. 849–1241, 1978. doi:10.1093/actrade/9780198245605.book.1/actrade-9780198245605-book-1
    • Vol. 4: Letters Nos. 1242–1701, 1978. doi:10.1093/actrade/9780198245612.book.1/actrade-9780198245612-book-1.
    • Vol. 5: Letters Nos. 1702–2198, 1979. doi:10.1093/actrade/9780198245629.book.1/actrade-9780198245629-book-1
    • Vol. 6: Letters Nos. 2199–2664, 1980. doi:10.1093/actrade/9780198245636.book.1/actrade-9780198245636-book-1
    • Vol. 7: Letters Nos. 2665–3286, 1981. doi:10.1093/actrade/9780198245643.book.1/actrade-9780198245643-book-1
    • Vol. 8: Letters Nos. 3287–3648, 1989. doi:10.1093/actrade/9780198245650.book.1/actrade-9780198245650-book-1

In addition to the Oxford Press edition, there are a few editions of some of Locke’s works which are worth noting.

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  • John Locke, Two Tracts of Government, Phillip Abrams (ed.), Cambridge: Cambridge University Press, 1967.
  • Locke’s The Two Treatises of Civil Government, Richard Ashcraft (ed.), London: Routledge, 1987.
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  • [Gay 1964], John Locke on Education, Peter Gay (ed.), New York: Bureau of Publications, Columbia Teachers College, 1964.
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Secondary Literature

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  • –––, 2004, “Locke on Ideas of Substance and the Veil of Perception”, Pacific Philosophical Quarterly, 85(3): 252–272. doi:10.1111/j.1468-0114.2004.00198.x
  • Yolton, Jean S., 1990, A Locke Miscellany, Bristol: Thoemmes Antiquarian Books.
  • Yolton, John, 1956, John Locke and the Way of Ideas Oxford, Oxford University Press; reprinted, Bristol: Thoemmes Press, 1996.
  • –––, 1969, John Locke: Problems and Perspectives: New Essays, Cambridge: Cambridge University Press.
  • –––, 1970, John Locke and the Compass of Human Understanding, Cambridge: Cambridge University Press.
  • –––, 1983, Thinking Matter: Materialism in Eighteenth Century Britain, Minneapolis: University of Minnesota Press.
  • –––, 1984, Perceptual Acquaintance: From Descartes to Reid, Minneapolis: University of Minnesota Press.

Bibliographies

  • Hall, Roland, and Roger Woolhouse, 1983, 80 Years of Locke Scholarship: A Bibliographical Guide, Edinburgh: University of Edinburgh Press.

Newsletter

  • Locke Studies (formerly The Locke Newsletter), edited by Timothy Stanton, Heslington: University of York.

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  • Enhanced bibliography for this entry at PhilPapers, with links to its database.

Other Internet Resources

  • “John Locke”, entry on Locke, Internet Encyclopedia of Philosophy.
  • Images of Locke, National Portrait Gallery, Great Britain.

Berkeley, George | Hume, David | Leibniz, Gottfried Wilhelm | liberalism | Locke, John: moral philosophy | Locke, John: on freedom | Locke, John: on personal identity | Locke, John: philosophy of science | Locke, John: political philosophy | Masham, Lady Damaris | personal identity | substance | tropes

Acknowledgments

The editors would like to thank Sally Ferguson for carefully proofreading the text.

Este artigo foi publicado originalmente no site Plato Stanford: https://plato.stanford.edu/entries/locke/

Sobre o Autor ou Tradutor

Bernardo Santos

Aluno do Olavão, bacharel em matemática, amante da Filosofia, tradutor e músico nas horas vagas, Bernardo Santos é administrador principal do Diário Intelectual.

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