A face oculta de Lutero: reacionário, intolerante e anti-semita – Michael Amorim

A face oculta de Lutero: reacionário, intolerante e anti-semita” foi escrito por Michael Amorim em 02 de Novembro de 2023.


Era uma noite chuvosa na cidade de Wittenberg, Alemanha, relâmpagos rasgavam o céu e fortes trovões estremeciam até as mais espessas paredes. O calendário marca a data de 31 de Outubro de 1517. Em uma pequena sala, um monge debruça-se entre papéis e livros. Pilhas e mais pilhas de grossos volumes o rodeiam. Com a pena em punho, nosso intelectual perde-se entre as frases que se formam. Quem quer que visse a cena, atribuiria um caráter místico à coisa. Como se o próprio Deus escrevesse, ali, um novo Decálogo.

A pena deslizava pelo papel como se tivesse vida própria. Um número seguido de uma palavra, e outra, e mais outra, até a conclusão da frase. E, de repente, um brado: “Está feito”! Nosso inspirado monge corre em euforia, tal qual Arquimedes a descobrir que todo corpo que se encontra imerso em um fluido recebe a ação de uma força vertical para cima… não, é pouco demais para expressar a grandeza do momento: sentia-se como o próprio Moisés ao descer o Monte Sinai com as Tábuas da Lei. Instantes mais tarde essas mesmas teses estariam pregadas na porta da grande e velha Igreja de Wittenberg. Uma nova ordem, de justiça, esperança e liberdade estava decretada. As trevas reinantes do catolicismo estariam, a partir daquele ato, fadadas ao extermínio. Tudo graças a um destemido e genial monge; seu nome: Martinho Lutero.

É mais ou menos assim que os livros de história relatam o início da Reforma Protestante, quando Martinho Lutero, supostamente, fixou suas 95 teses na porta da Igreja local, desafiando, assim, a exploração romana da venda de indulgências e a tirania dos dogmas que fechavam o Reino dos Céu aos pobres e humildes. Lutero é considerado por muitos estudiosos como o pai espiritual de Bacon, Descartes, Voltaire, Rousseau, Darwin e tutti quanti, até mesmo de Marx, Kant e Freud; de todo modo, é visto como um grande humanista, precursor de intelectuais de renome, alguém que deu o primeiro e importante passo para as luzes do conhecimento e da razão há tempos ocultos pelas trevas medievais. 

No último dia 31 comemorou-se 506 anos da Reforma Protestante. É inegável que Lutero é uma das personalidades mais poderosas de toda a história; para o bem ou para o mal. No entanto, como geralmente acontece, criou-se em torno da figura do Reformador uma aura que o deixa quase intocável; uma devoção tamanha, mesmo em meio católico, que faz com que muitos historiadores ignorem o fato de que, em Lutero, unem-se o reformador, o agitador, o cúmplice e o reacionário para formar uma personalidade complexa que, em muitos pontos, foi totalmente anti-humanista e contrária à liberdade. 

Otto Maria Carpeaux, em sua História da Literatura Ocidental, no volume em que trata do Renascimento e da Reforma Protestante, lembra que a Reforma e Renascença se encontraram, sim, mas de um modo bem mais agressivo: quando os luteranos comandados pelo imperador Carlos V invadiram e saquearam a cidade de Roma, em 1527, destruindo o Humanismo Romano em torno da corte papal.

O filósofo Friedrich Nietzsche interpretou a Reforma como sendo um movimento radicalmente anti-renascentista e, nesse sentido, reacionário. Na Itália e na França, países onde a Renascença chegou a seu ápice, o Protestantismo não vingou: foi vencido e exterminado. Na Inglaterra o afastamento do Catolicismo e a aproximação do Protestantismo fez com que a Renascença chegasse com um atraso de um século. Já na terra natal do luteranismo, a Renascença só apareceu como produto de importação, e não durou muito.

Lutero é comumente visto como um monge rebelde que lançou fora o catolicismo no qual fora criado, tornando-se um pária dentro da Igreja, mas será isso verdade? A resposta mais apropriada seria não; pelo menos não totalmente. 

O protestantismo gaba-se de ter fundamentado e construído sua fé exclusivamente sobre as Sagradas Escrituras, para que houvesse um retorno ao cristianismo primitivo, apagado pela idolatria da Igreja Católica. “Quando tudo parecia perdido, um monge lê à luz de velas: o justo viverá pela fé” é uma das frases divulgadas para resumir a motivação da revolta luterana. No entanto, a realidade mostra que não foi bem isso. A dogmática católica foi adotada com pouquíssimas modificações pelos protestantes ortodoxos. A religião de Lutero não teve como objetivo, ao contrário da de Erasmo, criar uma Renascença cristã, um retorno ao cristianismo dos primeiros séculos. 

É de comum acordo entre vários estudiosos que Lutero era, acima de tudo, um homem medieval, um monge agostiniano. Como lembra Carpeaux, os problemas de Lutero são os problemas de uma mente medieval, a saber, predestinação, concupiscência, boas obras etc. O viver pela fé, em Lutero, é mais um auxílio sacramental para uma vida santa que a expressão de um individualismo religioso. A pretensão de destruir a autoridade do Papa só existiu acompanhada de elevar a autoridade do Estado leigo que deveria substituí-la – só se destrói aquilo que se substitui, já dizia Nietzsche . 

De modo algum, continua Carpeaux, ele renegou a tradição da Igreja e o culto aos santos, como todo o resto, em nome do racionalismo ou da liberdade religiosa, mas para conservar o que ele acreditava ser a única e infalível autoridade: o Verbo Divino. A própria Igreja Luterana, na confissão de Ausburg, pôde fazer concessões ao catolicismo tais como conservar as imagens dos santos e até mesmo trechos da liturgia católica. A Igreja Luterana, cabe a observação, não cansava de se dizer um galho separado do catolicismo. Somente o protestantismo liberal de Schleiermacher, no século XIX, pode ser chamado de “Renascença cristã”, pois nele todos os traços da Igreja medieval foram impiedosamente destruídos em nome do racionalismo e do livre-pensamento.

No colóquio de Marburg (1529), Lutero acusou um outro reformador, Zuínglio, de Anticristo, um recurso constante em seus escritos – em 1520, no livro À Nobreza Cristã da Nação Alemã, já havia identificado o Papa com o Anticristo –; e chamou seus seguidores de “demônios fanáticos”. Exemplos como esse são numerosos na vida de Lutero, que jamais tolerou a menor dissidência religiosa e sempre perseguiu, com a ferocidade com que o Apóstolo Paulo, antes da visão no caminho de Damasco, perseguia os primeiros cristãos. Esse desejo de conseguir submissão pela força e pela violência não surgiu com sua versão protestante. Ainda na juventude escrevia que estava preparado para ser um “assassino brutal” e tirar a vida de quem se atrevesse a negar a autoridade do Papa.

Esse Lutero defensor da tolerância e da liberdade dos povos só existe em fábulas posteriores, pois o verdadeiro Lutero, o Lutero de carne e osso, agia em nome dos príncipes alemães para prejudicar a Universitas Christiana através de um cisma religioso que lhes daria o poder. Não há nada mais intolerante que o famoso princípio protestante do cuius regio, eius religio (de quem é a região, dele se segue a religião), que determina que o senhor local tem o direito legítimo de impor a sua religião aos seus súditos. E de fato, essa foi a forma preferida de se propagar o protestantismo nas primeiras décadas da Reforma. 

Em 1560, por exemplo, o Parlamento escocês aboliu por lei o catolicismo e obrigou todos a aderirem a Igreja Calvinista Presbiteriana, decretando pena de morte a todos os católicos da Escócia. Tribunais religiosos foram criados, os padres foram obrigados a escolher outra profissão, igrejas e mosteiros foram destruídos e livros católicos foram queimados.

Imposição religiosa e protestantismo sempre andaram lado a lado. Não à toa João Calvino (1509-1564) criou o primeiro Estado totalitário da modernidade e era conhecido como o “Papa de Genebra”, que criou uma verdadeira “polícia da fé”, extremamente radical.  É de ampla comprovação que muitos estudiosos e cientistas foram mandados à fogueira por Calvino, inclusive o médico e humanista espanhol Miguel Servet Griza (descobridor da circulação do sangue), que em um Conselho presidido pelo próprio Calvino, foi condenado a ser queimado sob a alegação de que suas ideias eram contrárias à Bíblia. 

Na Alemanha, Lutero em pessoa exigiu perseguições aos Anabatistas, um ramo radical do protestantismo que não aceitava os “dogmas” Luteranos. Essa atitude causou diretamente o exílio, o encarceramento, a tortura e o assassinato de milhares de camponeses. Tomas Munzer, o líder dos anabatistas, teve sua cabeça cortada fora, como prévia do período mais sangrento da Revolução Francesa com sua guilhotina. 

Em seu artigo Martinho Lutero Como a Escola Nunca Ensinou: Anti-latino e Antissemita, publicado no El País, em 24 de junho de 2017, María Elvira Roca Barea lembra que Lutero, além de anti-latino – foi em seu tempo que o adjetivo welsch passou a significar ao mesmo tempo latino e imoral, ou malvado – era profundamente anti-semita. O pai da reforma dedicou, no livro ‘Sobre os Judeus e Suas Mentiras‘, escrito em 1543, parágrafos horripilantes aos judeus: 

“Devemos primeiro atear fogo às suas sinagogas e escolas, sepultar e cobrir com lixo o que não incendiarmos, para que nenhum homem volte a ver deles pedra ou cinza.”

O programa nazista, como bem disse o filósofo alemão Karl Jasper, está prefigurado em Martinho Lutero. Hitler, não por acaso, propagava, durante as eleições de 1933, um cartaz no qual a cruz gamada dividia espaço com a imagem de Lutero.

O mito de que Lutero agiu puramente para abrir as portas dos céus que a Igreja Católica, do alto de sua ganância corrupta, havia fechado para o povo também enfrenta grande resistência quando se dá conta que a Reforma, como atesta o padre e filósofo Jaime Balmes, é fruto do seu tempo. E qual o Zeitgeist, o espírito do tempo, em que viveu Lutero?

A ensaísta, escritora e professora espanhola María Elvira Roca Barea, especializada em filologia e literatura medieval, afirma, em seu livro Imperiofobia e Lenda Negra, que as revoltas acontecidas na época de Lutero apresentam um diferencial bastante significativo, se comparado à outras rebeliões onde se confundem tensões sociais e espirituais: a idéia de que o catolicismo representa uma potência estrangeira e, portanto, ilegítima. Em sua Queixa e Admoestação Contra o Poder de Roma (1520), por exemplo, Ulrich von Hutten encoraja os alemães a conquistar independência da tutela de Roma.

O cisma luterano, continua María Elvira, é a manifestação de um problema político, camuflado sob um contexto religioso. 

As pregações desse período geralmente inflamavam revoltas populares, e com Lutero não foi diferente. Em 1524, continua María Elvira Roca Barea, estourou a revolta que ficou conhecida como Guerra dos Camponeses, a mais importante revolta popular da Europa até a Revolução Francesa. Lutero, percebendo a magnitude do conflito, escolheu seu lado: o dos príncipes contra os camponeses. Homens e mulheres esmagados sem dó nem piedade, enquanto o pai da Reforma condenava suas almas ao mais profundo inferno.

Para “santificar” a reação sangrenta e implacável dos príncipes, Lutero escreveu um texto onde dava total apoio aos senhores alemães e condenava veementemente qualquer espécie de revolta vinda do povo contra o principado. Intitulou a obra de Contra as Hordas de Camponeses Assassinos e Ladrões, onde pode-se ler

“[…] mergulho a minha pena no sangue: os seus membros devem ser aniquilados, estrangulados, esfaqueados, secreta ou publicamente, por quem possa fazê-lo como se matasse cachorros loucos”.

E esse mesmo tom será usado repetidas vezes por Lutero em seus panfletos e escritos contra o catolicismo. Dois pontos serão repetidos até a exaustão:

  • 1. A Igreja Católica é representante de um poderio estrangeiro, não nacionalista. Portanto, ficar do lado de Lutero é escolher a Alemanha. É proteger sua nação de um povo que visa sua destruição.
  • 2. Os bens da Igreja são fruto de roubo, de saques feitos pelos estrangeiros. Portanto, é lícito e moral confiscá-los.

Nos três primeiros panfletos de Lutero o imperador é convocado a aniquilar Roma e destruir o papa. Em todas as suas resoluções era claro em Lutero o intenso nacionalismo alemão em detrimento do catolicismo reinante. Não à toa os príncipes viram na Reforma uma oportunidade de ouro para conseguir a tão sonhada independência e a tão buscada legitimidade teológica para saquear os bens da Igreja. E assim o fizeram. Até a Revolução Russa, diz María Elvira Roca Barea, não houve latrocínio comparável no Ocidente. 

Enfim, todos os anos, no aniversário da Reforma, ouvimos muitas coisas acerca de seu maior expoente, mas o que não ouvimos é que Lutero tornou-se, desde cedo, um defensor ferrenho das oligarquias senhoriais que prenderam a Alemanha debaixo de uma pobreza e atraso que há muito haviam sido superadas em países como a Espanha. Tais oligarquias agiam para manutenção de um sistema feudal tardio que impediu a unificação da Alemanha e mergulhou a região em caos e opressão. 

Somente um tolo poderia negar os pontos positivos da Reforma Protestante e julgar os protestantes atuais pelo que fizeram os reformadores, sobretudo Lutero. Não pretendo, com este texto, dar a palavra final sobre o assunto e muito menos atacar meus irmãos protestantes, por quem nutro profundo carinho. Pessoas que, caso conhecessem os fatos expostos neste ensaio, jamais iriam nutrir qualquer tipo de admiração ao pai da Reforma. No entanto, os críticos da Inquisição – recomendo urgentemente a leitura do livro A Inquisição: um tribunal de misericórdia, do Cristian Iturralde – já que exibem tanta santidade e temor a Deus, deveriam fazer mea culpa por todos os crimes, abusos e difamação cometidos contra os católicos e contra seus próprios irmãos protestantes antes de apontarem os erros da Igreja Católica. É recomendação bíblica: tira primeiro a trave do teu olho. 

São Luís, 02 de Novembro de 2023, solenidade dos fiéis defuntos.


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Sobre o Autor ou Tradutor

Michael Amorim

Michael Amorim é casado com a Indiara Amorim e pai do João Lucas e do Luís Miguel. Mora em São Luís do Maranhão onde graduou-se em filosofia pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA, e fundou o Instituto Cultural Carcarás. Também serve como acólito no convento carmelita Carmelo São José. Mais informações sobre o autor no Instagram: @michael25amorim.

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